Resumo: O propósito deste artigo é analisar algumas questões relativas ao impacto que a neurociência cognitiva pode chegar a ter para o atual edifício dogmático e metodológico da ciência jurídica. A filosofia de Gadamer não aporta soluções para o problema central da teoria da interpretação no direito, que é o problema da racionalidade da atuação judicial. Discute a relação entre decisão jurídica e neurociência, o problema da linguagem e da racionalidade do discurso hermenêutico jurídico e mais especificamente o papel da cognição e da emoção no processo de interpretação do Direito.
Palavras-chave: Direito. Neurociência. Hermenêutica jurídica. Linguagem. Cognição. Emoção.
“Nenhuma teoria magistralmente especulativa, nem filosofia prolixamente contemplativa, nem as espinhosas sutilezas de uma suposta metodologia perfeccionista, pode pesar mais que o funcionamento real do mais limitado dos cérebros implicado na solução de um problema no mundo real. […] “¿Eso es justo o injusto?, se pregunta nuestra mente primitiva a cada instante…milésimas de segundo después tratamos de esbozar un juicio razonado.”
Hermenêutica e linguagem
A hermenêutica contemporânea tem em Nietzsche e em Heidegger seus genuínos fundadores. Eles traçaram (também) os caminhos de seu discorrer e são, de fato, o ponto de referência das diferentes hermenêuticas: desde o caráter ontológico-universal da hermenêutica de Hans-Georg Gadamer (cuja filiação e procedência heideggeriana é manifesta) até a “hermenêutica niilista de Gianni Vattimo (para quem só remitindo-se a Nietzsche e a Heidegger a hermenêutica adquirirá o peso e transcendência filosóficos que lhe são próprios), passando pela hermenêutica crítica de Paul Ricouer (que vê na ontologia hermenêutica nietzscheana o melhor adversário com quem seu pensamento tem de se medir, e em Heidegger o lugar de passagem iniludível).
De um modo geral, segundo a chamada corrente hermenêutica (continental, filosófica ou hermenêutica dialética), a interpretação não só deve entender-se como uma atividade específica, ou técnica (um método de trabalho), senão também como uma atitude filosófica global, como uma modalidade constitutiva do ser humano, como o modo próprio pelo qual o homem entra em contato com o mundo. Desde este ponto de vista, o que faz possível a compreensão de um texto não é somente a tarefa de análise e recuperação do contexto da obra e do autor, senão a radical unidade originária e primogênita que funda toda compreensão.
Ademais, todo esse novo movimento hermenêutico representou um rechaço radical às regras com as que opera naturalmente nossa mente e uma demonstração definitiva do abismo que separa o reino ideal das verdades e os princípios do ser-conhecer da mecânica empírica da mente humana. Um repelir que, estendido em todas as direções, pode ser perfeitamente rastreado, por exemplo, na resistência (e rechaço) às primeiras hermenêuticas de caráter existencialista e psicologista, como as elaboradas por Schleiermacher e Dilthey, e sua reelaboração em claves ontológicas, desvinculadas da psicologia empírica, como as propostas por Heidegger ou Gadamer.
De fato, foi grande o esforço das hermenêuticas de corte ontológico de Heidegger e Gadamer por descontaminar a hermenêutica e a antropologia de qualquer consideração psicológica empírica. Gadamer, por exemplo, em polêmica com a hermenêutica romântica e contra toda forma de hermenêutica psicológica, afirma que "un texto no quiere ser entendido como una expresión de la vida, sino sólo en aquello que se dice". Já a análise existencialista levada a cabo por Heidegger é um perfeito exemplo deste desejo de reinterpretar qualquer traço existencial nos novos termos de uma ontologia do da-sein.
Por outra parte, as hermenêuticas pós-estruturalistas, definitivamente instaladas na deriva onipresente e “significamentosa” da linguagem, decidiram cortar as amarras com qualquer forma de realismo ou naturalismo, decretando que o único real é a deriva do significado, uma viagem sem retorno na qual não podem ser precisados nem a origem nem o fim das cadeias significantes, donde não existe nenhum vínculo, enlace ou atadura nem ontológica nem antropológica, senão a exclusiva esfera autoreferente da linguagem.
O problema, contudo, é que a centralidade da linguagem, como ocorre com tantas idéias filosóficas e teorias sociais (como por exemplo, no desconstrucionismo, no pós-modernismo e em outras doutrinas relativistas e analíticas)[1], é levada a extremos inverossímeis e irrealistas: desde os sofistas, passando por Hobbes e Nietzsche, até desembocar nos textos de oráculos como Derrida, crivados de aforismos como “Não é possível escapar da linguagem”, “O texto é autoreferente”, “Linguagem é poder” e “Não existe nada fora do texto”, ou na afirmação mais extrema de Roland Barthes de que “O homem não existe anteriormente à linguagem, seja como espécie, seja como indivíduo”. Onanismos intelectuais.
Na verdade, só é necessário sentido comum para ver que a língua não poderia funcionar se não se assentasse sobre uma vasta infra-estrutura de conhecimento tácito sobre o mundo e sobre as intenções de outras pessoas, isto é, de que as palavras sempre são interpretadas no contexto de uma compreensão mais profunda das pessoas e suas relações. No nosso caso, por exemplo, a própria existência de normas ambíguas – nas quais uma série de palavras expressa pelo menos dois pensamentos – prova que pensamentos não são a mesma coisa que uma sequência ou classes de palavras, e que estamos equipados com faculdades cognitivas complexas que nos mantêm em contato com a realidade. A linguagem, assim entendida, é a magnífica faculdade que usamos para transmitir pensamentos e informação de um cérebro para outro, e podemos cooptá-la de muitos modos para ajudar nossos pensamentos a fluir.
Por outro lado, a linguagem não é o mesmo que pensamento, nem a única coisa que separa os humanos dos outros animais, a base de toda cultura, a morada do ser onde reside o homem, uma prisão inescapável, um acordo obrigatório, os limites de nosso mundo ou o determinante do que é imaginável (Pinker, 2002). A idéia de que o pensamento é o mesmo que a linguagem constitui um bom exemplo da que poderia denominar-se uma estupidez convencional, ou seja, uma afirmação que se opõe ao mais elementar sentido comum e que, não obstante, todo mundo se crê porque recorda vagamente havê-la ouvido mencionar (Pinker, 1994)[2].
Dito de outro modo, a linguagem é simplesmente o conduto através do qual as pessoas compartilham seus pensamentos e intenções, suas experiências de prazer e de sofrimento – enfim, a que permite o reparto (sócio-afetivo) da subjetividade -, e, com isso, adquirem o conhecimento, os costumes e os valores daqueles que as cercam e no contexto da realidade em que plasmam suas respectivas existências. Como recorda Derek Bickerton (1995), não é (a linguagem) somente um meio de comunicação senão uma maneira de organizar o mundo, e cuja finalidade é pôr pensamentos nas mentes das outras pessoas e extrair pensamentos das mentes das outras pessoas[3].
Direito e hermenêutica
O direito é, quiçá com a teologia, a disciplina mais imanentemente unida à interpretação, mais mediada – e intercedida – em seu labor e seus resultados por uma constitutiva, permanente e ineliminável hermeneusis. “Interpretação” é um dos termos mais repetidos e com mais relevante protagonismo tanto nas obras teóricas sobre o direito como em sua prática de todo tipo, começando pela jurisprudencial.
No âmbito propriamente jurídico, parece haver poucas dúvidas de que a teoria hermenêutica do direito, influenciada pela recepção de Gadamer, deu passos de gigante no século XX, propiciando uma indubitável aproximação entre momento normativo e momento da decisão prático-concreta, assim como a defesa de uma ontologia jurídica que vê o direito como um objeto em permanente construção e reconstrução no processo de sua interpretação e aplicação. De fato, muitos e importantíssimos são os problemas levantados e discutidos atualmente no âmbito desta abertura de novos itinerários intelectuais propiciados pelo despertar (tardio) da consciência hermenêutica dos juristas.
Não obstante, em que pese sua peculiar e relevante influência, a filosofia hermenêutica de Gadamer não resulta, por si só, suficiente para aportar soluções ao problema central da interpretação jurídica (que é o problema da racionalidade da atuação judicial), uma vez que não se apresenta diretamente como teoria da decisão valorativa racional, senão como indagação da dimensão ontológica do compreender. Assim se explica que os postulados básicos de sua obra Verdade e método se expressem em fórmulas como a de que "el ser, en cuanto puede ser entendido, es lenguaje", ou que "todo entender es siempre un interpretar". À diferença da hermenêutica romântica, que pretendia ser uma preceptiva, proporcionar um conjunto de regras ou indicações metódicas para que o intérprete de um texto pudesse aceder ao significado que seu autor pretendeu dar-lhe, o que a filosofia hermenêutica de Gadamer intenta é mostrar essa dimensão essencial da estrutura ontológica do ser humano que vem dada pelo compreender. "Su tarea -diz Gadamer- no es desarrollar un procedimiento de la comprensión, sino iluminar las condiciones bajo las cuales se comprende".
Depois, embora com a capacidade de produzir estranhos companheiros de cama (por exemplo, analíticos e hermeneutas) e por ser hoje um dos movimentos mais importantes no marco interdisciplinar da filosofia e as ciências humanas, caberia pensar que a contemporânea filosofia hermenêutica, com Gadamer em seu centro, acabou se incorporando ao elenco de categorias e concepções com o que o operador do direito teórico e prático pensa e explica seu labor. Mas não é assim, verdadeiramente; ou não o é na medida em que seria razoável esperar. Muito esquematicamente, poderíamos adiantar três razões: por um lado, ao que à hermenêutica importa, a teoria e filosofia do direito têm suas próprias tradições explicativas e a filosofia hermenêutica vai pouco mais além das explicações existentes, ao menos no sentir comum do operador do direito ; por outro, e já agora no que mais importa ao direito, que é o desenho de regras ou métodos do correto e “racional” decidir, a filosofia hermenêutica não proporciona soluções; por último, ao reforçar o abismo que separa o reino ideal das verdades e os princípios do ser-conhecer da mecânica empírica (mental) da experiência subjetiva, Gadamer desconsiderou a forma como opera naturalmente a mente do intérprete. Vejamos, então, em que consiste estas três assertivas.
Enquanto a primeira, desde começos do século XX, pelo menos, se foi abrindo passo na teoria do direito a idéia de que o direito não se esgota no texto, no puro enunciado normativo, de que a tarefa interpretativa é uma mediação irrenunciável para a concreção do enunciado legal, a fim de poder aplicá-lo aos casos que com ele hão de resolver-se, e de que essa interpretação, que tem um componente sempre criativo, contextual e pessoal, é constitutiva ou co-constitutiva (segundo o radicalismo da respectiva teoria) da norma jurídica mesma, do próprio objeto Direito. No que ao operador do direito lhe interessa, a obra de Gadamer injeta possivelmente profundidade – e elegância – a essa perspectiva, mas pouca novidade.
Relativamente à afirmação de que a filosofia hermenêutica não aporta soluções que o operador do direito busca, quer-se dizer que a hermenêutica filosófica se detém precisamente ali onde mais interessa em Direito a teoria da interpretação: à hora de proporcionar pautas do correto interpretar, isto é, critérios de racionalidade ou objetividade interpretativa. Não olvidemos que na práxis de aplicação do direito se pede aos juízes que atuem com imparcialidade e objetividade, evitando na medida do possível que sua decisão esteja condicionada por puros dados subjetivos, prejuízos, simpatias, etc. (García Amado, 2003)
Já no que se refere à “regra de ferro” de que “o que interpreta o intérprete é o que interpreta seu cérebro”, a teoria de Gadamer representa uma radical desconsideração à realidade psicobiológica do intérprete, dos problemas filosóficos e neuropsicológicos profundos que implica qualquer teoria da ação intencional humana, e em particular, de uma teoria hermenêutica igualmente compatível com um modelo sensato sobre a natureza humana, isto é, das reais condições e limitações humanas no ato de decidir (Gigerenzer,1999; Jones e Goldsmith, 2004; Jones, 2001; Sutherland,1992; Eagleman, 2011).
E posto que haja plena consciência de que essa práxis de aplicação das normas jurídicas é, em uma parte importantíssima, prática humana-interpretativa de textos legais (de princípios, de valores e de fatos), isto já nos dá alguma pista respeito à evidência de que tais considerações nem a dá e nem intenta dar a hermenêutica existencial ao estilo de Gadamer; limita-se a descrever, a mostrar as condições da interpretação, da compreensão textual, enquanto que não dá regras senão sumamente gerais acerca do modo como esta deve transcorrer, uma vez realizada por sujeitos livres.
O problema é que uma filosofia hermenêutica ( e/ou teoria argumentativa) jamais poderá substituir por puros conhecimentos teóricos, filosóficos e/ou metodológicos o momento da decisão em que a experiência subjetiva e a atividade exclusivamente neuronal do intérprete autorizado concreta e aplica valores, princípios, normas e conceitos ante uma situação concreta. Nenhuma teoria magistralmente especulativa, nem filosofia prolixamente contemplativa, nem as espinhosas sutilezas de uma suposta metodologia perfeccionista, pode pesar mais que o funcionamento real do mais diminuto e limitado dos cérebros implicado na solução de um problema no mundo real – já que qualquer interpretação (justificação e aplicação), por definição e por essência, é sempre a interpretação (a justificação e a aplicação) de um ou de vários indivíduos em particular.
Mas isso não representa, evidentemente, nenhuma razão para desconsiderar a importância que representou para o direito as agudíssimas análises desenvolvidas por Gadamer. Pense-se, só para exemplificar, no modo como esclarece o conceito de “círculo hermenêutico”, nas reflexões que dedica ao problema da “aplicação” e na articulação que estabelece entre o “compreender e a linguagem”[4]. Também não seria nenhum exagero conjecturar que a hermenêutica de Gadamer, particularmente no que se refere à compreensão prévia (ou prejuízos), captou adequadamente o núcleo de nossas intuições cognitivas – isto é, do que vem das intuições ínsitas em nossa arquitetura cognitiva e que nos proporciona ou determina o repertório de nossas primeiras conjecturas e hipóteses – sobre a inata capacidade para interpretar (pré-compreender) os outros, para ler suas mentes, para entendê-los e para entender a nós mesmos como seres intencionais, ou seja, para ler o que há sob a superfície e dar sentido à realidade que percebemos.
Em resumo, dar à hermenêutica o que é da hermenêutica significa reconhecer-lhe seu legítimo lugar entre as mais influentes explicações da constituição do direito. Mas limitar-se, sem mais, em suas explicações, implica não somente em permanecer de costas aos espetaculares logros dos recentes estudos provenientes das ciências cognitivas, da psicologia evolucionista, da biologia evolutiva, da primatologia ou da neurociência acerca da condição humana, senão também em renunciar a partes cruciais da filosofia moral, política e jurídica, deixar sem resposta (ou sem sentido) perguntas determinantes que têm que ver, sempre, com a busca de adequados (e necessários) padrões cognitivos, normativos e metodológicos, chamem-se de natureza humana, de justiça, de legitimidade, de racionalidade, etc.
Hermenêutica jurídica, interpretação e o cérebro do intérprete
Quando pensamos no cérebro (aliás, com o próprio cérebro, e que não foi modelado pela evolução para entender-se a si mesmo) vemos que nosso conhecimento do mundo e nossas ações derivam de nossas percepções e que nossas percepções (assim como nossa consciência) são construídas por mecanismos neuronais (redes) adquiridos e desenhados ao longo de nossa evolução. Investigar o que é o homem e como atua significa, de alguma maneira, saber como funciona o cérebro, como intervém na elaboração de nossos pensamentos, como opera nas ações humanas, na criatividade, na racionalidade e no surgimento de nossos juízos de valor, sentimentos e emoções, já que é precisamente neste órgão donde reside o substrato último de toda experiência humana, incluída a própria experiência hermenêutica.
E se nos situamos no âmbito propriamente do jurídico, nada disso deveria surpreender, pois não parece definitivamente razoável supor que a tarefa interpretativa seja concebida como extra-cranial, enquanto a cognição e a emoção (produtoras da subjetividade) não o são. São produtos de nossa maquinaria cerebral, tanto como são produtos de nosso entorno cultural. Dito de modo mais direto: se interpreta com o cérebro.
Assim que a interpretação jurídica, tal como a conhecemos, é uma atividade levada a cabo por seres (cérebros) humanos com suas próprias necessidades, crenças, visões (prévias) do mundo, opiniões, amores, ódios, desejos, preferências, circunstâncias, problemas…, que, de uma forma ou outra, incidem e condicionam o resultado de suas interpretações, destinadas a transmitir suas mensagens a um público específico em uma época e um lugar determinados. Cada um dos intérpretes do direito é um ser humano, cada um deles tem algo diferente a comunicar, cada um intenta transmitir a sua visão de mundo (que há herdado ou adquirido) em suas próprias palavras. Cada um deles, de certo modo, muda, altera ou transforma os textos que interpreta.
Quem, por alguma razão, não entenda desse modo o processo de interpretação e aplicação do direito acaba por não admitir que cada intérprete diz o que quer dizer; quem faz isso não lê o que cada autor escreve com o propósito de entender sua mensagem. De fato, quem faz isso não somente se nega a reconhecer que cada intérprete é diferente senão que também se recusa a entender que não é adequado pensar que todo intérprete pretenda dizer sempre o mesmo. Pensar tal coisa é tão injusto como supor que o que queremos dizer neste artigo sobre hermenêutica jurídica há de ser o mesmo que diz qualquer outro autor que se ocupa deste tema. E isso pela simples razão de que ninguém pode viver sua realidade (nem, por certo, interpretá-la) sem o concurso irrenunciável de sua atividade mental: detrás de dois cérebros distintos escondem-se mundos e formas completamente diferentes (e algumas vezes equivocadas) de perceber, conceber ou de sentir a realidade[5].
Isso são os qualia, os matizes emocionais que cada ser humano acrescenta à percepção consciente (ou inconsciente) da realidade do mundo e que diferem dos matizes que vê e sente qualquer outro. Esses matizes são únicos porque são produzidos pelo cérebro que guarda todas as vivências genuínas em cada ser humano ao longo de toda a vida. A característica dessas experiências é que não são experimentadas por nenhum outro ser humano. E com elas se constrói a individualidade, a finura das percepções, quer dizer, a diferença com os demais e nossa nunca repetida forma de ver e interpretar o mundo.
Daí que o intérprete, sem chegar a suprimir ou reescrever o texto, o altera (ainda que sempre sustente estar revelando um sentido presente nele[6]). Assim pois, a interpretação não é (como a maioria das pessoas presume) um valor absoluto, um gesto da mente situado em algum domínio intemporal das capacidades humanas (Sontag, 1996). A interpretação deve ser a sua vez estudada e avaliada dentro de uma concepção histórica e neuropsicológica da conciência humana: somos prisioneiros de nossos cérebros; tudo o que pensamos ou experimentamos resulta da estrutura e do funcionamento de nossos cérebros; estas determinam, condicionam e limitam aquilo que interpretamos.
E como o discurso jurídico é o resultado de um pensamento de tipo hermenêutico, pois consiste em interpretações de materiais jurídicos, parece razoável admitir que o realmente importante, no que diz respeito ao problema da atividade interpretativa, é concentrar-se nas próprias “cabeças” dos sujeitos-intérpretes e perguntar-se que fatores condicionam suas decisões e que influências, e como, podem ter os (necessários) métodos jurídicos sobre o que passa em suas mentes. Desde logo, corresponde descartar, como sabemos, que seja factível umas soluções puramente teóricas e especulativas sobre “las condiciones bajo las cuales se comprende” , e que, ademais, isso possa alcançar-se pela via de certos “métodos-receitas”. Não pode haver tais ordens de “compreensão” e respostas às decisões jurídicas em geral.
Primeiro, porque é a contingência e a variabilidade das situações o que faz que seja determinante o papel da atividade mental ou consciência do sujeito e de decisão para dita concreção. Como recorda Troper (2003), isso implica, entre outras coisas, que se deve tomar com a devida atenção e seriedade o problema dos processos mentais que se põem em marcha na tarefa de interpretar e aplicar (de construir) o direito. Segundo, no que se refere aos métodos, não somente porque semelhante receita não as há descoberto ainda ninguém – e nem é provável que se chegue a elaborar-, senão porque, ainda que alguém as apresentasse nada seria menos seguro que lograr, na prática, fazê-las aplicar tal qual pelos sujeitos-intérpretes, em casos sobre os quais os operadores do direito contendem na vida real (Haba, 2006).
Recordemos que a consciência (“cabeça”) do intérprete, com a que necessitamos contar, não se compõe somente do “módulo” conhecimento (ou “compreensão”), senão também do “módulo” emotivo-afetivo: sentimentos, intuições, experiências pessoais, memória, ideologias… As teorias e métodos, sejam quais forem, se dirigem às faculdades racionais dos homens. Mas por mais corretos que sejam (suponhamos que sim) desde o ponto de vista intelectual, isto não basta para presumir ou decidir que serão adequados àqueles que estão chamados a aplicar essas teorias e métodos. Para que determinadas teorias e/ou métodos sejam adequados e seguidos, tem que dar-se uma das duas condições seguintes: i) ou que o conhecimento (“das condições do compreender”) e/ou a prática metódica sirvam também para promover determinados fins fundeados na vida cognitivo-emocional do sujeito em questão, e que este seja consciente disso; ii) ou que, em todo caso, essas teorias e/ou métodos não se oponham a ditos fins se não é para favorecer outros que o próprio sujeito considere igualmente importantes. Em qualquer dos dois casos, a experiência subjetiva (mental) do intérprete dispõe, em última instância, de uma espécie de “veto” sobre o pensamento teórico e/ou metódico.
Não há nenhuma filosofia, hermenêutica, dogmática ou metodologia jurídica, por perfeita que seja, capaz de eliminar tal condicionamento. É assim, queira-se ou não, simplesmente pelo dado mais trivial no que se refere ao pensamento jurídico na prática: os operadores do direito (os intérpretes) não são menos pessoas de carne e osso que qualquer outro ser humano. Sobre esta verdade, que não pode ser mais elementar, passa simplesmente por encima a maneira corrente com que as questões da hermenêutica jurídica são propostas por parte de sua doutrina profissional e/ou “oficial”. Com efeito, esta se refere – ou, mais habitualmente, nem sequer se refere – aos protagonistas do pensamento jurídico, especialmente aos juízes, de uma maneira tal “como se estes fossem pessoas distintas aos condutores de taxi, fabricantes ou professores…”(Simon, 1985)[7].
As questões relativas à neuropsicologia da experiência subjetiva não é um elemento acessório ou dispensável das “condiciones bajo las cuales se comprende“, senão uma peça fundamental que outorga “razões para interpretar”, e que serve como elementos condicionantes da interpretação e aplicação do direito. De fato, é precisamente a partir da evidência de que nossa atividade mental (neuronal) é inerente a qualquer tarefa interpretativa que já não mais resulta aceitável deixá-las à margem da fronteira das modernas teorias hermenêuticas, de interpretação e de argumentação jurídica – enfim, de que quaisquer que sejam os processos psicológicos implicados no ato de interpretar, têm que ser consequência da atividade cerebral.
Hoje, o que se deve tratar de fazer é incorporar no âmbito da hermenêutica jurídica uma reflexão e tomada de posição mais esclarecida de cara com as pesquisas levadas a cabo pelas ciências cognitivas e pela neurociência, uma vez que estas estão começando a tocar questões que antes eram do domínio exclusivo de filósofos e juristas; questões sobre como a gente toma decisões e o grau em que ditas decisões são verdadeiramente livres, racionais, objetivas, ponderadas… Com a ciência do cérebro moderna claramente estabelecida, é difícil justificar que nossas teorias hermenêuticas possam “seguir funcionando sin tener en cuenta lo que hemos aprendido”. (Eagleman, 2011)
É claro que por razões históricas os juristas de hoje não estão bem preparados para unir-se às inovações procedentes das investigações neurocientíficas. Simplesmente relutam em manter-se ao dia com os desenvolvimentos científicos pertinentes. Também é certo que deve resultar intimidante, quando se é “jurista” toda a vida, reconhecer de repente que os neurocientistas, psicólogos, biólogos, antropólogos, etc., sabem algumas coisas importantes acerca do funcionamento interno da mente que podem ter um impacto direto sobre tudo o que sabem fazer. Ninguém quer voltar a começar de novo.
Mas o realmente novo já está aí fora e negá-lo parece ser de um cinismo atroz e/ou de uma ignorância imperdoável e irredimível. O intento de compreender cientificamente a arquitetura e o funcionamento cerebral humano (as atividades que transcorrem no cérebro de uma pessoa quando esta está interpretando e formulando juízos de valor) pode resultar efetivamente útil se o objetivo de tal empresa for atingir os seguintes propósitos: a) estabelecer a evidência de que é o cérebro, como uma máquina antecipadora, associativa, detectora de pautas e elaboradora de significado, que constrói o resultado de toda e qualquer interpretação, comparando automaticamente o contexto de suas experiências passadas com as percepções presentes e as expectativas de futuro; b) analisar os múltiplos fatores e influências, inatas e adquiridas, que condicionam o momento final do processo de interpretação jurídica (isto é, a decisão jurídica); e b) desenhar uma metodologia jurídica o mais amigável possível com relação às limitações próprias da capacidade cognitiva do sujeito-intérprete.
E é precisamente neste particular que as ciências da vida e da mente, ainda quando vão unidas a um programa reducionista (Churchland, 2006), podem efetuar ricas e esclarecedoras contribuições às atuais teorias hermenêuticas, acusadamente no que se refere ao papel que as emoções, os prejuízos, as crenças e preferências pessoais, a vulnerabilidade psicológica, os condicionamentos ideológicos, etc., efetivamente desempenham na ativa e comprometida tarefa interpretativa levada a cabo nos processos de tomada de decisão: podemos tentar ser terrivelmente especulativos no que se refere às “condiciones bajo las cuales se comprende”, mas o que não podemos olvidar é a iniludível evidência de que toda e qualquer interpretação tem lugar de algum modo no cérebro do intérprete.
O direito não é, e jamais será predominantemente um sistema teórico-racional de pensamentos, ao menos enquanto a genética não produza inéditos milagres nos cérebros das pessoas. Não, não pode sê-lo, porque ele consiste em decisões sobre distintas possibilidades de ordenação político-social para as condutas humanas. Essas decisões são tomadas por primatas humanos, indivíduos que estão eles mesmos envolvidos – direta ou indiretamente, quando menos ideologicamente – em tais condutas. De fato, uma interpretação/decisão não costuma resultar mais racional que a vontade, as emoções e o conhecimento de quem a produz[8]. E os atores principais da atividade interpretativa que determinam sua dinâmica não são precisamente uns “preferidores racionais”, nem uma confraria de sofisticados hermeneutas ou jus-metodólogos, senão indivíduos que basicamente respondem às orientações de seus genes e de seus neurônios, assim como de suas experiências, memórias, valores, aprendizagens, emoções, intuições e influências procedentes do ambiente e da mentalidade comum. Os operadores reais do direito não são e nem tão pouco funcionam da maneira como pretendem as mais brilhantes e especulativas teorias hermenêuticas[9].
Quem se proponha intervir aí, portanto, não terá mais remédio que tomar em conta tudo isso, ou virar às costas à realidade. Ou consagrar-se a dissimulá-la mediante alguma teorização todo o convenientemente abstrata e pedante para assegurar-se de não perturbar la galérie… E é precisamente nesse contexto que as ciências cognitivas e a neurociência, com suas ferramentas e métodos de análise, parece ser claramente as disciplinas que, a longo prazo, nos permitirá encontrar vias altamente sofisticada para entender as aptidões psicológicas específicas do ser humano à hora de formular juízos de valor, de interpretar, de justificar e de decidir.
É definitivamente necessário assumir e dar-se conta de que em todos os casos a interpretação (e aplicação) do direito está causada por eventos cerebrais. Chegou o momento de começar a operar com o que já sabemos sobre o cérebro e como isso pode vir a influenciar o atual modelo teórico e metodológico da ciência do direito. Para tanto, devemos partir da premissa de que a capacidade moral e ético-jurídica é (ou deve ser) contemplada como um atributo do cérebro humano, circunstância esta diretamente relacionada com o problema da interpretação e da tomada de decisão humana em todas as suas dimensões. E a compreensão do comportamento humano oferecido até agora por essas ciências (particularmente a neurociência) é perfeitamente compatível com esta perspectiva.
Em outras palavras, os estudos provenientes das neurociências estão exigindo a gritos um novo despertar da consciência hermenêutica dos juristas, uma reinvenção ou construção conjunta de alternativas metodológicas reais e factíveis, compatível com a dimensão essencialmente humana (neuronal) da tarefa de interpretar, justificar e aplicar o direito. Enfim, um novo modelo hermenêutico-interpretativo que, mantendo uma relação mais amigável com o funcionamento do cérebro, nos proporcione instrumentos mais frutíferos e fascinantes de cultivar o direito do que essa espécie de hermenêutica jurídica “no vazio” em que todos nos acostumamos a comprazer-nos nos velhos tempos.
O objetivo de uma boa hermenêutica jurídica deve ser o de fomentar a virtude de compreender melhor a natureza humana e, a partir daí, tratar de promover a elaboração de um modelo interpretativo que permita entender que toda e qualquer processo de interpretação e aplicação do direito é, em última instância, “producto de un diseño (cerebral) accidental, limitado por la evolución” (Linden, 2010). O modo como se cultivem determinados traços de nossa natureza e a forma como se ajustem à realidade configuram naturalmente o grande segredo do fenômeno jurídico, da justiça, do homem como causa, princípio e fim do direito e, consequentemente, para a dimensão essencialmente humana da tarefa de interpretar, justificar e aplicar o direito.
E nada disso requer conhecimentos avançados sobre o cérebro; o único que se necessita para entender como funciona em realidade a mente do intérprete é uma mente analítica aberta. Parafraseando Fichte: o direito depende da classe de homem que se é.
Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia pela Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política pela Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara;Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha;Especialista em Direito Público pela UFPa.; Professor Titular Cesupa/PA (licenciado); Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB; Membro do Ministério Público da União /MPT (aposentado); Advogado.
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