Amanda Carvalho de Oliveira[1]
Resumo: O presente artigo busca analisar a interferência do poder judiciário no atual cenário brasileiro frente à crise da pandemia ocasionada pela COVID-19 e a sua interferência na competência do poder legislativo e executivo. A situação vivida pela sociedade no último ano evidenciou a inefetividade dos Poderes Políticos, o que acarretou numa postura ativista do Poder Judiciário, embora muito criticada. No decorrer deste artigo será demonstrado e analisado o protagonismo judicial e os seus possíveis excessos ao invadir a seara de competência de outras esferas de poder. Diante disso, será abordado várias posições prós e contra o fenômeno do ativismo judicial, possibilitando a compreensão dos dois lados do debate jurídico.
Palavras-chave: Excesso do Ativismo Judicial. Pandemia. Legitimidade. Separação dos Poderes. Controle de Políticas Públicas.
Abstract: This article seeks to analyze the interference of the judiciary in the current Brazilian scenario facing the pandemic crisis caused by COVID-19 and its interference in the legislative and executive powers. The situation experienced by society in the last year has evidenced the lack of effectiveness of the Political Powers, which resulted in an activist posture of the Judiciary, although much criticized. Throughout this article it will be demonstrated and analyzed the judicial protagonism and its possible excesses when invading the area of competence of other spheres of power. Given this, several positions for and against the phenomenon of judicial activism will be addressed, enabling the understanding of both sides of the legal debate.
Keywords: Excess of Judicial Activism. Pandemic. Legitimacy. Separation of Powers. Public Policy Control.
Sumário: Introdução. 1. Considerações Gerais do Ativismo Judicial. 1.1. Breve Histórico. 1.2. Conceito de Ativismo Judicial. 1.3 Judicialização. 2. A Separação dos Poderes no Ordenamento Jurídico Brasileiro. 2.1 O Sistema de Freios e Contra Pesos e as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI’s). 3. O Supremo Tribunal Federal e suas Competências. 3.1 A atuação do Supremo Tribunal Federal durante a Pandemia da COVID-19. Conclusão. Referências.
Introdução
O ativismo judicial trata-se de um tema polêmico e complexo por natureza. Não há um conceito propriamente dito para descrever o que seja, tendo em vista tratar-se de uma técnica do Poder Judiciário, mas pode-se dizer que corresponde à interferência do judiciário na competência do poder legislativo e executivo. Hoje essa interferência do poder judiciário tem sido considerada cada vez mais excessiva de modo a comprometer a individualização dos poderes e a verdadeira aplicação correta das normas e leis constitucionais. Há também o entendimento de que um Poder Judiciário ativista seria além de vantajoso, necessário para aplicação de políticas públicas e concretização dos direitos fundamentais. A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 2° caracteriza os três poderes da união, Legislativo, Executivo e Judiciário, como independentes e harmônicos entre si. O princípio da separação dos poderes determina que deve haver a harmonia entre esses três poderes, mas de modo que cada um exerça sua função dentro do seu espaço determinado, de modo a não invadir a competência e atuação dos outros poderes.
A crise em que o Brasil e o mundo enfrentam, ocasionada pelo vírus SARS-CoV-2, mais conhecido como COVID-19, provocou um estado de calamidade pública, afetando diversas áreas como a da economia, educação e de liberdades e garantias individuais. A doença que causa síndrome respiratória aguda e se alastra rapidamente já contabiliza mais de 540.000 óbitos por todo o país. Em decorrência da urgência da situação gerada, as atuações dos Poderes Executivo e Legislativo se mostraram morosas.
A interferência na Suprema Corte nas decisões sobre as ações oriundas dos governos no enfrentamento da crise na saúde pública vem levantando diversas opiniões sobre a provável existência do ativismo judicial nestas decisões. Entre as ações judiciais que objetivaram o combate ao COVID-19 e a diminuição nas contaminações, foi a decisão do Ministro Luís Roberto Barroso ao deferir as ADPF’s (Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental) 668 e 669 com o objetivo de vedar a produção e circulação de campanhas do governo federal que incentivavam a retomada às atividades plenas, bem como menosprezavam a pandemia. Segundo o Ministro, as campanhas não teriam material informativo, contrariando as recomendações sanitárias, indo contra o artigo 37, parágrafo 1°da Constituição Federal. O Supremo Tribunal Federal também decidiu que a União pode legislar sobre medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus (Lei 13. 979/20), todavia, o pleno exercício desta competência deve resguardar a autonomia dos outros entes. Portanto, cabe aos prefeitos e governadores a regulamentação em seus territórios.
A principal proposta deste trabalho é trazer uma visão ampla em relação ao fenômeno conhecido no Brasil como ativismo judicial, analisando sua necessidade e até onde vai os seus prejuízos e benefícios. Além disto, trazer também uma síntese em relação aos direitos fundamentais, mais especificamente o direito à saúde, principalmente no atual cenário pandêmico que estamos vivenciando.
1 Considerações Gerais do Ativismo Judicial
Foram atribuídas funções específicas e próprias constitucionalmente estabelecidas aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, determinadas para cada esfera de poder, cabendo a cada um exercê-las com exclusividade. Porém, na atualidade, nota-se uma participação mais crescente e intensa do protagonismo do STF em questões relevantes de caráter social, assumindo assim um posicionamento ativista.
A nossa Constituição Federal de 1998 é considerada analítica, ou seja, é ampla, de conteúdo extenso, o que acaba suscitando inumeráveis brechas, tendo em vista que sua interpretação por completo seria praticamente impossível, o que possibilita aos magistrados a aplicação discricionária do Direito para alcançar os efeitos da lei considerada imprecisa.
No que se refere às omissões legislativas, Carlos Alexandre de Azevedo Campos considerou o seguinte:
Ante a omissão legislativa, o STF tem sido chamado a se pronunciar sobre determinadas matérias que caberiam ao Legislativo regulamentar. Por vezes, o STF não se limita a declarar a omissão legislativa, indo além do que a dogmática legalista tradicional convencionou ser o papel do Judiciário, qual seja, a subsunção do fato à norma, e ante a imposição de obrigações aos outros poderes e aos administrados em geral, a doutrina diz que há intromissão indevida do Judiciário nos demais Poderes da República, ferindo os princípios da separação dos poderes, a democracia e o estado democrático de direito. (CAMPOS, 2004, p. 210)
As adversidades surgem na sociedade e o judiciário acaba por resolvê-las independentemente da existência ou não de normas, tendo em vista que para tomar decisões, o juiz não pode se valer da lacuna no ordenamento jurídico, ainda que haja falta de atuação pelo legislativo.
1.1 Breve Histórico
No tocante a origem da expressão ativismo judicial, há uma divergência, mas prevalece o entendimento de que o termo fora criado pelo jornalista e historiador americano Arthur Schlesinger Jr., em 1947, em uma matéria jornalística para a revista “Fortune”. Arthur classificou os juízes da Suprema Corte norte-americana dentre os que priorizavam as suas decisões de acordo com o bem estar social e outros que seguiam apenas direitos já previstos na legislação, tomando como base para as suas decisões. Desta forma, diferenciou juízes ativistas e conservadores, respectivamente.
1.2 Conceito de Ativismo Judicial
Não há um conceito definido do que que venha a ser o Ativismo Judicial, mas se entende pela interferência do poder Judiciário nas atribuições dos outros poderes. O judiciário além de exercer suas funções interfere na atuação dos demais, para alguns doutrinadores essa interferência se dá de forma exorbitante e traz insegurança jurídica perante a população brasileira, para outros, caracteriza-se como uma atuação necessária frente à decisões de grande interesse e relevância social.
Alguns autores entendem que o Judiciário está ocasionando uma desnaturalização da sua função típica ao atuar de forma atípica em alguns casos. Nesse sentido, Ramos esclarece que:
Por ativismo judicial deve-se entender o exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflito normativo). Há como visto, uma sinalização claramente negativa no tocante às práticas ativistas, por importarem na desnaturação da atividade típica do Poder Judiciário, em detrimento dos demais Poderes. (RAMOS, 2010, p. 129)
Fazendo parte dos autores que criticam o ativismo judicial, Carlos Alexandre de Azevedo Campos se posiciona no sentido de que a atuação ativista pelos juízes transfigura-se em ameaça aos valores democráticos constitucionalmente garantidos, bem como o princípio da separação dos poderes. Vejamos:
A complexidade do ativismo judicial revela-se, particularmente, na forma como se manifestam as decisões ativistas. Essas decisões apresentam diferentes dimensões, e não apenas forma única de manifestação, o que significa dizer que o ativismo judicial consiste em práticas decisórias, em geral, multifacetadas e, portanto, insustentáveis de redução a critérios singulares de identificação. Há múltiplos indicadores do ativismo judicial como a interpretação expansiva dos textos constitucionais, a falta de deferência institucional aos outros poderes de governo, a criação judicial de normas gerais e abstratas, etc. Assumir esta perspectiva transforma a identificação do ativismo judicial em uma empreitada mais completa e segura. (CAMPOS, 2014. p. 163).
O Ministro Luís Roberto Barroso entende ser o ativismo judicial uma participação mais ampla do judiciário perante os demais poderes, e pontua:
A idéia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. (BARROSO, 2009, p. 6)
O autor Pedro Lenza, cita o ativismo ao tratar da concretização das normas constitucionais:
[…] percebe-se que a proposta de constitucionalização simbólica deve ser o ponto de partida para que, compreendendo a problemática, diante das expectativas colocadas, as normas não sirvam apenas como retórica política ou álibi dos governantes. É preciso identificar os mecanismos de sua concretização e, nisso, além do papel da sociedade, parece-nos que o judiciário tem uma importante missão, realizando a implementação da efetividade das normas constitucionais. Identificamos, como será estudado neste nosso trabalho, uma nova perspectiva na utilização das técnicas do mandado de injunção e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão (em relação às normas programáticas) e, assim, a consagração da importante figura do ativismo judicial. (LENZA, 2020, p. 109)
Como um dos defensores do ativismo judicial, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Melo, pontuou o seguinte:
Nem se censure eventual ativismo judicial exercido por esta Suprema Corte, especialmente porque, dentre as inúmeras causas que justificam esse comportamento afirmativo do Poder Judiciário, de que resulta uma positiva criação jurisprudencial do direito, inclui-se a necessidade de fazer prevalecer a primazia da Constituição da República, muitas vezes transgredida e desrespeitada por pura, simples e conveniente omissão dos poderes públicos. Na realidade, o Supremo Tribunal Federal, ao suprir as omissões inconstitucionais dos órgãos estatais e ao adotar medidas que objetivem restaurar a Constituição violada pela inércia dos poderes do Estado, nada mais faz senão cumprir a sua missão constitucional e demonstrar, com esse gesto, o respeito 32 incondicional que tem pela autoridade da Lei Fundamental da República. Práticas de ativismo judicial, Senhor Presidente, embora moderadamente desempenhadas por esta Corte em momentos excepcionais, tornam-se uma necessidade institucional, quando os órgãos do Poder Público se omitem ou retardam, excessivamente, o cumprimento de obrigações a que estão sujeitos por expressa determinação do próprio estatuto constitucional, ainda mais se se tiver presente que o Poder Judiciário, tratando-se de comportamentos estatais ofensivos à Constituição, não pode se reduzir a uma posição de pura passividade. A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência (ou insuficiência) de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental.” (MELLO, 2018, p. 12)
Por fim, se tratando de posicionamento favorável à atuação do ativismo judicial e seus reflexos, o autor Ramon Tácio de Oliveira entende que o fenômeno ocorre como meio de suprir uma lacuna deixada pelo poder legislativo:
[…] o ativismo judicial é tomado no sentido de medida que existe para atenuar o hiato entre o ideal político e a realidade constitucional; ocorre para preencher o vácuo deixado pelo legislador em torno do seu papel político apropriado, visando aprimorar a democracia, para afirmar direitos fundamentais. (OLIVEIRA, 2015, p. 287).
É certo que deva haver uma atuação do judiciário, até mesmo em razão do princípio da inafastabilidade da função jurisdicional, em que a lei não exclui da apreciação do judiciário lesões ou ameaças ao direito brasileiro, mas de modo que essa atuação seja controlada e fiscalizada. O Poder judiciário ao ser provocado, incita repostas rápidas dos outros poderes, porém, na morosidade dessas respostas, políticas públicas acabam sendo judicializadas e o judiciário acaba por operar em demandas que não são suas, ou seja, passa a ocupar áreas que são de outros poderes.
1.3 Judicialização
O fenômeno da Judicialização, que muitas vezes é confundido com o ativismo judiciário por serem relativamente parecidos, embora cada um tenha sua especificidade particular, teve como principal causa para seu surgimento a redemocratização do país e a promulgação da Constituição de 1988. Ou seja, com a redemocratização do país o poder judiciário foi reforçado, passando a ser o guardião da Constituição Federal, investiu-se de grande poder político, passando, inclusive a confrontar-se com os demais poderes.
Quanto às diferenças entre os dois fenômenos, Barroso destaca:
A judicialização e o ativismo judicial são primos. Vêm, portanto, da mesma família, frequentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens. Não são gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas. A judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política. Em todos os casos referidos acima, o Judiciário decidiu porque era o que lhe cabia fazer, sem alternativa. Se uma norma constitucional permite que dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo a matéria. Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. A ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais. (BARROSO, 2009, p. 03)
A Judicialização, conforme Barroso (2009, p.03), significa que “algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: O Congresso Nacional e o Poder Executivo”. Neste sentido, ele ainda ressalta:
Judicialização significa que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo — em cujo âmbito se encontram o presidente da República, seus ministérios e a administração pública em geral. Como intuitivo, a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade. (BARROSO, 2009. p. 3).
A Judicialização trouxe para a Constituição inúmeras matérias que antes eram deixadas para o processo político majoritário e para a legislação ordinária. Com isto, o Brasil adota o controle por ação direta, que permite que determinadas matérias sejam encaminhadas para ao Supremo Tribunal Federal -STF. Ressalte-se que o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade é um dos mais abrangentes do mundo.
Melhor dizendo, além dos fatos supracitados, tem-se ainda normatizado no art. 103, da Constituição Federal de 1988, que diversas entidades públicas e/ou privadas podem ajuizar ações diretas de inconstitucionalidade, cujo impasse deverá ser dirimido pelo Superior Tribunal Federal. Conforme se observa, a Judicialização e o Ativismo Judicial são bem parecidos, porém, não possuem a mesma origem. A Judicialização decorre do modelo constitucional adotado no Brasil, já o Ativismo Judicial decorre do excesso de poder por parte do judiciário.
2. A Separação dos Poderes no Ordenamento Jurídico Brasileiro
O princípio da separação dos poderes, também chamado de tripartição dos poderes, é um princípio que está consagrado no nosso ordenamento jurídico pátrio. A Constituição da República de 1988 estabelece em seu art. 2º que “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”, além disso, protege essa tripartição em nível de cláusula pétrea fundamental em seu art. 60, § 4º, III, assim expresso:
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
I – de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;
II – do Presidente da República;
III – de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais. (BRASIL, 1988, grifos nossos)
O ordenamento jurídico destaca que os três poderes são autônomos e independentes entre si, entretanto um poder complementa o outro. A Constituição Federal/1988 ressalta a importância da independência e harmonia entre eles, principalmente na busca de uma democracia mais eficaz e como meio de se evitar a concentração do poder Estatal em apenas uma.
Os três poderes trabalham em perfeita harmonia e não se pode permitir que essa harmonia seja de alguma forma ameaçada por caprichos individualistas ou mesmo vaidade pessoal ou até mesmo interesses políticos. Cada poder possui uma função predominante, embora não haja uma função exclusivamente absoluta, o que faz com que todos exerçam não só funções típicas, como também atípicas.
O poder legislativo tem como sua função típica legislar e fiscalizar os atos do poder Executivo. Já as suas funções atípicas são atribuídas às atividades de administrar, como por exemplo, dispor sobre sua organização interna e provimento de cargos, assim como também exerce a função atípica de julgar, como no caso de processo e julgamento do Presidente da República.
A função típica do poder executivo se baseia na prática dos atos de chefia de Estado, de governo, e atos de administração da coisa pública. Sob a perspectiva das funções atípicas, se dá a de natureza legislativa, como por exemplo, o Presidente da República adotar medida provisória com força de lei (art. 62° da Constituição Federal de 1988), e a de natureza jurisdicional, quando , por exemplo, o executivo julga considerando defesas e recursos administrativos.
A função típica do judiciário é inerente a sua natureza, na qual se dá a função de julgar os atos aplicando a lei aos casos concretos. Por outro lado, o judiciário também possui suas funções atípicas, as quais seriam a de natureza administrativa e legislativa. Acerca das funções atípicas, explica Alexandre de Morais:
O Judiciário, porém, como os demais Poderes Judiciário possui outras funções, denominadas atípicas, de natureza administrativa e legislativa. São de natureza administrativa, por exemplo, concessão de férias aos seus membros e serventuários; prover, na forma prevista nessa Constituição, os cargos de juiz de carreira na respectiva jurisdição. São de natureza legislativa a edição de normas regimentais, pois compete ao Poder Judiciário elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos. (MORAES, 2007. p. 478).
Neste sentido, cabe ressaltar que o único e mais importante papel do judiciário é cumprir o caminho determinado pela lei, e resguardando todos os princípios constitucionais, de modo a garantir que tanto a segurança jurídica quanto a efetivação de normas sejam cumpridas para a sociedade de um modo geral
Cabe evidenciar que o princípio da separação de poderes está presente no nosso ordenamento desde a Constituição Imperial de 1824, conforme estabelece seus arts. 9º e 10º, Título 3º: “Dos poderes, e Representação Nacional”, assim exposto:
Art. 9. A Divisão, e harmonia dos Poderes Políticos é o princípio conservador dos Direitos dos Cidadãos, e o mais seguro meio de fazer effectivas as garantias, que a Constituição oferece.
Art. 10. Os Poderes Políticos reconhecidos pela Constituição do Império do Brazil são quatro: o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo e o Poder Judicial.” (BRASIL, 1824).
Identifica-se na constituição de 1824 a presença do poder moderador, considerado por alguns doutrinadores como um quarto poder, contudo, a “Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil”, de 1891, já não traz o poder moderador retratando a clássica tripartição de poderes, deixando de lado a monarquia e estabelecendo o modelo americano de constituição, quando dispôs: “Art. 15. São órgãos da soberania nacional o Poder Legislativo, o Executivo e o Judiciário, harmônicos e independentes entre si”.
Daí por diante, em todas as demais constituições brasileiras viu-se a evolução do princípio da Separação dos Poderes no Brasil, até a atual Constituição Federal, considerada constituição cidadã, pelo seu caráter amplamente democrático e de respeito às liberdades individuais e aos direitos da pessoa humana, atravessando épocas, passando por regimes autoritários, ditatoriais, mas, todavia sem perder a sua essência, sua razão de ser, qual seja delegar atribuições a órgãos distintos, desconcentrando o poder demasiado e sem limites.
2.1 O Sistema de Freios e Contra Pesos e as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI’s)
Aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário são atribuídas funções específicas e próprias, constitucionalmente determinadas para cada esfera de poder, cabendo a cada poder exercê-las com exclusividade. Assim sendo, trata-se de uma prescrição constitucional conhecida como o sistema de freios e contrapesos, que consiste na prática de delimitação de um poder por outro.
Este sistema consiste no equilíbrio entre os órgãos estatais por meio de controles recíprocos. Como exemplo desse controle, temos as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI), organismos temporários que são constituídos isolada ou conjuntamente pelas Casas Legislativas com poderes de investigação próprio das autoridades judiciais, além dos demais previstos nos regimentos internos de ambas as casas, com a finalidade de examinar prováveis práticas de atos ilícitos no âmbito de qualquer dos poderes da República.
Merece transcrição o disposto no §3º do Art. 58 da Constituição Federal de 1988:
“As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores“.
Com o avanço da pandemia pela Covid-19 no Brasil, observou-se constantemente a dinâmica de atuação e interação entre os poderes diante da gravidade de riscos à saúde pública. O senador do estado do Amapá, logo após uma gravíssima situação de falta de oxigênio e leitos hospitalares no estado do Amazonas, mais precisamente em Manaus, propôs uma CPI para apurar eventuais omissões do governo federal, abrangendo também o atraso na compra de vacinas e aquisição de medicamentos sem comprovação técnica e científica.
A Comissão Parlamentar de Inquérito, chamada de CPI da Covid-19, foi aberta em abril deste ano, determinada pelo ministro do STF Luis Roberto Barroso no Senado Federal, com o objetivo de apurar ações, omissões e erros do Poder Executivo Federal no enfrentamento da Pandemia, investigando a responsabilização de agentes públicos por eventuais ilicitudes.
Por ter como fato determinante a investigação tão somente do Governo Federal, a citada Comissão Parlamentar de Inquérito vem sendo bastante criticada, principalmente pelos questionamentos de que estaria ferindo jurisprudência recente do STF e o princípio do federalismo, presente no caput dos artigos 1° e 18° da Constituição Federal, tendo em vista que recursos federais destinados ao combate à pandemia foram repassados aos estados e municípios. Outro ponto de questionamento e críticas constantes é o fato de que não seria atribuição exclusiva do Senado Federal a investigação do Executivo Federal no combate à covid-19, levando em consideração que poderia ter sido formada CPI por parlamentares não só do Senado Federal como também da Câmara dos Deputados, seguindo o critério da proporcionalidade, objetivando a discussão e deliberação de maneira conjunta acerca da responsabilidade de todos os entes federativos no gerenciamento do dinheiro público para frear o avanço no contágio acelerado do coronavírus, analisando os parâmetros adotados pelos entes.
A respeito do assunto, é válido citar jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal:
INQUÉRITO-COMISSÃO PARLAMENTAR – INSTAURAÇÃO. É atribuição do presidente da Câmara aferir o preenchimento de comissão parlamentar de inquérito. (STF-MS: 33521 DF 0000339-45.2015.1.00.0000, Relator: MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 15/05/2020, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 24/06/2020)
Embora o papel do poder legislativo seja o de elaborar leis, dentro do sistema de freios e contrapesos, compete-lhe verificar se o Executivo está cumprindo com o papel que foi estabelecido pela Constituição Federal. Por acarretar um alto custo político para o país, as Comissões Parlamentares de Inquérito só devem ser acionadas quando necessárias para viabilizar investigações políticas e, assim, transmitindo à sociedade respostas concretas diante do oferecimento de denúncias de fatos graves, de especial relevo social, estando esses fatos ligados à competência de cada casa legislativa, respeitando o princípio constitucional da forma federativa de Estado.
3. O Supremo Tribunal Federal e suas Competências
Ao STF, cúpula do poder judiciário, compete a guarda da Constituição Federal, de acordo com o seu artigo 102. Conforme o texto constitucional vigente, seus ministros são nomeados pelo Presidente da República, necessitando de aprovação da maioria absoluta do Senado Federal, conforme artigo 101, parágrafo único, da nossa carta magna (CF/88).
A sociedade Brasileira é representada pelo Congresso Nacional, e tudo que diz respeito ao povo está sendo discutido pelo mesmo, ainda que muitos projetos sejam interferidos pelo STF (Supremo Tribunal Federal) alegando sua inconstitucionalidade, e moldando o que foi instituído pelo povo na Constituição Federal à sua vontade.
Isto não significa que o Poder Judiciário não tenha um relevante papel na defesa e garantia dos direitos fundamentais elencados na Constituição, contudo essa necessária atuação precisa ser feita de maneira racional, com coerência e respeito ao Congresso Nacional, cujos representantes são sujeitos legitimados pelo povo, através do voto livre e soberano. Porém, a atuação do Congresso Nacional considerada muitas vezes ineficiente, se torna uma das principais causas para o Ativismo Judicial, tendo em vista a carência da legislação em relação a determinados temas.
Cezar Peluso, ministro aposentado, manifestou-se sobre o ativismo judicial no Supremo Tribunal Federal:
O Supremo sempre aponta para os interesses gerais da sociedade. Essa acusação de ativismo não é exclusiva da Suprema Corte do Brasil. Nos EUA, sérios problemas que deveriam ter sido resolvidos no plano legislativo, ou na área administrativa, só tiveram solução social satisfatória com a intervenção da Suprema Corte. Foi assim inclusive com o racismo. No Brasil lidamos com uma Constituição Analítica, bem diferente da Americana, com seus poucos artigos. A nossa Carta cuida de uma série de matérias que poderiam ser regidas por lei ordinária. E isso tem explicação: A Constituição de 88 foi editada após longo período de autoritarismo, quando os constituintes resolveram regular tudo. Daí o Supremo ser acionado, ele decide. Isso já foi chamado de “ativismo judicial a convite constitucional”, o que é apropriado. Só que o Supremo não dá motivos para acusações de partidarismo. Mesmo lidando com questões políticas, age com independência, ao contrário do que se ouve falar de outras cortes. Eu diria mais: quando decisões da Corte chama a atenção da opinião pública é porque as matérias tratadas representam divisões dentro da sociedade brasileira. Falo de temas como o aborto, células-tronco, fetos anencéfalos, direito dos homoafetivos.
O STF é tido como o órgão de última e maior instância do Poder judiciário no Brasil, e suas competências são definidas como originária e recursal. Sua competência originária está prevista no inciso I do artigo 102 da CF/1988, em que são processados e julgados originariamente os casos ali previstos, como por exemplo, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, buscando afirmar a constitucionalidade de determinada lei ou ato dentro do ordenamento jurídico brasileiro ou a guarda dos princípios constitucionais.
O STF também pode atuar em competência recursal, prevista no inciso III, também do artigo 102 da CF/1988. O referido inciso destaca que apenas poderá ser julgado os recursos extraordinários mediante causas decidias em única ou última instância, ficando desta forma passível de julgamento pelo STF aqueles atos que contrariam dispositivos Constitucionais, declarando inconstitucional tratado ou lei federal, bem como o julgamento da validade da lei ou ato do governo local diante da Constituição Federal. Cumpre evidenciar que a Constituição Federal de 1988 trouxe um status constitucional a um número mais elevado de matérias que se tornaram sujeitas à análise do STF, ficando na qualidade de principal responsável pelo controle de constitucionalidade.
3.1 A atuação do Supremo Tribunal Federal Durante a Pandemia da COVID-19
Os prefeitos e governadores vêm adotando medidas importantes na tentativa de se evitar o alastramento da pandemia e todo o caos que dela decorre. No entanto, o cidadão que é o principal atingido por essas medidas, recorre ao judiciário para sanar questões resultantes de possível excesso do poder de polícia administrativo, ocasionando a revisão desses atos.
Nos últimos anos, o poder judiciário brasileiro vem exercendo de forma mais intensa o papel ativista, principalmente quando se trata de causas polêmicas, como o aborto, por exemplo, que acarreta relevante impacto social. Observa-se a seguinte ementa do voto do Ministro Luís Roberto Barroso acerca da descriminalização do aborto voluntário até o terceiro mês de gestação:
Ementa: DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA SUA DECRETAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO TIPO PENAL DO ABORTO NO CASO DE INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GESTAÇÃO NO PRIMEIRO TRIMESTRE. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. O habeas corpus não é cabível na hipótese. Todavia, é o caso de concessão da ordem de ofício, para o fim de desconstituir a prisão preventiva, com base em duas ordens de fundamentos. 2. Em primeiro lugar, não estão presentes os requisitos que legitimam a prisão cautelar, a saber: risco para a ordem pública, a ordem econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal (CPP, art. 312). Os acusados são primários e com bons antecedentes, têm trabalho e residência fixa, têm comparecido aos atos de instrução e cumprirão pena em regime aberto, na hipótese de condenação. 3. Em segundo lugar, é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do Código Penal – que tipificam o crime de aborto – para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade. 4. A criminalização é incompatível com os 30 seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a 2 igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria. 5. A tudo isto se acrescenta o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres. É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos. 6. A tipificação penal viola, também, o princípio da proporcionalidade por motivos que se cumulam: (i) ela constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro; (ii) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas; (iii) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios. 7. Anote-se, por derradeiro, que praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália. 8. Deferimento da ordem de ofício, para afastar a prisão preventiva dos pacientes, estendendo-se a decisão aos corréus. (STF, 2016, on-line).
A possibilidade transcrita no voto do ministro não é conferida na legislação brasileira, o que torna evidente a sua discricionariedade ao tratar do tema e o subjetivismo das decisões judiciais, ocasionando insegurança jurídica e comprometendo a estabilidade institucional do Estado Democrático de Direito.
A Constituição Federal de 1988 traz em seu artigo 196 direito inerente à saúde, determinando ser um direito de todos, livre de qualquer exceção, sendo dever do Estado prestá-lo de forma integral a toda população.
Em decorrência da disseminação desenfreada do coronavírus houve um aumento significativo na quantidade de demandas carentes de respostas urgentes, contudo, o Legislativo tornou-se impossibilitado de oferecer respostas efetivas dentro de um prazo razoável.
Desde o início da pandemia no Brasil, em 2020, houve algumas decisões da suprema corte que provocaram grande impacto no modo como a pandemia era conduzida, com isso, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 6341 no Supremo Tribunal Federal dispondo de medidas para o enfrentamento da emergência na saúde pública e para declarar a inconstitucionalidade da Medida Provisória n° 926 de 20 de março de 2020, editada pelo Presidente da República, que estabelecia ações para o enfrentamento ao Covid-19 e em seu artigo 3°, parágrafo 9°, atribuía ao Presidente da República a responsabilidade de dispor sobre serviços públicos e atividades essenciais. Vejamos:
Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas:
I – isolamento;
II – quarentena
[…] VI – restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de: a) entrada e saída do País; b) locomoção interestadual e intermunicipal; […]
A ação foi distribuída ao Ministro Marco Aurélio, que entendeu ser de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios a iniciativa de medidas necessárias para prover e cuidar da saúde e assistência pública, conforme observa-se a seguir na ementa do acórdão:
EMENTA: REFERENDO EM MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DA INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO À SAÚDE. EMERGÊNCIA SANITÁRIA INTERNACIONAL. LEI 13.979 DE 2020. COMPETÊNCIA DOS ENTES FEDERADOS PARA LEGISLAR E ADOTAR MEDIDAS SANITÁRIAS DE COMBATE À EPIDEMIA INTERNACIONAL. HIERARQUIA DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. COMPETÊNCIA COMUM. MEDIDA CAUTELAR PARCIALMENTE DEFERIDA. 1. A emergência internacional, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde, não implica nem muito menos autoriza a outorga de discricionariedade sem controle ou sem contrapesos típicos do Estado Democrático de Direito. As regras constitucionais não servem apenas para proteger a liberdade individual, mas também o exercício da racionalidade coletiva, isto é, da capacidade de coordenar as ações de forma eficiente. O Estado Democrático de Direito implica o direito de examinar as razões governamentais e o direito de criticá-las. Os agentes públicos agem melhor, mesmo durante emergências, quando são obrigados a justificar suas ações. 2. O exercício da competência constitucional para as ações na área da saúde deve seguir parâmetros materiais específicos, a serem observados, por primeiro, pelas autoridades políticas. Como esses agentes públicos devem sempre justificar suas ações, é à luz delas que o controle a ser exercido pelos demais poderes tem lugar. 3. O pior erro na formulação das políticas públicas é a omissão, sobretudo para as ações essenciais exigidas pelo art. 23 da Constituição Federal. É grave que, sob o manto da competência exclusiva ou privativa, premiem-se as inações do governo federal, impedindo que Estados e Municípios, no âmbito de suas respectivas competências, implementem as políticas públicas essenciais. O Estado garantidor dos direitos fundamentais não é apenas a União, mas também os Estados e os Municípios. 4. A diretriz constitucional da hierarquização, constante do caput do art. 198 não significou hierarquização entre os entes federados, mas comando único, dentro de cada um deles. 5. É preciso ler as normas que integram a Lei 13.979, de 2020, como decorrendo da competência própria da União para legislar sobre vigilância epidemiológica, nos termos da Lei Geral do SUS, Lei 8.080, de 1990. O exercício da competência da União em nenhum momento diminuiu a competência própria dos demais entes da federação na realização de serviços da saúde, nem poderia, afinal, a diretriz constitucional é a de municipalizar esses serviços. 6. O direito à saúde é garantido por meio da obrigação dos Estados Partes de adotar medidas necessárias para prevenir e tratar as doenças epidêmicas e os entes públicos devem aderir às diretrizes da Organização Mundial da Saúde, não apenas por serem elas obrigatórias nos termos do Artigo 22 da Constituição da Organização Mundial da Saúde (Decreto 26.042, de 17 de dezembro de 1948), mas sobretudo porque contam com a expertise necessária para dar plena eficácia ao direito à saúde. 7. Como a finalidade da atuação dos entes federativos é comum, a solução de conflitos sobre o exercício da competência deve pautar-se pela melhor realização do direito à saúde, amparada em evidências científicas e nas recomendações da Organização Mundial da Saúde. 8. Medida cautelar parcialmente concedida para dar interpretação conforme à Constituição ao § 9º do art. 3º da Lei 13.979, a fim de explicitar que, preservada a atribuição de cada esfera de governo, nos termos do inciso I do artigo 198 da Constituição, o Presidente da República poderá dispor, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais.
(ADI 6341 MC-Ref, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 15/04/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-271 DIVULG 12-11-2020 PUBLIC 13-11-2020).
Não menos importante que a Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 6341, a decisão do Ministro Luis Roberto Barroso nas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) 668 e 669, ajuizadas pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos (CNTM) e pelo partido Rede Sustentabilidade contra a produção e circulação de campanhas do governo federal que incentivavam a retomada às atividades plenas e informações falsas ao insinuar que o coronavírus não oferece risco grave para a população, produzindo desinformação para minimizar os danos causados pela pandemia.
O ministro entendeu que as referidas campanhas além de contrariar as medidas sanitárias, não possuem material informativo, contrariando o artigo 37, parágrafo 1° da Constituição Federal que determina que as campanhas publicitárias dos órgãos públicos devem ter caráter “informativo, educativo ou de orientação social”. Na Ementa da decisão, houve a aplicação dos princípios da prevenção e da precaução quanto a prevalência de escolhas que ofereçam proteção mais ampla à saúde, analisemos:
Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E SANITÁRIO. ARGUIÇÕES DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. SAÚDE PÚBLICA E COVID-19. CAMPANHA PUBLICITÁRIA APTA A GERAR GRAVE RISCO À VIDA E À SAÚDE DOS CIDADÃOS. PRINCÍPIOS DA PRECAUÇÃO E DA PREVENÇÃO. CAUTELAR DEFERIDA. 1. Arguições de descumprimento de preceito fundamental contra a contratação e veiculação de campanha publicitária, pela União, afirmando que “O Brasil Não Pode Parar”, conclamando a população a retomar as suas atividades e, por conseguinte, transmitindo-lhe a impressão de que a pandemia mundial (COVID-19) não representa grave ameaça à vida e à saúde de todos os brasileiros. 2. As orientações da Organização Mundial de Saúde, do Ministério da Saúde, do Conselho Federal de Medicina, da Sociedade Brasileira de Infectologia, entre outros, assim como a experiência dos demais países que estão enfrentando o vírus, apontam para a imprescindibilidade de medidas de distanciamento social voltadas a reduzir a velocidade de contágio e a permitir que o sistema de saúde seja capaz de progressivamente absorver o quantitativo de pessoas infectadas. 3. Plausibilidade do direito alegado. Proteção do direito à vida, à saúde e à informação da população (art. 5º, caput, XIV e XXXIII, art. 6º e art. 196, CF). Incidência dos princípios da prevenção e da precaução (art. 225, CF), que determinam, na forma da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, na dúvida quanto à adoção de uma medida sanitária, deve prevalecer a escolha que ofereça proteção mais ampla à saúde. 4. Perigo na demora reconhecido. Disseminação da campanha “O Brasil Não Pode Parar” que já se encontra em curso, ao menos com base em vídeo preliminar. Necessidade urgente de evitar a divulgação de informações que possam comprometer o engajamento da população nas medidas necessárias a conter o contágio do COVID19, bem como importância de evitar dispêndio indevido de recursos públicos escassos em momento de emergência sanitária. 5. Medida cautelar concedida para vedar a produção e circulação, por qualquer meio, de qualquer campanha que pregue que “O Brasil Não Pode Parar” ou que sugira que a população deve retornar às suas atividades plenas, ou, ainda, que expresse que a pandemia constitui evento de diminuta gravidade para a saúde e a vida da população. Determino, ainda, a sustação da contratação de qualquer campanha publicitária destinada ao mesmo fim. (STF – MC ADPF: 669 DF – DISTRITO FEDERAL 0089076- 48.2020.1.00.0000, Relator: Min. ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 31/03/2020, Data de Publicação: DJe-082 03/04/2020)
Com as decisões já explanadas, a Suprema Corte entendeu que ignorar as orientações da Organização Mundial da Saúde, do Ministério da Saúde, do Conselho Federal de Medicina e da Sociedade Brasileira de Infectologia é erro grosseiro, e os princípios constitucionais como o direito à vida, saúde e prevenção deverão prevalecer.
O ativismo judicial atuará sempre nos limites entre o direito e a política, mas deve os magistrados atuar sempre de forma técnica e imparcial quando se tratar da aplicabilidade da Constituição e de leis criadas pelos representantes do povo, jamais colocando em risco a dignidade da pessoa humana, inclusive, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 45, reconheceu-se a legitimidade constitucional do controle e intervenção do judiciário quanto à implementação de políticas públicas, na hipótese de restar configurada abusividade governamental.
Outro julgamento de extrema importância durante a pandemia, foi a ADPF 709, que trata de omissões da União a respeito da proteção das comunidades indígenas durante a Covid-19. Foram definidas algumas medidas como meio de proteção a estes grupos:
Ementa: DIREITOS FUNDAMENTAIS. POVOS INDÍGENAS. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. TUTELA DO DIREITO À VIDA E À SAÚDE DOS POVOS INDÍGENAS FACE À PANDEMIA DA COVID-19. CAUTELARES PARCIALMENTE DEFERIDAS. 1. Ação que tem por objeto falhas e omissões do Poder Público no combate à pandemia da COVID-19 entre os Povos Indígenas, com alto risco de contágio e mesmo de extermínio de etnias. 2. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB possui legitimidade ativa para propor ação direta perante o Supremo Tribunal Federal e, bem assim, os partidos políticos que assinam a petição inicial. PREMISSAS DA DECISÃO 3. Os Povos Indígenas são especialmente vulneráveis a doenças infectocontagiosas, para as quais apresentam baixa imunidade e taxa de mortalidade superior à média nacional. Há indícios de expansão acelerada do contágio da COVID-19 entre seus membros e alegação de insuficiência das ações promovidas pela União para sua contenção. 4. Os Povos Indígenas têm o direito de participar da formulação e execução das ações de saúde que lhes são destinadas. Trata-se de direito assegurado pela Constituição de 1988 e pela Convenção 169 da OIT, que é norma interna no Brasil. 5. A análise aqui desenvolvida observou três diretrizes: (i) os princípios da precaução e da prevenção, no que respeita à proteção à vida e à saúde; (ii) a necessidade de diálogo institucional entre o Judiciário e o Poder Executivo, em matéria de políticas públicas decorrentes da Constituição; e (iii) a imprescindibilidade de diálogo intercultural, em toda questão que envolva os direitos de povos indígenas. PEDIDOS FORMULADOS 6. Na ação são formulados pedidos específicos em relação aos povos indígenas em isolamento ou de contato recente, bem como pedidos que se destinam aos povos indígenas em geral. Tais pretensões incluem a criação de barreiras sanitárias, a instalação de sala de situação, a retirada de invasores das terras indígenas, o acesso de todos os indígenas ao Subsistema Indígena de Saúde e a elaboração de plano para enfrentamento e monitoramento da COVID-19. 7. Todos os pedidos são relevantes e pertinentes. Infelizmente, nem todos podem ser integralmente acolhidos no âmbito precário de uma decisão cautelar e, mais que tudo, nem todos podem ser satisfeitos por simples ato de vontade, caneta e tinta. Exigem, ao revés, planejamento adequado e diálogo institucional entre os Poderes. DECISÃO CAUTELAR Quanto aos pedidos dos povos indígenas em isolamento e de contato recente 8. Determinação de criação de barreiras sanitárias, conforme plano a ser apresentado pela União, ouvidos os membros da Sala de Situação, no prazo de 10 dias, contados da ciência desta decisão. 9. Determinação de instalação da Sala de Situação, como previsto em norma vigente, para gestão de ações de combate à pandemia quanto aos povos indígenas em isolamento e de contato recente, com participação de representantes das comunidades indígenas, da Procuradoria Geral da República e da Defensoria Pública da União, observados os prazos e especificações detalhados na decisão. Quanto aos povos indígenas em geral 10. A retirada de invasores das terras indígenas é medida imperativa e imprescindível. Todavia, não se trata de questão nova e associada à pandemia da COVID-19. A remoção de dezenas de milhares de pessoas deve considerar: a) o risco de conflitos; e b) a necessidade de ingresso nas terras indígenas de forças policiais e militares, agravando o perigo de contaminação. Assim sendo, sem prejuízo do dever da União de equacionar o problema e desenvolver um plano de desintrusão, fica determinado, por ora, que seja incluído no Plano de Enfrentamento e Monitoramento da COVID-19 para os Povos Indígenas, referido adiante, medida emergencial de contenção e isolamento dos invasores em relação às comunidades indígenas ou providência alternativa apta a evitar o contato. 11. Determinação de que os serviços do Subsistema Indígena de Saúde sejam acessíveis a todos os indígenas aldeados, independentemente de suas reservas estarem ou não homologadas. Quanto aos não aldeados, por ora, a utilização do Subsistema de Saúde Indígena se dará somente na falta de disponibilidade do SUS geral. 12. Determinação de elaboração e monitoramento de um Plano de Enfrentamento da COVID-19 para os Povos Indígenas Brasileiros, de comum acordo, pela União e pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos, com a participação das comunidades indígenas, observados os prazos e condições especificados na decisão. 13. Cautelar parcialmente deferida.
Verifica-se que o ativismo judicial possui a finalidade de concretizar direitos fundamentais, mas é inaceitável descontextualizar a Constituição Federal com o propósito de justificar uma decisão judicial, pois este comportamento pode comprometer a democracia brasileira. Os três poderes da república devem agir em conformidade com o que determina o texto constitucional, respeitando suas independências e competências.
Não restam dúvidas de que existe o ativismo judicial saudável, que exerce o seu papel em busca da efetivação de políticas públicas por meio de decisões em perfeita harmonia com o sistema democrático. Mas há, também, um ativismo judicial que tenta suprimir a política, o governo e a função do legislativo, sucedendo uma inversão de papéis entre os poderes e suas competências.
As decisões judiciais com cunho político devem ser pautadas em uma atuação equilibrada dentre os papéis que lhe foram concedidos com a redemocratização. Medidas para amenizar o abalo econômico e as demais mazelas sociais advindas da Covid-19 deve partir do Governo por meio de estudos técnicos e científicos, e não do judiciário. Decisões do judiciário não podem e não devem substituir o gestor público, de modo a interferir no mérito dos atos da Administração Pública e ferir os princípios da legalidade e da Separação dos poderes.
Conclusão
O objetivo e foco principal do presente artigo não é criticar o papel do judiciário diante de situações de extrema relevância, mas sim estimular que a sociedade exerça um papel mais ativo nas fiscalizações às decisões tomadas por este órgão, tendo em vista tratar-se de decisões que envolve Direitos fundamentais da população brasileira.
Viu-se no decorrer do presente artigo que entre os princípios constitucionais previstos na Carta Magna de 1988, o Princípio da Separação dos Poderes é aquele que tem por objetivo impor limites no exercício de tais poderes, configurando o caráter democrático do texto constitucional. Sendo assim, evidenciou-se também que os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário possuem funções distintas a cada esfera de poder, bem como a quem compete exercer, com exclusividade, tais poderes.
A omissão dos poderes legislativo e executivo acarreta a expansão da atuação do Poder Judiciário, que age após ser provocado pela sociedade, no entanto, a prática excessiva do ativismo judicial põe em risco o caráter democrático da Constituição Federal, haja vista que os membros do Poder Judiciário não são representantes democraticamente escolhidos, pela vontade soberana do voto, e, no entanto, decidem e, ou rejeitam aquilo que já havia sido votado pelo Poder Legislativo, que é composto por pessoas que ali estão porque foram democraticamente escolhidos para o exercício daquela função, ou seja, são representantes do povo brasileiro.
O ativismo judicial deve ser praticado pelo Supremo Tribunal Federal em casos de obscuridades de determinadas matérias e quando houver ausência de normas ou suporte legislativo, mas esse exercício deve se dar de forma excepcional e em completa observância aos princípios constitucionais já citados ao longo deste estudo, pois, cabe ao Estado o papel de resguardar os Direitos Fundamentais, ficando o judiciário com o papel de guardião da Constituição para dar efetividade a estes direitos, principalmente em períodos de crise como a que estamos passando em decorrência da pandemia do COVID-19.
Encerro assim parafraseando Barroso (2015, p.19) em seu texto sobre Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática: “Felizmente que o ativismo judicial, até aqui, tem apresentado solução e não problema. Ele é um antibiótico poderoso, no entanto seu uso deve ser eventual e controlado, pois em dose excessiva, há risco de se morrer da cura.”
Referências
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[1]Graduada em Direito pelo Centro Universitário Cesmac de Maceió (2016). Advogada. Pós-graduada em Direito Público e Advocacia Extrajudicial pela Faculdade Legale de São Paulo. E-mail: amandacarvalhoadv@hotmail.com.
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