Direito Constitucional

Meu Corpo, Minhas Regras: A Transexualidade Sob a Luz do Direito Constitucional e as Lacunas no Estado Democrático de Direito

Giovanna Bianca Trevizani

RESUMO : O presente estudo tem como intuito de conotar o direito a igualdade que as pessoas trans possuem de serem reconhecidas e valoradas na sociedade. Evidenciar que estas pessoas necessitam de um olhar mais amplo e menos engessado no corpo social, haja vista que este ainda não detém de preparo para conviver com o “diferente”. Logo, a precisão de clarificar de como essas pessoas vivem em uma sociedade patriarcal e preconceituosa, como driblam diariamente o preconceito, a violência, os dogmas religiosos e a família, faz-se urgente, no tocante da tamanha discriminação inerente no nicho social. A aceitabilidade da pessoa trans, da sua casta LGBTQI+ requer uma especial atenção, pois a vida útil dessas pessoas não ultrapassa 35 anos no Brasil devido a barbárie a elas destinada. Desse modo fica explícito que o respeito e o direito ao corpo devem configurar numa escolha personalíssima e não confere ao outro a legitimação deste direito. Neste embasamento os direitos humanos tem um papel fundamental em toda mudança, ou seja na atuação da transição da pessoa trans, na fundamentação constitucional e demais estudos pertinentes ao tema advindos dos conteúdos teóricos defendidos por juristas e profissionais de outras searas para explicar sobre o mister da liberdade que as pessoas trans possuem de decidir sobre o seu corpo.

Palavras chaves: Transexual; Direito a igualdade; Discriminação: Sociedade; Aceitabilidade; LGBTQI+.

 

ABSTRACT: The present study has the goal to connote the rights for equality that transsexual people have to be recognized and valued in society. It is evident that these people need an ampler and less stagnant view on the social body since it still does not detain the correct preparation to cohabit with the “different”. Therefore, the need to clarify how these people live in this patriarchal and prejudicial society, how they dodge daily the prejudice, the violence, the religious dogmas, and the family, is made to be urgent, in relation to tremendous discrimination inherent of the social niche. A transsexual person, and its LGBTQI+ caste, acceptability requires a special attention since these people lifespan does not surpass 35 years in Brazil due to barbaric acts destined towards them. With this, it is clear that the respect and the rights of the body must configure in a personal choice and the legitimization of this right is not bestowed upon others. In this context, the human rights have a fundamental part in all this change, that is, in the performance of transition of the trans person, in the fundamental constitution and pertinent studies to the subject coming from theoric contents defended by jurists and professionals from other areas to explain about the series of liberty that the trans people have to decide about their own bodies.

Passwords: Transsexual; Equality Rights; Discrimination; Society; Acceptability; LGBTQI+.

 

 INTRODUÇÃO

“Sexo é o que se tem entre as pernas [órgão genital]. Gênero é o que se tem entre as orelhas [ego/pensamento]. E orientação é o que se quer entre os braços [com quem quer estar]”. Isto é o que explica Letícia Lanz, psicanalista e mestre em Sociologia (Universidade Federal do Paraná). Portanto, partindo desta premissa, a realização do procedimento cirúrgico para redesignação sexual é uma decisão que cabe exclusivamente ao indivíduo, e o Estado não pode interferir nas vontades e necessidades desse indivíduo. Afinal, esse direito é assegurado pelo Texto Máximo, precisamente no art. 1º, inc. III, que garante a todas as pessoas a inviolabilidade da vida privada, da intimidade e da honra, em consonância ao art. 5ª, inc. X, do mesmo diploma. Deixando claro que os direitos subjetivos da pessoa transexual estão inseridos aos direitos de personalidade, entretanto as implicações no que tange à realização da cirurgia de redesignação sexual estão subordinadas ao consentimento livre e esclarecido (art. 6º da Resolução n. 1.955/2010, do Conselho Federal de Medicina).

Além disso, a cirurgia de transgenitalização só é recomendada após o diagnóstico atestando o indivíduo como transexual e, ainda assim, exige-se antes do diagnóstico um acompanhamento médico realizado por especialistas de diversas áreas durante o período de dois anos. (art. n. 4º, 1.955/2010 do Conselho Federal de Medicina) onde é endossado que a cirurgia de transformação plástico-reconstrutiva da genitália externa, interna e caracteres sexuais secundários não constitui crime de mutilação previsto no artigo 129 do Código Penal brasileiro, haja vista que tem o propósito terapêutico específico de adequar a genitália ao sexo psíquico.

 

  1. A TRANSEXUALIDADE

A terminologia trans contempla transgêneros transexuais e travestis. O prefixo trans significa “através de, além de”, ou seja, pessoas que estão transitando pelos dois gêneros (masculino e feminino). Os transgêneros transgridem as normatizações impostas na sociedade, estão para além do feminino e o masculino. Ser transgênero não implica no desejo de modificar o sexo biológico, nem a existência de atração por pessoas do mesmo sexo, o que existe é um conflito na identidade de gênero. Já a pessoa transexual acalenta o desejo de mudar a sua constituição biológica e realizar a cirurgia de redesignação sexual, sendo este procedimento o único capaz de trazer a conformidade em relação a sua verdadeira identidade de gênero que sente pertencer, mas que não foi biologicamente atribuída. Em contrapartida a travesti, termo mais conhecido do grupo T, pode ser homem ou mulher, sendo que o ponto determinante é uma não-identificação com o seu sexo biológico. Tal complexidade consiste no fato de não se sentirem completamente pertencentes a nenhum dos sexos. É natural que muitas pessoas não saibam diferenciá-los, tanto pela ausência de conhecimento ou por conta do preconceito. A identidade de gênero alinha-se como a pessoa se vê, se identifica, como homem ou mulher. Esta identidade difere de orientação sexual, pois esta última confere ao desejo, ao sentimento e atração por outra pessoa do sexo oposto ou do mesmo sexo, identificado com seu sexo biológico. Uma pessoa trans pode ter qualquer orientação sexual, seja homossexual, heterossexual, bissexual , pansexual ou assexual.

É notório que vivemos em uma sociedade cujas cores como rosa e azul, adentram rótulos preestabelecidos de feminino e masculino, banalidades como estas são determinantes para construção do indivíduo. O respeito não é um fator preponderante pelo direito ao seu corpo. A transexualidade se refere à condição do indivíduo possuir uma identidade de gênero diferente daquela ao qual foi designado ao nascer. Este apresenta um sentimento de repulsão e impropriedade em relação à forma sexual anatômica, manifestando o desejo de viver e também o desejo de aceitabilidade como sexo antagônico. Homens trans e mulheres trans optam pela transição do gênero oposto por meio de uma intervenção médica, procedimento este realizado por uma reposição hormonal e cirurgia de redesignação sexual. Reforça-se que o gênero dos termos usados pela descrição de pessoas transexuais se refere ao gênero alvo, ou seja, ao gênero pelo qual a pessoa optou, sendo uma tarefa árdua para a sociedade aceitar/reconhecer e do sistema estatal viabilizar meios para possibilitar a proteção de direitos e garantias dessas pessoas. Convém recobrar que um homem trans é alguém que foi identificado como mulher no nascimento em virtude de sua genitália, porém se identifica como um homem que está em transição para o gênero masculino em um corpo reatribuído como masculino. É válido realçar que mesmo na atualidade, a ótica firmada para as pessoas trans muito decorre dentro do prisma de uma anomalia, um distúrbio.

A cirurgia de transgenitalização é parte de um tratamento que pressupõe um autodiagnóstico e uma autoprescrição terapêutica, levando algumas pessoas que não se afinam com o seu sexo a identificarem-se com o diagnóstico de transexualidade. Fortalecidas pelos avanços da ciência, elas podem recusar o que acreditam ter sido um equívoco da natureza quanto ao seu sexo biológico, revelando que a anatomia não é suficiente para que o sujeito se posicione subjetivamente como homem ou mulher, mas, paradoxalmente, deve representar o seu “eu” (BRASIL, 2002, p. 4).

Em suma “uma forte e persistente identificação com o gênero oposto (não meramente de obter quaisquer vantagens culturais percebidas pelo fato do sexo oposto) consiste em um desconforto pertinaz com o seu sexo ou sentimento de inadequação no papel de gênero desse sexo. A pertubação não é concomitante a uma condição intersexual física. Esta causa sofrimento e prejuízo no funcionamento social ou ocupacional nas áreas importantes do indivíduo”.

 

  1. A CONDIÇÃO DA TRANSEXUAL

A Constituição da República advoga que temos direito a nosso próprio corpo, que somos livres para fazer nossas escolhas e que nosso direito é igualitário, desde que não interfira de maneira negativa no direito de outrem. Mas no caso da pessoa transexual o que vemos é o inverso. Não ferindo apenas o artigo que versa sobre o direito ao corpo, como também ferindo o artigo que certifica que vivemos em um estado laico. O termo laico quer dizer, sem religião, sem que haja interferência em escolhas políticas e no âmbito jurídico. Vivemos em um país onde a religião está atrelada sempre às nossas raízes e costumes, haja vista a quantidade de pessoas que seguem ou possuem algum tipo de crença e é numericamente superior àquelas que não possuem. Mas o que isso tem a ver com o direito da pessoa trans? No Congresso Nacional temos uma “bancada evangélica”, composta por deputados pastores, que pregam seus preceitos bíblicos e que segundo sua doutrinação religiosa o/a trans (no sentido de pessoa) não é interpretada como uma pessoa correta, é avaliada como uma espécie de aberração. Adentrando o segmento dos excluídos, as pessoas transexuais são as maiores vítimas, pois são alvo de repúdio social, constata-se um descaso tamanho. Mesmo com preconceito explícito de que são alvo, das perseguições que sofrem, mantém-se omisso o legislador. Recusa-se a cumprir com a obrigação: fazer leis. Contrariam a propriedade da Carta Magna. A criminalização da LGBTfobia é tão urgente que o próprio Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, atuou no Supremo Tribunal Federal frente à omissão do Congresso Nacional sugerindo a necessidade de regularização do tema[1]. Com um congresso conservador citado alhures, as chances de que os direitos debatidos evoluam de uma maneira equânime para os LGBTQI+ e para uma sociedade onde se busque o respeito e consequentemente a aplicabilidade dos direitos humanos  não se tornem ínfimos. Vale destacar que somente no governo da ex- presidenta Dilma Rousself foi sancionado o decreto permitindo transexuais e travestis de usarem seu nome social em todos os órgãos públicos, autarquias e empresas estatais federais.

Nesse quesito ocorreu uma decisão inédita no país na qual se garantiu à Márcia Rocha o direito de usar o nome social em sua identidade profissional de advogada, tornando-se a primeira advogada travesti do Brasil, com ato formal realizado na sede da OAB de São Paulo. A solicitação com o pedido foi a primeira do país, encaminhada por uma comissão formada pelos advogados Dimitri Sales, Junior Assis e a própria Márcia Rocha, em nome da Comissão de Diversidade Sexual da Seção paulista da OAB, que elaboraram o pedido de alteração dos registros profissionais de advogados e advogadas travestis e transexuais. Embora o avanço referente aos direitos das pessoas trans em função do nome social, ainda faz-se preciso um amparo nos discrepantes e incontáveis casos de violência, sendo o Brasil o país que mais apresenta casos de homicídios de travestis e transexuais no mundo, pois a vida útil dessas pessoas não ultrapassa 35 anos em resultância de crimes de ódio, de intolerância à diversidade. Mesmo com a aplicabilidade da Lei Maria da Penha às transexuais as ações efetivas do Estado como forma de garantir o respeito à identidade de gênero são ineficientes cabendo aos Estados “tomar todas as medidas legislativas, administrativas e de outros tipos que sejam necessárias para respeitar plenamente e reconhecer legalmente a identidade de gênero autodefinida por cada pessoa.” Deve-se frisar ainda que o artigo 2º, bem como o artigo 5º, parágrafo único, da Lei Maria da Penha[2] vedam qualquer forma de discriminação em razão da orientação sexual e identidade de gênero. Sobre a aplicação da lei em destaque, Maria Berenice Dias ensina que:

Há a exigência de uma qualidade especial: ser mulher. Assim, lésbicas, transexuais, travestis e transgêneros, que tenham identidade social com o sexo feminino estão sob a égide da Lei Maria da Penha. “A agressão contra elas no âmbito familiar constitui violência doméstica.” E prossegue, ressaltando, com propriedade, que “descabe deixar à margem da proteção legal  aqueles que se reconhecem como mulher.

Consoante com o prisma de Dias, os transexuais almejam apenas que sejam lidos com a devida dignidade no cunho social e protegidos juridicamente. O Direito necessita acompanhar as mudanças sociais. Haja vista que a sociedade não é estática, e desse modo o Direito não pode permanecer inerte, pois dessa maneira imporia à vida social uma imobilidade incompatível com a sensatez evolutiva da própria civilização humana.

 

  1. TRANSEXUALIDADE: VISÃO GLOBALIZADA

A Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, adotada pela Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) na sua 29ª sessão, a 11 de Novembro de 1997 e endossada pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 53/152, de 9 de Dezembro de 1998, estabelece que todos possuem direito ao respeito por sua dignidade e direitos humanos, independentemente de suas características genéticas. Essa dignidade faz com que seja imperativo não reduzir os indivíduos às suas características genéticas e respeitar sua singularidade e diversidade. O sexo é justamente uma característica determinada geneticamente, de tal forma que o transexual encontra nessa declaração mais um fundamento para pleitear seu direito de ser reconhecido da forma que realmente é. No âmbito do direito comparado, é expressiva a corrente favorável ao reconhecimento da transexualidade e dos direitos inerentes a tal circunstância tanto pela via judicial, quanto pela legislativa. As legislações sueca, italiana, holandesa, alemã, canadense, espanhola, mexicana e norte-americana (em alguns estados) consagram os direitos dos transexuais de forma plena em seus respectivos ordenamentos.

O Brasil é um Estado membro da Unesco desde 1945 e também adotou a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos. Mas, a despeito disto, existe um silêncio das autoridades brasileiras sobre seu envolvimento efetivo na solução dos conflitos e necessidades sociais subsequentes como ver-se-á a seguir.

 

  1. TRANSEXUALIDADE NO SISTEMA DE SAÚDE BRASILEIRO

No Brasil, cinco hospitais possuem a habilitação para realizar as cirurgias de transgenitalização: Hospital das Clínicas de Porto Alegre, Hospital Universitário Pedro Ernesto (RJ), Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás e Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco.

Em alguns deles, o tempo de espera pode chegar a 15 anos. “A procura é alta e o número de profissionais que sabem ou querem cuidar de pacientes trans, reduzido”, explica a psicóloga Suzana Livadias, do Espaço de Cuidado e Acolhimento Trans, do Hospital das Clínicas da UFPE.

O Hospital das Clínicas de São Paulo suspendeu a triagem que vinha fazendo desde 2008 para selecionar transexuais que querem fazer a mudança de sexo — tecnicamente denominada de trangenitalização. De acordo com Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório de “Transtorno” de Identidade de Gênero e Orientação sexual do Instituto de Psiquiatria da USP, a fila de espera ficou tão grande que tornou insustentável a inclusão de novos atendimentos. “A nossa fila de espera, que hoje tem 200 nomes, dura de 10 a 15 anos” e diz ainda. “Eu não poderia mais criar uma expectativa em pessoas que talvez eu nunca poderia atender.”[3]

Desde 2008, o SUS custeia cirurgias em oito hospitais do país. Além das operações, há acompanhamento psicológico para adultos e crianças, e tratamentos hormonais para adolescentes e adultos. Até o final do ano de 2014, 243 pessoas foram operadas pelo SUS, segundo o Ministério da Saúde.

Adolescentes e crianças participam do programa em São Paulo. Para que recebam o acompanhamento adequado, elas passam por uma triagem. “Cerca de 15% são dispensados nesse momento”, explica Alexandre Saadeh. “Ou porque são diagnosticados com alguma doença, como a esquizofrênica, ou porque às vezes é uma questão dos pais que desejavam um filho ou filha de outro sexo” e a criança começa a se comportar de maneira que corresponda a essa expectativa. Os que são escolhidos recebem atendimento de psicoterapia ao longo dos anos. “Quando eles chegam à puberdade, temos que tomar uma decisão: ou começamos um tratamento hormonal ou bloqueamos o eixo hipotálamo-hipófise”, diz Saadeh sobre a glândula que libera os hormônios durante a puberdade.

O Conselho Federal de Medicina analisa a possibilidade das pessoas transexuais realizarem a cirurgia de adequação sexual aos 18 anos e não aos 21 anos conforme regulamenta a regra atual. A mudança, ainda encontra-se em estudo por uma comissão formada pelo CFM, é apoiada pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra)[4]. “Se a maioridade é de 18 anos, por que esperar mais três anos para permitir a cirurgia?” Salienta Keila Simpson presidenta da Antra. Segundo Saadeh, a cirurgia de redesignação sexual chega a custar na faixa variável de 35 à 40 mil reais (destaca-se que este valor.era a estimativa no ano de 2015).

De acordo com Suzana Livadias, coordenadora do Espaço Trans do Hospital das Clínicas de Pernambuco, a cirurgia em si não é a coisa mais importante. “Independente da cirurgia, entendemos que é preciso ter um acompanhamento”, diz ela. “O intuito da nossa é equipe não é convencer ninguém”, O HC de Pernambuco é credenciado desde outubro de 2014 a fazer as cirurgias. Importa dizer que o início da terapia transexualizadora somente pode começar a partir dos 18 anos. A regra vale para ambos os sexos. Para ambos os gêneros, a idade mínima para procedimentos ambulatoriais é de 18 anos. Esses procedimentos incluem acompanhamento multiprofissional e hormonioterapia. Para pessoas trans que optam pela realização da cirurgia, é recomendado um ano a dois anos de acompanhamento pós-cirúrgico. Depois disso, o cuidado em saúde deve ser prestado pelos serviços da rede de saúde, conforme a necessidade do usuário[5].

 

  1. ASPECTOS JURÍDICOS DECORRENTES DA CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO

Ana Paula Ariston Barion Peres em sua obra O Paradigma dos Direitos da Personalidade conota-nos a decisão proferida pelo magistrado Marco Antônio Ibrahim, em de junho de 1989, em que houve o deferimento do pedido de alteração do registro civil referente ao sexo e ao prenome de um transexual masculino submetido a cirurgia plástica, que modificou sua constituição genital que modificou sua constituição genital masculina para dotá-lo de genitália feminina de aspecto e função sexual próximos ao natural. Tal decisão teve como pilares os artigos 3º, IV, e 5º, X da Constituição Federal; o artigo 1.110 do Código de Processo Civil; o artigo 5º da Lei nº 6.697 de 1979; o parágrafo único do artigo 55 da Lei 6.015 de 1973 e o artigo 5º da atualmente denominada Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

O teor da decisão é no sentido de que a não alteração do prenome de pessoa já submetida à cirurgia de transgenitalização ensejaria sua exposição ao ridículo ou à execração pública pelo simples fato de ter um prenome, o que não se poderia admitir ante ao espírito da lei, consubstanciado no conjunto de legislações, já referidas, utilizadas para ensejar a prolação desta decisão.

O indivíduo tem seu sexo definido em seu registro civil com base na observação dos órgãos genitais externos, no momento do nascimento. No entanto, com o seu crescimento, podem ocorrer disparidades entre o sexo revelado e o sexo psicológico, ou seja, aquele que gostaria de ter e que entende como o que realmente deveria possuir. A cirurgia de transgenitalização não é requisito para a retificação de assento ante o seu caráter secundário. A cirurgia tem caráter complementar, visando a conformação das características e anatomia ao sexo psicológico. Portanto, tendo em vista que o sexo psicológico é aquele que dirige o comportamento social externo do indivíduo não há qualquer motivo para se negar a pretendida alteração registral.

Destarte é preciso enfatizar o recente posicionamento da desembargadora Mary Grün, do Tribunal de Justiça de São Paulo, onde defende a tese de que não é a identidade biológica de gênero que determina as ações e o comportamento do indivíduo na sociedade, mas a psicológica. Por isso, esta é que conta para o registro em documentos. Embasado nesse entendimento, a desembargadora supracitada reformou a decisão de instância anterior e determinou a mudança do nome de uma pessoa que nasceu mulher, mas se identifica como homem, mesmo sem ter feito cirurgia para mudar de sexo. No caso em tela, o autor da ação é biologicamente uma mulher, mas se identifica com o gênero masculino. Por meio de tratamento hormonal, possui a aparência de um homem e solicitou a mudança de nome alegando passar por situações de escárnios e vexatórias cada vez que o seu nome é ventilado em voz alta em público e no âmbito do trabalho. Para Mary, o procedimento cirúrgico é uma decisão íntima, relacionada à individualidade, e em nada define a sexualidade da pessoa, que já está definida no campo psicológico. “Manter tal exigência é recair em terreno que afronta os princípios da autonomia da vontade e da dignidade da pessoa humana.”

 

  1. OS EMBATES JURÍDICOS APÓS A CIRURGIA DE TRNSGENITALIZAÇÃO

Após a intervenção cirúrgica de mudança sexo numa pessoa transexual, eis que surgem na esfera jurídica diversas discussões que o legislador pátrio careceu em solucionar, não cabendo o presente estudo indicar os motivos dessa lacuna legislativa, mas indicar as problemáticas jurídicas que sempre envolveram a discussão sobre a alteração do sexo em uma pessoa transexual. Dentre os apontamentos constatam-se as mais relevantes, no que tange à retificação do registro civil em relação ao prenome e ao sexo, bem como no caso da possibilidade do transexual convalidar núpcias e os seus desdobramentos, e por fim a questão previdenciária.

Com relação à retificação do assento civil em relação ao prenome e ao sexo, segundo Diniz “Se a identidade sexual é parte do direito à identidade pessoal, não teria o transexual direito à adequação do sexo e do prenome?”, entendimento com fulcro na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) e na Convenção Europeia para a Salvaguarda dos Direitos do Homem e Liberdades Fundamentais (1950). Nesta seara o legislador pátrio não vislumbrou a necessidade de assegurar esse direito à pessoa transexual após a intervenção cirúrgica, segundo Diniz “A doutrina e a jurisprudência têm negado, em sua maioria, a retificação do registro civil do transexual operado, alegando que o registro público deve ser preciso e regular, consistindo a expressão da verdade”, porém existem julgados que permitem a retificação do prenome no registro civil, como acima verificado[6].

Vencida a barreira da imutabilidade prevista no art. 58 da lei nº 6.015/73 alterada pela lei 9708/98, eis que surge a necessidade de retificação em relação ao sexo, segundo Diniz a jurisprudência brasileira tem entendido que no local reservado ao sexo deverá constar o termo “transexual”, por ser esta a condição física e psíquica da pessoa, de forma a garantir que outrem não seja induzido em erro. Segundo a autora esse entendimento é equivocado, uma vez que feriria o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III CF/88), por expor a pessoa transexual a uma situação humilhante, sendo vedada qualquer discriminação, tendo em vista que a pessoa transexual não estaria enquadrada em nenhum gênero, seja masculino ou feminino, não fazendo sentido a pessoa transexual se submeter à intervenção cirúrgica para a adequação psíquica a física, assumindo uma nova vida e no documento constar o termo transexual, impedindo assim a sua integração efetiva em sociedade, deixando para trás o seu estado anterior, na qual julgava equivocado, pois nascera em um corpo que não correspondia com a sua identidade psíquica, o que a tornava uma pessoa incompleta e causava diversos transtornos. Logo, perante o entendimento apresentado, ocorreu um avanço no que tange a matéria, no qual coaduna  inclusive, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem em seu artigo 1º que agasalha. “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos (…)”.Enfatiza-se-se que a nomenclatura homem consiste como um todo, ou seja, o ser humano, a pessoa, indiferente do gênero. Desse modo, compreende-se que a pessoa é livre na determinação do seu corpo, da sua vida, obtendo o direito de ser lida e reconhecida na sociedade como realmente se vê, se percebe dentro dela. Entretanto, as pessoas trans por pertencerem a um grupo social de risco, é um dever do Estado assegurar os direitos desses indivíduos, guarnecendo as garantias fundamentais para minorias.

Sobre a expectação do transexual após o procedimento cirúrgico convalidar núpcias, com fulcro nos art. 1.557, I e III, art. 1.559 e art. 1.560, III todos do CC/2002, que versa sobre, respectivamente, o erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge, anulação do casamento e o prazo decadencial para pleitear em juízo a anulação, estas são questões levantadas que não encontram respaldo legal, jurisprudencial e doutrinário. Assim como em relação aos benefícios previdenciários do transexual após o procedimento cirúrgico, questiona Diniz[7] “a regra da proporcionalidade do tempo de serviço à nova realidade, computando-se o tempo cumprido como homem e o a cumprir como mulher”[8].

 

CONSIDERAÇÕES

A tratativa tecida tem o objetivo de evidenciar a resistência e dificuldade de aceitação da sociedade em relação às pessoas trans. O imaginário popular, ainda hoje, apenas compreende e respeita o modelo de casal constituído pelo binômio homem-mulher e entende, ainda, que as genitais que a pessoa tem no nascimento impõem uma única possibilidade de identidade de gênero. Esse entendimento popular defende também que um indivíduo que nasce homem precisa se manter como homem, portando-se como tal e tendo atração apenas por mulheres; e vice-versa. A indagação aqui levantada é, portanto, acerca do significado de gênero. A defesa que este é, na verdade, uma construção social e que, por esse motivo, não deve ser considerado um sinônimo da palavra sexo, uma vez que a concepção biológica de macho e fêmea se mostra obsoleta e inadequada para um contexto social.

Tais questionamentos relacionados ao significado de sexo, gênero e orientação sexual começaram quando os indivíduos passaram a não se enquadrar no padrão interposto pela sociedade, sendo que homens passaram a assumir relações com outros homens; mulheres passaram a assumir relações com mulheres e, não obstante tudo isso, homens e mulheres começaram a interrogar a sua existência no corpo em que haviam nascido, passando a agir de maneira contrária ao sexo biológico.

A pessoa trans, psiquicamente e psicologicamente, não se identifica com o sexo biológico, o que lhe fomenta profundo sofrimento e maior parte deste sentimento advém das dolorosas relações que possui com o próprio corpo, pois na grande maioria, é educadada, condicionada para ter medo, vergonha, culpa do corpo que possui, especialmente se este corpo não corresponder aos esteriótipos de gênero em vigor na sociedade. Com isso gera o sentimento de negação, de repressão a respeito do seu corpo, como se este estivesse revestido de algo feio, pecaminoso, perverso, ilegal, desonesto. Diante deste sentimento, apresentam características de inconformismo, depressão, angústia e disforia pelo próprio corpo. Acarretando um desconforto psíquico com seu sexo antagônico, desejando ter seu corpo readequado ao sexo oposto que anseiam possuir.

A cirurgia de adequação de sexo evoluiu ao longo do tempo. Contudo, o Direito não a acompanhou gerando uma série de conflitos. Portanto a redesignação sexual é apenas o início de um longo caminho até o reconhecimento do transexual como ser humano dotado de dignidade, pois mesmo depois da realização da intervenção cirúrgica, ou seja, da mudança do sexo morfológico, continua existindo o estigma e a discriminação na órbita social.

Os conflitos decorrentes dessa disparidade de concepções geram, além da ausência de compreensão e empatia, um grande embate jurídico. A tutela de direitos e a proteção das garantias fundamentais para minorias requerem grandes reformas que precisam sim de debates e respaldos contínuos que minimizem e desestimulem crimes de ódio e discriminação às pessoas trans e demais minorias. Tais garantias são indispensáveis para que a comunidade trans possa gozar de seus direitos fundamentais com isonomia e dignidade. Em paráfrase às palavras de João W. Nery[9], o primeiro transhomem brasileiro submetido à cirurgia de redesignação sexual no Brasil: “O nome social deve ser um direito do transexual pois, sem ele, essa população não existe”.

Consolidando a pretensão deste estudo, em março de 2018 o Plenário do STF decidiu que transexuais e transgêneros poderão solicitar a mudança de prenome e gênero em registro civil sem necessidade de cirurgia de mudança de sexo. Também não serão necessárias decisões judiciais autorizando o ato ou laudos médicos e psicológicos.

A decisão possui um alcance nacional e internacional, uma vez que o Brasil sai na frente de muitos países vizinhos na batalha pela igualdade institucional de direitos. Pois, esta pacificação garante a livre determinação das pessoas trans sobre os seus corpos, sobre a independência de reconhecimento da identidade de gênero. Como disse a Ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal na época sobre o entendimento acerca do tema em seu voto: a diferença na aparência não pode servir de motivo para impedir a igualização de todos os direitos, principalmente ao direito fundamental à felicidade.

 

REFERÊNCIAS

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BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Organização do texto: Juarez de Oliveira. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 1990.

BRASIL, Lei Maria da Penha. Lei 11.340. Publicada em 7 de agosto de 2006

BRASIL, Resolução CFM nº 1.955/2010. Publicada no D.O.U. em 3 de setembro de 2010, Seção I, p.109-110.

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[1] Notícias. Procurador geral da República defende que homofobia vire crime de racismo no Brasil. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2015/06/25/procurador-geral-da-republica-defende-que-homofobia-vire-crime-de-racismo.htm>. Acesso em: 29 jan. 2017

[2] In conjur. Lei Maria da Penha também aplicável em transexuais femininas. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-out-02/lei-maria-penha-tambem-aplicavel-transexuais-femininas>. Acesso em: 30 jan. 2017.

[3] Disponível em:< http://brasil.elpais.com/brasil/2015/08/28/politica/1440778259_469516.html>. Acesso em 20 jan. 2017.

[4] Notícias: Disponível em: < https://antrabrasil.org/>.Acesso>. em: 24 maio. 2018.

[5] Notícias. Disponível em: <https://drauziovarella.uol.com.br/sexualidade/como-funciona-o-sus-para-pessoas-transexuais/> Acesso em: 28 set. 2018.

7 In Conjur. Consolida jurisprudência a favor dos transexuais. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-dez-01/stj-consolida-jurisprudencia-favor-transexuais>. Acesso em: 30 jan. 2017.

8 In jusbrasil. Transexualidade e o direito a identidade e diginidade sexual. Disponível em: <http://giulisa.jusbrasil.com.br/artigos/186912015/a-transexualidade-e-o-direito-a-identidade-e-dignidade-sexual>. Acesso em: 30 jan.2017.

[8] Disponível em: <http://rodrigonogueira9256.jusbrasil.com.br/artigos/336594421/o-transexual-e-o-direito>. Acesso em 30 jan.2017.

[9]. LISBOA, Vinícius. “Sem um nome, não existimos”, diz transexual pioneiro no Brasil. EBC, 27 JAN. 2017. Disponível em: <www.agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2017-01/sem-um-nome-nao-existimos-diz-transexual-pioneiro-no-brasi>. Acesso em: 30 jan. 2017.

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