Romael Camelo Leitão[1]
Me. Antônio de Pádua Marinho Monte[2]
Resumo: O vigente estudo averigua a emersão e ampliação das milícias no Rio de Janeiro, que detêm o controle de territórios e favelas. Para tanto, proceder-se-á à comparação deste poder militar com o domínio realizado por facções de traficantes em outras comunidades. A sociedade do Rio de Janeiro se vê incorporada em um cenário de guerra civil não declarada entre os órgãos que compõem a segurança pública e os criminosos, que, atualmente, se valem do apoio de agentes públicos na administração de grupos de milícia. A omissão do Estado na luta às várias e repetidas atitudes delituosas dos grupos citados robustece a teoria de falência estatal. Partindo-se desses apontamentos, é defendida a tese de que o Estado falhou no que tange à segurança pública do estado-membro centro desta análise. A metodologia utilizada foi à bibliográfica, portanto, trata-se de uma pesquisa qualitativa.
Palavras-chave: Milícias. Rio de Janeiro. Estado. Segurança Pública.
Abstract: The current study investigates the emergence and expansion of militias in Rio de Janeiro, which control territories and slums. For this purpose, this military power will be compared with the dominance carried out by factions of traffickers in other communities. The society of Rio de Janeiro finds itself embedded in a scenario of undeclared civil war between the bodies that make up public security and criminals, who currently rely on the support of public agents in the administration of militia groups. The State’s failure to fight the various and repeated criminal attitudes of the groups mentioned strengthens the theory of state bankruptcy. Based on these notes, the thesis that the State has failed in terms of public security in the central member state of this analysis is defended. The methodology used was the bibliographic, so it is a qualitative research.
Keywords: Militias. Rio de Janeiro. State. Public security.
Sumário: Introdução. 1. A milícia moderna: o vínculo da criminalidade organizada. 2. Estruturação delituosa composta por agentes públicos. 2.1. A preocupação expressada pela opinião pública. 3. Falência estatal.
INTRODUÇÃO
A Constituição da República Federativa do Brasil, enquanto Constituição Cidadã, lista variados direitos e garantias de natureza fundamental que devem ser observados. Desta feita, sob a ótica constitucional de máxima efetividade à esta espécie de norma, não existe lacunas para que o Estado proceda à omissão no que diz respeito a assegurar o direito à segurança pública.
Em virtude do avanço da violência e da construção dos grupos paramilitares que colocam em riso a ordem pública, questiona-se a falência do Estado em razão da omissão específica na luta às milícias.
Não é razoável sustentar a falência estatal em virtude da omissão específica no que cerne às milícias sem abordar o hodierno cenário social em que se insere a luta contra a marginalidade. Para isso, a princípio, procederá à conceituação, bem como à listagem dos componentes construtores dos grupos paramilitares e ressalta a existência ostensiva de agentes públicos na construção e domínio dessas organizações.
Em momento posterior, destaca-se a opinião pública sobre a temática, além de tratar da falência do Estado na luta contra a marginalidade e, ainda, a viável gênese de um Estado Paralelo na qualidade de expressão diversa de poder.
A metodologia a ser empregada para a confecção deste estudo configura-se como pesquisa qualitativa e exploratória, sendo compiladas apurações doutrinárias e jurisprudenciais de modo a refirmar a falência estatal.
Efetivamente, a essência deste estudo se vale dos ramos do Direito Constitucional, do Direito Administrativo e do Direito Penal, além de acepções sociológicas, sem as quais é inviável defender a tese explicitada.
Finalmente, é necessário que se elucide que a importância das indagações tecidas está no emprego efetivo dos direitos consagrados pela Carta Magna e tutelados em tempos nos quais o próprio Estado se omite, em prejuízo de toda a sociedade.
1. A MILÍCIA MODERNA: O VÍNCULO DA CRIMINALIDADE ORGANIZADA
De acordo com José Maria Rico e Luís Salas, a história da humanidade demonstra que existem inúmeras e periódicas expressões de pânico coletivo atribuíveis a variados cenários (RICO; SALAS, 1992, p. 27).
Neste diapasão, a marginalidade emerge enquanto origem manifesta do sentimento de insegurança pública sofrido pela sociedade. A convivência pacífica e civilizada entre os componentes da sociedade começa a ser vulnerabilizada pelo temor que advém do cenário político-econômico fragilizado no qual se insere o país.
O cenário histórico em que se acha a República Federativa do Brasil explicita que o direito fundamental à integridade física ou patrimonial dos cidadãos é frequentemente desrespeitado por criminosos que, por diversas vezes, emergem do vício em drogas, da desigualdade social, ou da impunidade.
Desta feita, apesar de não ser viável definir o perfil preciso para o agente delituoso, é cognoscível que os delitos praticados com violência e sangue consistem naqueles que obtêm maior repercussão midiática, e que mais atemorizam a coletividade (SILVA, 2003, p. 6).
Em compensação, é comum que os cidadãos admitam outras espécies de delitos e contravenções penais sob a justificativa que estes, em sua acepção, não constituiriam relação com aqueles realizados contra a vida (SILVA, 2003, p. 6).
Desta forma, o afligimento da população na luta contra os delitos comuns e rotineiros, cotidianamente anunciados pela mídia, inclina-se a camuflar o progresso sem controle de outros tipos de crimes que são incentivados por agentes a quem o Estado conferiu a tarefa de tutelar a sociedade da marginalidade.
Em outros termos, apesar de a Lei Maior, de modo genérico, conferir às forças armadas e às polícias federais, civis e militares a asseguração do direito à segurança pública, atualmente, o caso concreto indica a sociedade como vítima desses anti-heróis da segurança pública.
Se, num giro o delituoso individual apavora o homem médio através da sua habilidade de confrontar a organização estabelecida pelo Estado, valendo-se de requintes de crueldade com o fito de consumar seus delitos sem receios, o delito fundamentalmente sistematizado confronta a soberania nacional, bem como ameaça a confiança que a sociedade entrega ao Estado para a luta contra a violência.
Perante o contexto de instabilidade social no qual se acha a cidade do Rio de Janeiro, percebido pelo jornalista e escritor estadunidense Jon Lee Anderson, enquanto “Calamidade Social” (ANDERSON, 2009) amplia-se a quantidade de grupos armados construídos por agentes ou ex-agentes públicos que se valem da farda e de um roteiro protecionista com o objetivo de se inserir e controlar comunidades carentes e esquecidas pelo Estado.
Portanto, as milícias se demonstram, a princípio, em certas regiões, como sendo a solução para o domínio da criminalidade, bem como para a progressão social que o Estado, por sua omissão, deixou de viabilizar, tornando-se, consequentemente, uma efetiva milícia leviatã e um concreto Estado Paralelo inserido no interior do Estado propriamente dito.
Isto posto, perante o nível de organização que detêm, além da força coercitiva que exercem, atingem o monopólio da prestação de serviços com relevância lucrativa, definindo regras de comportamento a serem observadas pelos residentes do território dominado e apadrinham candidaturas, concretizando a execução estruturada de vários delitos.
2. ESTRUTURAÇÃO DELITUOSA COMPOSTA POR AGENTES PÚBLICOS
Por volta doo ano de 2009, já completava duzentos e quarenta meses depois da emersão de uma das mais relevantes comunidades da Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, a Rio das Pedras. O embasamento para a ampliação deste tipo de “força paramilitar” é, justamente, a inexistência do Estado.
À época, de acordo com o depoimento concedido pelo Delegado da Polícia Civil, Pedro Paulo Pinho, da 32ª Delegacia de Polícia, à Comissão Parlamentar de Inquérito voltada à investigação da ação de milícias na esfera estatal do Rio de Janeiro, os próprios residentes da comunidades se estruturavam para inviabilizar a entrada de traficantes e assaltantes, configurando, na visão do delegado mencionado, uma efetiva “polícia mineira”, cujos componentes perseguiam criminosos e extorquiam os residentes do território em questão (PINHO, 2008, p. 35-41).
À vista disso, para a citada autoridade policial, esses indivíduos armados não configuram uma efetiva milícia, tendo em vista que para ela a expressão concerne, em sua origem, à polícia militar (PINHO, 2008, p. 35-41).
Todavia, cumpre analisar que o decorrer do tempo concretizou uma alteração drástica nos interesses desses grupos. A finalidade inicial da luta contra a criminalidade e, em específico, ao tráfico de drogas, cedeu espaço à construção de organizações marginais com a existência manifesta de agentes públicos, bem como com o desempenho imediato na política nacional (CALDERA, 2008, p. 50).
Por conseguinte, diversamente do que acontecia há duas décadas atrás, é absolutamente adpatável o emprego da expressão “milícias” aos grupos formados de forma ilegal por agentes do Estado que, valendo-se do status de agente público, controlam regiões dominadas, ou não, pelo tráfico de drogas.
Realmente, a conceituação desse fenômeno social é deveras dicotômica. Aparente ser mais simples apontar seus atributos do que definir, com precisão, o que viriam a ser os milicianos.
Para corroborar a afirmação supra elaborada, nem sequer as autoridades incumbidas pelo âmbito da segurança pública detêm o condão de definir um conceito preciso. Na acepção do delegado Marcus Neves, da 35ª Delegacia de Polícia, as milícias simbolizam:
[…] grupos armados compostos por agentes do Poder Público e pessoas cooptadas nas comunidades carentes, inclusive ex-traficantes, que usam a força e o terror para dominar uma determinada região e explorar de maneira ilegal as atividades de transporte alternativo, gás e tevê a cabo. Seu mote é a questão financeira, o lucro farto e fácil (NEVES, 2008, p. 35).
Por seu turno, Jaqueline Muniz e Domício Proença definem que as milícias consistem em gangues compostas por policiais e ex-policiais que alienam segurança contra eles próprios (MUNIZ; PROENÇA, 2008, p. 35).
De um modo mais genérico, Domício Proença compreende que todo e qualquer grupo que atue de maneira a contrariar a lei pode ser encarado como milícia (MUNIZ; PROENÇA, 2008, p. 35). Contudo, ao admitir uma conceituação sem muitas especificações, pode-se formar uma enganadora ideia de que, por exemplo, o narcotráfico consiste em um tipo de milícia.
Contudo, no que tange às equivalências presentes no controle armado sobre certo território e população, além do interesse no lucro advindo de suas ações, essas organizações de caráter criminoso se diferem, via de regra, pela existência de agentes públicos no interior de milícias (CALDEIRA, 2008, p. 51).
Nesta mesma esteira, o procurador de justiça Antônio José Campos Moreira sustenta que não há crime organizado sem a existência de influência no poder público, na polícia ou, inclusive, na seara do Poder Judiciário (MOREIRA, 2008, p. 35-36).
Na teoria, na acepção de um membro do Ministério Público, esses grupos que se formaram de modo ilegal incidem em delito de associação criminosa e, consistindo em crime organizado, detêm cunho de atividade empresarial (MOREIRA, 2008, p. 35-36).
Consoante a visão de Jaílson de Souza e Silva, Fernando Lannes Fernandes e Raquel Willadino Braga, os grupos delituosos armados que possuem o domínio de certos territórios configuram, com efeito, redes criminosas com viés territorializado.
(…) Grupos Criminosos Armados com Domínio de Território são redes criminosas territorializadas que atuam em atividades econômicas ilícitas e irregulares, como o tráfico de drogas, serviços de segurança e transporte coletivo irregular, dentre outras, a partir de uma base territorial específica, fazendo uso da força física e da coação – especialmente pelo uso de armas de fogo – como principais meios de manutenção e reprodução de suas práticas (SILVA; FERNANDES; BRAGA; 2008).
Impende destacar que as milícias configuram um fenômeno social de natureza dinâmica, sendo, assim, passível de justificativa a inexatidão que rodeia a sua precisa definição. É nesta conjuntura que Ignácio Cano sustenta que, com o intuito de conceituar o que seria uma milícia, crucial é a existência paralela de cinco fundamentos de suporte:
(…) controle de territórios reduzidos e da população residente neles por parte de grupos armados irregulares; caráter coativo desse controle; lucro individual como motivação central; discurso de legitimação referido à ‘proteção’ da população contra a criminalidade, e à instauração de uma ordem e, por fim, a participação aberta de agentes de segurança pública (CANO, 2008. p. 80).
O componente espacial existente no domínio do território e da população advindo da atuação das milícias, em nem todas as vezes estará relacionado a uma natureza coativa. Em um primeiro momento, em virtude de uma promessa de tutela, esses grupos armados agem com legitimação conferida pelos membros da comunidade que sofreu a dominação.
O cenário sócio-econômico do Rio de Janeiro simboliza a inexistência de uma política pública em seus âmbitos que apresentam maior carência, e efetiva a consideração da falência do Estado. Logo, é nesta conjuntura de omissão do Estado que grupos de agentes ativos ou não tornam a exercer domínio sobre comunidades, se valendo, comumente, da estrutura e mecanismos oportunizados pelo Estado com o fito e lutar contra a prática de crimes.
Em sentido metafórico, o primeiro contato desses grupos ilícitos com a população local acontece em harmonia imediata. Um efetivo fenômeno passível de justificativa em virtude da argumentação de que todos os cidadãos são merecedores de viver em uma sociedade na qual a violência não existe.
Deste modo, a notoriedade dessa política social instaurada pelos milicianos, viabilizando a dignidade da pessoa humana, operou enquanto essência para a amplificação da dominação e legitimidade da atuação dos grupos compostos de milicianos.
No entanto, existem outros fatores. Conforme destacou Ignácio Cano, o progresso histórico do fenômeno indica que a aplicação da força e da coerção se transformaram em cruciais à descaracterização do contrato de prestação dos serviços de segurança definido de modo implícito entre os moradores da comunidade dominada e as milícias.
(…) Observe-se que o caráter coativo da ‘proteção’ é imprescindível para podermos falar em milícias ou em domínio de qualquer outro grupo irregular. Caso contrário, se a vigilância armada fosse procurada e controlada pelos habitantes, estaríamos perante um caso de segurança privada, comum nas áreas de classe média e alta (CANO, 2008, p. 81).
Logo, a legitimidade inicial dos grupos armados ilícitos foi substituída pela determinação do medo e violência em virtude da abundancia de arbitrariedade que advém, de modo direto, da inexistência de mandamentos escritos, hábeis a definir direitos e deveres impingidos à população (CANO, 2008, p. 60).
Isso tudo se deve à ausência de representatividade do governo nessas comunidades, o que acarreta a sensação de revolta e desconfiança nos órgãos que seriam os responsáveis por viabilizar a paz pública.
Consequentemente, deve se destacar que as milícias simbolizam a autoridade local e, de maneira irregular, definem regras de comportamento de obediência de todos, caso contrário, podem protagonizar sanções de natureza física e psicológica, tal como lesões corporais e ameaças (CANO, 2008, p. 60).
Além disso, insta destacar que, semelhante ao que ocorre com a atividade ilícita do narcotráfico, existe, de modo majoritário, o componente econômico, intrínseco à finalidade de se adquirir lucro com a prestação dos serviços de segurança, fornecimento de TV a cabo, gás e transporte.
Com efeito a argumentação baseada na tutela inicial aplicada na ocasião da instauração dos grupos armados nas comunidades se transformou em secundário. O simples teto de salário ao qual estão submetidos os agentes estatais incentivou a avidez particular de complemento de renda mensal.
Comumente, os noticiários dão conta que a atuação das milícias no estado do Rio de Janeiro não possui restrições (RAMALHO, 2009). Prova disso é que, em desarmonia com as atividades de regulamentação, foram apreendidos mais de cinco mil botijões de gás em um depósito camuflado em Campo Grande no ano de 2009. Ademais, vale ressaltar um caso mais recente, do ano de 2019, no qual 212 botijões de gás apreendidos no município de São João de Meriti/RJ.
A proeminente margem de lucro oriunda da prestação de serviços de natureza alternativa nas favelas do Rio de Janeiro advém, de modo direto, da cobrança de taxas, que podem variar segundo a localidade que se encontra dominada pelas milícias, além da espécie de serviço ludibriado.
Outrossim, verifica-se que a procura incansável pela majoração dos rendimentos decorrentes dos negócios ilícitos ocasionou a diversificação da rede de exploração no interior do território dominado por parte das organizações de cunho criminoso.
Atualmente, existem várias matérias jornalísticas que retratam a inovação desses grupos, que passaram a fornecer serviços de acesso à internet, denominados “gatovelox”, além do transporte alternativo executado pelos mototáxis (RODRIGUES; GRANDIN, 2019).
No que tange à legitimidade da atuação dos grupos milicianos, esta deve ser encarada sob dois aspectos diversos. Sob uma acepção, existe a participação da comunidade na ampliação do fenômeno social em comento. Noutro giro, existe o discurso de implementação da ordem social explicitado pelos agentes públicos, ativos ou não, incumbidos do domínio de determinado território.
Na visão de Sérgio Ramalho, por ocasião de uma de suas entrevistas concedidas ao O Globo, em um primeiro momento, os milicianos chegam às comunidades e convencem os moradores se valendo de um discurso de implementação do choque de ordem e com o estabelecimento de um compromisso de eliminar o tráfico de drogas.
Nesta ocasião, ainda que a ilegalidade seja um elemento formador desses grupos, a legitimidade da atuação é, a princípio conquistada por intermédio da participação da comunidade, que concede à milícia o poder de combater o mal advindo do tráfico de drogas, além de propiciar a segurança pública da localidade e, em certos contextos, prestar serviços de natureza assistencial.
Embora aparente ser um absurdo para grande parcela da sociedade, é fato que os moradores de favelas carentes que são submetidas à dominação do tráfico de drogas ou pelas milícias configuram a parcela esquecida pela política do Estado.
Em outros termos, a notória inexistência estatal nessas searas autorizou o progresso das mencionadas organizações criminosas. Os indivíduos esquecidos pelas políticas públicas governamentais vislumbraram na promessa da milícia uma solução para o horrível contexto social no qual estão inseridos. Desta feita, é absolutamente justificável a legitimação que esses grupos delituosos adquiriram.
Cano (2008, p. 65) sustenta que existe uma racionalidade econômica no contexto fático. Assim sendo, defende-se que o argumento para a cobrança de taxas é a tutela da comunidade contra um mal superior, que, na grande parte das ocasiões, é vislumbrado na figura dos traficantes de entorpecentes (CANO, 2008, p. 65).
Grande parcela da sociedade corrobora a política que a milícia impõe. Tal afirmativa se justifica pelo fato de que esses indivíduos consideram que seria melhor pagar pelo fornecimento de segurança, o que consiste em incumbência do Estado. Infelizmente, como o Estado não fornece tal garantia constitucionalmente assegurada, os moradores de comunidades carentes recorrem à proteção paga dos milicianos.
Desta forma, em termos genéricos, o mais importante componente diversificador das milícias configura-se na manifesta presença de agentes públicos nos mais variados estágios da organização dos grupos ora estudados.
No que tange ao latente engajamento de policiais com o tráfico de drogas, nos grupos milicianos, a participação destes é notória. Os policiais militares assumem posições de controle e chefia da organização, além de se engajar, também, nos papeis de menor importância.
Os policiais civis, bombeiros, policiais militares e agentes penitenciários que fazem parte de grupos milicianos se acham disponibilizados em vários estágios hierárquicos. Parcela dos componentes estão engajados com a chefia, outros com o recolhimento de taxas e, anda, existem aqueles que se incumbem de extinguir os inimigos das organizações rivais do grupo ao qual pertence.
Frisa-se, por oportuno, que esses agentes estatais, ativos ou não, agem utilizando-se esse status de agente público. Ou seja, não apenas se valem dos mecanismos oportunizados pelo governo para a execução das tarefas que lhe são incumbidas, como se promovem e conquistam a confiança da comunidade local por intermédio deste ícone de representação estatal.
Assim sendo, pode-se dizer que, embora sejam organizações de caráter ilícito, cumprem com a finalidade de fornecer a segurança pública melhor do que o próprio Estado.
Insta elucidar, todavia, que não são incomuns os indivíduos civis que compõem a estrutura organizacional das milícias. Entretanto, as mais relevantes tarefas são executadas pelos indivíduos que, de certo modo, mantêm vínculo com os quadros de segurança pública estatal.
(…) Em suma, a maioria dos milicianos são membros ativos ou inativos do quadro de funcionários do estado, não raro afastados por desvio de conduta. A milícia incorpora também a civis, mas as posições de comando correspondem quase sempre a pessoas com uma conexão direta com as corporações de segurança pública (CANO, 2008, p. 67).
Cumpre ressaltar que a destinação das funções de controle aos agentes que estão vinculados de modo direto às tarefas públicas de segurança apresenta um viés estratégico. Primeiramente, porque simplifica a incorporação e domínio das comunidades que apresentam maior carência. Em segundo lugar, porque os milicianos simbolizam o Estado nesses âmbitos, e, na prática, são os efetivos incumbidos da tarefa de expurgar o mal que assola a sociedade como um todo.
Logo, embora haja complexidade em definir, com precisão, o que viria a ser os grupos milicianos, é viável, de modo genérico, concluir que a atuação desses grupos consiste em um fenômeno de natureza social que vem se ampliando em virtude da decadência da política pública estatal.
Desta forma, em razão de certos componentes que procedem à sua caracterização, os grupos milicianos configuram-se enquanto organizações que detêm, em certas regiões, representação política, compondo-se notoriamente por agentes públicos ativos ou não vinculados ao setor de segurança pública, que se valem desse status para proceder ao domínio de certo território através da imposição de regras de comportamento, além de estabelecer cobranças pelos serviços oportunizados no interior daquela base territorial.
2.1 A preocupação expressada pela opinião pública
Um dos mais relevantes mecanismos no combate à criminalização e da minoração dos índices de violência na cidade do Rio de Janeiro é o policiamento ostensivo (SÉRGIO, p. 15). Contudo, vale ressaltar que devido a omissão do Estado, organizações milicianas avocaram para si as tarefas inerentes à segurança pública.
Insta salientar, também, que em épocas anteriores, a sociedade costumava confiar na estrutura das polícias, estipuladas na qualidade de serviços essenciais de um Estado Democrático de Direito.
De um modo genérico, os agentes que são vinculados de maneira direta à seara da segurança pública detêm, enquanto atribuição, o aspecto coercitivo dos atos emanados pela Administração, simbolizando, assim, uma figura detentora de autoridade advinda dos poderes do Estado (LAZZARINI, 2003, p. 231).
A determinação de um mandamento público passou a ser um dos mais relevantes obstáculos da modernidade, uma vez que o dia a dia da sociedade domiciliada no Rio de Janeiro apresenta um ceticismo considerável no que diz respeito às políticas estipuladas pelo Governo em relação à segurança pública.
A referida inexistência de perspectiva se acentua paulatinamente. A violência alcançou índices altíssimos, que alarma a população, causando, assim, uma sensação coletiva de ausência de segurança. O temor é geral, tanto para os cidadãos, quanto para aqueles que integram os quadros das Polícias (GOULART, 2008).
A afirmação acima tecida pode ser corroborada pela notícia de que policiais militares rejeitaram um pedido de recuperação de um carro roubado e encontrado em localidade próxima a um morro situado no bairro da Tijuca (GOULART, 2008).
Perante este cenário de instabilidade, no qual os indivíduos temem andar pelas ruas, a sociedade se demonstra na qualidade de refém do Estado, que não cumpre o seu papel de prestar segurança pública à coletividade.
Em outros termos, o cidadão se vê prisioneiro de atitudes de policiais corruptos que se envolvem com o narcotráfico, que cometem sequestros, homicídios, extorsões. Todavia, há que se frisar que existem os policiais que lutam por remuneração digna e melhores condições de trabalho.
Por efeito do caos social em que a cidade do Rio de Janeiro se encontra, os próprios agentes públicos vinculados à segurança pública se tornam danosos aos direitos concedidos aos indivíduos.
(…) E nesse contexto observamos que a segurança pública do povo fica fragilizada e desprotegida, face aos sucessivos escândalos envolvendo justamente aqueles que deveriam manter a ordem, o respeito e a vida harmônica em sociedade (SANTOS, 2002, p. 20).
Após o surgimento das primeiras notícias de que certas organizações compostas por policiais procediam, com êxito, à expurgação do tráfico de drogas em determinadas comunidades do Rio de Janeiro, os cidadãos enobreceram esses ditos heróis de um poder estatal omisso.
Tarefa simples é a de verificar que a propagação e o descontrole do governo na luta contra a violência detêm, como alicerce, a inexistência estatal nos territórios mais carentes do estado do Rio de Janeiro.
Várias são as atuações sociais que deveriam ser realizadas por intermédio de políticas públicas, mas que, em face da ausência do Estado, se tornaram a mais eficaz propaganda política dos candidatos apoiados pelos grupos milicianos.
Em virtude da ampliação ideológica e territorial promovida por essas organizações, verifica-se um afronte direto à soberana estatal.
Se o relevante empenho do Estado nessas favelas se restringia ao combate ao trafico de drogas, sendo esquecidas as políticas sociais relacionadas ao saneamento básico, saúde, transporte e educação, o advento de um poder paralelo, hábil a expurgar o tráfico de entorpecentes e incentivar os serviços básicos, acarretou uma ruptura na completude do poder estatal.
(…) Nessas regiões, o poder público entra apenas por meio da repressão, não há escolas, postos de saúde nem políticas sociais que absorvam a juventude. A lógica da Segurança Pública no Rio é a da ditadura, da busca de inimigos e a reafirmação da lógica de guerra, no sentido de derrotar o inimigo. É um cenário que enfraquece o poder público e faz com que a sua soberania seja absolutamente limitada (FREIXO, 2009).
Logo, os fatos se constituem em apenas uma genuinidade. Os grupos milicianos agem nos locais onde o Estado não existe. Entretanto, diversamente do que ocorre com o provimento gratuito que constitui garantias fundamentais do cidadão em um Estado Democrático de Direito, essas organizações procedem à cobrança de taxas pelo fornecimento dos serviços de cunho básico.
O contexto social indica a presença de um ciclo vicioso. A inexistência do Estado em um dos territórios mais carentes estabelece o surgimento das milícias, que, perante uma brecha acarretada pela ausência de políticas públicas, oneram serviços tais quais: o de gás e luz, segurança e transporte. Assim sendo, o faturamento ocasionado pela prestação desses serviços é de, aproximadamente, R$ 256.000.000,00 (duzentos e cinqüenta e seis milhões de reais), lesando a economia estatal (FREIXO, 2009).
Portanto, não é suficiente que a polícia desempenhe seu papel determinado pelos mandamentos constitucionais. É imprescindível que sejam elaborados e desenvolvidos projetos que procedam à inclusão social nesses âmbitos mais pobres e vitimados pela violência, reedificando o fundamento do Welfare State nos atuais tempos, os de globalização da economia estatal.
Durante a inexistência de uma política efetiva de fomento à segurança, saúde e educação nas comunidades mais carentes do Rio de Janeiro, os cidadãos vitimados, bem como grande parte da população permanecerá sem a assistência estatal constitucionalmente prevista, dependendo da ação de grupos milicianos para tanto.
CONCLUSÃO
O engajamento de agentes públicos, ativos ou não, na construção de grupos milicianos e na execução de delitos em desfavor da sociedade explicita a falência do Estado na luta contra a criminalidade, além de trazer à baila o debate na ausência de efetividade do direito constitucional no que tange à segurança pública.
É sabido que a maior parte do entendimento doutrinário e jurisprudencial defendem que a segurança pública é dever genérico do Estado, eis que é inviável assegurar a tutela individual de todo indivíduo.
Contudo, é necessário verificar que, diversamente do que defende o entendimento acima esposado, o direito à segurança pública é um mandamento consagrado pela Constituição Cidadã, razão pela qual deve receber máxima efetividade. A teoria do contratualismo social legitima a gênese do Estado e explicita, em termos genéricos, que o cidadão renuncia a parcela de sua individualidade com o fito de que a tutela de sua integridade física e de seu patrimônio se conservasse no poder estatal.
É manifesta e vergonhosa a omissão estatal no que tange ao combate à violência. Grupos violentos agiram nas searas mais carentes do Rio de Janeiro, procedendo à prática de diversos delitos em prejuízo da comunidade local.
A alienação de serviços básicos intrínsecos à atividade do Estado viabilizou aos grupos milicianos rendimentos mensais milionários e explicitou o poder econômico que conquistaram em razão da inexistência estatal nas referidas localidades.
Não existe razão para que o Estado não aja. Não existem motivos para a omissão do Estado no combate aos grupos violentos. Apesar disso, o que se depreende, comumente, é que o Estado detinha os meios para agir, mas se absteve de fazê-lo.
Consequentemente, nessas ocasiões em que existem repetidas omissões advindas do Estado, ainda que notoriamente midiatizadas, verificadas e devidamente atestadas, é imprescindível o crucial reconhecimento da falência do Estado e da gênese de um estado paralelo.
Por fim, é imprescindível que o Estado aja em todas as searas de políticas públicas e sociais com o intuito de retomar a confiança da sociedade e, assim, proceder ao fornecimento da segurança pública, dever constitucionalmente previsto.
da responsabilidade civil objetiva do Estado por omissão específica.
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[1] Bacharel em direito. E-mail: Romael.adv.jus@gmail.com
[2] Doutorando em direitos e garantias fundamentais (FDV). E-mail: paduamarinho@gmail.com
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