Por Antonio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo, advogado, pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal) e doutor e mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP).
Passado tanto tempo de exercício da profissão de advogado, não poderia eu ter imaginado voltar a questões objeto de debates que espelhavam o encanto estudantil com a Revolução Francesa.
Dispendíamos horas em considerações em torno de Montesquieu, no primeiro ano de Direito no Largo de São Francisco. Afinal, havia exagero na afirmação do iluminista quanto ao juiz limitar-se a ser “la bouche quiprononce les paroles de la loi” (a boca que pronuncia as palavras da lei)?
Em verdade, ressalvado o Direito Penal (lexcerta, scripta, stricta e previa), a rigidez do princípio da legalidade vinha temperada, pelos estudantes e professores do fim dos anos 80, pela necessidade de impor interpretação constitucional que iluminasse o ordenamento jurídico com os avanços trazidos pela Constituição de 1988.
No processo penal, isso era muito claro, pois o reconhecimento de direitos individuais no artigo 5º da Lei Maior exigia repensar o Código de Processo Penal de 1941, a contar de nova valoração jurídico-constitucional. O envolvido na persecução penal passava à condição de sujeito de direitos perante o Estado-jurisdição, e o processo penal deveria se caracterizar pela proteção jurídica ao indivíduo.
À época, almejavam-se Direito Penal e processo penal aplicados com vistas ao reconhecimento da dignidade humana, como princípio norte do sistema, apto a abrir os olhos do juiz criminal à pessoa do investigado, do réu e do condenado. Motivações vagas nas decisões judiciais quanto à culpabilidade e à pena, julgados obsoletos em tema de prisão cautelar, burocracia na execução penal seriam demolidos pela nova ordem constitucional.
Em três décadas, o sonho transformou-se em convívio com a ignorância preconceituosa, propalada pelo oportunismo da “lava jato”. Reitero, mais uma vez, que nunca se disse tanta bobagem na Justiça penal — e em cortes — como nos últimos tempos. O Brasil atual vê magistrados atuarem nos casos judiciais, negando normas cogentes e interpretando sem vínculo a método, regras e princípios de Direito.
É ilegítimo judicar em processo penal sem acatamento à legalidade estrita. Negar-se a tipicidade das disposições do processo penal significa praticar o arbítrio. E a interpretação dessas normas processuais depende de embasamento constitucional e em tratados internacionais, bem assim de respeito à técnica jurídica. Quer dizer, liberdade de interpretação do juiz penal não existe e tem a mesmo importância da opinião em filosofia: nenhuma consideração intelectual merece!
Trata-se de mais um equívoco contemporâneo quanto às sociedades democráticas, as quais deveriam autorizar a emissão de qualquer juízo de valor, e todas as declarações teriam em si a mesma relevância no âmbito do debate. Isso não é verdade. A começar, no ponto sob análise, mostra-se inconfundível a liberdade de pensamento e manifestação com a comunicação que funcionários públicos têm com os particulares, porque seja na forma, seja no conteúdo, esta comunicação só deve ocorrer consoante a lei.
Há, sim, relação intrínseca entre o que diz (ou escreve) o magistrado e a lei. Decisões sem fundamento jurídico devem ser anuladas por vício de motivação (artigo 93, IX, da Constituição), ou reformadas. Aqui, vale a legalidade como princípio da administração pública (artigo 37 da Constituição), inclusive.
As desculpas alicerçadas em pretenso poder geral de cautela do juiz penal ou em argumentos político-sociais — como o problema da corrupção — desnudam um Judiciário que em nada diverge dos juízes da França do Ancien Régime. Resta a dúvida, tão só, qual destino nossa história lhes proporcionará, com certeza bem diverso da guilhotina dos revolucionários de então.
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