O faltar à verdade em processo administrativo disciplinar militar no âmbito do exército brasileiro

Resumo: Ao sofrer um processo administrativo disciplinar, o militar do Exército Brasileiro pode fazer uso de todos os recursos para se defender, como corolário do princípio do contraditório e ampla defesa. Entretanto, contrariamente ao processo penal, onde se admite que o réu falte com a verdade com a finalidade de se defender, no procedimento disciplinar castrense o militar não poderia mentir, por ser a mentira verdadeira abominação no seio militar, pautado por rígidos princípios de ética, hierarquia e disciplina, além de constituir-se em transgressão disciplinar. [1]

Palavras-chave: Processo disciplinar militar. Falta à verdade.

Abstract: Servicemen from the Brazilian Army undergoing administrative disciplinary procedure can use all the resources to defend themselves, as a corollary of the principle of full defense. However, unlike criminal proceedings where the defendant may lie in order to defend him/herself, in military disciplinary procedure the serviceman cannot lie, since lying is an abomination within military force, which is guided by strict ethics principles, hierarchy and discipline. Besides that, lying is considered a disciplinary offense.

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Key words: Military disciplinary procedure. Lie.

Sumário: Introdução. 1. Aspectos doutrinários da falta à verdade junto ao Processo Penal. 2. Aspectos legais da falta à verdade junto à Administração Militar. 3. Aspectos institucionais da falta à verdade junto à Administração Militar.  Conclusão.

Introdução

A falta à verdade em defesa do réu, quando tratada no Processo Penal, já se encontra pacificada, sendo considerada por alguns, inclusive, não uma liberdade, mas sim um direito, podendo ainda ser extensível ao Processo Administrativo. Entretanto, quando tal tema referente à mentira se refere ao militar do Exército Brasileiro, utilizada em sua defesa como acusado em Procedimento Administrativo Disciplinar, há grande controvérsia no âmbito castrense.

Tal controvérsia reside não só na rejeição da mentira no seio militar, frente ao direito à ampla defesa e contraditório assegurados por princípios constitucionais e de direito internacional, mas também no fato de que, no âmbito penal não há previsão de ilicitude no ato de o acusado mentir, o mesmo não ocorrendo no âmbito administrativo militar, eis que disciplinarmente há o tipo transgressivo de faltar à verdade.

Desta forma, pretende-se neste artigo expor entendimento acerca do tema, com a finalidade de, futuramente, podermos pacificar tal discussão perante a Administração Castrense.

1. Aspectos doutrinários da falta à verdade junto ao Processo Penal

A fim de demonstrar o entendimento do tema no âmbito do Processo Penal, trazemos a seguir a doutrina de Guilherme de Souza Nucci, em sua obra Código de Processo Penal Comentado, quando trata do “Direito de Mentir” nos seguintes termos:

“Direito de mentir: sustentamos ter o réu o direito de mentir em seu interrogatório de mérito. Em primeiro lugar, porque ninguém é obrigado a auto-acusar-se. Se assim é, para evitar a admissão de culpa, há de afirmar o réu algo que sabe ser contrário à verdade. Em segundo lugar, o direito constitucional à ampla defesa não poderia excluir a possibilidade de narrar inverdades, no intuito cristalino de fugir à incriminação. Aliás, o que não é vedado pelo ordenamento jurídico é permitido. E se é permitido, torna-se direito.” (NUCCI, 2007, p. 403) (grifo no original)

Ao final da citação acima Nucci leciona, acertadamente, que “o que não é vedado pelo ordenamento jurídico é permitido”. Ocorre que, conforme já delineado acima e como veremos adiante, para o militar há o tipo transgressivo de mentir.

A seguir, trazemos à baila a opinião de Julio Fabbrini Mirabete, nos ensinamentos de sua obra Processo Penal, na qual traz o ato de mentir não como um direito, diferentemente do exposto acima, mas sim como uma “liberdade”:

 

“Sendo o interrogatório, ao menos em parte, meio de defesa, o acusado pode mentir e negar a verdade. Não há um verdadeiro direito de mentir, tanto que as eventuais contradições em seu depoimento podem ser apontadas para retirar qualquer credibilidade das suas respostas. Mas o acusado não presta o compromisso de dizer a verdade, como a testemunha, e sua mentira não constitui crime, não é ilícita. Essa liberdade, porém, é concedida apenas em benefício de sua defesa, pois, se ele atribui a si próprio crime inexistente ou praticado por outrem, comete o delito de auto-acusação falsa (art. 342 do CP).” (MIRABETE, 2006, p. 279) (grifo nosso)

Reforça-se, portanto, com os ensinamentos de Mirabete, que mentir não é ilícito penal. Porém, para o militar acusado em processo administrativo é ilícito disciplinar. Logo, ao militar tal ato é administrativamente punível.

2. Aspectos legais da falta à verdade junto à Administração Militar

No Exército Brasileiro há a previsão de duas modalidades de apuração disciplinar:

1) Indiretamente, por meio de Sindicância, com previsão nas Instruções Gerais para a Elaboração de Sindicância no Âmbito do Exército Brasileiro (EB 10-IG-09.001), aprovadas pela Portaria do Comandante do Exército nº 107, de 13 de fevereiro de 2012 (BRASIL, 2012), quando houver necessidade de apurar fato de interesse da Administração Militar. De qualquer forma, caso ao final do procedimento se vislumbrem indícios de cometimento de transgressão disciplinar, entende-se necessário o fornecimento ao transgressor do Formulário de Apuração de Transgressão Disciplinar (FATD) previsto no Anexo IV do Decreto nº 4.346, de 26 de agosto de 2002 – Regulamento Disciplinar do Exército (RDE) (BRASIL, 2002);

2) Diretamente, por meio do Formulário de Apuração de Transgressão Disciplinar (FATD) citado acima, desde que não hajam dúvidas acerca da materialidade e autoria da Transgressão Disciplinar.

Em ambos os procedimentos encontramos o princípio do contraditório e ampla defesa, em consonância com o inciso LV do art. 5º da Constituição Federal (BRASIL, 1988), conforme prevêem os dispositivos transcritos a seguir:

EB 10-IG-09.001

Art. 15. A sindicância obedecerá aos princípios do contraditório e da ampla defesa, com a utilização dos meios e recursos a ela inerentes.

Parágrafo único. Para o exercício do direito de defesa será aceita qualquer espécie de prova admitida em direito, desde que não atente contra a moral, a saúde ou a segurança individual ou coletiva, ou contra a hierarquia, ou contra a disciplina. (grifo nosso)

Decreto nº 4.346, de 26 de agosto de 2002 (RDE)

Art. 35.  O julgamento e a aplicação da punição disciplinar devem ser feitos com justiça, serenidade e imparcialidade, para que o punido fique consciente e convicto de que ela se inspira no cumprimento exclusivo do dever, na preservação da disciplina e que tem em vista o benefício educativo do punido e da coletividade.

§ 1o  Nenhuma punição disciplinar será imposta sem que ao transgressor sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, inclusive o direito de ser ouvido pela autoridade competente para aplicá-la, e sem estarem os fatos devidamente apurados.

§ 2o  Para fins de ampla defesa e contraditório, são direitos do militar:

I – ter conhecimento e acompanhar todos os atos de apuração, julgamento, aplicação e cumprimento da punição disciplinar, de acordo com os procedimentos adequados para cada situação;

II – ser ouvido;

III – produzir provas;

IV – obter cópias de documentos necessários à defesa;

V – ter oportunidade, no momento adequado, de contrapor-se às acusações que lhe são imputadas;

VI – utilizar-se dos recursos cabíveis, segundo a legislação;

VII – adotar outras medidas necessárias ao esclarecimento dos fatos; e

VIII – ser informado de decisão que fundamente, de forma objetiva e direta, o eventual não-acolhimento de alegações formuladas ou de provas apresentadas.” (grifo nosso)

Por sua vez, para fins de tipificação dos ilícitos administrativos no âmbito do Exército Brasileiro, o Regulamento Disciplinar do Exército traz em seu Anexo I a relação de transgressões disciplinares a que estão sujeitos os militares dessa Força. Ocorre que o número 1 (a primeira transgressão) é justamente o faltar à verdade. Vejamos:

“ANEXO I

RELAÇÃO DE TRANSGRESSÕES

1. Faltar à verdade ou omitir deliberadamente informações que possam conduzir à apuração de uma transgressão disciplinar;”

Da análise conjunta dos dispositivos acima citados, fica claro que mentir, como tipo transgressivo, atenta contra a disciplina, motivo pelo qual é vedado ao militar, ainda que para ser utilizado em sua defesa, ao responder a procedimento apuratório de transgressão disciplinar por meio de FATD ou Sindicância.

Sendo-lhe vedada a mentira, entretanto, pode o militar calar-se, aplicando-se o princípio, presente na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969 (Pacto de São José da Costa Rica), inserida no ordenamento jurídico pátrio por meio do Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992 (BRASIL, 1992), de não ser obrigado a depor contra si mesmo, nem a declarar-se culpado, ainda que tal princípio seja referido como “garantia judicial”:

“ARTIGO 8

Garantias Judiciais(…)

2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:(…)

g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada;” (grifo nosso)

3. Aspectos institucionais da falta à verdade junto à Administração Militar

Faltar à verdade, conduta essa que propositadamente inaugura os tipos transgressivos do RDE, trata-se de uma verdadeira abominação na vida castrense, tendo em vista as especificidades da Carreira das Armas, das quais se destacam o culto à verdade, à probidade e à responsabilidade, vedando ao militar a mentira, a omissão, a falsidade.

Nesse contexto, é tão grave a falta disciplinar da mentira, que o militar punido com tal ilícito nunca receberá a Medalha Militar, a qual recompensa aqueles militares que prestaram seus bons serviços à Força e ao País, ocorrendo seu recebimento no decorrer de todo o serviço ativo, ao completar o militar 10, 20, 30, 40 e 50 anos de serviço, fazendo jus, respectivamente, às medalhas de bronze, prata, ouro, ouro com passador de platina e platina com passador de platina, conforme se depreende da Portaria do Comandante do Exército n°322, de 18 de maio de 2005 (BRASIL, 2005):

“NORMAS PARA CONCESSÃO DA MEDALHA MILITAR

Art. 4º Tem direito à Medalha Militar e respectivo passador, o militar da ativa que:

I – tenha completado o decênio de tempo de serviço, contado na forma estabelecida nestas normas;

II – tenha prestado bons e leais serviços nas funções desempenhadas, durante o decênio em causa;

III – tenha sido considerado pelo comandante, chefe ou diretor respectivo, merecedor desta honraria;

IV – não tenha sofrido sentença condenatória, passada em julgado, ainda que beneficiado por indulto ou perdão;

V – não tenha sido punido disciplinarmente por falta de lealdade ou transgressão atentatória à honra pessoal, ao pundonor militar ou ao decoro da classe, conforme prescrito nos arts. 28 e 31 do Estatuto dos Militares (E1-80) e Regulamento Disciplinar do Exército (R4) ou, ainda, por:

a) faltar à verdade ou omitir deliberadamente informações que possam conduzir à apuração de uma transgressão disciplinar;”  (grifo nosso)

Conclusão

Assim, diante de todo o exposto acima, podemos concluir que a mentira, no seio castrense, caracteriza-se como a violação aviltante, por parte do militar do Exército Brasileiro, de preceitos dos mais caros para a Força, como os explicitados acima, os quais nunca podem ser relegados, pois que fazem parte do ethos[2] militar, do qual todos os integrantes da Carreira das Armas conhecem e cultuam.

Neste sentido, o sentimento de dignidade própria do militar o faz procurar merecer o apreço e respeito pelos demais integrantes da Força. Ao falsear a verdade, o militar faz justamente o contrário: torna-se desmerecedor do respeito de seus pares, afetando desta forma os pilares básicos da Instituição: a Hierarquia e a Disciplina. Desta forma, faltar com a verdade no âmbito militar não afeta somente o faltoso, mas também toda a Instituição.

Por outro lado, entendemos que há ocasiões, como no processo penal, em que se permite ao réu mentir, seja ele civil ou militar, ainda que tal atitude seja moralmente incorreta. Entretanto, no procedimento administrativo disciplinar levado a cabo pela Administração Castrense, o militar jamais deve mentir, não só por afetar os preceitos de hierarquia e disciplina, como já expostos anteriormente, mas principalmente por uma questão de lealdade com seus colegas de farda, com a Instituição e com toda a sociedade.

 

Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 30 maio 2013.
BRASIL. Decreto nº 4.346, de 26 de agosto de 2002. Regulamento Disciplinar do Exército. Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4346.htm> Acesso em: 27 maio 2013.
BRASIL. Comando do Exército. Portaria do Comandante do Exército n° 322, de 18 de maio de 2005 – Aprova as Normas para Concessão da Medalha Militar. Boletim do Exército nº 22, de 3 de junho de 2005 – Brasília: 2005, pp. 19-37.
BRASIL. Comando do Exército. Portaria do Comandante do Exército nº 107, de 13 de fevereiro de 2012 – Aprova as Instruções Gerais para a Elaboração de Sindicância no Âmbito do Exército Brasileiro (EB 10-IG-09.001) e dá outras providências. Boletim do Exército nº 7, de 17 de fevereiro de 2012 – Brasília: 2012, pp. 51-87.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 18. ed. 2. reimpr. São Paulo: Atlas, 2006.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 6. ed. Revista, atualizada e ampliada. 2. tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
SOIBELMAN, Leib. Enciclopédia do Advogado. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1981.
Notas:
[1]Artigo apresentado ao Curso de Pós-graduação Lato Sensu em Direito Militar da Universidade Cruzeiro do Sul – Módulo de Direito Administrativo Disciplinar Militar.
[2]ETHOS (grego) Moral, caráter, sentimento, costumes. Leib Soibelman in ENCICLOPÉDIA DO ADVOGADO, 3ª Ed. Editora Rio – Rio de Janeiro, 1981, p. 156.

Informações Sobre o Autor

Victor Melo Fabrício da Silva

Oficial do Exército Brasileiro. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, Brasil. Especialista em Aplicações Complementares às Ciências Militares. Ocupa o cargo de Adjunto da Divisão Jurídica do Comando da 3ª Região Militar


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Equipe Âmbito Jurídico

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