O estado de coisas inconstitucional e a ilegalidade difusa: A realidade das favelas e periferias

Autora: Iasmin Caldas Lourido Santos, Acadêmica de Direito, e-mail:  iasminlourido@outlook.com

Nome do Orientador: Prof. Me. Ícaro de Souza Duarte, e-mail: icaro_duarte@hotmail.com

Resumo: O Estado de Coisas Inconstitucional e a ilegalidade difusa que acontece diariamente nas favelas e periferias, está intimamente ligada a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)-347, bem como, ao estudo do Direito Constitucional e a observação das mazelas sociais que permeiam esses locais. Nesse sentido, observou-se que a Arguição de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF)-347 que reconheceu o Estado de Coisas Inconstitucional nos presídios brasileiros, indicam falhas estruturais que se assemelham a realidade dos locais onde se concentram a população de baixa renda.  Desta forma, verificou-se a necessidade de entender, juridicamente, como os problemas sociais que impactam negativamente os espaços menos favorecidos, podem ser reparados sob um viés constitucional. O objetivo deste artigo é analisar as premissas do Direito Constitucional que fundamentam a concepção, diferença e aplicabilidade de direitos fundamentais nas favelas e periferias a partir do que se entende por: Estado de Coisas Inconstitucional e Ilegalidade difusa. Ainda, objetiva-se responder quais os principais direitos fundamentais são violados nas favelas e periferias? Por que as violações de direitos fundamentais nas favelas e periferias constituem um Estado de Coisas Inconstitucional e ilegalidade difusa?

Palavras-chave: O Estado de Coisas Inconstitucional. O Estado de Ilegalidade Difusa. Favelas. Periferias. Direito Constitucional.

Abstract: The Unconstitutional State of Things and the widespread illegality that happens daily in the favelas and suburbs is closely linked to the Allegation of Non-Compliance with a Fundamental Precept (ADPF)-347, as well as the study of Constitutional Law and the observation of the social ills that permeate these locations. In this sense, it was observed that the Allegation of Non-compliance with Fundamental Precepts (ADPF)-347, which recognized the Unconstitutional State of Things in Brazilian prisons, indicate structural flaws that resemble the reality of places where the low-income population is concentrated. Thus, there was a need to understand, legally, how social problems that negatively impact less favored spaces can be repaired under a constitutional bias. The aim of this article is to analyze the premises of Constitutional Law that underlie the conception, difference and applicability of fundamental rights in favelas and periphery from what is understood by: Unconstitutional State of Things and Diffuse Illegality. Still, the objective is to answer what are the main fundamental rights violated in the favelas and suburbs? Why do fundamental rights violations in favelas and suburbs constitute an Unconstitutional State of Things and diffuse illegality?

Palavras-chave: The Unconstitutional State of Things. The State of Pervasive Illegality. Shanty towns. Outskirts. Constitutional right.

Sumário: Introdução. 1. Estado de coisa inconstitucional. 2. Estado de ilegalidade difusa. 3. A realidade das favelas e periferias. 3.1 A realidade das favelas e periferias: Estado De Coisas Inconstitucional. 3.2. A realidade das favelas e periferias: Estado De Ilegalidade Difusa. Considerações finais. Referências.

INTRODUÇÃO                                   
As maneiras como são apresentadas a realidade das favelas e periferias, como se vê em jornais e filmes, podem ter estereotipado a omissão de direitos e práticas inconstitucionais que ocorrem nesses locais. Por essa razão, parece ser comum, simplesmente assistir esse caos social e atribuir a culpabilidade destes problemas à omissão do Estado e à desigualdade social.

No caso ora em estudo, para analisar esta situação a partir de um entendimento jurídico já firmado, é salutar observar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)-347, esta que declarou a situação dos presídios brasileiros como um Estado de Coisas Inconstitucional. Nesse sentido, observa-se que as premissas que fundamentaram essa declaração também estão presentes nas favelas e periferias, assim questiona De Giorgi:

“Sendo o Estado de Coisas nos presídios brasileiros inconstitucional, não seria também o caso das favelas do Rio de Janeiro, das periferias das grandes cidades, ou mesmo dos hospitais públicos? Quando se declara inconstitucional o estado de coisas nos presídios e não se declara inconstitucional o estado de coisas nas favelas não se estaria, assim, constitucionalizando um tipo de violência (enquanto se qualifica outro como inconstitucional)? Passa a solução desses problemas pela sua declaração de inconstitucionalidade? (2017 apud VASCONCELOS, 2017, p. 3-4)”

É forçoso constatar que as mazelas que assombram esses locais provam contundentemente a necessidade de que seja tomada uma medida que assista esses moradores que consequentemente são afligidos com o contínuo aumento do número de violência, o alargamento das desigualdades sociais e o olhar de marginalidade que lhe é atribuída.

Nesses locais desfavorecidos onde estudar, brincar, trabalhar, ter acesso médico são práticas desafiadoras, alguns tendem a se aliar ao crime como forma de tentar subverter de forma rápida a dificuldade que lhe assiste, outros lutam de forma árdua e honesta para superar esses desafios. Na verdade, todos eles vivem a margem da sociedade. O resultado da violação desses direitos se reflete nos altos índices de criminalidade, na insatisfatória educação e nos problemas de saúde dos brasileiros, a título de exemplo.

O objetivo deste artigo é analisar as premissas do Direito Constitucional que fundamentam a concepção, diferença e aplicabilidade de direitos fundamentais nas favelas e periferias a partir do que se entende por: Estado de Coisas Inconstitucional e Ilegalidade difusa. Ainda, objetiva-se responder quais os principais direitos fundamentais são violados nas favelas e periferias? Por que as violações de direitos fundamentais nas favelas e periferias constituem um Estado de Coisas Inconstitucional e ilegalidade difusa?

O envolvimento do Estado para solução deste problema é incontestável, porém, é por meio deste artigo que se observará de que forma o Estado permitiu a ocorrência dos fatos que marcam esses locais desfavorecidos. Assim, seja por meio da declaração do Estado de Coisas Inconstitucional, seja aplicando o entendimento da ilegalidade difusa, essa temática de cunho social será perquirida de maneira a contribuir com o estudo de como o Direito Constitucional pode se posicionar para reparar a realidade dos mais pobres.

A pesquisa tem uma finalidade exploratória sobre a realidade das favelas e periferias. Nesse sentido, busca-se saber se essa realidade é justificada e resolvida por meio da declaração do Estado de Coisas Inconstitucional ou se o entendimento acerca da ilegalidade difusa esclarece este problema, a fim de atenuá-lo.

Para esta finalidade será utilizada uma abordagem qualitativa, no intuito de analisar, entender e interpretar a existência dos descumprimentos de direitos fundamentais que ocorrem nas periferias cujas notícias são constantemente veiculadas em jornais, revistas, internet. Essa abordagem também se fará através do exame de artigos científicos e legislações. Desta maneira será vislumbrando o itinerário que demarcou o problema social destes locais.

No que se refere à técnica, será utilizada a análise documental por meio da análise de artigos científicos e de periódicos que elucidam a discussão da temática, bem como, a revisão bibliográfica. Como dito no parágrafo anterior, para discorrer sobre o tema é necessário analisar documentos dispostos em sites, revistas, jornais, livros, leis que evidenciam a matéria da pesquisa. Ainda, a revisão bibliográfica se deu, predominantemente, por meio do estudo dos conceitos trazidos por meio dos artigos científicos de Diego de Paiva Vasconcelos e Raffaele Di Giorgi, estes que de maneira específica abordaram numa mesma análise o Estado de Coisas Inconstitucional, a ilegalidade difusa e as favelas e periferias do Brasil.

1 ESTADO DE COISA INCONSTITUCIONAL

Este termo foi firmado pela Corte Constitucional Colombiana- CCC, por meio da Sentencia de Unificacion (SU)- 559, de 1997, numa demanda que tratava de professores que tiveram seus direitos previdenciários violados pelas autoridades. Nesse sentido, tem-se em pauta a inobservância de direitos trabalhistas de educadores que acaba repercutindo no direito das crianças à Educação, já que a paralisação/greves desses professores é sinônima de ausência de aula para os menores. Observe que a violação de um direito fundamental incide em agravo a outro direito fundamental, estruturalmente.

Para dirimir esse conflito, obviamente, a Corte Colombiana observou que a lide em xeque evidenciava uma violação de cunho geral, que se estendia para além daqueles professores que propuseram a ação. Ainda, examinou-se que a solução para o problema não dependia da ação de um único órgão, mas na verdade, toda a aparelhagem estatal da educação estava doente e essas falham estruturais resultavam em recorrentes violações de direitos fundamentais.

Por essa razão, a CCC ao dar procedência à ação, reconheceu o incumprimento estrutural e massivo de direitos fundamentais não somente inter pars, mas para todos aqueles que se enquadravam na situação. Outrossim, a sentença trouxe para lide todas as autoridades e órgãos responsáveis pela educação para corrigir os problemas identificados. Veja:

“Si el estado de cosas que como tal no se compadece con la Constitución Política, tiene relación directa con la violación de derechos fundamentales, verificada en un proceso de tutela por parte de la Corte Constitucional, a la notificación de la regularidad existente podrá acompañarse un requerimiento específico o genérico dirigido a las autoridades en el sentido de realizar una acción o de abstenerse de hacerlo.” (CORTE CONSTITUCIONAL COLOMBIANA, 1997)

Ainda,

“Segundo.- ORDENAR que para los efectos del numeral primero se envíe copia de esta sentencia al Ministro de Educación, al Ministro de Hacienda y Crédito Público, al Director del Departamento Nacional de Planeación y a los demás miembros del CONPES Social; a los Gobernadores y las Asambleas  Departamentales; y a los Alcaldes y los Concejos Municipales.” (CORTE CONSTITUCIONAL COLOMBIANA, 1997)

Este é o pequeno recorte da origem do Estado de Coisas Inconstitucional. Após este reconhecimento, outros casos foram julgados da mesma forma pela Suprema Corte Colombiana, a citar o Estado de Coisa Inconstitucional em seu sistema carcerário.

Então, o Estado de Coisas Inconstitucional funda-se em recorrentes práticas, massivas, generalizadas e violentas por parte de todos os órgãos estatais em sentido omissivo e/ou comissivo, contra direitos fundamentais, deixando uma parcela da população em uma realidade aquém daquela garantida como mínimo existencial. Veja como alguns constitucionalistas definem:

“Entre os principais motivos, indicou aqueles que constituíam “un determinado estado de cosas que contraviene los preceptos constitucionales”, a violação massiva de direitos fundamentais que não poderia ser explicada por faltas não atribuíveis, exclusivamente, a um só órgão ou agente estatal, mas apenas por uma deficiência política e institucional generalizada.” (DE GIORGI e VASCONCELOS, 2018, p. 482)

Ainda,

“Esta realidade não há o caráter da necessidade, não é uma realidade objetiva, não é estrutural no sentido que é uma realidade dada como natural, como se acreditava que fosse a velha natureza das coisas. Ela é estrutural no sentido que interessa a estrutura do direito, as suas organizações através das quais o direito entra em contato com seu ambiente: o aparato judiciário, a administração pública, a organização da segurança pública, a organização penitenciária. Mas aquela realidade é estrutural também no sentido que interessa à forma da diferenciação social e, assim, à forma da inclusão e exclusão. (DE GIORGI e VASCONCELOS, 2018, p. 497)”

Em solo brasileiro também já foi reconhecido o Estado de Coisas Inconstitucional, isso se deu por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental- 347. Essa ação apresentada pelo PSOL- Partido Socialismo e Liberdade, trouxe em pauta a precária realidade dos presídios brasileiros e da seguinte forma foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal- STF:

“CUSTODIADO – INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL – SISTEMA PENITENCIÁRIO – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADEQUAÇÃO. Cabível é a arguição de descumprimento de preceito fundamental considerada a situação degradante das penitenciárias no Brasil. SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO. Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como “estado de coisas inconstitucional”. FUNDO PENITENCIÁRIO NACIONAL – VERBAS – CONTINGENCIAMENTO. Ante a situação precária das penitenciárias, o interesse público direciona à liberação das verbas do Fundo Penitenciário Nacional. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA – OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA. Estão obrigados juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a realizarem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão.

(ADPF 347 MC, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-02-2016).”

Imperioso destacar que uma vez reconhecido o Estado de Coisas Inconstitucional, a Corte Suprema está de fato assentindo que o Estado possui severas falhas estruturais por meio de suas ações ou omissões que acarretam em ofensas de direitos fundamentais. Nesse sentido, o “Guardião” da Constituição com vistas a reparar essas falhas, determina ações para que o Estado as cumpra. Para melhor entendimento, ainda é necessário destacar parte da decisão ADPF 347:

“Decisão: O Tribunal, apreciando os pedidos de medida cautelar formulados na inicial, por maioria e nos termos do voto do Ministro Marco Aurélio (Relator), deferiu a cautelar em relação à alínea “b”, para determinar aos juízes e tribunais que, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, realizem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contados do momento da prisão, com a ressalva do voto da Ministra Rosa Weber, que acompanhava o Relator, mas com a observância dos prazos fixados pelo CNJ, vencidos, em menor extensão, os Ministros Teori Zavascki e Roberto Barroso, que delegavam ao CNJ a regulamentação sobre o prazo da realização das audiências de custódia; em relação à alínea “h”, por maioria e nos termos do voto do Relator, deferiu a cautelar para determinar à União que libere o saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional para utilização com a finalidade para a qual foi criado, abstendo-se de realizar novos contingenciamentos, vencidos, em menor extensão, os Ministros Edson Fachin, Roberto Barroso e Rosa Weber, que fixavam prazo de até 60 (sessenta) dias, a contar da publicação desta decisão, para que a União procedesse à adequação para o cumprimento do que determinado; […]” (BRASIL,2015)

A bem da verdade, para entender acerca do Estado de Coisas Inconstitucional é necessário observar os fatos que há tempos se destacam como inconstitucional, na observação sociológica que caracteriza aquela realidade e o vícios do Direito que implicam na violação do próprio Direito constitucional. O professor de Direito Constitucional, Diego de Paiva Vasconcelos, ao analisar a fundamentação da ADPF 347, aduz:

“[…] Aquela decisão também é marcada por uma argumentação baseada sobre análises estatísticas, sociológicas e históricas dirigidas a demonstração das causas estruturais dessas mazelas. A Política é indicada como o locus da construção do problema, como sua causa exclusiva. A impossibilidade de reflexão dentro da Política estaria bloqueando as possibilidades de solução da crise carcerária e isso atrairia o Supremo Tribunal Federal para o papel de coordenar a interação interinstitucional necessária à correção das falhas estruturais que jamais teriam decorrido de um único agente, órgão ou ente, mas de uma indeterminável multiplicidade de atos externos ao sistema jurídico. […].” (VASCONCELOS, 2017, pp. 298-299)

Ora, tem-se claro que o Estado de Coisas Inconstitucional não reconhece a falha no direito que está sendo violado, mas nos órgãos que devem aplicar esse direito, o Estado.

2 ESTADO DE ILEGALIDADE DIFUSA

Retomando o pensamento anterior, se o Estado de Coisas Inconstitucional não reconhece a falha no direito que está sendo violado, mas no Estado e em seus órgãos que falham em sua aplicabilidade, o Estado de Ilegalidade Difusa traz o oposto. Este conceito de Estado de Ilegalidade Difusa foi cunhado pelo Professor Diego de Paiva Vasconcelos e Professor Raffaele De Giorgi que alcançaram “a conclusão da inconsistência teórica e filosófica da declaração de estado de coisas inconstitucional.” (DE GIORGI e VASCONCELOS, 2018, p.481)

Para entender essas inconsistências acerca do ECI, deve se entender que declarado o Estado de Coisas Inconstitucional tem-se o reconhecimento jurídico das violações constitucionais e ainda a tomada de decisões judiciais para que os órgãos estatais promovam as devidas mudanças. Então, é válido perquirir: Estariam resolvidas, de uma vez por todas, as falhas estruturais do Estado com relação a demandas desta na natureza? Apenas o Estado e seus órgãos, em seu aspecto político, devem se reestabelecer para evitar mais e mais violações de garantias mínimas?

Nesse mesmo sentido questionou De Giorgi:

“Sendo o Estado de Coisas nos presídios brasileiros inconstitucional, não seria também o caso das favelas do Rio de Janeiro, das periferias das grandes cidades, ou mesmo dos hospitais públicos? Quando se declara inconstitucional o estado de coisas nos presídios e não se declara inconstitucional o estado de coisas nas favelas não se estaria, assim, constitucionalizando um tipo de violência (enquanto se qualifica outro como inconstitucional)? Passa a solução desses problemas pela sua declaração de inconstitucionalidade?” (2017 apud VASCONCELOS, 2017, p. 286-287)

Ora, ao observar a essência da declaração do Estado de Coisas Inconstitucional tem-se o judiciário, na figura do Direito, sendo mero mediador das situações-problemas entre o Estado e aqueles que têm seu direito fundamental violado, ou seja, o judiciário (Direito) isenta-se de qualquer culpabilidade. Entretanto, deve-se observar que o Estado é uma figura abstrata do Direito. Assim define Alexandre de Moraes:

“O Estado, portanto, é forma histórica de organização jurídica limitado a um determinado território e com população definida e dotado de soberania, que em termos gerais e no sentido moderno configura-se em um poder supremo no plano interno e num poder independente no plano internacional.” (MORAES, 2020, p.53)

O que está tentando ser evidenciado aqui é que antes das violações recorrentes e massivas de Direitos fundamentais serem frutos de falha estruturais do Estado, têm-se uma falha na própria operação do Direito. E quem é o responsável por operar esse direito? O Judiciário.

Para que o direito seja devidamente executado, ele deve ser devidamente garantido, logo, devidamente aplicado. Quando o Estado não tem a efetiva adoção de medidas jurídicas para garantir os direitos, como por meio da sanção devida no caso de infração, o Estado vai se acomodar em suas falhas e isso irá repercutir em cascata. Depois disso não basta que o judiciário reafirme os direitos que já se sabe que existem e ordene mudanças, mas sim deve se observar qual o ponto cego no Direito que gera o descumprimento desses direitos.

Não é perceptível que se os direitos não são garantidos é por que a operação destes mesmos direitos não está sendo devidamente eficiente, causando então falhas estruturais no Estado?

Se sim, estamos diante de outra conjuntura, esta que não afasta o Estado de Coisas Inconstitucional, mas a reafirma, evidenciando a raiz do problema, é o que se chama de ilegalidade difusa, assim firmada por De Giorgi:

“[…] Tratar o problema como histórico, no entanto, explica muito pouco. Trata-se, na verdade, de uma interessante estratégia argumentativa para promover o deslocamento da competência para o tratamento do problema, assim como indicar uma omissão da Política para justificar sua solução pelo Direito. […] O estado de coisas apontado como inconstitucional trata-se, na verdade, de ilegalidade difusa, conforme apontado por Raffaele De Giorgi em manuscrito ainda não publicado. Não há que se falar em problema da Política ou no interior da política. […]

[…] Então, o que faz a declaração de ECI quando aponta origem históricas e estruturais ao problema? Desloca-o, argumentativamente, para o campo da Política e se representa como intervenção do Direito na Política para, na verdade, promover a auto isenção do Direito em relação ao conflito que é produzido em suas próprias operações. […].” (VASCONCELOS, 2017, p. 301)

Para reforçar o entendimento acerca da Ilegalidade Difusa, basta tomar de exemplo a citada ADPF 347, ora, é inquietante tentar entender como um país que tem uma legislação própria para a execução de penas, consegue atingir um Estado de Coisa Inconstitucional quanto a sua situação carcerária. A citar, o Art. 1º da Lei de Execução Penal indica como uns dos objetivos “proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.”, a partir daí pode se questionar se tal premissa é cumprida (os fatos por si já respondem por meio da próprio ADPF) e se de fato o judiciário apenas tem o papel de declarar o Estado de Coisas Inconstitucional ou de antemão evita-lo.

3 A REALIDADE DAS FAVELAS E PERIFERIAS

As favelas e periferias têm a sua narrativa construída desde o início do século XX, quando o Brasil passou a se reestruturar com a chegada da industrialização, explosão demográfica, urbanização e outras transformações. Esses locais também são conhecidos como cidade informal, observe:

“[…] A complexidade do fato urbano inclui inúmeras formas de configuração, algumas em acordo com as leis vigentes, muitas outras espontâneas, seguindo padrões de assentamento determinados pela própria necessidade de habitar perto de alguma fonte de subsistência e convívio cidadão, muitas vezes em locais e condições não aptas para a moradia humana. Esta situação determina a convivência em um mesmo espaço urbanizado de duas manifestações diferenciadas, uma denominada de cidade “formal” ou “legal” e outra de cidade “informal” ou “ilegal”.” (ROBERTO GHIONE, 2013)

A gênese das cidades informais é marcada por um momento em que o território brasileiro não registrava o melhor cenário econômico e o êxodo rural indicava ser a solução para as famílias que precisavam garantir efetivamente seu sustento. Assim, iniciou-se a jornada de uma população que para driblar as diferenças socioeconômicas precisava de alguma forma se estabelecer no meio urbano, nem que para isso tivessem que abrir mão de uma moradia digna. A homepage, “Casa Vogue”, traz uma relevante abordagem sobre este assunto:

Neste contexto socioeconômico surgiram as cidades atuais e pessoas que não tinham renda suficiente para pagar o aluguel de imóveis do mercado formal – registrados e licenciados – trataram de produzir para si mesmas a habitação de que necessitavam.

“Construíram suas casas em loteamentos irregulares, comprando lotes sem registro de grileiros, ou ocupando terrenos inadequados como planícies alagáveis e encostas íngremes, principalmente nas periferias da cidade formal, em regiões desprovidas da infraestrutura e dos serviços necessários para caracterizar uma cidade: ruas e calçadas, energia elétrica, abastecimento de água, coleta de esgoto e de lixo, varrição, policiamento, transporte público, equipamentos de educação, saúde e lazer.” (CASA VOGUE, 2018)

Com o passar dos anos o cenário das favelas e periferias teve sua melhora, entretanto, ainda há muito que se alcançar. A bem da verdade, é que a realidade desses locais ainda põe em xeque a violação massiva de garantias mínimas, basta que sejam observados os noticiários, principalmente os de cunho policial. De maneira estampada observa-se que as “cidades informais” são os grandes palcos da violência, da falta de saneamento básico, da baixa escolaridade, da baixa renda, do tráfico de drogas, do reduzido acesso a saúde, dentro diversos outros infortúnios.

Imperioso destacar que os direitos fundamentais que são violados nas favelas custam vidas. A citar, tem-se a violação do Direito a segurança, este que tende a ser até mesmo paradoxal por que ao tempo que se vê inúmeras mortes pela criminalidade nestes locais, tem-se também inúmeras mortes causas pelo policiamento ostensivo e que não dá vez a defesa. Os mais radicais questionam se a polícia deve entrar na favela com flores, obviamente que não, mas deve cumprir o ofício de viabilizar de um lugar seguro e que por meio dessa segurança haja condições de estudar, desenvolver um esporte, a cultura e o lazer.

Por outro lado, há que se falar que a proteção física dos indivíduos desses locais é ameaçada diariamente pelas organizações criminosas que tomam conta, impondo regras e gerando o medo por meio do grande porte de armas ilegalmente utilizadas como força coercitiva. Outrossim, pode ser destacada a inobservância do direito a Igualdade, sim, este direito está intimamente ligado ao direito a segurança, já que por ser morador de favela e periferia e por ser sabido que neste local a marginalidade se destaca, costuma-se confundir “favelado” ou “periférico” com meliante antes mesmo de saber sua história, ou seja, quando se diz que vem da favela e periferia parece que o indivíduo fica invisível perante os direitos fundamentais.

Se não há direito a Segurança, nem a igualdade, pode ser dito que os moradores desses locais gozam plenamente do Direito a propriedade? Obviamente que não, já que eles têm suas moradias invadidas quando há operações policiais e troca de tiros. Verifica-se deste modo a vulnerabilidades destes que são hipossuficientes e a necessidade de urgência de prestação estatal já que há grande índice de violência como citado e problemas também relacionados à saúde. Não se pode perder de vista os recorrentes quadros de subnutrição desta população, o alto número de gravidez na adolescência que consequentemente repercute no direito a educação, causando a evasão escolar principalmente em períodos em que a criminalidade está em alta, desmotivando professores e alunos.

Para que seja concebida a abordagem aqui trazida sobre as milhares de pessoas que vivenciam essas desídias sociais que se caracterizam nas favelas e periferias, é interessante que se traga a lume a “Tipologia Intraurbanas” (2017), um estudo do IBGE:

O estudo do IBGE “Tipologias Intraurbanas” (2017) analisou as 65 maiores concentrações urbanas brasileiras, que abrigam metade da população do país, e classificou as áreas urbanas em categorias de acordo com a qualidade das condições de vida locais. O resultado indica que temos 23,9% da população avaliada vivendo em boas condições, 37,9% vivendo em condições médias, 33,4% em baixas condições de vida, 4,3% em baixíssimas condições (4,8 milhões de pessoas) e 0,4% em condições precárias (373 mil pessoas).

“Vemos que os grupos vivendo em condições baixíssimas e precárias somam pouco mais de 5 milhões de brasileiros – um contingente importante, mas não grande demais para ser atendido por políticas direcionadas. Esse precisa ser um objetivo de curto prazo do Poder Público.” (CASA VOGUE, 2018)

Ora, é forçoso reconhecer a incontroversibilidade dos fatos, porém apenas isso não basta. É preciso que se entenda, neste caso por um viés jurídico, como o Direito pode responder como as questões socioeconômicas das favelas e periferias podem ser dirimidas.

3.1 A realidade das favelas e periferias: Estado De Coisas Inconstitucional

Tendo em vista a definição do termo Estado de Coisas Inconstitucional, já preceituado em parágrafos anteriores, que consiste em uma prática massiva e reiterada de violações de garantias fundamentais, há que se falar que tal caráter inconstitucional condiz com a realidade das favelas e periferias.

Não se trata de uma realidade a ser reconhecida, mas que já foi pauta de discussão até mesmo na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Isso pode ser demonstrado após uma sentença da referida corte que analisou casos de falhas em operações policiais em favelas do Rio de Janeiro nos anos de 1994 e 1995 que dizimou 26 vidas. Assim, destacou-se a importância do Brasil em realizar ações com vistas a estabelecer metas de políticas públicas para diminuir aquelas mortes no Estado do Rio de Janeiro que são resultados da violência da força policial. Observe parte do entendimento firmado pela corte:

“183. Com relação ao papel dos órgãos encarregados da investigação e do processo penal, a Corte recorda que todos os órgãos que exerçam funções de natureza materialmente jurisdicional têm o dever de adotar decisões justas baseadas no respeito pleno às garantias do devido processo estabelecidas no artigo 8 da Convenção Americana.” (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2017, p.46)

Ainda assim, tal decisão não mudou muita coisa nos palcos das favelas e periferias, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, sendo os negros os maiores números de vítimas, sem falar nas crianças que também perdem suas vidas nessas comissões e omissões do Estado em garantir a segurança pública dessas pessoas.

Para fortalecer tal estudo é imprescindível trazer em xeque a ADPF 635/RJ, esta que ficou conhecida como a “ADPF das favelas”, que buscou junto ao STF arguir violações de direitos fundamentais que ocorre dentro das favelas durante operações policiais e que ceifa a vida de muitas crianças.

Há que se falar que a violência, oriunda do confronto entre a polícia e o crime organizado, presente nestes locais não é o único ponto que evidencia “as inconstitucionalidades” que ali residem. Como um efeito cascata o direito a educação é atingido, já que devido ao perigo trazido pela criminalidade por vezes as aulas são suspensas. Veja:

“Até mesmo o direito à educação é vilipendiado em razão da insegurança. No Rio de Janeiro, por exemplo, é comum a interrupção de aulas em comunidades carentes em razão de tiroteios. Recentemente, durante uma troca de tiros entre a polícia e traficantes, uma aluna morreu após ser alvejada no interior de uma escola.” (ALMEIDA; CUNHA, 2019)

Também é inobservado o Direito a inviolabilidade do asilo domiciliar já que a polícia e/ou criminosos adentram até mesmo as casas dos moradores durante as operações. O direito a segurança e a moradia são flagrantemente feridos. Ora, quando não se tem garantida a segurança para viver livremente quando a própria moradia faz parte do cenário de guerra, não há que se falar em fruição de garantia de viver num ambiente seguro e muito menos na possibilidade de constituir moradia.

Com base no que se entende por Estado de Coisas Inconstitucional, é evidente que o Estado, estruturalmente, tem responsabilidade e logo, o dever em reparar essa situação. As falhas que residem nas instituições responsáveis por garantir a segurança pública das favelas e periferias possuem vícios generalizados que repercutem na violação de mais garantias mínimas e o impede o gozo de uma vida com o mínimo existencial.

3.2 A realidade das favelas e periferias: Estado De Ilegalidade Difusa

A ilegalidade difusa, difundida pelo Professor Diego de Paiva Vasconcelos e Professor Raffaele De Giorgi, atribui falha no próprio Direito em si, fato que também caracteriza a realidade das favelas e periferias. Está se tratando de Direitos mínimos constitucionais que são violados e a falha principalmente do judiciário na aplicabilidade desses direitos.

A título de exemplo, é comum ocorrer, predominantemente, nas favelas e periferias alguns erros nas operações policiais e por consequência, a ocorrência de mortes injustas e a revolta da população. Ora, não se trata apenas de uma falha estrutural, é um vício no próprio agente que operacionaliza esse direito à segurança e quiçá nas leis que se omitem em garantir a efetiva segurança a essa população. Veja que violação de direitos fundamentais também vem daqueles que deveriam assegura-los.

Ao invés do judiciário se isentar da responsabilidade da violação desses direitos, terceirizando a culpa para a estrutura do Estado, é bem mais eficiente que o Direito seja revisto em suas legislações e aplicabilidade e identifique os pontos que causam o descumprimento dessas leis. Apenas o Direito pode retificar o Direito. A estrutura do Estado apenas realiza os comandos dispostos em lei, se esta estiver viciada e com rachaduras, toda a estrutura será afetada e haverá as inconstitucionalidades aqui discutidas. Desta maneira que os professores que cunharam o termo ilegalidade difusa nas favelas e periferias aduz:

“Esses atos concretos e observáveis produziram e reproduziram um estado de ilegalidade difusa. Então, o que faz a declaração de ECI quando aponta origem históricas e estruturais ao problema? Desloca-o, argumentativamente, para o campo da Política e se representa como intervenção do direito na política para, na verdade, promover a auto isenção do direito em relação ao conflito que é produzido em suas próprias operações.” (DE GIORGI e VASCONCELOS, 2018, p. 490)

Não se deve perder de vista o fim do Direito, qual seja, normatizar a vida em sociedade para se alcançar o bem comum, ou seja, o Direito é a essência de um seio social organizado e em estado de progressividade. Sendo assim, o vício na operacionalização do direito adoece toda a estrutura social e a resposta para este problema pode e deve ser a reestruturação das normas e adequação daqueles que tem o ofício de opera-las, para que trate de forma efetiva as primordiais necessidades da sociedade, sendo uma destas a garantia dos direitos fundamentais para uma vida digna.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há que se falar que o Direito à vida, o Direito a saúde, o Direito à liberdade, o Direito à Igualdade, o Direito à Segurança pública, o Direito ao lazer e o Direito a moradia digna, são flagrantemente jogados por terra quando olhamos para as favelas. Assim, diagnosticados alguns dos direitos que são violados que então poderá ser firmado um olhar clínico sobre o problema, com amparo jurídico constitucional que viabilizará a melhor maneira de modificar esta conjuntura.

As violações desses direitos fundamentais se enquadram num entendimento de Estado de Coisas Inconstitucional já que se verificam falhas estruturais massivas e ações comissivo-omissivas do Estado que violam essas garantias. Por outro lado, também se entende como ilegalidade difusa já que a ilegalidade que ocorre reiteradamente nos procedimentos do sistema do Direito, evidentemente requer ações do direito.

É preciso entender que quando se reconhece um Estado de Coisas Inconstitucional está identificando um problema político e quando se reconhece um estado de ilegalidade difusa, está se reconhecendo um problema no direito, apesar de semelhantes não devem ser confundidos. O intento é analisar a realidade das favelas e periferias por dois vieses distintos e demonstrar que para além de uma falha do Estado e sua estrutura, o Direito também falha em si mesmo, na sua aplicabilidade. Não se busca negar o Estado de Coisa Inconstitucional, mas reafirmá-lo incluindo o Direito nessa falha.

É evidente que as estruturas do Estado têm que melhorar e reparar os vícios que jogam por terra os direitos mínimos de diversas de pessoas que vivem nas favelas e periferias. É necessário um olhar mais cauteloso e personalizado para essas áreas de risco que todos os dias perdem inocentes e escrevem de maneira triste a realidade das pessoas de baixa renda. A legislação em muito se omite em matéria de segurança pública, a Carta do Povo garante muitos direitos sociais, até mesmo garante o direito ao meio ambiente equilibrado, mas quando se trata de segurança pública a legislação é escassa.

REFERÊNCIAS

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