O conceito de estabelecimento no Código Civil e na legislação paulista do ICMS

Resumo: O presente trabalho pretende expor as diferenças e semelhanças do conceito de estabelecimento previsto no Código Civil e na legislação tributária paulista do ICMS.

Palavras chave: estabelecimento, direito comercial e empresarial, direito tributário, legislação tributária, ICMS

Abstract: The present paper pretends to show differences and similarities of establishment concept prescribed in Brazilian Civil Code and triburaty legislation of ICMS.

Keywords: establishment, commercial and civil law; tax law; tax legislation; ICMS

Sumário: Introdução. 1. O conceito de estabelecimento no Código Civil. 2. Relacionamento entre direito empresarial e tributário. 3. O conceito de estabelecimento na legislação do ICMS. Conclusão. Referências

INTRODUÇÃO

O conceito de estabelecimento é vital para a moderna teoria da empresa. O estabelecimento pode ser visto como o aspecto objetivo da empresa, reunindo os bens necessários para a consecução da atividade empresarial.

Na passagem para o direito tributário, esse mesmo conceito sofre adaptações para outro fim: viabilizar a cobrança de tributos. Os conceitos de estabelecimento para o direito empresarial e para o direito tributário podem ser diferentes, conforme preceituam os arts. 109 e 110 do Código Tributário Nacional.

E a legislação de cada tributo, no interesse da fiscalização e arrecadação, pode prever um conceito diferente. No presente estudo será analisado o conceito de estabelecimento previsto na legislação tributária do ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços) do Estado de São Paulo em confronto com o conceito previsto pelo Código Civil.

1. O CONCEITO DE ESTABELECIMENTO NO CÓDIGO CIVIL

O que faz um ramo do direito autônomo é a aplicação de um regime diferenciado de interpretação, normalmente consubstanciado em um particular conjunto de regras e princípios, que exigem um estudo pormenorizado para a sua correta aplicação.

O direito empresarial estuda o mundo das empresas. A atividade empresarial na moderna teoria da empresa adotada pelo Código Civil é o conceito chave em torno do qual gravitam diversos institutos, como as sociedades empresárias, propriedade industrial, títulos de crédito, falência e recuperação judicial.

Nesse contexto, o conceito de estabelecimento é vital para o entendimento da atividade empresária. Ao discorrer sobre Direito de Empresa, Maria Helena Diniz (2011, p. 35) expõe a visão multifacetária de Alberto Asquini, que concebe a empresa como um fenômeno poliédrico, composta de quatro perfis ou elementos: a) o subjetivo, que seria o empresário (pessoa física ou jurídica), titular da empresa. No perfil subjetivo, considera-se, portanto, a empresa sob o prisma de seu titular e das condições que ele deve satisfazer para realizar juridicamente o empreendimento econômico; b) O material ou patrimonial, que abrange o estabelecimento (patrimônio aziendal – azienda res) ou universalidade de bens e o complexo de direitos sobre bens empresariais, as relações com os funcionários, fornecedores de material e de capital. Pelo perfil patrimonial, a empresa teria um patrimônio afetado a uma finalidade específica; c) O funcional, atividade desenvolvida para alcançar um fim, organizando a força de trabalho e o capital necessário para a produção de bens e serviços; d) O corporativo ou institucional, relativo à parceria entre empresários e seus colaboradores, ao fato da participação dos empregados no lucro da empresa, fator de integração do trabalhador na comunidade empresarial.

Apesar de discordar que essa visão foi acatada em sua íntegra pelo direito brasileiro, reconhece o trinômio empresa-empresário-estabelecimento, aduzindo (2011, p. 57):

“Empresa é a atividade econômica unitariamente estruturada ou organizada para a produção e circulação de bens ou serviços. Empresário, individual ou coletivo, é o titular da empresa. Estabelecimento é o conjunto de bens, caracterizado por sua unidade de destinação, podendo ser, como diz Miguel Reale, objeto unitário de negócios jurídicos, daí sua importância para que a "empresa" possa atingir suas finalidades, pois o empresário precisa reunir meios para consecução contínua de um objetivo técnico.”

O estabelecimento é regulado no Código Civil no Livro II da Parte Especial (Direito de Empresa), mais especificamente entre os artigos 1.142 a 1.149. O conceito de estabelecimento trazido pelo Código Civil é:

“Art. 1.142. Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária.”

Porém, esse conceito de direito empresarial sofre modulações quando da passagem para aplicação no direito tributário.

2. RELACIONAMENTO ENTRE DIREITO EMPRESARIAL E TRIBUTÁRIO

O direito tributário é um direito de sobreposição. O direito tributário tem como função técnica invadir o patrimônio do particular, daí retirando recursos para o sustento da própria sociedade. E, para cumprir essa função, o direito tributário se sobrepõe às relações jurídicas civis que permeiam a sociedade. Nesse sentido, Regina Helena Costa (2014) de forma magistral dispõe:

“Também com os Direitos Civil, Comercial e do Trabalho o Direito Tributário mantém conexão, especialmente representada pelo fato de constituir este um direito de sobreposição. Assim, utilizam-se princípios de direito privado para a interpretação de suas normas, bem como conceitos desse domínio para a configuração das materialidades tributárias, tais como propriedade, bens móveis e imóveis, prestação de serviços, família, mercadoria, salário, dentre muitos outros, o que se reflete na importância da disciplina contida nos arts. 109 e 110, CTN.”

Isso significa que o direito tributário retira muitos de seus conceitos de outros ramos do direito, mas pode modulá-los, conforme autorização do art. 109 do CTN:

“Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.”

Os efeitos tributários podem ser diferentes, mas há uma limitação: não podem ser tão diferentes de forma a mudar a atribuição da competência tributária, conforme disciplina do art. 110 do CTN:

“Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.”

Segundo Ricardo Alexandre (2016), "A interpretação a contrario sensu é também importante, de forma que os conceitos de direito privado que não tenham sido utilizados pelas citadas leis máximas podem ser alterados pelo legislador infraconstitucional, não havendo que se falar em inconstitucionalidade neste caso".

E é assim que ocorre com o conceito de estabelecimento para a legislação paulista do ICMS, como demonstrado a seguir.

3. O CONCEITO DE ESTABELECIMENTO NA LEGISLAÇÃO DO ICMS

O imposto sobre "operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior", ou, no jargão, simplesmente ICMS, é um tributo de competência estadual, conforme estatuído pelo art. 155, II, da Constituição Federal.

Esse tributo tem as suas normas gerais necessariamente reguladas por lei complementar (CF, art. 146, III e art. 155, § 2º, XII), de forma a tentar minimizar o conflito federativo decorrente de sua operacionalização (guerra fiscal). No âmbito do Estado de São Paulo, a Lei Estadual nº 6.374/89 instituiu concretamente o ICMS e regulou uma série de temas. A regulação mais pormenorizada do tributo se dá por meio do Regulamento do ICMS, aprovado pelo Decreto nº 45.490/2000, e legislação inferior correlata (Resoluções do Secretário da Fazenda, Convênios, Portarias da Coordenadoria da Administração Tributária etc).

O conceito de estabelecimento é utilizado por diversas vezes na lei. Por exemplo, o art. 2º da Lei Estadual 6.374/89 dispõe:

“Artigo 2  – Ocorre o fato gerador do imposto: (Redação dada ao artigo pela Lei 10.619/00, de 19-07-2000; DOE 20-07-2000)

I – na saída de mercadoria, a qualquer título, de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular; (…)”

Mas o conceito de estabelecimento não é aquele previsto no art. 1.142 do Código Civil (complexo de bens organizado). Mais à frente, a Lei Estadual nº 6.374/89 dispõe:

“Artigo 12 – Para efeito desta lei, estabelecimento é o local, privado ou público, construído ou não, mesmo que pertencente a terceiro, onde o contribuinte exerça toda ou parte de sua atividade, em caráter permanente ou temporário, ainda que se destine a simples depósito ou armazenagem de mercadorias ou bens relacionados com o exercício dessa atividade. (Redação dada ao artigo pela Lei 10.619/00, de 19-07-2000; DOE 20-07-2000)

§ 1º – Na impossibilidade de determinação do estabelecimento nos termos deste artigo, considera-se como tal o local em que tenha sido efetuada a operação ou prestação ou encontrada a mercadoria.

§ 2º – Considera-se estabelecimento autônomo:

1- o veículo utilizado na venda de mercadoria sem destinatário certo;

2- o veículo utilizado na captura de pescado.

3 – a área e a atividade de revenda de combustíveis e outros derivados de petróleo, conforme definidas na legislação federal. (Item acrescentado pela Lei 11.929/05, de 12-04-2005; DOE 13-04-2005; Na redação dada pelo texto promulgado pela Assembléia Legislativa, de 13-12-2005)

§ 3º – Considera-se extensão do estabelecimento o escritório onde o contribuinte exerce atividades de gestão empresarial ou de processamento eletrônico de suas operações ou prestações. (Redação dada ao parágrafo pela Lei 13.918, de 22-12-2009; DOE 23-12-2009)

§ 4º – O regulamento poderá considerar como estabelecimento outro local relacionado com a atividade desenvolvida pelo contribuinte”. (§3º passou a denominar-se §4º pela Lei 13.918, de 22-12-2009; DOE 23-12-2009)

O estabelecimento, para fins tributários na legislação paulista do ICMS, não é o complexo de bens, mas sim o local. O estabelecimento funciona, para a legislação paulista do ICMS, como elemento de conexão para a fixação da competência tributária, tendo um caráter eminente operacional em relação ao aspecto espacial da regra matriz de incidência tributária.

CONCLUSÃO

O conceito de estabelecimento é vital para a moderna teoria da empresa. Para o direito empresarial, o estabelecimento é considerado o complexo de bens nos termos do art. 1.142 do Código Civil. Porém, esse conceito pode ser modulado pelo direito tributário, conforme o disposto nos arts. 109 e 110 do CTN. A legislação paulista do ICMS utiliza-se de tal faculdade ao conceituar estabelecimento não como complexo de bens, mas como local, de forma a servir como elemento de conexão para a fixação da competência tributária, tendo um caráter eminentemente operacional em relação ao aspecto espacial da regra matriz de incidência tributária.

 

Referências
ALEXANDRE, Ricardo. Direito tributário esquematizado. 10ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016.
COSTA, Regina Helena. Curso de direito tributário. 4ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, volume 8: direito de empresa. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.


Informações Sobre o Autor

Renan Kirihata

Agente Fiscal de Rendas do Estado de São Paulo Delegado Regional Tributário de Marília. Engenheiro de Produção Mecânico UNESP. MBA em Gestão Empresarial Avançada FAAP. Bacharel em Direito Univem. Especialista em Direito Notarial e Registral e Processo Tributário Universidade Anhanguera Uniderp. Mestrando em Teoria Geral do Direito e do Estado Univem


Equipe Âmbito Jurídico

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