Categories: Direito Penal

Linchamento Virtual: a Articulação do Ódio e a Proliferação das Fake News em Tempos de Pandemia

Autor: Vinícius Silvestre de Lima França: Bacharel em Direito no Centro Universitário do Vale do Ipojuca – UniFavip/Wyden. Colação de grau dia 25/03/2022. vinicius.s.franca1@gmail.com.

Orientador(a): Natália Gonçalves Barroca: Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Pernambuco. natalia.barroca@professores.unifavip.edu.br.

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo identificar os limites da liberdade de expressão no cancelamento virtual. Para isso, contextualizará o surgimento da cultura do cancelamento e identificará os fatores que contribuíram para a ascensão dessa prática nas redes sociais. Assim, a Teoria da Fachada apresentada por Goffman servirá como base teórica às relações sociais remotas, através da internet. Tal contextualização será essencial para melhor entendimento das ações humanas por meio das plataformas digitais. Goffman traz em sua obra o conceito de fachada, que se caracteriza como a linha comportamental assumida por cada indivíduo diante da sociedade. A partir dessa premissa, os demais indivíduos em torno do agente passarão a observar seus atos e fiscalizar suas ações. Destarte, qualquer posicionamento adotado pelo indivíduo que desvie da fachada aderida será suficiente para provocar reprovação da sociedade. Entretanto, a alta propagação das mensagens nas redes sociais intensifica os ataques e muitos perfis acabam utilizando do tumulto para destilar ódio e espalhar Fake News. Nem mesmo as próprias vítimas são capazes de identificar os responsáveis e aqueles que praticaram crimes saem impunes, contrariando o devido processo legal e infringindo diversos direitos fundamentais, razão pela qual o assunto se apresenta de forma extremamente relevante.

Palavras-chave: Fachada. Cancelamento. Twitter. Ódio. Fake News.

 

Abstract: The present work aims to identify the limits of freedom of expression in virtual cancellation. To this end, it will contextualize the emergence of the culture of cancellation and identify the factors that contributed to the rise of this practice in social networks. Thus, The Face to Face Theory, presented by Goffman will serve as a theoretical basis for remote social relations, through the Internet. Such contextualization will be essential for a better understanding of human actions through digital platforms. Goffman brings in his work the concept of facades, which is characterized as the behavioral line assumed by each individual before society. Based on this premise, the other individuals around the agent will observe and supervise their actions. Thus, any position adopted by the individual that devises from the adhered facades will be sufficient to provoke disapproval of society. However, the high spread of messages on social networks intensifies attacks and many profiles end up using the tumult to distill hatred and spread Fake News. Not even the victims themselves are able to identify those responsible and those who have committed crimes get away with it, contrary to due process and infringing various fundamental rights, which is why the matter is extremely relevant.

Keywords: Facades. Twitter. Hate speech. Fake News.

 

Sumário: Introdução. 1. Direito de liberdade de expressão como garantia fundamental constitucional e parâmetros limitadores das condutas em ambientes de mídias sociais; 2. Principais aspectos geradores do discurso de ódio sob a óptica da teoria da fachada de Goffman; 3. Óbices à identificação de autoria delitiva, quando presentes os requisitos de materialidade penal nos crimes de ameaça, difamação e injúria em postagens que geram cancelamento ou linchamento virtuais; 4. Análise dos casos de discursos de seguidores de Juliette e Karol Conká nas postagens da rede social Twitter. Conclusão; Referências.

 

Introdução

Este projeto abordará a prática do cancelamento virtual e do linchamento através das redes sociais, frente à democratização da internet e o crescente número de perfis nas plataformas online. Neste contexto, será apresentada a Teoria da Fachada criada pelo sociólogo canadense Erving Goffman e a evolução das interações sociais com o advento da internet. Além disso, serão abordados os limites dos direitos constitucionais, sobretudo o da liberdade de expressão, com o intuito de diferenciar o exercício de tal garantia com o discurso agressivo, bem como, as consequências jurídicas e sociais das Fake News e dos crimes de ódio praticados no tribunal da internet.

A partir da ascensão tecnológica e do surgimento da internet, os meios de interação social foram se modificando e, graças à globalização, o acesso à rede de internet se tornou cada vez mais democrático. Como consequência desta democratização e, tendo em vista a praticidade trazida pelas plataformas digitais, cada vez mais atividades do cotidiano passaram a ser integradas na rede mundial de computadores, como também, cada vez mais pessoas passaram a ter acesso as redes sociais e contas em diversos aplicativos.

O antropólogo e sociólogo canadense Erving Goffman desenvolveu uma análise acerca das interações sociais face a face e chamou de fachada a linha comportamental assumida por cada pessoa diante da sociedade. Para o cientista social, o mero deslize nesta linha comportamental implicaria no julgamento dos demais acerca de sua conduta. Entretanto, ao elaborar tal teoria, Goffman não visualizava ainda o contexto de interação social remoto.

Hoje, muitas são as redes sociais em uso, dentre as principais estão o Facebook, o Instagram e o Twitter. Nelas, cada pessoa pode possuir um perfil e assumir para si uma fachada, assim como na Teoria apresentada por Goffman. Todavia, a possibilidade de interação com pessoas do mundo todo e a falsa sensação de anonimato contribuíram para o início dos julgamentos virtuais. Com o crescimento das interações através das redes sociais e a alta exposição, principalmente sobre as pessoas mais influentes, as pessoas passaram a ser mais suscetíveis a ataques.

Assim, desde sua primeira aparição nos casos de assédio sexual nos EUA, a cultura do cancelamento foi estabelecida e amplamente utilizada pelos mais diversos motivos. Ocorre que, o que antes possuía caráter de insatisfação com a impunidade de criminosos protegidos pelo poder da influência, passou a infringir direitos e garantias constitucionais de terceiros.

Diante disso, esse estudo utilizará da metodologia de pesquisa descritiva com o intuito de identificar os limites da liberdade de expressão frente às mídias sociais e a responsabilidade pelos crimes de ameaça, difamação e injúria em razão do cancelamento ou linchamento virtual. Ademais, possui como objetivos específicos: analisar o direito de liberdade de expressão como garantia fundamental constitucional e fixar os parâmetros limitadores das condutas em ambientes de mídias sociais; definir quais os principais aspectos geradores do discurso de ódio sob a óptica da Teoria da Fachada de Goffman; configurar os óbices à identificação de autoria delitiva, quando presentes os requisitos de materialidade penal nos crimes de ameaça, difamação e injúria em postagens que geram cancelamento ou linchamento virtuais e; por meio do estudo de caso,  analisar os casos relativos aos discursos de seguidores de Juliette e Karol Conká nas postagens da rede social Twitter.

Desta maneira, é possível compreender que basta um simples deslize nas redes sociais para que aquela pessoa que o cometeu se transforme em um alvo. No cancelamento virtual, milhares de comentários são postados e compartilhados simultaneamente, o que, muitas vezes, dificulta a identificação dos responsáveis, até mesmo pela própria vítima. Neste contexto, direitos fundamentais estabelecidos pela própria Constituição Federal são infringidos e seus limites ignorados. A exemplo disso, tem-se o frequente uso do direito da liberdade de expressão como justificativa aos ataques, forma pela qual os agressores alegam estarem dentro de seus direitos e que qualquer forma de impedir isso constituiria censura.

 

1 – Direito de liberdade de expressão como garantia fundamental constitucional e parâmetros limitadores das condutas em ambientes de mídias sociais

De acordo com a revista Time (2018), o termo “cancelar”, posteriormente modificado para a expressão “cancelamento digital” (ou “virtual”), passou a ter relevância a partir do movimento #MeToo, que ocorreu em 2017 com o intuito de chamar atenção para casos de assédio e abuso sexual que, até o momento, não haviam sido judicializados em razão dos agressores serem pessoas famosas e com grande poder aquisitivo.

Em suma, o ato de cancelar através da internet significa parar de apoiar alguém que tenha tido comportamento divergente ao aceito pela sociedade, bem como, boicotar os trabalhos desta pessoa, ou ainda, impedir que seu nome seja assimilado a algo positivo. A princípio, tal movimentação justifica-se pela repressão e correção de atos antiéticos e imorais cometidos por pessoas conhecidas que, de certa forma, possuem privilégios e podem sair impunes de muitas situações em razão de sua influência. Porém, importante frisar que hoje, os movimentos de cancelamento não necessariamente são dirigidos apenas para aqueles que possuem vidas públicas, mas também contra desconhecidos que, de alguma forma, contrariaram o senso comum do que é certo ou errado – o que pode ser ainda mais grave, haja vista que para um anônimo, os efeitos do cancelamento podem ser muito mais severos, uma vez que estes nem sempre possuem boas condições para se defenderem.

Diante disto, as movimentações para fins de cancelamento passaram a ultrapassar limites legais, isto porque uma das principais consequências do cancelamento é a inobservância de princípios constitucionais, como o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, previstos nos incisos LIV e LV, artigo 5º, da Constituição Federal de 1988, respectivamente. Além disso, o ato de julgar um terceiro através das redes sociais muitas vezes ultrapassa o limite da liberdade de expressão, também trazida pela Constituição Federal de 1988, que será tratado mais adiante. Assim, o que antes possuía caráter corretivo, passou a ser agressivo, levando inclusive à crimes como calúnia, difamação, injúria e ameaça.

Por sua vez, o linchamento virtual é caracterizado pela continuidade dos efeitos decorrentes dos comentários agressivos feitos nas redes sociais para o mundo real, o que atinge diretamente a reputação, o trabalho, a honra e até mesmo a integridade física do cancelado.

Como já citado anteriormente, a liberdade de expressão é um dos direitos fundamentais trazidos pela Constituição Federal de 1988. Ela está presente no caput e nos incisos IV, IX e XIV, do artigo 5º, bem como nos parágrafos 1º e 2º, do artigo 220, ambos da CRFB/1988.

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; […] IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; […] XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

  • 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
  • 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.” (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988).

Os direitos fundamentais são aqueles “atinentes a situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza” (SOUZA, 2017). Tais garantias são decorrentes da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 1948 pela Assembleia Geral das Nações Unidas – em um cenário pós 2ª Guerra – e que possuem previsão legal no Brasil, dispostos principalmente no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, a qual traz uma série de garantias inerentes à pessoa humana.

A liberdade de expressão é a garantia de que toda e qualquer pessoa possa expressar suas opiniões e pensamentos, seja no meio social ou na internet, sem que seja censurada ou restringida. Assim como os demais direitos fundamentais, a liberdade de expressão não é absoluta, isto porque ela é assegurada até o momento em que a liberdade do outro é atingida. Em determinados casos, a própria legislação se encarrega de estabelecer os limites, como por exemplo, a vedação ao anonimato e a criminalização de condutas que atingem o direito de outrem. A exemplo disto está o crime de racismo – previsto no artigo 20 da Lei nº 7.716/89 – e a LGBTfobia, reconhecida em 13 de junho de 2019 pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, de relatoria do ministro Celso de Mello, e do Mandado de Injunção (MI) 4733, que por oito votos a três, reconheceu a mora do Congresso Nacional em criminalizar os ataques dirigidos à comunidade LGBTQIA+. Neste diapasão, o filósofo Karl Popper fala sobre o paradoxo da tolerância em sua obra The Open Society and It’s Enemies:

“Muito menos conhecido é o paradoxo da tolerância: tolerância ilimitada deve levar ao desaparecimento da tolerância. Se entendermos tolerância ilimitada mesmo àqueles que são intolerantes, se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra a investida do intolerante, então, o tolerante será destruído, e, com ele, a tolerância”.(1947, p. 226).

Conforme analisa Araújo et al., a tolerância ilimitada levará à intolerância, isto porque se toda “atitude deve ser aceita no meio público, chega-se a um ponto crítico em que toda atitude intolerante entra no espectro da tolerância, devendo ser acolhida pelo Estado e não reconhecida como crime” (2020, p. 243).

Portanto, ainda que a liberdade de expressão seja um dos pilares principiológicos que integram o sistema democrático do país, ela possui um limite a ser respeitado. Caso alguém ultrapasse o referido limite, aquele cujo direito foi atingido poderá recorrer ao sistema judiciário para que este possa agir perante a lide. Com a desobediência dos limites éticos e jurídicos que envolvem a liberdade de expressão, o argumento deixa de ser uma simples opinião divergente e passa a se configurar como um discurso de ódio.

Na era da cultura do cancelamento, a internet passou a ser palco de grandes debates sobre os mais variados temas. Todavia, muitos daqueles envolvidos nesses debates acabam utilizando da liberdade de expressão para mascarar o discurso de ódio. Do inglês hate speech, o discurso de ódio é definido como toda expressão que transmite ódio ou encoraja violência contra uma pessoa ou um grupo de pessoas baseado em características como raça, religião, sexo ou orientação sexual, dentre outros. A desenfreada propagação do discurso de ódio nas redes sociais ocorre principalmente em razão de muitos verem a internet como uma terra sem lei – ainda mais em razão da falsa sensação de anonimato transmitida pelas discussões online. Contudo, este pensamento é de completa ignorância, haja vista que seja no mundo offline ou online, todos são responsáveis pelas atitudes que infringem a lei ou ultrapassem seus limites.

Um dos exemplos mais recentes e de grande repercussão sobre o alcance dos efeitos da disseminação de ódio foi a CPMI das Fake News, que objetivou, em um prazo de 180 dias, averiguar as consequências da propagação de ódio nas redes sociais, sobretudo os impactos na eleição presidencialista de 2018. No referido ano, diversas contas na internet foram responsáveis por direcionar ataques orquestrados de forma direta contra opositores do até então candidato à presidência Jair Messias Bolsonaro. O “gabinete do ódio” – como ficou conhecida essa articulação – era composto por diversos bots (contas falsas direcionadas por algoritmos capazes de realizar diversos posts em um curto espaço de tempo), e trolls (contas de pessoas físicas que seguiam um esquema de pirâmide para propagação de Fake News e levantamento de hashtags). Dentre os alvos destes ataques estava o youtuber Felipe Neto, o qual sempre se opôs ao presidente Jair M. Bolsonaro, razão pela qual o fez ser vítima de diversos crimes. Um deles foi um vídeo distorcido, onde usaram trechos de vídeos do canal do influenciador, que davam a entender que tanto o próprio Felipe, quanto seu irmão, Luccas Neto, estavam associados à pedofilia. Este vídeo foi amplamente compartilhado pelas redes sociais após a apresentadora Antônia Fontenelle postar o conteúdo no Instagram. O caso foi levado à justiça e julgado pela 39ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, que condenou a autora do vídeo em primeira instância.

Considerado como um dos casos mais graves de linchamento virtual da história, a jornalista da Folha de São Paulo, Patrícia Campos Mello, foi amplamente atacada, sobretudo após o depoimento de Hans Nascimento para a CPMI das Fake News em 2020. O ex funcionário da Yacows (agência de disparos de mensagens em massa por WhatsApp) insinuou que a jornalista ofereceu favores sexuais em troca de informações para sua matéria. A partir desse episódio, Patrícia foi vítima de diversos crimes contra a honra, bem como ameaças. Em um trecho de seu livro “A máquina do ódio”, ela relata um dos desdobramentos do caso. Em fevereiro de 2020 foi publicado na internet um vídeo intitulado “Jornalista da Folha”. Nele, uma prostituta se aproxima de um carro, debruça-se sobre o automóvel e aborda o motorista com as seguintes falas:

“Bora se divertir, gato?”, ela diz.

“Quanto é que você está cobrando?”, o motorista pergunta.

“Depende do que você quiser, meu amor.”

“Você faz serviço completo?”

“Experimenta, depois você me fala.”

“Tá ótimo… eu só preciso de um furo… um furinho pra mim tá bom.”

“Eu tenho três, meu amor, escolhe o que você quiser.”

“Sou eu que escolho, é, sua safada?”

“É, fala aí, qual dos furos você vai querer, hein?”

“Eu quero um furo de reportagem sua safada… um furinho bem gostoso… Você só manipula notícia ou você também cria notícia falsa do zero?” (2020, p. 75/76).

O vídeo faz referência ao comentário feito pelo presidente Jair Messias Bolsonaro, durante uma comitiva de imprensa no dia 18 de fevereiro do mesmo ano, sobre o já citado depoimento de Hans para a CPMI das Fake News. O Presidente disse aos risos: “Ela [Patrícia] queria dar um furo. Ela queria dar um furo a qualquer preço contra mim” (SOARES, 2020). Em seu relato, a jornalista ainda fala que “o vídeo teve mais de 278 mil visualizações no canal Hipócritas do YouTube, com 803 mil inscritos” (2020, p. 76).

Vale ressaltar que este não foi um episódio pontual onde o próprio Presidente da República deu início a um campo de batalha nas redes sociais. No dia 06 de setembro de 2021 – um dia antes das já marcadas manifestações antidemocráticas e pró-governo – Bolsonaro assinou a Medida Provisória nº 1.068, conhecida como MP das Fake News, que desobrigava as redes sociais de apagarem posts odiosos, bem como, que trouxessem Fake News. O presidente justificou a referida MP em prol da liberdade de expressão. Desta forma, mais uma vez o princípio da liberdade de expressão foi usado para mascarar a articulação do ódio, neste caso, utilizando-se da MP para garantir a avalanche de ataques a opositores políticos do atual governo. Não de forma inesperada, dada sua inconstitucionalidade, a Medida Provisória nº 1.068 foi devolvida no dia 14 de setembro pelo Presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco, ao Palácio do Planalto. No mesmo dia, a Ministra do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, suspendeu a eficácia da MP. Cumpre frisar que antes da MP das Fake News se tornar nula, Bolsonaro falou em uma entrevista no Palácio do Planalto que “Fake News faz parte da nossa vida”. Ademais, em tom de deboche, comparou as notícias falsas reproduzidas na internet a “mentir para a namorada” (SOARES, 2021).

 

2 – Principais aspectos geradores do discurso de ódio sob a óptica da teoria da fachada de Goffman

A Teoria da Fachada foi criada pelo antropólogo canadense Erving Goffman com o intuito de compreender as interações sociais face a face, bem como os seus desdobramentos no âmbito empírico. Entretanto, quando tal teoria foi desenvolvida, não se vislumbrava as interações presentes hoje com o advento da internet e das redes sociais. Para Goffman, as interações sociais são estabelecidas a partir da linha comportamental que cada pessoa assume como apropriada para si. Ademais, também é possível que tais linhas sejam estabelecidas por outras pessoas. Em suma, cada pessoa toma para si uma imagem com a qual quer ser reconhecida na sociedade.

Do mesmo modo, essa mesma pessoa estabelece linhas comportamentais para as demais pessoas de seu convívio a partir das atitudes que estas apresentam. Desta forma, cada indivíduo na sociedade – ainda que de forma inconsciente – quando posta a uma situação de interação social, escolhe uma imagem a ser resguardada, como também, recebe dos demais a sua volta uma imagem a ser seguida diante dos seus próprios atos.

Goffman chamou esta linha comportamental de fachada (“face”, do inglês), em suas palavras, “o termo fachada pode ser definido como o valor social positivo que uma pessoa efetivamente reivindica para si mesma através da linha que os outros pressupõem que ela assumiu durante um contato particular” (2011, p. 13). Na prática, ao assumir determinada fachada, uma pessoa passa a ser observada e, de certa forma, fiscalizada por todos a sua volta. Assim, qualquer desvio cometido pelo ator, será repreendido pelos demais, uma vez que tal incongruência não era esperada pela sociedade, ante à linha estabelecida pela própria pessoa e pela fachada imposta a ela pela comunidade.

Com o estudo apresentado por Goffman em sua obra, é possível estabelecer correlações diante dos comportamentos sociais atuais e como as fachadas são postas no cenário das redes sociais e da interação social remota.

Em uma suscinta análise, partindo da premissa de que a fachada é a linha comportamental escolhida por cada indivíduo para que assim seja reconhecido na sociedade, os perfis de redes sociais podem ser vistos como uma síntese da fachada pela qual aquele usuário pretende assumir. Desta forma, ao elaborar uma bio no Twitter, ao escolher uma foto de perfil do Facebook, ou até mesmo, ao escolher o que colocar nos stories do Instagram, aquele usuário estará comunicando aos seus seguidores que está com uma fachada. Neste sentido, Goffman afirma que:

“Podemos dizer que uma pessoa tem, está com ou mantém a fachada quando a linha que ela efetivamente assume apresenta uma imagem dela que é internamente consistente, que é apoiada por juízos e evidências comunicadas por outros participantes, e que é confirmada por evidências comunicadas por agências impessoais na situação.” (2011, p. 13).

Diante disso, este usuário despretensioso passa a assumir, de maneira inconsciente e voluntária, uma linha comportamental a ser analisada por quem o acompanha. A partir daí, qualquer mínimo ato que possa parecer desvinculado da fachada estabelecida será motivo o suficiente para que aquela pessoa seja alvo de retaliação, hate, e do cancelamento. Ocorre que, no âmbito da internet, onde a vida pessoal de cada um é um pressuposto para administração de um perfil em uma rede social, as fachadas são constantemente monitoradas por milhares de pessoas.

Para Goffman, com a fuga da fachada assumida ante seus pares, o indivíduo passa a se apresentar com a fachada errada. Ou seja, quando aquele valor social não pode ser integrado, ainda que de forma forçada, dentro do parâmetro estabelecido para sua interação (2011, p. 13). Desta forma, é normal que haja repreensão dos demais quando uma fachada errada vem à tona, podendo desencadear críticas e julgamentos contra aquele que se desvinculou da linha comportamental aderida. Não é difícil vislumbrar tal cenário na internet, basta um pequeno deslize em qualquer post que já haverá motivo o suficiente para que que comecem as acusações de hipocrisia.

 

3 – Óbices à identificação de autoria delitiva, quando presentes os requisitos de materialidade penal nos crimes de ameaça, difamação e injúria em postagens que geram cancelamento ou linchamento virtuais

Ao passar do tempo é natural que surjam novas tecnologias, bem como, que aquelas já existentes evoluam. A exemplo disso, tem-se os computadores, que a princípio necessitavam de um cômodo inteiro para se instalar e possuíam habilidades bem limitadas. Contudo, com a ascensão tecnológica, foram se tornando cada vez menores e mais acessíveis para todos.

Não há dúvidas de que um dos principais marcos históricos da tecnologia é a internet, a qual, desde que surgiu, vem conquistando cada vez mais espaço na sociedade. Rosa conceitua a internet como “um conjunto de redes de computadores interligados pelo mundo inteiro, que têm em comum um conjunto de protocolos e serviços, possuindo a peculiaridade de funcionar pelo sistema de troca de pacotes” (2002, p. 33). Esta rede de comunicação foi implantada no Brasil pela Norma nº 004 do Ministério das Telecomunicações em meados dos anos 90 e comercializada pela empresa Embratel (2017, p. 17).

Com o emergir da globalização, tanto os computadores quanto o acesso à internet se tornaram mais democráticos. Do mesmo modo, possuir um computador e ter acesso à rede mundial de internet deixou de ser um luxo e passou a ser necessidade. Mais do que nunca, grande parte das atividades do cotidiano passaram ser realizadas de modo virtual, desde o envio de uma simples mensagem até a transferência de valores entre agências bancárias e cursos online. O fato é que a internet vem revolucionando a sociedade, e a tendência é de que ela continue evoluindo e transformando ainda mais a vida de todos.

Ainda que a democratização da internet tenha trazido diversos benefícios, o meio virtual não é constituído apenas de boas coisas. Com a extrema facilidade de comunicação entre pessoas de qualquer lugar do mundo, a rápida propagação de conteúdo e a necessidade de exposição, as pessoas ficaram também mais vulneráveis e, consequentemente, mais suscetíveis à ataques. Dada essas características, é importante frisar que o meio virtual emergiu de forma demasiadamente rápida. Ou seja, grande parte dos usuários da internet sequer conseguem compreendê-la. Muitos ainda não conseguem identificar e distinguir se uma página de notícias é segura ou não, ou ainda, se aquele vídeo ou foto compartilhado no WhatsApp é verdadeiro. Desta forma, a propagação de notícias falsas e ataques se tornou ainda mais fácil.

Como já tratado em capítulos anteriores, o cancelamento virtual consiste no ataque reiterado e simultâneo de diversos perfis contra determinada pessoa física ou jurídica, que, a princípio, fugiu da fachada estabelecida e, consequentemente, atuou fora dos padrões de conduta aceitos na sociedade. Não se trata de dez ou cem comentários negativos sobre aquele perfil, mas sim, milhares. Desta forma, torna-se impossível a identificação daqueles agressores até mesmo para a própria vítima.

O fato é que tanto os preços mais acessíveis de computadores, bem como, a crescente facilidade de acesso à internet vêm modificando a dinâmica social. Assim, o que antes poderia ser realizado apenas de forma presencial passou a ser também digital. Junto com o crescimento de acessos, crescem também os riscos. Neste diapasão, alguns crimes já previstos no Código Penal passaram a se consumar de forma “indireta”, tais como calúnia, injúria, difamação e ameaça. Ocorre que, ainda que a sociedade tenha evoluído de acordo com a ascensão tecnológica, o direito permanece praticamente inerte. Portanto, é imprescindível uma adequação do ordenamento jurídico para com a sociedade, caso contrário, os crimes realizados por meio digital continuarão crescendo de forma exponencial e os autores sem a devida responsabilização.

Diversas são as formas possíveis para que um crime cibernético possa ser consumado. Assim como na prática cotidiana, configura-se como crime na internet todo ato que seja típico, antijurídico e culpável.

No geral, são vítimas desses crimes usuários despretensiosos que muitas vezes não têm o conhecimento adequado sobre as redes que estão usando, nem mesmo sobre o alcance e a consequente vulnerabilidade ocasionada pelo acesso global. A partir de tais ocorrências, o mundo se viu na necessidade de legislar sobre estas condutas praticadas na internet, assim, como, surgiram novos debates sobre a aplicação e os limites de alguns direitos fundamentais – tais como a liberdade de expressão, a privacidade, a comunicação, dentre outros.

No Brasil, poucos são os dispositivos legais que tratam sobre o assunto. Em suma, tem-se três legislações principais acerca dos crimes cibernéticos. São eles, a Lei nº 12.737/2012, a Lei nº 12.735/2012 e a Lei nº 12.965/2014.

Também conhecida como Lei Carolina Dieckmann, a Lei nº 12.737/2012 surgiu a partir do Projeto de Lei nº 2.793/2011, de autoria do Deputado Paulo Teixeira, a qual foi sancionada no dia 02 de dezembro de 2012 pela então presidente Dilma Rousseff, após o infeliz episódio envolvendo a atriz, que teve seu computador invadido e suas fotos íntimas vazadas. A norma trouxe importantes modificações no Código Penal brasileiro, implementando os artigos 154-A, o qual tipificou o crime de invasão de dispositivo informático (pena: detenção de três meses a um ano e multa); e 154-B, que por sua vez estabeleceu a ação penal pública condicionada à representação como a regra do crime de invasão cibernética; além de alterar os artigos 266 e 298 – nos quais foram acrescentados os meios digitais como também caracterizadores das condutas criminosas.

Chamada de Lei Azeredo – em razão de ter como seu relator Eduardo Azeredo – a Lei nº 12.735/2012, advinda do Projeto de Lei nº 84/1999[1], não criou novos tipos penais, mas em seu artigo 5º, trouxe alterações à Lei nº 7.776/1989 (Lei contra o racismo), mais precisamente no inciso II, do artigo 20, onde passou a constar a possibilidade de cessação de transmissões televisivas, eletrônicas, ou por qualquer outro meio midiático, que  incite a discriminação ou o preconceito em razão de raça, etnia, religião, cor ou procedência nacional.

Vista como a principal e mais abrangente norma brasileira sobre o assunto, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) trouxe princípios e normas de condutas para todos os usuários da rede mundial de internet, tais como direitos, deveres, prerrogativas e garantias dos integrantes do mundo virtual. Nos artigos 2º e 3º a referida norma apresenta alguns de seus principais pilares:

“Art. 2º A disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão, bem como:

I – o reconhecimento da escala mundial da rede;

II – os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais;

III – a pluralidade e a diversidade;

IV – a abertura e a colaboração;

V – a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e

VI – a finalidade social da rede.

Art. 3º A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios:

I – garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal;

II – proteção da privacidade;

III – proteção dos dados pessoais, na forma da lei;

IV – preservação e garantia da neutralidade de rede;

V – preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e pelo estímulo ao uso de boas práticas;

VI – responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei;

VII – preservação da natureza participativa da rede;

VIII – liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet, desde que não conflitem com os demais princípios estabelecidos nesta Lei.

Parágrafo único. Os princípios expressos nesta Lei não excluem outros previstos no ordenamento jurídico pátrio relacionados à matéria ou nos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”  (Marco Civil da Internet, 2014).

A citada lei também foi responsável por estabelecer deveres dos provedores de internet de acordo com os princípios norteadores tratados nos artigos inicias – como o artigo 13, que estabelece como dever para os provedores de internet o armazenamento de dados, sob sigilo, em local controlado e de segurança por, no mínimo, um ano – além de assegurar a inviolabilidade das comunicações privadas, bem como, a liberdade de expressão para todos os usuários.

Todas as normas existentes agem em conjunto para a melhor garantia dos direitos e deveres dos usuários em todo o território nacional. Entretanto, há de se destacar que mesmo com esse aparato legislativo, as normas vigentes não são suficientes e carecem de recursos práticos que facilitem sua aplicação no dia a dia.

Estas dificuldades advêm de vários fatores, desde aqueles relacionados à precariedade técnica de investigação para esses tipos de crimes quanto aos provenientes de empecilhos postos pela própria internet. A exemplo disto observa-se a imensa dificuldade de reconhecimento de autoria quando os crimes foram cometidos em um contexto de cancelamento virtual. Seja qual for a rede social em que o cancelamento tenha se iniciado, tal fenômeno é marcado por milhares de posts que vão ao ar de forma simultânea e de milhares de perfis diferentes. Ainda que seja elaborada uma investigação para identificar os responsáveis pelos atos criminosos, esta não será completamente efetiva, visto que nem mesmo a vítima dos ataques conseguirá indicar todos os que lhe atacaram.

Ademais, há de se ressaltar que no procedimento penal brasileiro, é necessário para o início da ação penal a caracterização da justa causa, ou seja, é necessário que esteja comprovada a materialidade, bem como, que haja indícios mínimos de autoria – o que, nos casos dos crimes praticados no âmbito virtual, é de extrema dificuldade. Além disso, cumpre salientar que os principais crimes cometidos durante o cancelamento virtual são os crimes de calúnia, difamação, injúria e o crime de ameaça. Os crimes contra a honra, tipificados nos artigos 139 a 140 do Código Penal, são, em regra, de ação penal privada. Ou seja, dependem de representação pela própria vítima, a qual deverá, por meio de advogado, ingressar com Queixa-crime contra o(s) agressor(res) dentro de um prazo prescricional de 06 (seis) meses. Por outro lado, o crime de ameaça, tipificado no artigo 147 do Código Penal, é disposto como de ação penal pública, porém, condicionado à representação da vítima, o que de certa forma, contribui com a morosidade e dificulta o início da ação penal pretendida.

Por fim, importante mencionar o fato de que os crimes cometidos através das plataformas digitais são consideravelmente novos. Ainda que as práticas criminosas em si já houvessem previsão legal, o modus operandi divergente ao até então conhecido trouxe diversos aspectos dificultadores. Em razão disso, mesmo com a crescente atenção a esses temas, ainda são poucas as delegacias especializadas nos crimes cibernéticos. Como também, são pouco disseminados os meios existentes de prevenção, combate e repressão de tais condutas típicas. Inclusive, até mesmo os dados referentes aos crimes cibernéticos são de difícil acesso.

 

4 – Análise dos casos de discursos de seguidores de Juliette e Karol Conká nas postagens da rede social Twitter

Com a alta exposição do dia a dia nas redes sociais, qualquer pessoa pode se tornar alvo do cancelamento virtual. Como já tratado em capítulos anteriores, qualquer conduta considerada fora dos moldes da moral e da ética social, poderá ensejar o linchamento virtual. Contudo, quanto maior for o poder de influência do agente que praticou a citada conduta, maior é a proporção do cancelamento.

Portanto, ao passo que cresce a influência e a visibilidade de um indivíduo nos meios virtuais, crescem também os riscos de cancelamento, haja vista a maior exposição e o maior número de pessoas que o acompanham.

A exemplo disso, pode-se destacar os participantes de um Reality Show. Ainda que entrem como desconhecidos, a medida em que o programa passa a adquirir espectadores, aqueles que antes não possuíam tanta visibilidade passam a chamar atenção e ganhar holofotes. Desta forma, cada conduta praticada dentro daquele programa – seja qual for o participante – será vigiada, fiscalizada e julgada pelas pessoas que estão consumindo daquele programa.

Aqui no Brasil, um dos maiores programas no formato de Reality Show é o Big Brother Brasil (BBB), transmitido pela Rede Globo de Televisão, que nas últimas duas edições bateu recordes de audiência. O programa que teve sua estreia em 2002, já contou com diversos participantes e foi o responsável por impulsionar a carreira artística de diversas pessoas, dentre elas as atrizes Sabrina Sato, Grazi Massafera, e a mais recente vencedora do Reality, Juliette Freire.

Entretanto, a exposição em grande escala é como uma faca de dois gumes, da mesma maneira que ela pode ascender a carreira profissional de uma pessoa, ela também pode destruir reputações e ser a responsável por arruinar anos de busca por reconhecimento.

Juliette Freire foi uma das participantes da 21ª edição do BBB. Desta edição participaram pessoas já conhecidas no mundo artístico, como os rappers Karol Conká e Emicida, bem como o ator Fiuk – nomeados de “camarote” pelo programa – como também, alguns “anônimos” – grupo este intitulado de “pipoca”.

Juliette entrou no Reality como integrante deste último grupo. Advogada, com trinta e um anos de idade, a participante iniciou o programa com aproximadamente 04 mil seguidores na rede social Instagram e, após cair nas graças da audiência, saiu vencedora em 04 de maio de 2021 com cerca de 23,5 milhões de seguidores. No sentido contrário, a rapper Karol Conká entrou no grupo camarote já contando com 1,7 milhões de seguidores no Instagram, porém, ela saiu do programa com 1,3 milhões.

As consequências oriundas da participação em um reality show decorrem quase que exclusivamente dos espectadores, os quais passam a acompanhar e julgar todos os atos e posicionamentos tomados por cada pessoa dentro do programa.

Quanto às atitudes tomadas pela rapper Conká dentro do programa, houve dois episódios que marcaram o início da rejeição da participante. Em um deles, a participante zomba do sotaque paraibano de Juliette e chegou a tecer o seguinte comentário:

“Me disseram que lá na terra dessa pessoa é normal falar assim. Eu sou de Curitiba, é uma cidade muito ‘reservadinha’. Por mais que eu seja artista e rode o mundo, eu tenho os meus costumes. Eu tenho educação para falar com as pessoas. Tenho meu jeito “brincalhão”, mas eu não invado e não falo pegando nas pessoas. Eu acho estranho.”[2]

Em sua fala, a rapper se referiu a forma de falar de Juliette, nordestina e paraibana. Karol chegou a citar ainda a cidade em que cresceu, Curitiba, ressaltando a educação que recebeu. A partir deste comentário (29 de janeiro de 2021) – apenas quatro dias depois do início do programa – diversas pessoas passaram a acusar Karol Conká de xenofobia nas mais diversas redes sociais.

Na figura 01, uma pessoa afirma que a rapper cometeu xenofobia ao satirizar a forma de falar de Juliette, ademais, o mesmo Twitter relembra outro caso envolvendo o ator Fiuk, acusando-o de criticar de maneira inadequada a profissão de Juliette.

Na figura dois, outro usuário do Twitter transcreve parte da fala da rapper e também a acusa de xenofobia.

Estes são apenas duas publicações que resumem milhares de outros postadas no mesmo dia, por milhares de perfis diferentes. Desta forma iniciava-se a queda da imagem de Conká sem nem ela mesmo ter conhecimento disto.

Outro episódio que também foi determinante para que mais críticas surgissem ocorreu quando Karol Conká passou a destratar Lucas Penteado, outro participante da edição do reality. A rapper chegou inclusive a “proibir” ele de tomar café da manhã na mesa junto com os demais. Desta forma, além das acusações por xenofobia, a participante também passou a ser acusada de assédio moral e tortura psicológica. Tais eventos foram contundentes para que hashtags fossem levantadas pedindo que a cantora fosse expulsa do programa.

As figuras 03, 04, 05 e 06 retratam alguns dos outros milhares comentários na rede social Twitter acerca das condutas da participante durante o Reality. Na imagem 03, o perfil acusa a participante de machismo e xenofobia. Ademais, é possível visualizar diversos xingamentos contra a rapper, tais como “ridícula”, “podre”, “nojenta”, “cobra”, “hipócrita”, dentre outros. Interessante frisar também o comentário trazido pela figura 04, onde a pessoa elenca inclusive as leis infringidas pela participante.

Comentários, posts e memes com o mesmo teor foram feitos durante todo o programa. Assim, diversos foram os julgamentos e as sentenças prolatadas pelo juízo popular. Tal impacto atingiu ainda as marcas pela qual a rapper já havia feito publicidade. A exemplo disso, diversas foram as vezes em que houve tentativa de boicote à Avon, marca para a qual Karol Conká fez publicidade antes mesmo de entrar no programa.

Dessa maneira, as pessoas passaram a assimilar a imagem ruim atribuída à Conká com a empresa de cosméticos.

Na figura 07 é possível ver um tuite no qual a pessoa usuária do Twitter pressiona as empresas Avon, PicPay e as Lojas Americanas – patrocinadoras do programa – acerca das atitudes tomadas pela rapper Karol Conká.

Com as discussões, a cantora perdeu popularidade, em contrapartida, Juliette, considerada uma das vítimas dos abusos da rapper, ganhou ainda mais engajamento. Estima-se que as perdas contratuais de Karol Conká somam cerca de 5 milhões de reais.

Não restam dúvidas de que as condutas da participante do programa não foram positivas. Porém, o linchamento virtual abarca diversas outras consequências. Os ataques destinados à participante cresceram e alcançaram, inclusive, o filho da rapper. Jorge Conká, que contava com apenas 15 anos de idade ao tempo dos fatos, foi alvo de diversos xingamentos e ameaças. Em suas redes sociais, o adolescente se pronunciou acerca dos eventos e pediu por mais empatia.

“Eu não tenho nada a ver com o que acontece dentro ou fora daquela casa […] as pessoas viraram reféns de vidas que não são delas, e começaram a incitar ódio a pessoas aleatórias. Se coloquem no meu lugar, imaginem se fosse alguém te ameaçando e xingando a sua mãe. Zero empatia, rapaziada. A única coisa que peço é empatia da parte de todos.” (YAMAGUTI, 2021).

O cancelamento virtual impossibilita e fere o devido processo legal. Karol Conká foi sentenciada pela sociedade por diversos crimes sem ao menos poder exercer seu direito de defesa.

O discurso de ódio possui como único propósito a retaliação de determinada pessoa que, aos olhos da comunidade, merece ser punida e boicotada. Em razão disso, carreiras são destruídas, vidas são ameaçadas e as garantias apresentadas na Constituição Federal de 1988 são esquecidas. Não há contraditório, ampla defesa nem mesmo um devido processo legal.

Além da impossibilidade de se defender, as vítimas do cancelamento virtual ainda encontram diversas outras dificuldades. Dentre elas, a impossibilidade de identificação dos autores por crimes de difamação, injúrias, calúnias e ameaças. Com o grande número de perfis no polo ativo do cancelamento, os responsáveis se tornam quase que indetectáveis, muitas vezes saindo impunes de seus atos.

 

Conclusão

É notório o quanto a evolução tecnológica criou novos caminhos e possibilitou soluções mais práticas e mais eficazes para o dia a dia de todos. Contudo, há de se reconhecer que, junto com os benefícios, surgiram também alguns aspectos que demandam atenção. Hoje, através da internet, é possível realizar as mais diversas atividades, sejam elas relacionadas à vida profissional ou à vida pessoal de cada indivíduo. Ademais, o processo de globalização acelerou a difusão da tecnologia, o que transformou os meios de interação social e tornou a internet cada vez mais necessária.

Dentre as novidades trazidas pela internet estão as redes sociais, plataformas virtuais onde cada indivíduo consegue criar um perfil próprio e interagir das mais diversas formas com qualquer pessoa – onde quer que ela esteja. Dessa forma, graças a alta velocidade de propagação das mensagens, é possível a comunicação entre milhares de pessoas de forma simultânea em questão de segundos. Assim, a vida pessoal de cada indivíduo se tornou cada vez mais pública, o que, consequentemente, tornou as pessoas mais suscetíveis à ataques – sobretudo quando a pessoa em questão possui grande poder de influência nos meios digitais.

Neste diapasão, em 2017, surgiu a figura do cancelamento digital, movimento que fez com que milhares de pessoas ao redor do mundo se unissem para apoiar a hashtag #MeToo, com o intuito de trazer à tona diversos casos de abuso sexual praticados por pessoas altamente influentes, nos Estados Unidos. Ocorre que, desde seu surgimento, o cancelamento virtual se tornou cada vez mais comum e o que antes possuía caráter corretivo, passou a ter caráter punitivo. A alta exposição trazida pelas plataformas virtuais fez com que toda e qualquer falha cometida por qualquer pessoa fosse altamente criticada e duramente repreendida pelos demais. Em meio a esse julgamento virtual, diversos indivíduos passaram a praticar crimes de injúria, difamação, calúnia e até mesmo, ameaça contra quem estivesse sendo cancelado.

O fato é que muitas pessoas estão utilizando as redes sociais como meio para propagação de ódio. Para isso, se ancoram na falsa percepção de que a internet é uma terra sem lei e se protegem dentre outros milhares de usuários. Desta forma, constroem mentiras, distorcem a verdade e se dispõem a praticar crimes contra a honra e até mesmo contra a integridade física. Desse modo, estes indivíduos passam por cima de garantias e direitos constitucionalmente assegurados, tais como do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Do mesmo modo, muitos dos indivíduos que praticam estas condutas saem ilesos pelos crimes cometidos, haja vista o grande óbice para a identificação dos responsáveis, bem como, tendo em vista a recém-nascida legislação pertinente ao assunto, que permanece inerte desde sua criação e necessita de urgentes adaptações, para que possa acompanhar a dinâmica social.

Vale frisar ainda que, a cultura do cancelamento virtual ignora por completo os limites dos próprios direitos fundamentais. Em uma falsa percepção de que na internet tudo é permitido, aqueles que a utilizam com más intensões se escoram em um conceito errado sobre a liberdade de expressão. Como já bem frisado em capítulos anteriores, tal garantia constitucional, assim como as demais, possui limites, limites estes que precisam ser respeitados para que seja possível um convívio social dotado de harmonia e ordem. Desta forma, a liberdade de expressão de um indivíduo não pode atingir os direitos de outrem, caso contrário, a conduta será ilícita. A exemplo disso, tem-se os casos em que o próprio legislador se encarregou de estabelecer os limites, como os já citados exemplos de LGBTQIA+ fobia e o racismo.

Por mais repugnante que uma atitude possa parecer perante a moral, a ética e até mesmo à legislação, é necessário garantir a todos a dignidade à pessoa humana, o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, a presunção de inocência, como também todos os demais direitos fundamentais. Assim como todos são responsáveis por seus atos no mundo de relações pessoais diretas, na internet, onde a comunicação acontece de forma remota, deve ocorrer o mesmo. Isto porque o direito de determinado indivíduo cessa a partir do momento em que ele fere o direito de terceiro. Concomitantemente, não há dúvidas de que é de extrema necessidade que as normas que regem o mundo virtual sejam devidamente atualizadas, trazendo de forma lógica e responsável, meios que facilitem e possibilitem a identificação daqueles que cometem crimes nas plataformas digitais, sobretudo, que criem mecanismos ágeis e eficientes para impedir a retaliação e o linchamento das vítimas destes ataques, caso contrário, poderão ocasionar danos irreparáveis.

 

 

Referências

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CAMBRIDGE DICTIONARY. Disponível em: < https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/hate-speech >. Acesso em 13 de set. de 2021.

 

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CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

 

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MARCO CIVIL DA INTERNET – Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

 

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POPPER, Karl. The Open Society and Its Enemies, vol. 1: The Spell of Plato. London: Routledge, 1947.

 

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SOARES, Ingrid et al. Pacheco e Rosa dão fim à MP das fake News. Correio Brasiliense, 2021. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/09/4949579-pacheco-e-rosa-dao-fim-a-mp-das-fake-news.html. Acesso em 16 de set. de 2021.

 

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[1] O projeto original foi proposto pelo deputado Luiz Plauhylin em 1999, o qual possua 23 artigos, dos quais apenas quatro foram sancionados em 2012 pela então Presidente da República Dilma Rousseff.

[2] Transcrição da fala de Karol Conká em uma conversa com Thais Braz e Sarah Andrade, outras duas participantes do BBB21, em um dos quartos da casa.

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