Ações no Superior Tribunal de Justiça causam incertezas quanto ao futuro dos tratamentos dos autistas
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“Se o meu filho não tivesse feito ABA, posso afirmar que com certeza ele não teria metade das habilidades que tem hoje”. É dessa maneira que a mãe Josiane Mariano define os avanços dos últimos cinco anos do filho Heitor (9). Desde os quatro anos de idade, o menino, que possui o Transtorno do Espectro Autista (TEA) participa de terapias por meio da Análise do Comportamento Aplicada, ABA (Applied Behavior Analysis, termo para a sigla em inglês). As intervenções são baseadas na abordagem da psicologia bastante utilizada na compreensão do comportamento de pessoas com autismo e outros atrasos no desenvolvimento.
Geralmente, a intervenção ABA envolve psicólogos, psicopedagogos, fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais, que trabalham juntos de acordo com as necessidades de cada paciente. A indicação da terapia é feita por um médico, e a partir de uma avaliação conduzida por um Analista do Comportamento, define-se a quantidade de sessões que deve ser realizada para cada um. Os avanços de cada indivíduo com TEA são acompanhados regularmente pelos profissionais especializados – certificados internacionalmente pelo BACB® (Behavior Analyst Certification Board) e psicólogos licenciados.
Essa ciência, que teve origem nos Estados Unidos, é amplamente utilizada no país e possui resultados efetivos e reconhecidos para indivíduos autistas. Vários centros norte-americanos de pesquisa e programas de formação em universidades auxiliam em estudos acerca dos benefícios que as atividades desenvolvidas pela ABA trazem para os pacientes:
“Por conta de toda a tecnologia ter sido desenvolvida de maneira estruturada e baseada em critérios científicos, a sua eficácia foi repetidamente demonstrada e reportada em periódicos de alto padrão acadêmico. Anos de pesquisa e publicação rendeu às intervenções baseadas na ABA o conceito de práticas baseadas em evidências e a sua aceitação no contexto clínico e escolar”, é o que afirma Andresa de Souza, PhD, BCBA-D, professora na University of Missouri St. Louis, nos Estados Unidos, e coordenadora do programa de pós-graduação em Análise do Comportamento Aplicada.
Além das mudanças percebidas pelas famílias dos pacientes, os benefícios alcançados por meio da ABA também são constatados pela Mestre, Doutoranda e Pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) em Análise do Comportamento Aplicada, Renata Michel. Ela diz que, enquanto os tratamentos convencionais ainda não demonstram quaisquer benefícios, a ABA constata a melhora dos pacientes “que inclui desde o desenvolvimento da linguagem, habilidades de independência básicas até o ensino de habilidades acadêmicas e a capacitação dos indivíduos para a inserção no mercado de trabalho”, comenta.
O autismo no mundo e no Brasil
De acordo com dados do Centro de Controle de Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, uma a cada 54 crianças em todo o mundo será portadora do Transtorno do Espectro Autista em 2020. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma em cada 160 crianças no mundo é autista, e a própria OMS indica ABA como sendo o tratamento cientificamente comprovado para pessoas com autismo. Aqui no Brasil, o tratamento de pessoas com TEA envolve equipes multidisciplinares e acompanhamento individualizado, tanto no Sistema Único de Saúde (SUS) quanto pelos planos de saúde, porém, a aplicação da ABA ainda não está inserida nos procedimentos oferecidos pelos mesmos e o tratamento é encontrado em clínicas particulares, especializadas na intervenção.
Para muitas famílias que possuem planos de saúde, como a do Heitor, é nesse momento que começa o drama do tratamento e muitos casos vão parar na justiça, já que ter acesso à ABA não é uma tarefa fácil. Algumas empresas não oferecem atendimento especializado e alegam que a terapia não faz parte do rol de procedimentos obrigatórios da Agência Nacional de Saúde (ANS), negando assim o custeio da intervenção:
“Esse rol é editado a cada 2 anos e representa apenas a referência mínima obrigatória de procedimentos que um plano de saúde deve oferecer para que a sua comercialização seja permitida. Dessa forma, os pacientes com autismo que necessitam de tratamento especializado, não cobertos pelos planos de saúde, precisam ingressar com uma “Ação de Obrigação de Fazer” a fim de que tenham seu direito ao tratamento garantido pela justiça. Hoje em dia, esse tem sido o único meio de garantir o acesso dos autistas a um tratamento de saúde de qualidade”, lamenta a advogada especialista em direito à saúde, Débora Lubke.
Ações no STJ para tratamento de autistas
A posição sobre a obrigatoriedade de custeio do tratamento por parte dos planos de saúde, mesmo que não façam parte no Rol da ANS, é pacificado entre a maioria dos magistrados de primeira instância e unânime em todas as Súmulas dos desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Entretanto, em dezembro de 2019, a 4ª Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça) julgou improcedente o direito de uma paciente a uma cirurgia que utilizava técnica não listada no rol da ANS, alegando que o rol é taxativo e, portanto, os planos de saúde não possuem qualquer obrigatoriedade de fornecer procedimentos que ali não estejam listados. Já a 3ª Turma da mesma Corte não compartilha do mesmo entendimento e continua decidindo a favor das famílias, garantindo o direito dos pacientes a ter atendimento por meio da ABA:
“Isso significa que uma ação judicial que é distribuída na 4ª Turma terá uma decisão negativa ao paciente e seu tratamento será imediatamente interrompido. Dessa decisão desfavorável cabem recursos que podem ser encaminhados às outras Turmas do STJ, caso fique comprovada a divergência nos julgados. Por outro lado, um processo distribuído à 3ª Turma terá uma decisão favorável ao paciente e esse permanecerá recebendo o tratamento pelo plano de saúde”, comenta a advogada Débora Lubke.
A Pesquisadora da PUC-SP, Renata Michel, lamenta:
“Enquanto diversos outros países estabelecem e chancelam a ABA como “padrão ouro” no tratamento do TEA, a decisão da quarta turma no STJ demonstra um retrocesso no entendimento do judiciário que, claramente, ignora a ciência e se apoia na não presença da ABA no rol da ANS a qual, vale lembrar, não nega a eficácia da ABA, mas tão somente ainda não a incluiu em seu rol, possivelmente por razões quaisquer que não a apreciação da ciência.”
A luta pelo tratamento de Heitor
Foi através de uma ação na justiça que Josiane garantiu o acesso do Heitor ao tratamento, em 2014. A criança foi levada para São Paulo, onde uma perícia constatou a necessidade do menino em fazer a ABA. Só assim os procedimentos foram liberados pelo plano de saúde. Foram dois anos até que saísse a decisão final da justiça, mas as incertezas continuam: “Ele não tem fonoaudióloga e terapeuta ocupacional garantidas, tudo é por meio de liminar. Ele só tem garantido o processo do ABA e, apesar disso, eu ainda me sinto insegura, com medo de que acabe mudando alguma coisa e eu venha a perder. E disso depende o futuro do meu filho. É extremamente aterrorizante”, lamenta Josiane.
Renata Michel comenta que a interrupção de um tratamento de uma criança autista pode acarretar severos prejuízos ao paciente:
“Os riscos envolvem desde a regressão/perda de habilidades aprendidas e o surgimento de comportamentos inadequados, que impossibilitam a integração social e independência do mesmo. É algo realmente muito sério.”
E a mãe Josiane Mariano finaliza, indignada com essa situação:
“É revoltante ver que isso é questionado. É um direito que o meu filho tem a ter saúde, então, é super revoltante e, ao mesmo tempo, dá medo porque a gente fica à mercê das decisões das quais a gente não participa.”
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