Direitos Humanos

O fenômeno das migrações e o paradigma estatal soberano: as políticas migratórias no Brasil

Nome da autora:

Marcele Scapin Rogerio – Doutoranda em Ambiente e Desenvolvimento – UNIVATES; Mestra em Direito – UNIJUÍ; Especialista em Educação Ambiental – UFSM; Graduada em Direito – UNICRUZ. (e-mail: cele_scapin@yahoo.com.br)

 

Nome das orientadoras:

Fernanda Storck Pinheiro – Doutora em Direito – PUCRS; Mestre em Direito – UNISC; Graduada em Direito – UNISC. Professora do curso de Direito e Professora colaboradora do Programa de Pós-graduação em Ambiente e Desenvolvimento – PPGAD – Univates. (e-mail: fernandapinheiro@univates.br)

Margarita Rosa Gavíria Mejía – Pós-Doutora em Violência e Cidadania – UFRGS; Doutora em Ciências – UFRRJ; Mestra em Antropologia Social – UFRJ; Graduada em Antropologia – Universidade de Antioquia, Medellín, Colômbia. Coordenadora do MIPESUL. (e-mail: margaritarosagaviria@gmail.com)

 

Resumo: O objetivo desse estudo é descrever, à luz do fenômeno da migração, algumas das políticas públicas elaboradas no Brasil a fim de elucidar o posicionamento estatal diante da mobilidade. Parte-se de uma descrição teórica, onde resta demonstrado que a migração é um movimento comum à humanidade, mas que as conformações territoriais e geopolíticas, por meio de políticas restritivas, tem por finalidade impedir esses deslocamentos humanos. Considerando os posicionamentos estatais, descreve-se o caso do Brasil e algumas das políticas migratórias aqui estabelecidas. É possível afirmar que o fenômeno das migrações desafia o paradigma estatal soberano, e os direitos humanos devem pautar as reflexões, debates e discussões sobre a temática para equilibrar, de um lado, a soberania de um país, e de outro, o direito humano de migrar.

Palavras-chave: Migração. Políticas migratórias. Soberania.

 

Abstract: The objective of this study is to describe, in the light of the migration phenomenon, some of the public policies elaborated in Brazil in order to elucidate the state positioning regarding mobility. It starts from a theoretical description, which shows that migration is a movement common to humanity, but that territorial and geopolitical conformations, through restrictive policies, aim to prevent these human displacements. Considering the state positions, the case of Brazil and some of the migratory policies established here are described. It can be said that the phenomenon of migration challenges the sovereign state paradigm, and human rights should guide the reflections, debates and discussions on the theme to balance, on the one hand, the sovereignty of one country, and on the other, the human right to migrate.

Keywords: Migration. Migration policies. Sovereignty.

 

Sumário: Introdução. 2. Metodologia. 3. Migração. 4. As políticas migratórias no Brasil. Considerações finais. Referências.

 

Introdução

A mobilidade humana é um processo no qual se estabelecem ligações que atravessam fronteiras, e as relações transnacionais caracterizam esse fenômeno. Analisar a migração além do conceito Estado-nação sugere como base de análise o movimento de pessoas através dos espaços relacionados com forças que incluem Estados e suas políticas, mas que não estão confinados a eles.

A mobilidade desafia as estruturas políticas e jurídicas do Estado que pretendem, geralmente, afirmar a identidade nacional e obscurecer a aceitação de identidade e culturas diferentes. Propõe-se a examinar a influência das identidades nacionais e o papel do Estado-nação na configuração das experiências migratórias sem, no entanto, limitar o estudo e análise das migrações aos parâmetros determinados pelo Estado-nação.

Assim, a fim de que possa haver reflexão sobre a dinâmica das migrações e com o propósito de especificar a relação do Estado com o fenômeno migratório, se fará uma revisão teórica a partir da literatura para descrever a perspectiva do Estado brasileiro e das políticas migratórias estabelecidas no país.

 

  1. Metodologia

A metodologia se baseou na pesquisa textual bibliográfica e documental, com viés qualitativo e método dedutivo. Realizou-se levantamento teórico bibliográfico com o propósito de alcançar o objetivo elencado, cujas ferramentas a serem utilizadas foram artigos de publicações periódicas e livros de doutrina.

De acordo com Sampieri, Collado e Lucio (2013), o enfoque qualitativo, geralmente, se utiliza de métodos de coleta de dados, mas sem medição numérica, utilizando-se das descrições e das observações, primando pela expansão dos dados ou da informação. Os estudos qualitativos, para esses autores, não visam generalizar os resultados da pesquisa, mas descrever e interpretar o que foi analisado.

O método utilizado foi o dedutivo que, conforme Mezzaroba e Monteiro (2014), parte de argumentos gerais para particulares, ou seja, o ponto de partida é sempre um enunciado, uma ideia geral, e, dessa ideia, são extraídas premissas que encaminham para as devidas conclusões.

 

  1. Migração

Ao analisar-se, historicamente, a humanidade e a condição humana, parece que se deveria estudar a condição de fixação do ser humano em determinado local, em vez de se estudar a mobilidade. A humanidade é uma história de fluxos. Afinal, a mobilidade é a regra da espécie humana e a dos demais seres e, por essa razão, é a imobilidade que deve ser algo a ser questionado. Através dos milênios, migrações ou movimentos sazonais de pessoas têm sido um aspecto significativo da experiência humana no espaço e no tempo (GLICK-SCHILLER; SALAZAR, 2014, p. 02).

A migração faz parte da história do ser humano desde o seu primórdio, na Bíblia há relatos sobre os movimentos populacionais, como o êxodo dos judeus do antigo Egito em 1.200 a.C. e a migração dos gregos no mediterrâneo desde 800 a.C.. Os homens migraram sempre, porém ocorreu uma intensificação dos deslocamentos populacionais em nível mundial facilitado pelo incremento dos meios de transporte e comunicação. Brzozowski (2012, p. 137) descreve que entre os anos de “1815-1930, aproximadamente 52 milhões de europeus emigraram rumo às Américas – incluindo o Brasil”.

O século XX foi um período de intensa migração devido, também, às mudanças mundiais, pois “abrangeu duas guerras mundiais, guerra fria, ocorreram mudanças profundas na economia mundial que também influenciaram o padrão migratório de muitos países e regiões”, sejam países emissores ou receptores (BRZOZOWSKI, 2012, p. 137). A Europa Ocidental que por mais de um século foi uma região exportadora de mão de obra, se tornou importante área receptora de imigração após o ano de 1945, provenientes do Oriente Médio, África do Norte, Subcontinente indiano e América Latina. Alguns países tradicionais de imigração se transformam em países de emigração, como o Brasil (BRZOZOWSKI, 2012).

A globalização, que dispensa fronteiras, e a expansão do sistema econômico mundial exerceram influência na migração internacional (BRZOZOWSKI, 2012). A migração, para Rocha-Trindade (1995), na perspectiva internacional, é a mobilidade onde o indivíduo deixa a sua pátria, sua terra de origem em busca de trabalho temporário, de refúgio ou a fim de estabelecer residência em um país diverso ao seu. Zamberlam (2004) aborda a migração mundial como uma questão de vulnerabilidade social em vista de que muitos migrantes vivem em condições precárias e de exclusão, pois não tem documentos, e o acesso à educação, à saúde, ao trabalho é limitado.

Ramos (2013) aponta que as migrações são um dos motores essenciais das transformações nas dinâmicas socioeconômicas contemporâneas, reconfigurando as concepções de educação, trabalho, cidadania e cooperação. Os Estados deveriam ser mais receptivos à mobilidade humana internacional para, além de reconhecer os deslocamentos como um fenômeno que possa contribuir para o desenvolvimento do país em vários aspectos, também promover a luta pelas desigualdades e discriminações, como ressaltou a autora. O movimento humano de um lugar para outro deveria ser considerado como um fenômeno mundial habitual, porém o estudo desses processos históricos e sociais, muitas vezes, são abordados como se fossem fenômenos incomuns, de modo a difundir que a regra é viver isolado dentro das fronteiras dos Estados-nação (GLICK-SCHILLER; SALAZAR, 2014, p. 02).

Para Nieto (2014), a migração é um fenômeno complexo e multidimensional que pode ser estudado de diferentes perspectivas. Esta complexidade exige precisão na definição do objeto de estudo, pois a migração é um processo que inclui grupos de pessoas tanto no local de origem, como no local de destino e também nos lugares de trânsito.

As migrações são parte da história, além disso, são geradoras da história. As nações sul-americanas, por exemplo, não seriam o que são sem as movimentações humanas. Acontece que a intensa preocupação dos Estados por segurança e economia nacional refletem um aspecto negativo dos fluxos migratórios, isso porque as estatísticas sobre migração são organizadas pelos próprios governos. Essas estatísticas enfatizam as prioridades nacionais e a gestão de migração, geralmente, não é uma prioridade, quase sempre é tratada como questão de segurança nacional, de proteção das fronteiras (GLICK-SCHILLER; SALAZAR, 2014).

Para Glick-Schiller e Salazar (2014), os estudos sobre migração, geralmente, limitam o conceito de sociedade às fronteiras dos Estados-nação e os membros desses Estados devem compartilhar uma história comum e um conjunto de valores, normas, costumes sociais e instituições (GLICK-SCHILLER; SALAZAR, 2014, p. 04-05).

Desse modo, o estrangeiro, ou “alienígena”, que se estabelece em outro país se sujeita à legislação específica, restritiva, e sem direitos plenos de cidadania, e, ainda, por “sua condição de estranho diferente, perturba a unidade da nação porque introduz, no mínimo, a diferença cultural ou étnica, algo quase intolerável para o nacionalismo” (SEYFERTH, 2008, p. 04).

Para abordar as migrações é preciso ir além do significado de sociedade limitada a um território geográfico, é necessário compreender o movimento das pessoas através dos espaço, além das forças do Estado e suas políticas, embora elas também se incluam no estudo. Existe muito mais nas migrações do que, simplesmente, rotular como móvel aqueles que se deslocam para se estabelecerem em outro local (GLICK- SCHILLER; SALAZAR, 2014).

No início do século XXI é necessário repensar os paradigmas sobre a gestão migratória. A América do Sul e particularmente o Brasil, na compreensão de Nieto (2014), tem a oportunidade de propor uma nova perspectiva na política migratória, sustentada no respeito aos direitos humanos dos migrantes e na construção social do migrante como indivíduo igual e não como “outro”.

A nova Lei de Migração brasileira tem como princípios, justamente, a igualdade de direitos e o combate à discriminação e à xenofobia, confirmando a reflexão de Nieto (2014) acerca da possibilidade do Brasil introduzir uma gestão de política migratória mais humanizada. Antes de se referir à nova Lei de Migração, importante fazer um resgate das políticas de migração no país.

 

  1. As políticas migratórias no Brasil

A história das políticas e leis de migração no Brasil está intrinsecamente ligada à história da cidadania brasileira. Alguns anos antes da abolição da escravatura, devido à Lei do Ventre Livre (1871) e às pressões inglesas pela abolição, o Estado passou a promover a imigração de colonos europeus para trabalhar nas fazendas e para povoar áreas ainda não exploradas (BARALDI, 2014).

Nesse contexto, o entendimento acerca de nacionalidade, e a própria noção sobre quem seria o “estrangeiro”, são alteradas e socialmente compartilhadas a partir das relações e informações legais a que são expostas. Dessa maneira, as políticas públicas relacionadas à convicção do que seria o ideal de cidadania para os migrantes foram se desenvolvendo conforme o momento histórico do país e os interesses do Estado. Em 1824, por exemplo, “era interessante para o país estender aos estrangeiros todas as possibilidades inerentes a nacionalidade brasileira à época” (de acordo com o art. 6º, I a V, da Constituição do Império em 1824) (SANTOS, 2015, p. 47).

Esse entendimento, no entanto, não prosseguiu no decorrer das décadas. Na Era Vargas, houve divulgação e incentivo à sociedade civil da época para uma política eugênica contra a imigração (KOIFMAN, 2012). Conforme Santos (2015, p. 47), “isso ocorreu tanto para melhorar a matriz genética nacional através da educação eugênica (art. 138, b, da Constituição de 1934), quanto para manter a ordem pública” (conforme os Atos Institucionais).

A expressão “imigração” ou “imigrante” não foi utilizada em todas as Constituições e nas leis mais antigas que delas derivaram. A expressão usual era a de “estrangeiro”, embora não houvesse uma definição precisa do termo. Na Constituição de 1824 não se usa a nomenclatura imigração, apenas o termo “estrangeiro” de modo amplo e genérico, o qual não se limita somente à questão imigratória, mas também a várias situações jurídicas que envolvem o cidadão de outra nacionalidade (SANTOS, 2015, p. 48).

A Constituição de 1891 utilizou a expressão “imigração” apenas em um artigo (art. 35, § 2º, da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891), versando sobre a atribuição não privativa do Congresso de desenvolver a imigração. O termo estrangeiro que, praticamente, era considerado como sinônimo de imigrante passa a ter outro significado, mais amplo e genérico (SANTOS, 2015, p. 48).

Nas demais Constituições, o termo estrangeiro é utilizado com maior frequência e com um enfoque que ora trata a questão imigratória como política pública a ser fomentada, ora trata a questão imigratória como caso de ordem pública (art. 113, 15, da Constituição de 1934) e de segurança nacional (Leis de Segurança Nacional). Nem mesmo a atual Constituição de 1988, considerada inclusiva para o migrante em comparação com as demais Cartas Constitucionais, consegue definir plenamente a questão migratória e suas relações com a formação da identidade nacional (SANTOS, 2015).

Assim, por constituir parte fundamental da construção da identidade nacional, a questão migratória não ficou imune aos interesses e às particularidades de cada período histórico, nem tampouco dos mandos e desmandos do Estado brasileiro, muito influenciado pelo estamento burocrático (SANTOS, 2015).

O migrante foi discriminado, formalmente, pelo Estado brasileiro, em vários momentos da história, sendo que quando é do interesse do Brasil, ele pode se tornar “desejado” – como o colono antes de 1824 e o imigrante como candidato em potencial a se tornar um nacional brasileiro na Constituição de 1824 -; ou o “inimigo” – nas Constituições da Era Vargas e nas de 1967-69 -, ou seja, variando a sua relação de pertencimento ou de exclusão social do Estado (SANTOS, 2015, p. 49).

Percebe-se que as Constituições de 1824, 1891 e de 1988, em relação ao migrante, agregaram uma função simbólica de inclusão ao contexto nacional. Em 1824, por exemplo, se possibilitou ao colono tornar-se nacional – aquele indivíduo que residia no Brasil antes da Independência de Portugal, não confundindo com o termo colono referente àquele migrante que veio para trabalhar após o fim da escravidão (SANTOS, 2015).

De modo diverso, porém, as Constituições de 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969, tiveram como característica a construção pejorativa do “estrangeiro”, com forte resistência na elaboração do conceito jurídico do imigrante (SANTOS, 2015, p. 69). Esse posicionamento formal incentivou uma reação de oposição em relação ao “estrangeiro”, e como discorre Neves (2013), exerceu a ideia de legislação-álibi para fortalecer a confiança dos cidadãos no respectivo governo ou, de um modo geral, no Estado.

Vale ressaltar que, embora na primeira Constituição Brasileira existiu a intenção de incluir e de facilitar o reconhecimento dos migrantes, bem como a concessão da nacionalidade brasileira (o que não se repetiu da mesma forma nas constituições seguintes), também haviam barreiras legais que serviam para salvaguardar o Brasil imperial da “ameaça estrangeira”. Na Constituição de 1891 havia a possibilidade dos migrantes se tornarem brasileiros em caso de atenderem a requisitos específicos, mas quando se fala em integração do migrante, é somente em relação ao europeu, visto que, por meio do Decreto nº 528, restringia-se a entrada de migrantes africanos e asiáticos (SANTOS, 2015).

O Decreto supracitado foi revogado no ano de 1907 para permitir o ingresso no território brasileiro de migrantes oriundos do Japão, atendendo às classes economicamente dominantes para suprir a carência de mão de obra nas lavouras, em especial nas lavouras de café na região oeste de São Paulo. Essa necessidade ocorreu devido à diminuição da entrada de italianos no país em virtude de um decreto expedido pelo governo italiano, denominado Decreto Prinetti, que cessou o subsídio à migração aos cidadãos italianos para trabalharem nas fazendas brasileiras (SANTOS, 2015).

As leis, decretos e matérias que trataram da questão migratória tanto na Constituição de 1934 quanto na Constituição de 1937 possuíam a mesma natureza jurídica e os mesmos preconceitos em relação ao migrante e tratavam como “lealdade duvidosa” a do “estrangeiro”, que era um potencial “inimigo” do Estado brasileiro (SANTOS, 2015, p. 83). Os reflexos dessa cultura discriminatória, que perdurou até a Constituição de 1969, trazendo resquícios, inclusive, no Estatuto do Estrangeiro de 1980, se difundiram a partir do decorrer dos debates e das propostas da Constituinte de 1934, período em que se encerrou o curso da livre migração no Brasil (KOIFMANN, 2012).

Pela ocorrência da II Guerra Mundial, o conceito do “estrangeiro” como potencial “inimigo” do Estado brasileiro influenciou a elaboração de uma política ainda mais restritiva na questão migratória. Com o fim da guerra foram convocadas novas eleições, além de surgir o anseio por uma nova constituição sem, contudo, cessar materialmente a continuidade do projeto de exclusão do “estrangeiro”. Deste modo, a Constituição de 1946 serviu, formalmente, para alastrar as transformações do conceito de “imigrante”. Ademais, as Constituições de 1967-69 criaram elementos de “demonização” do “estrangeiro” que passou a representar a ameaça subversiva ao Estado e de seu planejamento de continuidade de um projeto de exclusão (SANTOS, 2015, p. 89).

A Constituição Brasileira de 1988, no entanto, é considerada a Constituição Cidadã, e possui como princípios fundamentais a defesa da cidadania e a dignidade da pessoa humana e, em seu artigo 3º, refuta toda e qualquer forma de discriminação; bem como, em seu artigo 4º, promove a prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais da República Federativa do Brasil (BRASIL, 1988).

O direito à cidadania deve ser garantido aos nacionais e aos “estrangeiros” residentes no país, conforme artigo 5º da Constituição Federal de 1988, mas também deve se estender aos migrantes em trânsito pelo território brasileiro, o que denota uma cidadania que transcende o conceito exclusivo de Estado-Nação, promovendo, assim, a construção de uma sociedade multicultural, que represente um espaço simbólico de luta e de ação social, com a participação de diversos setores da sociedade (SANTOS, 2015).

Embora já revogada, a legislação infraconstitucional, constituída pela Lei nº 6.815/80, denominada Estatuto do Estrangeiro, conflitava com o viés democrático emanado da Constituição Cidadã de 1988. É importante mencionar que referida lei foi substituída pela Lei de Migração nº 13.445, de 24 de maio de 2017, mas ainda produz efeitos no contexto migratório atual em vista de que o novo marco legal é recente.

Com um texto definido em 1980 no período da ditadura civil-militar de 1964 e da vigência da Constituição instrumentalista de 1969 que possuiu seu texto baseado na doutrina da Segurança Nacional, o Estatuto do Estrangeiro mantinha o uso do conceito de migrante como potencial “inimigo” de “lealdade duvidosa” (SANTOS, 2015, p. 102-103).

No ano de 1980, após o Estatuto, somente se permitiu o ingresso de migrantes com contrato de trabalho vigente com alguma empresa brasileira. Embora a política migratória restritiva, o Governo Federal continuou com sua política de fronteiras abertas por razões humanitárias (admissão de refugiados ou apátridas) (NIETO, 2014).

Mesmo com a regulamentação restritiva do país, aumentou a partir da década de 80 o ingresso de migrantes em situação irregular. Em vista disso, o Governo Federal implementou o primeiro programa de anistia em 1988, com o objetivo de regularizar os migrantes irregulares. Este programa beneficiou, aproximadamente, 40 (quarenta) mil migrantes. Dez anos depois, em 1998, o Governo implementou um segundo programa de regularização de migrantes (NIETO, 2014).

As determinações legais contidas no Estatuto eram incapazes de dar respostas à migração; ao contrário, reproduziam discursos de segurança nacional, soberania e seletividade. A vigência desta lei autoritária e nacionalista possibilitava a ocorrência de violação de direitos fundamentais já garantidos pela Carta Magna, produzindo, assim, uma situação paradoxal no tratamento dos direitos humanos dos migrantes no Brasil (REDIN; MINCHOLA, 2015).

Diante da inadequação do Estatuto do Estrangeiro para compreender a dinâmica da mobilidade humana sob a perspectiva de direitos, bem como as atuais demandas migratórias no Brasil, o mencionado Estatuto já não respondia ou não devia orientar uma adequada política nacional para migrantes. Assim, considerando a construção e elaboração das políticas migratórias, restava aos migrantes fazer uso das opções disponíveis, de maneira a realizar o trajeto migratório, ou, simplesmente, burlar e descumprir as normas estabelecidas. É necessário compreender, nesse contexto, que as opções e as condições de migração impostas pelos Estados servem a objetivos próprios, muitas vezes não declarados (BARALDI, 2014).

Como não haviam normas expressas brasileiras acerca da migração, o tratamento jurídico brasileiro encontrava sua base na prática administrativa interministerial, que se apoiava na gênese legal tradicional de que o tratamento em relação a migrantes deveria constar na agenda do Ato Administrativo, que considerava os “interesses de Estado” e a “oportunidade e conveniência” para autorizar estada e permanência de migrantes no Brasil (REDIN; MINCHOLA, 2015, p. 207).

A Lei de Migração entrou em vigor no dia 21 de novembro de 2017, assim como o Decreto nº 9.199, que regulamenta a lei. Como a lei é recente, a sua eficácia depende da interpretação que será conferida a ela. De acordo com a Nota Técnica elaborada pelo Migraidh – Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão Direitos Humanos e Mobilidade Humana Internacional da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM (2017) – a fim de sugerir considerações e sugestões para a elaboração do regulamento da Lei de Migração, por intermédio do regulamento se esperava “minimizar os impactos dos vetos, e dar respostas diante das variadas situações de violência de direitos humanos vivenciadas no cotidiano de migrantes/imigrantes”.

O decreto foi criticado por especialistas e entidades sociais em vista de que, em alguns pontos, ameaça os avanços trazidos pela nova lei. No decreto se utiliza, por exemplo, a expressão “migrante clandestino”, de sentido depreciativo ao sujeito que está em mobilidade, expressão que há muito já foi eliminada dos ordenamentos jurídicos, o que evidencia um descaso no detalhamento e especificidade do conteúdo da norma, obstaculizando os avanços para a efetividade das garantias e direitos fundamentais nela estabelecidos.

Os migrantes que não encontram viabilidade em serem aceitos como regulares, utilizam-se da opção do regime de refúgio como via para ingresso e regularização no país – desde que atendidos os requisitos previstos no Estatuto do Refugiado (REDIN; MINCHOLA, 2015).

A Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997, que define os mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951 e determina outras providências, foi criada após ampla discussão no Congresso Nacional. É considerada a primeira legislação preocupada em abordar a temática na América Latina, além de contar com uma parceria tripartite (governo, sociedade civil e ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados). Juntamente com a legislação foi criado o Comitê Nacional para Refugiados – CONARE, órgão presidido pelo Ministério da Justiça e integrado pelo Itamaraty (que exerce a Vice-Presidência), pelos Ministérios da Saúde, Educação e Trabalho e Emprego, pela Polícia Federal e por organizações não-governamentais dedicadas a atividades de assistência: o Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) e as Cáritas Arquidiocesanas do Rio de Janeiro e São Paulo (ITAMARATY, 2019).

Referida norma determina o perfil do indivíduo que será considerado refugiado. Porém, consentir com os termos do Estatuto não significa garantir o amparo aos refugiados (GOTTARDI, 2015). Os direitos dos refugiados não podem estarem restritos – somente – à segurança de recepção; além de ter sua vida preservada, devem ser tratados como concidadãos (TEIXEIRA, 2006). Isso porque o valor do indivíduo não reside em sua nacionalidade, mas no fato de ser humano. Afinal, o direito não deve ser associado, somente, a um local ou tempo, mas à condição humana e às desigualdades enfrentadas (MELLO, 2006).

Por intermédio do instrumento jurídico do pedido de refúgio, se inicia o processo de elegibilidade no Conare – Cômite Nacional para os Refugiados -, órgão competente para a questão dos refugiados no Brasil, que decidirá se o solicitante se enquadra nas condições do refúgio, previstas no artigo 1º da Lei nº 9.474/97 (legislação que define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências), permanecendo o migrante em condição provisória (REDIN; MINCHOLA, 2015).

Como demonstrado, o refugiado, quando reconhecido, possui garantias legais de proteção que se vinculam aos direitos humanos, passando a gozar de direitos iguais aos dos cidadãos nacionais, além de possuir direitos a ações que, de acordo com Redin e Minchola (2015, p. 209) “possam promover sua inserção social, como simplificação no processo de validação de diplomas, direitos de estada e permanência, inclusive pelo princípio da não devolução (non refoulement)”.

A regularização das condições migratórias, antes da Lei de Migração, esteve condicionada à aplicabilidade da Resolução Normativa nº 27 do CNIg, porém o disposto no artigo 3º da Resolução tornava instável a proposição pois determinava que “as decisões com base na presente Resolução Normativa não constituirão precedentes passíveis de invocação ou formarão jurisprudência para decisão de qualquer outro órgão”, portanto, a regularização dependia de atos administrativos (CNIG, 1998).

Os refugiados e migrantes, embora tenham sido considerados, por longo tempo, pela legislação como termos sinônimos, atualmente constituem diferenças jurídicas no que se refere à proteção. O refugiado é definido pelo artigo 1º da Lei nº 9.474/97 como aquele que:

“I – devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;

II – não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III – devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país (BRASIL, 1997)”

O migrante, por sua vez, antes da Lei de Migração, não tinha garantias legais de estada e permanência, assim, sua permanência no país poderia ser revogada a qualquer instante por ato da administração pública, embora essa não era a prática nacional adotada.

Embora existam leis que pretendam confinar as pessoas dentro dos territórios, impedindo e dificultando a mobilidade humana, os deslocamentos são movimentos inerentes à subjetividade do ser humano. Isso significa que uma norma não poderia definir ou ignorar um desejo, no caso dos migrantes, de atravessar fronteiras e ir para outro país. A humanidade não tem fronteiras. O direito humano de migrar, como proposto por Redin (2010), deve ser observado nas políticas propostas pelas estruturas estatais.

 

Considerações finais

Para Sayad (1998), a maior dificuldade para a elaboração de um marco legal atual relacionado à imigração reside no entendimento político, que é um entendimento essencialmente nacional. O estrangeiro ou não nacional representa a ausência de direitos, sequer tem o direito a ter direitos, o que, na concepção arendtiana, é o direito de pertencer a um corpo político, de ter lugar nele, de poder dar um sentido e uma razão de ser das suas ações, das suas palavras e da sua existência (ARENDT, 2009).

Como afirma Cogo (2007, p. 66), “as diversificadas mobilidades e ocupação de espaços territoriais e simbólicos pelos migrantes” desafiam a soberania dos Estados Nacionais e contribuem para atribuir novas especificidades às vivências e demandas por cidadania dos migrantes.

Perante o volume de entradas e o acréscimo das populações migrantes residentes, se torna indispensável tomar medidas para receber, adequadamente, esses indivíduos sociedades nacionais, criando condições para que eles não constituam um corpo estranho inserido no meio social e, por isso, seja rejeitado. Assim, poderá se analisar o aperfeiçoamento da consideração pelos direitos humanos, sociais e culturais dos migrantes, a fim de que sejam desenvolvidas iniciativas concretas baseadas em estudos e princípios para que uma legislação seja formulada, tanto em nível municipal, nacional e transnacional (ROCHA-TRINDADE, 2015).

O Estado-nação é considerado um ator que atua na composição e legitimação das mobilidades, porém a análise da migração somente sob a perspectiva do Estado-nação não é capaz de corresponder à complexidade do processo migratório e das experiências transnacionais. É preciso que a migração seja pensada e exercida para além do caráter territorial, para além de decisões políticas fundamentadas em interesses específicos do Estado, pois são as normas estatais que definem as condições do migrante e, por esse motivo, se propõe que os debates sobre a temática envolvam a premissa do direito humano de migrar.

 

Referências

ARENDT, Hannah. A promessa da política. 2. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.

BARALDI, Camila Bibiana Freitas. Migrações Internacionais, Direitos Humanos e Cidadania Sul-Americana: o prisma do Brasil e da Integração Sul-americana. Tese (Doutorado em Relações Internacionais) – Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2014. 151 f.

BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: Texto Constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais. N° 1/92 a 42/2203 e pelas Emendas Constitucionais de Revisão n° 1 a 6/94 – Brasília: Senado Federal Subsecretaria de Edições Técnicas, 2004.

________. Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980. Define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6815.htm> Acesso em: 07 mar. 2017.

________. Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9474.htm> Acesso em: 08 mar. 2017.

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