Luan Carlos Andrade Costa – Acadêmico de Direito pela Universidade José do Rosário Vellano – UNIFENAS, luancosta04@hotmail.com;
Danielle Bastos Corrêa Belchior – Mestre em Direito Público pela UNIFRAN, professora de Direito Processual Civil: UNIFENAS e UNILAVRAS, Advogada, daniellebelchior@yahoo.com.br;
Resumo: Através de recortes bibliográficos e análises jurisprudenciais, este artigo analisa o garantismo processual frente às causas e os efeitos jurídicos da atuação ativista do Poder Judiciário nas decisões que relativizam a regra da impenhorabilidade dos salários e expandem o rol de exceções previstas no artigo 833, §2º, do Código de Processo Civil brasileiro. Atravessar-se-á a seara do direito do trabalho, rumo ao histórico do salário e da proteção deste frente o instituto da penhora – presente no processualismo civil nacional – e a mitigação desta proteção decorrente do viés ativista presente no Poder Judiciário, trazendo à baila uma discussão, cujo teor emerge no cenário jurídico do país, sobre o atrito entre as correntes do ativismo judicial e do garantismo processual e suas efetivas posições doutrinárias, relativas às regras de impenhorabilidade dos salários, comparando-as às fundamentações das decisões judiciárias. Por fim, buscar-se-á esclarecer a urgente necessidade de se estabelecer uma discussão democrática sobre a dissonância das decisões ativistas com os direitos fundamentais previstos na CRFB/88 e com o princípio da tripartição dos poderes, com ênfase especial no desrespeito jurisprudencial às regras definidas pelo Congresso Nacional quanto ao rol de exceções à regra da impenhorabilidade dos salários.
Palavras-chave: Garantismo Processual. Ativismo Judicial. Relativação. Impenhorabilidade dos salários.
Abstract: Through bibliographic clippings and jurisprudential analyzes, this article looks at the procedural guarantee in relation to the causes and the legal effects of the activist actions of the Judiciary in the decisions that relativize the rule of unseizability of salaries and expand the list of exceptions provided in article 833, paragraph 2 of the Brazilian Code of Civil Procedure. The labor law section of the Code of Civil Procedure will be traversed, towards the history of wages and the protection of this front – the institution of attachment – present in national civil proceduralism – and the mitigation of this protection resulting from the activist bias present in the Judiciary, bringing to light a discussion, whose content emerges in the legal scenario of the country, on the friction between the currents of judicial activism and procedural guaranty and their effective doctrinal positions, relating to the rules of the unseizability of wages, comparing them to the foundations of judicial decisions. Finally, an attempt will be made to clarify the urgent need to establish a democratic discussion on the dissonance of activist decisions with the fundamental rights provided for in the CRFB/88 and with the principle of tripartite powers, with special emphasis on the jurisprudential disrespect for the rules defined by the National Congress regarding the list of exceptions to the rule of the unseizability of salaries.
Keywords: Procedural guarantees. Judicial Activism. Relativism. Unseizability of wages.
Sumário: Introdução. 1. A doutrina garantista histórica e contemporânea. 2. As lacunas legais e a inafastabilidade da jurisdição. 3. Noções sobre o salário e sua impenhorabilidade. 4. Ativismo judicial e a relativização da regra da impenhorabilidade do salário. Considerações finais. Referências.
Introdução
Cuida a pesquisa de tema extremamente atual, e que certamente não sairá dos tabloides e congressos jurídicos pelos próximos anos, assim, o presente artigo trará uma abordagem histórico-contemporânea sobre o garantismo processual e sua relação conflituosa com o ativismo judicial.
Com ênfase especial nas recentes decisões judiciárias que relativizam a regra da impenhorabilidade dos salários e expandem o rol de exceções previstas no art. 833, §2°, do CPC/15, este brevíssimo estudo irá analisar de forma concisa as consequências jurídicas dessa relativização, e sua afronta ao direito fundamental à proteção dos salários e à garantia de impenhorabilidade dos salários, indicados expressamente na Constituição Federal e no Códex Processual Civil, respectivamente.
Conceituar-se-á o salário e a doutrina garantista, atravessando-se a consequente relação entre estes institutos, culminando no resultado excelso desta, a regra da impenhorabilidade do salário prevista no artigo 833, §2°, do CPC.
Por meio de recortes bibliográficos de obras como de Romano (1977) e Ferraz Jr. (2018), a partir da análise de decisões judiciárias, a presente pesquisa é um convite à reflexão acerca dos efeitos que a mitigação jurisprudencial da regra da impenhorabilidade dos salários e a expansão do rol de exceções previstas no art. 833, §2°, do CPC/15 podem trazer para o cenário jurídico/judiciário nacional.
1 A doutrina garantista histórica e a contemporânea
No estudo do garantismo processual é inevitável fazer uma íntima ligação deste com o gênese do movimento constitucionalista moderno europeu do século XVIII. “Depois da Revolução Francesa, as monarquias absolutas, forçadas, transformaram-se em monarquias constitucionais, e o monarca passou a compartir o poder com as novas forças sociais […]”. (MENDES; BRANCO, 2018, p. 67). Com a mister finalidade de colocar freios à atividade estatal, na época, absolutista, e aos atos arbitrários de seus entes, surge a noção clássica de “o poder frear o poder” (MONTESQUIEU, 1982, p. 186).
Para Paolo Comanducci (2002) ainda que existam variáveis modelos constitucionais em todo o mundo, todos detém um objetivo invariável: a limitação do poder para impedir o despotismo. Neste seguimento, o autor ainda faz a distinção entre um constitucionalismo débil e um forte (liberal), sendo que apenas o segundo estabelece a garantia dos direitos fundamentais perante o poder estatal.
Neste mesmo espeque, compreende-se que a expressão constitucionalismo “designa as instituições e os princípios que são adotados pela maioria dos Estados que, a partir dos fins do século XVIII, têm um governo que, em contraposição àquele absoluto, se diz ‘constitucional’” (ROMANO, 1977, p. 42).
Neste azo, surge a doutrina do garantismo processual que, descrito por N. Bobbio, ao prefaciar a obra Direito e Razão de Luigi Ferrajoli (2002, p.7), emana do interesse em elaborar:
“[…] um sistema geral do garantismo jurídico ou, se se quiser, a construção das colunas mestras do Estado de direito, que tem por fundamento e fim a tutela das liberdades do indivíduo frente às variadas formas de exercício arbitrário de poder”.
Diante das mudanças históricas no contexto social, democrático e judiciário, a doutrina garantista nacional necessitou de um processo de metamorfose, e, neste momento, com fincas a frear as relativizações de direitos fundamentais e a hermenêutica ativista da jurisprudência pátria, a qual resulta, dentre outros equívocos, nas interpretações extensivas de normas de caráter restritivo. Para Montero Aroca “o garantismo é a luta contra a publicização, nome que se dá ao fenômeno do século XX que se caracteriza pelo favorecimento extremo do coletivismo a ponto de se suprimirem direitos fundamentais das pessoas”. (2006, p. 165).
Segundo a doutrina do Prof. Adolfo Alvarado Velloso (2013, p. 13):
“O garantismo processual é uma posição doutrinária firme (=aferrada) quanto à manutenção da irrestrita vigência da Constituição e, com ela, da ordem legal vigente no Estado, de modo que tal ordem se adeque com plenitude às normas programáticas dessa mesma Constituição.”
Contemporaneamente, a corrente garantista busca a manutenção da ordem constitucional do Estado, preocupando-se com a estabilização e segurança jurídica da jurisprudência nacional. Em outras palavras, é a luta por uma jurisdição invariante e que priorize a unificação jurisdicional (princípio da jurisdição UNA), na qual os magistrados privilegiem as garantias processuais e julguem conforme os ditames infra e constitucionais.
Esta posição doutrinária concede maior importância ao devido processo legal e às garantias legais e constitucionais como meio legitimador da tutela buscada em juízo. A partir dessa visão, garante-se a segurança jurídica a que os postulantes fazem jus em um Estado Democrático de Direito.
2 As lacunas legais e a inafastabilidade da jurisdição
Como uma aliada na busca pela segurança jurídica, estabelece-se a ordem legal do Estado Democrático de Direito brasileiro pautado na chamada Civil Law, na qual “há a preponderância da produção legislativa (ius ex lege), na medida em que a lei é fonte principal ou direta [do direito], enquanto a analogia, costumes e princípios gerais são fontes subsidiárias ou indiretas”. (MORAES, 2018, P.38).
Dentre os principais vetores deste sistema está a busca pela segurança jurídica no ordenamento jurídico regente. Neste azo, a vinculação das decisões estatais ao pretexto legal são essenciais para a efetivação da estabilidade jurídica tão almejada, e para o combate à arbitrariedade e à discricionariedade do sistema estatal, in casu, em especial, por parte do Poder Judiciário.
Entretanto, a positivação das normas de modo expresso e pleno nos diplomas legais presentes na ordem jurídica do país é uma atividade conjunturalmente impossível, diante da infinidade de hipóteses fáticas a serem previstas pelos legisladores, mormente diante das modificações culturais e sociais que ocorrem com o decorrer do tempo. Neste caminho Guilherme Sandoval Góes (2018, p. 150) explana:
“Sem nenhuma dúvida, o positivismo jurídico não tem elementos conceituais suficientes para produzir uma solução constitucionalmente adequada para os casos difíceis, mormente quando se leva em conta sua dinâmica exegética calcada na subsunção silogística, que irá tentar encontrar desesperadamente a norma previamente legislada, mas não a encontrará.”
Diante desta celeuma, reconhecendo a incapacidade legislativa plena dos entes competentes, o próprio legislador e a doutrina apresentam mecanismos de transcendência destas lacunas legais.
Na esfera constitucional, o Poder Constituinte, a fim de assegurar o exercício de direitos fundamentais dispostos na Carta Magna, apresenta os mecanismos formais (previstos em lei) supressores de omissões e de defeitos eventualmente presentes em dispositivos legais.
Quanto às omissões da lei, estabelecem-se o Mandado de Injunção (5º, inc. LXXI, 102, incs. I, q e II, a, 105, inc. I, h, e 121, § 4º, inc. V, da CRFB) e a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por Omissão (art. 103, §2°, da CRFB), que na lição de Guilherme Sandoval Góes (2018, p. 129) são dispostos por:
“Em essência, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão é uma das modalidades do controle abstrato de constitucionalidade que se coloca ao lado do mandado de injunção, um dos remédios constitucionais, para que juntos possam combater a síndrome de inefetividade das normas constitucionais, notadamente, das normas de eficácia limitada.”
No que tange aos defeitos da lei, assentam-se as figuras do Controle Concentrado e do Controle Difuso de Constitucionalidade, que nas palavras de Moraes (apud NEVES, 2018, p. 527), configuram-se como:
“[…] o juízo de adequação da norma infraconstitucional (objeto) à norma constitucional (parâmetro), por meio da verificação da relação imediata de conformidade vertical entre aquela e esta, com o fim de impor a sanção de invalidade à norma que seja revestida de incompatibilidade material e/ou formal com a Constituição.”
Já na esfera infraconstitucional, o que antes era explicitado tão somente na doutrina, ganhou previsão expressa no revogado Código de Processo Civil de 1973 e na Lei de Introdução ao Código Civil (Lei 4.657/42), a qual esclarece em seu artigo 4° que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Como arrazoado por Flavio Tartuce (2019, p. 28-29):
“O dispositivo – art. 126 do CPC/73 – foi repetido em parte pelo art. 140 do Código de Processo Civil de 2015, com a seguinte expressão: ‘O juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico. Parágrafo único. O juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei’. Como se nota, o novo preceito não faz mais menção à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito, remetendo a sua incidência ao art. 4.º da Lei de Introdução […]. De toda sorte, está mantida a vedação do non liquet ou não julgamento.”
Portanto, compreende-se que, na inexistência de norma expressa – fonte primária do Direito, reguladora da relação jurídica sub judice, o magistrado deverá utilizar-se das fontes secundárias do direito, quais sejam, a analogia, os costumes e os princípio gerais, sendo-lhe facultado, similarmente, a utilização das chamadas, fontes não formais, que “em uma visão clássica do ordenamento jurídico, são aquelas que não constam expressamente da Lei de Introdução, sendo constituídas pela doutrina, pela jurisprudência e pela equidade” (TARTUCE, 2019, p. 65).
3 Noções sobre o salário e sua impenhorabilidade
A caminho da temática específica deste escrito, faz-se premente adentrar-se na seara do Direito do Trabalho para se esclarecer os porquês da proteção ao salário, que, em suma, na conceituação de Martins (2014), é palavra derivada do latim salarium e representa a forma como eram realizados os pagamentos das legiões romanas pelos trabalhos prestados naquela época, e, mesmo que posteriormente a forma de pagamento tenha evoluído e sido alterada, o primeiro modelo empregado marcou a nomenclatura e por isto até hoje a contraprestação por um trabalho realizado recebe esse nome.
Este instituto representa a transformação social e a migração da sociedade saindo do regime escravocrata para o regime da liberdade de trabalho. Como expressado por Leite (2018, p. 404):
“Com o advento do Tratado de Versalhes é que o salário deixa de ser simples componente do custo final da produção dos bens e dos serviços, passando a ser disciplinado internacionalmente como forma de socialização, de valorização e de retribuição do trabalho humano, bem como de subsistência do trabalhador e de sua família.”
Para Martins (2014, p. 248):
“[…] o salário é a prestação fornecida diretamente ao trabalhador pelo empregador em decorrência do contrato de trabalho, seja em razão da contraprestação do trabalho, da disponibilidade do trabalhador, das interrupções contratuais ou demais hipóteses previstas em lei”.
Decorrente da evolução e transformação social, e da modificação na compreensão da natureza salarial, sustentado pelo princípio da dignidade da pessoa humana, nasce no ordenamento jurídico o instituto da impenhorabilidade dos salários, no qual se comunga que seria desumano expropriar o resultado financeiro do trabalho de uma pessoa após esta vender sua força laboral, evitando-se, assim, nas palavras de Figueiredo (2015), o perecimento do direito à vida digna do devedor, permitindo a manutenção da família e dos dependentes daquele.
Esta impenhorabilidade é resguardada devido o seu caráter de defesa e sua função como norma de efeito impositivo em face do poder estatal, obtendo previsão expressa no texto constitucional (art. 7°, inciso X), o qual indica que todos os trabalhadores, urbanos ou rurais, têm direito à proteção do salário na forma da lei, constituindo crime a sua retenção dolosa.
Não obstante, ao se discutir a penhorabilidade do salário, duas vertentes do princípio da dignidade da pessoa humana estão em jogo e devem ser observadas com cautela. De um lado, por parte do devedor, o direito ao mínimo existencial e ao recebimento do fruto da venda de sua força de trabalho; de outro, o direito do credor ao recebimento de seu crédito.
Em razão desta dicotomia, foi de primeva preocupação do legislador buscar equilibrar as pretensões de ambos os polos e estabelecer expressamente no art. 833, §2° do Código de Processo Civil as exceções/aberturas da regra da impenhorabilidade dos salários e das demais espécies de remuneração do devedor. São elas: a penhora para satisfação de créditos de caráter alimentício e a penhora nos casos em que o valor econômico recebido mensalmente pelo executado é superior ao índice de 50 salários-mínimos. Estas previsões idealizam, assim, proteger o devedor e, em parte, procurar satisfazer o crédito do exequente.
Em linhas conceituais, o autor Daniel Amorim Assunção Neves (2015, p. 356) dá conta que:
“A inovadora possibilidade de penhora de salários acima de 50 salários mínimos mensais vem de encontro à percepção já presente em algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça de ser plenamente compatível tal espécie de penhora e a preservação do princípio do patrimônio mínimo. Assim se satisfaz o direito de crédito do exequente e preserva-se a dignidade humana do devedor.”
Essa previsão colocou o Brasil numa posição de evolução na busca por um processo executivo verdadeiramente efetivo e se fez se de extrema importância para a segurança jurídica no âmbito judiciário, visto que, conforme Neves (2018), ainda durante a vigência do Código de Processo Civil de 1.973, a penhora dos salários e de rendimentos provenientes da atividade laborativa dos devedores, já vinha sendo objeto de cogitação por parte do Superior Tribunal de Justiça.
4 Ativismo judicial e a relativização da regra da impenhorabilidade do salário
Como sabido pela melhor doutrina, somente quando “não encontrando o juiz nenhuma norma aplicável à hipótese sub judice […], deve, então, proceder à integração normativa, mediante o emprego da analogia, dos costumes e dos princípios gerais do direito.” (GONÇALVES, 2018, p. 41). Entretanto, ocorre justamente o contrário no atual cenário da jurisprudência brasileira, no que concerne à impenhorabilidade dos salários.
Não obstante a preocupação do legislador em estabelecer explicitamente os limites econômicos, e trazer expressamente previstas no CPC as hipóteses de exceção à regra da impenhorabilidade dos salários no seu art. 833, §2º, a jurisprudência nacional vem relativizando a disposição e já possibilita a penhora dos salários para pagamento de dívidas não alimentícias e em casos que o devedor não possui renda superior à prevista em lei.
O próprio STJ em diversos casos já interpretou extensivamente as exceções previstas no referido diploma legal e permitiu a penhora de créditos de natureza salarial de devedores, afastando as exceções legais, como é o caso do Resp. 1.582.475 de Minas Gerais [1]e do REsp. 1.818.716 de Santa Catarina[2], ambas decisões sob a égide de que a penhora das remunerações, nestes casos, não afetariam a condição de vida e a subsistência dos executados, conforme excerto que segue da decisão monocrática exarada no REsp 1.818.716, que se relaciona com ambos os processos precitados:
“O Novo Código de Processo Civil, em seu art. 833, deu à matéria da impenhorabilidade tratamento um tanto diferente em relação ao Código anterior, no art. 649. O que antes era tido como ‘absolutamente impenhorável’, no novo regramento passa a ser ‘impenhorável’, permitindo, assim, essa nova disciplina, maior espaço para o aplicador da norma promover mitigações em relação aos casos que examina, respeitada sempre a essência da norma protetiva. […] Segundo entendimento jurisprudencial recente, firmado por este Superior Tribunal de Justiça, “a regra geral da impenhorabilidade de salários, vencimentos, proventos etc. (art. 649, IV, do CPC/73; art. 833, IV, do CPC/2015), pode ser excepcionada quando for preservado percentual de tais verbas capaz de dar guarida à dignidade do devedor e de sua família” (EREsp 1.582.475/MG, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, CORTE ESPECIAL, julgado em 03/10/2018, REPDJe 19/03/2019, DJe 16/10/2018, grifo do autor)” [3]
Entretanto, em contrariedade às decisão proferidas, extrai-se que ambos os fundamentos utilizados pela Corte Superior para dar provimento à possibilidade de penhora do salário do executado contrariam a ordem jurídica regente.
Em relação ao fundamento de possibilidade de expansão das exceções prevista em lei, a extensa boa doutrina de iniciação ao estudo do direito, tomando como base, neste caso, a lição de Ferraz Jr. (2018, p. 319) ensina que:
“[…] recomenda-se que toda norma que restrinja os direitos e garantias fundamentais reconhecidos e estabelecidos constitucionalmente deva ser interpretada restritivamente. O mesmo se diga para as normas excepcionais: uma exceção deve sofrer interpretação restritiva. No primeiro caso, o telos protegido é postulado como de tal importância para a ordem jurídica em sua totalidade que, se limitado por lei, esta deve conter, em seu espírito (mens legis), antes o objetivo de assegurar o bem-estar geral sem nunca ferir o direito fundamental que a constituição agasalha. No segundo, argumenta-se que uma exceção é, por si, uma restrição que só deve valer para os casos excepcionais. Ir além é contrariar sua natureza.”
Carlos Maximiliano (1988, p. 223), em uma magna e clássica lição, ensina que:
“As prescrições de ordem pública, em ordenando ou vedando, colimam um objetivo: estabelecer e salvaguardar o equilíbrio social. Por isso, tomados em conjunto, enfeixam a íntegra das condições desse equilíbrio, o que não poderia acontecer se todos os elementos do mesmo não estivessem reunidos. Atingido aquele escopo, nada se deve aditar nem suprimir. Todo acréscimo seria inútil; toda restrição prejudicial. Logo é caso de exegese estrita. Não há margem para interpretação extensiva, e muito menos para analogia”.
Quanto à alteração lexical trazida no Novo Código de Processo Civil, ao excluir, no caput do artigo 833, a expressão “absolutamente impenhoráveis”, utilizada no Códice revogado, por “impenhoráveis”, em nada altera na compreensão semântica da finalidade do legislador.
Este fundamento apresentado pelo julgador, nada mais é, do que a sua necessidade em criar argumentos para substanciarem uma decisão que este, pessoalmente, entende como justa para o caso sub judice, ainda que não existam meios legais ou hermeneuticamente capazes de sustentar sua “pretensão julgadora”.
Neste sentido, ainda que se tratem de matérias de núcleos diferentes, faz-se remeter à explanação exarada pelo Ministro Marco Aurélio Melo do Supremo Tribunal Federal, relator do julgamento da ADC 43/DF, que decidiu por indeferir a famigerada possibilidade de cumprimento provisório da sentença penal após o julgamento realizado em 2ª instância. Naquela oportunidade, no que cabe perfeitamente ao presente caso, o Ministro relator foi incisivo ao expressar que:
“O dispositivo [da lei] não abre campo a controvérsias semânticas. O preceito, a meu ver, não permite interpretações. Há uma máxima, em termos de noção de interpretação, de hermenêutica, segundo a qual, onde o texto é claro e preciso, cessa a interpretação, sob pena de se reescrever a norma jurídica, e, no caso, o preceito constitucional. Há de vingar o princípio da autocontenção.”[4]
É inviável e infundada a tentativa de desatrelar o texto legal de sua real finalidade, devendo ser reconhecida a equivalência semântica das ideias do legislador. Segregar a compreensão do texto legal dessa maneira é um desserviço à unidade jurisdicional tão proclamada, pois permitiria a discricionariedade no julgamento do magistrado. “Buscar tal diferenciação apenas serve para demonstrar posturas reacionárias, que não podem ser admitidas em um Estado Democrático de Direito”. (BADARÓ, 2015, p. 57).
Destarte, o que se esbulha das decisões, ora pelas proferidas pela Corte Superior, ora pelas outras diversas decisões proferidas no âmbito nacional que poderiam ilustrar o presente escrito, é a patente contrariedade destas aos textos infra e constitucionais que vedam e estabelecem exceções à penhora de salários dos devedores.
Movidas pelo ativismo dos magistrados atuantes e pelo desrespeito ao devido processo legislativo e à clássica doutrina do direito, os resultados encontrados pela atuação ilimitada do judiciário nacional são a ilegalidade e inconstitucionalidade dos julgados, que deformam a efetiva aplicação da lei quando não observam a hermenêutica jurídica específica às normas de natureza excepcional.
Neste sentido, L. Streck, em seu artigo “O Supremo, o contramajoritarismo e o ‘Pomo de ouro’”, analisa criticamente algumas decisões do Supremo Tribunal Federal brasileiro, extensíveis também ao Superior Tribunal de Justiça, e demonstra preocupação e prudência em distinguir os fenômenos da judicialização da política e o ativismo judicial:
“[…] a primeira – a judicialização – acontece porque decorre de (in) competências de poderes e instituições, abrindo caminho-espaço para demandas das mais variadas junto ao Judiciário; a segunda é, digamos assim, “behavorista”, dependendo da visão individual de cada julgador. A judicialização pode ser inexorável; o ativismo, não. O ativismo não faz bem à democracia”.[5]
Na concepção doutrinária das características da atividade jurisdicional, descritas por Díez-Picazo e Gullón (2005), o exercício da jurisdição, além de sua função julgadora em sentido estrito, perfaz-se em outras três funções inafastáveis e exaustivas, não podendo ultrapassá-las, sob pena de adentrar na seara dos demais Poderes da República. São elas: a interpretação estrita das normas, na qual se estabelece a extensão, o sentido e o significado de expressões ambíguas ou obscuras do texto legal; a integração, de caráter criativo/intelectual, dos textos normativos, que permite a extensão de conceitos ou de normas expressas vigentes a casos não abarcados pela ordem legal; e por fim, a instrumentalização dos princípios gerais do Direito, os quais antecedem a criação de normas ou entendimentos jurisprudenciais e detém caráter autônomo, podendo estes ser consagrados pelos julgados nos casos concretos.
Destarte, diante da presente exposição do entendimento doutrinário acerca das funções da atividade jurisdicional, bem como acerca dos mecanismos convencionais de alteração ou supressão normativa (Mandado de Injunção, Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por Omissão, Controles de Constitucionalidade – concentrado ou difuso), e também das características da hermenêutica jurídica das normas (interpretação restritiva de normas restritivas de direitos ou que onerem o tutelado), compreende-se que, neste momento, a recorrente expansão jurisprudencial do rol de exceções à regra da impenhorabilidade prevista no art. 833, §2°, do Código de Processo Civil de 2015 não encontra guarida no cenário jurídico do país.
Mesmo que seja criticável a regra estabelecida pelo legislador ao fixar o limite penhorável aos valores excedentes a 50 salários-mínimos mensais recebidos pelo devedor, porquanto são limitadíssimos os trabalhadores brasileiros que detém uma renda mensal tão abastada, é louvável a evolução normativa brasileira na busca por um processo executivo mais efetivo, posto que, no revogado Código de Processo Civil de 1973, sequer havia possibilidade de penhora de quaisquer tipos de rendimentos decorrentes de relações laborais dos executados. Desta maneira, é inegável que a evolução trazida pelo novo CPC, enseja e germina futuras reformas processuais para a modificação e expansão do limite penhorável para valores abaixo dos 50 salários-mínimos vigentes.
Considerações finais
Com as diversas lacunas legais existentes no sistema juspositivista brasileiro é inevitável que o Poder Judiciário assuma, por vezes, a responsabilidade de julgar situações fáticas não tuteladas por lei. Defronte a esta situação, o julgador deve se ater às fontes do direito, sejam elas, diretas (analogia, costumes e princípios gerais do direito) e/ou indiretas (jurisprudência, doutrina e equidade).
Contudo, a mitigação jurisprudencial da regra da impenhorabilidade dos salários e a expansão do rol de exceções previstas no art. 833, §2°, do CPC/15, não se enquadrando em hipótese de omissão legal, demonstra ser um julgamento extralegal, suprimindo um direito consagrado pelos representantes dos estados-membros e da população, após o devido trâmite legal do processo legislativo que culminou na aprovação da Lei 13.105/15. A função legisladora assumida pelo Poder Judiciário neste caso, fere, além do princípio da separação dos poderes, as regras de hermenêutica clássica, quanto à vedação à interpretação extensiva de regras que restringem direitos.
Não obstante a controvérsia quanto aos valores limitadores da penhora, se exagerados ou se pertinentes, esta discussão deve se situar nos âmbitos acadêmico, doutrinário e legislativo, ficando a cargo do Poder Judiciário, a defesa do direito consagrado pela lei acerca da impenhorabilidade do salário, não se deixando cair na tentação de “fazer justiça com as próprias mãos”, respeitando e fazendo-se respeitar as exceções estipuladas pelo Poder Legislativo no artigo 833, §2°, do Código de Processo Civil.
Ao contrário do que se parece, o judiciário não deve voltar a ser somente a boca da lei como na idade média, no entanto, este deve buscar solucionar os litígios com a observância da lei e das garantias processuais enraizadas pela CRFB/88 e pelo CPC/15, se curvando à sua adstrição à tripartição dos poderes, obedecendo e fazendo-se cumprir as leis e garantias estabelecidas pela legislação do país, utilizando-se de interpretações extensivas e analógicas somente em benefício das partes do processo.
O reconhecimento de direitos fundamentais, a partir do Poder Judiciário, e em caso de lacunas legislativas, em nada obsta e em nenhum instante traz contratempos e empecilhos à incolumidade jurídica do ordenamento legal do país. Entretanto, a supressão de direitos fundamentais, como no presente caso, traz à tona o receio em torno de uma possível substituição do texto da lei pela jurisprudência, e de uma potencialização de um indesejado ativismo judicial, uma interpretação “moral”, e, por vezes, solipsista das leis, que abale a segurança jurídica do Estado Democrático de Direito e restrinja direitos consagrados pelo legislador.
Admitir interpretação extensiva de regras que restringem direitos fundamentais, como o rol de exceções à impenhorabilidade dos salários previstas no art. 833, §2°, do CPC, é inadmissível quando se tem uma aplicação imaculada, afastada de interesses arbitrários e pessoais de justiça, da regra hermenêutica de vedação à interpretação extensiva de normas de caráter restritivo de direito, da interpretação constitucional do Código de Processo Civil de 2015 e do respeito político e harmonioso ao devido processo legislativo.
Referências
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 57, 2015.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.818.716/SC. Recorrente: Cooperativa de Crédito de Livre Admissão de Associados São Miguel do Oeste – SICOOB São Miguel-SC. Recorrido: Caroline Alves Charão e Cláudia Regina Mendes Alves. Relator: Min. MARCO BUZZI em sede de decisão monocrática. Brasília, 25 de junho de 2019. Disponível em: <https://scon.stj.jus.br/SCON/decisoes/toc.jsp?livre=1.818.716&b=DTXT&thesaurus=JURIDICO&p=true>. Acesso em: 26 fev. 2020.
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Declaratória de Constitucionalidade n.º 43/DF. Relator: Ministro Marco Aurélio. Tribunal Pleno. O Tribunal, por maioria, nos termos e limites dos votos proferidos, julgou procedente a ação para assentar a constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei nº 12.403, de 4 de maio de 2011. Vencidos o Ministro Edson Fachin, que julgava improcedente a ação, e os Ministros Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Luiz Fux e Cármen Lúcia, que a julgavam parcialmente procedente para dar interpretação conforme. Presidência do Ministro Dias Toffoli. Plenário, 07.11.2019. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadTexto.asp?id=4966014&ext=RTF> . Acesso em: 01 abr. 2020.
COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo) constitucionalismo: un análisis metateórico. Isonomía: Revista de Teoría y Filosofía del Derecho. v. 16. pp. 75-98, 2002.
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[1] O REsp 1.582.475/MG se origina em execução de título extrajudicial envolvendo pessoas físicas, instruída por nota promissória, no qual o juízo de 1° grau deferiu o pedido de penhora do salário do devedor, decisão que, em sede revisional, por meio de recurso de agravo de instrumento interposto pelo devedor, foi mantida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, sendo, a posteriori, confirmada pelo Ministro Paulo de Tarso Sanseverino em decisão monocrática como relator do Recurso Especial, sendo, por derradeiro, ratificada pelo colegiado especial do Superior Tribunal de Justiça, permitindo a penhora de 30% (trinta por cento) da remuneração do devedor.
[2] O REsp 1.818.716/SC tem origem em execução de título extrajudicial, baseada em cédula de crédito bancário, expedida por Cooperativa de Crédito em favor de pessoa física, na qual, em sede de revisão, por meio de agravo de instrumento interposto pelo devedor em face da decisão de 1ª instância, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina manteve a impenhorabilidade do salário, conforme a regra do Código de Processo Civil, e, ulteriormente, em análise monocrática por parte do Ministro Marco Buzzi, o STJ reformou a decisão para determinar a penhora de 25% (vinte e cinco por cento) do salário do devedor, norteado pelo entendimento jurisprudencial da corte.
[3] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.818.716/SC. Recorrente: Cooperativa de Crédito de Livre Admissão de Associados São Miguel do Oeste – SICOOB São Miguel-SC. Recorrido: Caroline Alves Charão e Cláudia Regina Mendes Alves. Relator: Min. MARCO BUZZI em sede de decisão monocrática. Brasília, 25 de junho de 2019. Disponível em: <https://scon.stj.jus.br/SCON/decisoes/toc.jsp?livre=1.818.716&b=DTXT&thesaurus=JURIDICO&p=true>. Acesso em: 26 fev. 2020.
[4] BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Declaratória de Constitucionalidade n.º 43/DF. Relator: Ministro Marco Aurélio. Tribunal Pleno. O Tribunal, por maioria, nos termos e limites dos votos proferidos, julgou procedente a ação para assentar a constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei nº 12.403, de 4 de maio de 2011. Vencidos o Ministro Edson Fachin, que julgava improcedente a ação, e os Ministros Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Luiz Fux e Cármen Lúcia, que a julgavam parcialmente procedente para dar interpretação conforme. Presidência do Ministro Dias Toffoli. Plenário, 07.11.2019. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadTexto.asp?id=4966014&ext=RTF> . Acesso em: 01 abr. 2020.
[5] STRECK, Lenio Luiz. O Supremo, o contramajoritarismo e o ‘Pomo de ouro’”. Consultor Jurídico, 2012. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2012-jul-12/senso-incomum-stf-contramajoritarismo-pomo-ouro>. Acesso em: 26 fev. 2020.
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