Resumo: Este artigo busca levantar algumas concepções do malandro na música popular brasileira e relacioná-la com a concepção hegemônica de Direito, positivismo jurídico. O objetivo do artigo é ressaltar alguns problemas na visão hegemônica e propor que o Direito seja entendido como instituição imaginária social.
Palavras-chave: Filosofia do direito, instituição imaginária social, malandro, música popular brasileira, samba, Castoriadis
Sumário: Introdução, 1. A figura do malandro na música popular brasileira, 1.1. O malandro de Noel Rosa, 1.2. O malandro de Chico Buarque, 1.3. O malandro de Bezerra da Silva, 1.4 Outros Malandros, 2. Significações imaginárias do Direito, 2.1. Positivação Legal, liberdade negativa e as lacunas, 2.2. A Tipificação, sanção e aplicação, 2.3. Pluralidade de ordenamentos jurídicos, 3. Malandro e o crime, 4. Malandro, a vantagem e as leis, 4.1. A vantagem e o “jeitinho”, Considerações Finais, Bibliografia.
Introdução
A música é uma das diversas esferas sociais que possibilita, tomando a parte pelo todo, entender a sociedade. O direito pode-se beneficiar dessas representações da música, para ajudar a entender algumas figuras e especificidades de cada sociedade. A figura do malandro está presente em diversos textos literários, mas é principalmente nas músicas que o malandro se eterniza no imaginário brasileiro.
O objetivo desse artigo é estabelecer relações entre o Direito e a música, para entender a figura do malandro na sociedade brasileira e como este malandro estabelece um diálogo com o Direito. É também objetivo do texto apontar como o malandro denuncia algumas limitações do Direito, como a questão das lacunas e da aplicação das normas.
Entende-se o malandro como uma significação imaginária da sociedade brasileira. Com isso, evita-se uma ou outra definição específica de malandro, admitindo-se diversos malandros, mas tentando estabelecer algo que une essas figuras. O malandro não é aqui tomado como um mito ou como um tipo social, no sentido de Weber. A instituição imaginária da sociedade é um conceito de Cornelius Castoniadis. O filósofo entende como instituição: “uma rede simbólica, socialmente sancionada, onde se combinam em proporções e em relações variáveis um componente funcional e um componente imaginário”[1]. A imaginação não tem uma função, ela é desfuncionalizada, indo além do instrumental, mostrando uma outra dimensão da sociedade que geralmente é esquecida pelos estudos funcionalistas e que buscam um sistema. Essa imaginação é radical a medida que cria o novo e modifica a sociedade constantemente, escapando da determinação e construindo o novo a cada momento.
As instituições que são formadas por um mar de significações, não explicam como a sociedade funciona, mas o que a sociedade é, dando uma dimensão do social em um tempo e espaço. A sociedade brasileira tem como uma de suas significações imaginárias o malandro, que é uma figura que explica um pouco o que essa sociedade entende como boa-vida, como lida com a questão do trabalho, como se relaciona com as leis e o poder, etc. Como significação o malandro não é um objeto acabado, pois ele está em conexão com a sociedade que também se transforma, e desse modo o malandro também não é estático, nem uno, mas um magma de significações sociais.
A relação entre uma significação imaginária que é o malandro e outra instituição imaginária da sociedade que é Direito, pode ajudar a perceber que o direito não pode ser mais definido como algo reduzido somente à normas ou a conjunto de normas ou mesmo a sistema normativo. As significações do malandro levam a um mundo em que esse conceito de direito é desafiado.
Primeiramente, o artigo procura-se mostrar o malandro no imaginário social a partir da música popular brasileira, em especial em três compositores de épocas diferentes: Noel Rosa, Chico Buarque de Holanda e Bezerra da Silva. Em um segundo momento busca-se desvendar a noção de direito tradicional e suas limitações, na qual trabalha o malandro. Em um terceiro, trata-se de estabelecer ligações do malandro com o crime, que é uma das esferas do Direito (no conceito tradicional), que é a sancionatória. Por fim, aborda-se a questão da vantagem, do malandro e da aplicação da norma.
1. A figura do malandro na música popular brasileira
O malandro é uma das figuras sempre presente em diversas músicas brasileiras, em especial nos sambas. O malandro pode ser tido como uma figura mítica, presente no imaginário nacional. Ele faz parte de uma das definições do que é ser brasileiro, com sua malemolência, gingado e com o “jeitinho brasileiro”. O malandro representa uma espécie de herói brasileiro, que é valorizado por sua maneira de bem viver e de gozar das boas coisas da vida, sem necessariamente trabalhar ou seguir as normas sociais.
A figura do malandro está presente em toda a cultura brasileira e tem representações importantes nas esferas da arte e da religiosidade. O malandro é uma das figuras da Umbanda e do Catimbó, que mistura religiosidades indígenas, africanas e cristãs. Zé Pelintra, Zé Pretinho e o Malandro da Camisa Listrada são entidades reconhecidas por sua malandragem, por buscar a caridade e o progresso da humanidade. O terno branco de linho e o sapato branco são marcas dessa figura religiosa, assim como a malandragem e a desconstrução da ordem estabelecida para a criação de uma nova ordem autônoma.
O malandro foi apontado por Antonio Candido como figura nacional, no romance “Memórias do sargento de milícias”, como um mediador entre a ordem e a desordem ou ausência de ordem[2]. António Candido fala de uma dialética da malandragem. Na sociedade retratada no romance as regras sociais e jurídicas são o tempo todo relativizadas, e é o malandro na figura de Leonardo Pataca, que é desprovido de virtudes, porém é leal a seus amigos. O autor entende que o personagem é um malandro e não um pícaro ou outro aproveitador, pois pratica a astúcia pela astúcia[3].
Zé Carioca, o papagaio brasileiro representado nos quadrinhos da Disney, personifica o malandro. Essa figura sofreu uma enorme transformação devido à modificações na forma da sociedade de incorporar o malandro. Há pelo menos duas fases nas histórias: uma em que Zé Carioca é trabalhador e está na cidade de Patópolis e outra em que personifica o malandro vagabundo e caloteiro, que não respeita as leis[4].
O antropólogo Roberto Damatta coloca o malandro como figura nacional, que ajuda a compreensão do que é ser brasileiro. O malandro não é apenas um personagem ou algumas pessoas, mas faz parte do que identifica o brasileiro. Assim, não é apenas o malandro, mas a malandragem e o “jeitinho” que interessa a Damatta, pois o está em jogo é a relação entre público e privado, entre casa e rua, entre o meu e o teu. Para o antropólogo a malandragem é uma forma de navegação social.
“(…) não há no Brasil quem não conheça a malandragem, que não é só um tipo de ação concreta situada entre a lei e a plena desonestidade, mas também, e sobretudo, é uma possibilidade de proceder socialmente, um modo tipicamente brasileiro de cumprir ordens absurdas, uma forma ou estilo de conciliar ordens impossíveis de serem cumpridas com situações específicas, e – também – um modo ambíguo de burlar as leis e as normassociais mais gerais”[5].
A figura do malandro está distante daquele que trabalha para sobreviver. Malandro não é o escravo, nem o operário, nem o senhor, nem o patrão. O malandro se apresenta como figura de resistência ao sistema imposto pela sociedade. Na impossibilidade de ser senhor, nega-se a ser escravo.
Esse traço do malandro se relaciona com a figura do capoeira pela recusa ao trabalho. É isso o que afirma Fabiana Lopes, no seguinte trecho:
“O malandro segundo Maria Ângela Salvatori, em sua tese Capoeiras e malandros, teria sua origem ancestral, principalmente no que diz respeito à vestimenta, em outro personagem urbano anterior (de fins do século XIX), o capoeira. Desse modo, o malandro seria proveniente de uma tradição popular que procurava preservar uma margem de autonomia e de deliberação sobre sua própria vida. Essa tradição, segundo a autora, teria se originado de um regime no qual o trabalho se apresentava de forma negativa e marginalizada, a liberdade representava algo mais que a condição de cidadãos livres. A liberdade simbolizava principalmente o “viver sobre si”, o não submeter-se a uma disciplina de trabalho. Estes personagens, quando foram envolvidos por um contexto de valorização da moral do trabalho e logo em seguida da exaltação da figura do trabalhador, foram rotulados como vadios e relacionados com a violência urbana”[6].
Para viver a margem da sociedade o malandro não pode simplesmente negar a sociedade e suas regras, mas tem de aprender a negociar, acatando algumas e renegando outras. Assim, o malandro não se torna um párea, mas não pode ser considerado um indivíduo que está plenamente incluído socialmente. Sua recusa de seguir as normas impostas por uma burguesia e sua recusa de trabalhar o diferencia do escravo/proletário. O malandro não é o revolucionário, que busca modificar as estruturas sociais. É figura de resistência porque quer estabelecer suas próprias regras, a partir de seus valores, para gozar a vida que considera boa. O malandro quer viver a autonomia, por isso o malandro é figura política.
A música popular brasileira apresenta diversos tipos de malandro. Todas essas referências ao malandro têm em comum, salientar a relação do malandro com as normas, sejam elas sociais ou jurídicas. Elas formam um magma de significações, que fazem parte da cultura brasileira. Assim, a figura do malandro faz parte da cultura brasileira, e respalda em grande parte o “jeitinho”. O malandro se torna um grande negociador de conteúdos normativos, respaldado pela sociedade. A difusão da música sobre o malandro ajuda a manter esse imaginário social vivo.
1.1. O malandro de Noel Rosa
O malandro é retratado por Noel em diversas músicas, muitas delas tendo como gênero o samba. “Capricho de rapaz solteiro”, “Bom elemento”, “João Ninguém”, “Malandro Medroso”, “Escola de Malandro”, são algumas composições de Noel Rosa com essa temática. Noel fazia uma diferença entre o sambista e o malandro, que vivia no morro e não trabalhava. Porém, não era raro que essas figuras tivessem uma aproximação.
A definição do malandro foi palco de uma das grandes disputas do samba na década de 30 entre Noel Rosa e Wilson Batista[7]. O malandro retratado por Wilson Batista, em “Lenço no Pescoço” [8] de 1933, é figura de chapéu de lado, navalha no bolso, lenço no pescoço e que tem orgulho em ser provocador de brigas e vadio. Essa figura do malandro se aproxima de um criminoso, que está à margem da sociedade.
Noel responde à Wilson Batista com a música “Rapaz folgado”[9], dizendo ser malandro palavra derrotista, que tira o valor do sambista. Em outra música diz ser malandro capricho de rapaz solteiro. A disputa entre os dois sambistas atingiu contornos pessoais, porém a primeira questão foi justamente sobre a definição de malandro. Enquanto Wilson Batista via o malandro como uma figura excluída da sociedade, Noel buscava colocar o malandro apenas à margem, associando-o não com a figura do criminoso, mas do sambista. Há uma diferença no que representa cada um dos malandros e como esses atuam frente a sociedade. Em Noel o malandro não é violento, não é um revolucionário, um guerreiro, que pega em armas para defender seu estilo de vida e sua honra. O malandro de Noel utiliza como suas únicas armas: a caneta e o violão, para tocar seus sambas.
Porém, em Noel o malandro e o sambista se assemelham, pois eles vivem a margem da sociedade. O sambista em “Filosofia”[10] não tem lugar certo na sociedade, não tem um emprego estável que lhe garanta um futuro, para garantir o que beber e o que comer. Seu status na sociedade também não é um dos melhores, uma vez que o mundo lhe condena e a sociedade é sua inimiga. Porém, o sambista sabe que vive por suas regras e somente será escravo do seu samba, diferente do aristocrata que tem de ser escravo da elite que cultiva a hipocrisia, para seguir as palavras de Noel.
A autonomia é fundamental também para caracterizar a figura do malandro e isso resulta na sua não submissão às normas, em especial as normas jurídicas estatais. A figura do sambista independente sofre reviravoltas quanto o samba se torna um produto cultural passível de ser comercializado e reproduzido para as grandes massas. O samba passa de jogo à mercadoria. A autonomia do sambista é perdida com sua inserção no sistema capitalista, que o torna mais um trabalhador[11]. O malandro também perde a autonomia quando não tem saída frente ao Direito Estatal.
1.2. O malandro de Chico Buarque
Chico Buarque em sua obra “Ópera do Malandro” homenageia essa figura brasileira. Em uma das músicas se pergunta se ainda existe a figura do malandro na sociedade brasileira. Isso porque o sentido da palavra malandro aparece modificado, com um tom pejorativo. O malandro tradicional aparece como aquele que porta navalha, vive do samba e mora no morro. Chico Buarque fala de um malandro que é especialmente o sambista. Sua “Homenagem ao malandro”[12] se refere ao malandro de Noel Rosa, ou seja, o sambista. Em oposição a esse malandro tradicional está o malandro profissional, ligado a figura de políticos, funcionários públicos, pessoas de alto prestígio social e dinheiro.
O que diferencia o malandro tradicional do malandro profissional, não é apenas uma mudança de perfil dos malandros, mas uma questão de mudança dos tempos. O malandro tradicional não se acha mais. O que se encontra é um malandro que trabalha regularmente, que aposentou a navalha, tem família e responsabilidades. A viagem em busca do malandro foi perdida, pois o malandro de hoje é um trabalhador, que está inserido no sistema capitalista. Ele estabelece contratos (de trabalho, de transporte, de casamento), mas não tem como característica principal ser proprietário.
O “malandro pra valer” aparece como uma pessoa que não participava da sociedade e que passa a participar, através do seu trabalho. O novo malandro figura como sujeitos que comentem ilícitos e vivem a margem da ética da sociedade. O malandro de agora é o malandro candidato a malandro federal, o malandro com retrato na coluna social, o malandro com contrato, com gravata e capital. Porém, se o malandro tradicional era visto com olhos condescendentes, o mesmo não ocorre em relação aos novos malandros, que nunca se dão mal.
A “Homenagem ao Malandro” de Chico Buarque faz uma homenagem a alguém que já não existe mais, que é o sambista do morro, que vive do samba. Essa mudança do perfil do malandro tem relação direta com a mudança ocorrida na sociedade desde os tempos de Noel até os tempos de Chico. O sambista não sobrevive apenas de samba, ele tem de trabalhar e logo não pode ter as mesmas características que o malandro de antigamente. Essa mudança também reflete uma alteração do status do samba, que passa de jogo produzido por escravos, para um produto comercial distribuído pela indústria fonográfica. Como produto o samba será vendido. O malandro perde o poder sobre sua criatura, que passa a ser consumida por uma sociedade de massas.
Em outra música “A volta do malandro”[13], Chico Buarque irá falar do malandro como o “barão da ralé”, como aquele que “anda assim de viés”. O malandro não participa da sociedade não absorvendo grande parte dos seus valores e estilo de vida. Isso é dado devido à condição de pobreza do malandro, que por estar a par da sociedade consegue manipular os valores internos, podendo assim mesmo na marginalidade social obter certas vantagens.
O “Malandro 2”[14] de Chico Buarque apresenta um malandro que não consegue se ver fora do sistema capitalista, nem do sistema de repressão. Assim, seu malandro não escapa de um fim trágico, pois não resta a ele alternativa para sobreviver em um mundo que impõe diversas regras de conduta que não podem ser “flexibilizadas”. Seu malandro está descaracterizado, não consegue viver bem a margem da sociedade, mas não consegue se inserir nela. É o trabalhador pobre, é o pobre sem trabalho, é aquele que “tá na greta, na sarjeta do país”.
Chico Buarque não opõe desse modo as figuras do malandro e do trabalhador, mas as intercala. Se é impossível encontrar hoje em dia o malandro como antigamente, a malandragem passa a estar presente em todos. Sobre esse ponto, comenta Izabel Travancas :
“a música de Chico Buarque traz em sua poesia inúmeras representações do malandro e do trabalhador. Não há uma oposição rígida entre os dois tipos. Há alguma coisa de malandro no trabalhador, assim como o malandro pode começar a trabalhar. O malandro do compositor é um personagem sedutor e até simpático. Chico não desvaloriza este tipo social, ao contrário sua música mistura o sonho e a fantasia com a dura realidade da vida”[15].
O malandro não existe mais e o sonho parece ter acabado. O cotidiano se torna sombrio e agora não há muito que fazer se não aceitar a impossibilidade de emancipação. O malandro não pode mais sobreviver sem o trabalho rotinizado e mal pago dos grandes centros urbanos. Isso pode ser visto no “Vai trabalhar vagabundo”[16]. Só o carnaval transforma momentaneamente a ordem estabelecida e se pode ouvir a banda passar e a gente sofrida se esquece da dor. Não há mais malandro, mas o operário que sobe na “Construção”[17] como se fosse máquina e vive sua vida em uma rotina degradante em “Cotidiano”[18], se calando com a boca cheia de feijão, pois tem uma vida para levar.
1.3. O malandro de Bezerra da Silva
A tentativa de definir o que é o verdadeiro malandro gera divertidos sambas na voz de Bezerra da Silva, como o “Malandro é malandro, mané é mané”[19]. O malandro é aquele que sabe o que quer, tem várias mulheres, tem dinheiro no bolso, tem prestígio na sociedade. Malandro é aquele que tem lealdade a seus amigos e à comunidade, mesmo quando vê algo que contrarie a lei, pois ele não é “cagueta”. Prefere os valores e normas locais, do que a lei que vem de fora/oficial. Assim, cria uma outra moral.
Aqui o malandro é um ser marginal à sociedade, mas que conhece seu funcionamento e sabendo de suas regras consegue passar a margem dessas, sem feri-las e sem respeitá-las. No samba “Malandragem dá um tempo”[20] o malandro aparece como aquele que conhece as leis, o aparato jurídico e policial do Estado, e sabe como não cometer ilícitos ou como cometê-los sem ser sancionado. Porém, o malandro sabe que seu comportamento não é o exatamente conforme, e vive se equilibrando para não cometer deslizes.
O malandro de Bezerra da Silva é um morador dos morros, pobre, excluído da sociedade, esquecido pelo Estado. Esse malandro já não é o sambista inocente de Noel Rosa, mas se assemelha ao malandro de Wilson Batista, com lenço no pescoço. O malandro de Bezerra não é uma figura amável, é na verdade um sobrevivente de um mundo que não o inclui. Ele passa a sobreviver por conhecer bem as regras desse mundo e nas suas brechas, fazer sua própria lei. Vivendo na corda bamba, andando no fio da navalha o malandro vai levando a vida. Mas não há garantia que o malandro sempre tudo ocorra bem para seu lado, assim a vigilância nas suas condutas deve ser constante. A letra de “Malandro não vacila”[21] narra esse eterno auto-controle.
O mundo do malandro de Bezerra não é um mundo romântico, se comparado ao de outros sambistas. Bezerra apresenta a figura do malandro ligada ao mundo do tráfico de drogas, às vezes como o consumidor, outras como traficante. Em “Malandragem dá um tempo” Bezerra fala de como se pode viver em um mundo que proíbe as drogas, sem ser pego pela polícia. Para ser malandro é preciso saber se as circunstâncias são boas para se consumir a droga, ou seja, se não há os homens da lei por perto ou mesmo pessoas que poderiam denunciar (os dedos de seta). Em “Malandro Consciente”[22] é o traficante de drogas que se torna o rei do morro. Esse malandro toma conta do morro, cuida da comunidade, dá segurança e não deixa faltar remédio, nem leite para as crianças. Bezerra retrata o papel do traficante que substitui o Estado em muitas funções. Se o Estado não sobe o morro para fazer seu papel assistencial, não consegue impor suas leis no morro.
O malandro de Bezerra é figura bem quista, mesmo não sendo um homem que vive de acordo com a moral dominante e de acordo com as leis estatais. Na música “Malandro Rife”[23], Bezerra fala que o malandro é “um cara bacana, homem de moral e de respeito”. Porém, esse malandro é visto como um justiceiro. Bezerra estabelece uma dicotomia entre morro/favela/malandro e cidade/Estado, como se fossem dois mundos em completa oposição. As leis do Estado, não são as leis da favela. Quem protege a cidade é o Estado, porém quem protege o morro são os malandros. Em “Se liga doutor” [24]fala de racismo e exclusão social, dizendo que a “A lei só é implacável pra nós favelados e protege o golpista”. O que diferencia o ladrão pobre do rico, não é a inocência, mas sim a possibilidade de não ter seus crimes punidos ou não. Assim, ficam livres os “colarinhos brancos” e do “careta que só faz mutreta e só anda de terno”.
Para Bezerra o malandro não é a pessoa ruim socialmente, quem faz esse papel é o “otário” e o “mané”. Em “Direitos do otário”[25], esse é retratado como o delator, “cachorrinho de polícia”. O malandro é que não vive de acordo com as leis do Estado é enaltecido, enquanto o ‘otário” é aquele que vivendo no morro e sob as leis do malandro, denuncia o malandro infrator ao Estado. O “otário” se mostra como um inimigo do malandro e sua postura é uma das piores, pois fere o código de silêncio praticado entre os malandros, para poder sobreviver da malandragem. Em “Malandro é malandro, Mané é Mané”, o desconsiderado também é Mané, que não segue as leis do morro e por isso é o párea dos páreas. Enquanto o malandro é tido como uma figura cheia de esperteza e visto com certa graça perante a sociedade, o “mané” e o “otário” , figuras delatoras, são tidas como um grande mal na cultura brasileira.
1.4. Outros Malandros
Há diversas tentativas de definição em torno do malandro, nenhuma delas é fechada, mas cada uma mostra uma face daquilo que é o malandro. Boemia e recusa ao trabalho são duas características marcantes de todos esses malandros. A relação com as mulheres também não pode ser esquecida, o que marca o malandro como uma espécie de Don Juan nacional. Porém, é a relação do malandro com as normas (sociais e jurídicas), que mais interessa para esse estudo de Direito.
Há algumas músicas da atualidade que tratam da figura do malandro, tentando encontrar o “malandro atual”. O malandro sambista se transforma na atualidade no “rapper”, cantando hip hop e com música críticas e de denúncia. A transformação é retratada em “Malandragem”[26] do Marcelo D2, que mantém a “essência” do malandro tradicional, que segue o “código da rua”, mas que não contraria totalmente a sociedade que vive. Malandro e rapper são figuras marginais e pobres, que denunciam as regras sociais de onde vivem. Porém, o que é esquecido é que o malandro não segue o padrão social na sua vida privada e disso vem sua crítica que não é pública, nem tem uma bandeira.
Esse desajuste social fica evidente na figura do novo malandro de Zeca Baleiro, “O Hacker”[27]. Com amores virtuais, criando vírus e invadindo sites, o hacker se aproxima do malandro na sua face romântica e na marginalidade legal. Vive também a situação de andar no fio da navalha, mas não se “aperta”, afinal ele conhece a sociedade de quem fala. O hacker como o malandro vive buscando lacunas legislativas para poder fazer suas ações.
2. Significações imaginárias do Direito
A teoria do Direito costuma utilizar uma série de explicações para o Direito e seu modo de atuação, elaborando para isso conceitos ligados ao Direito, que podem ser denominados de dogmas jurídicos, ficções jurídicas e que aqui prefere-se tratar por significações do Direito. Entende-se que norma, sanção, liberdade negativa, lacunas, tipificação, ordenamentos jurídicos, representação, responsabilidade jurídica, eficácia normativa, validade normativa, negócio jurídico são algumas de muitas significações imaginárias do Direito. O magma formado por essas diversas significações trazem uma identidade a esse Direito que conhecemos hoje no ocidente, que é diferente do que fora o Direito Romano antigo e diferente do que fora os Direitos Brasileiros coloniais. Nesse sentido o Direito será sempre um produto social e histórico. Essa mesma identidade permite falar em Direitos no plural e não somente em um Direito no singular.
São significações do Direito e não apenas instrumentos de compreensão, pois as significações têm uma parte funcional do fazer, que diz respeito à técnica (teukhein), mas outra parte de um dizer social (legein)[28]. Uma significação do Direito pode dizer a que Direito ela pertence, pois a técnica diz o fim daquele Direito, não é ideologicamente neutra e também organizar o Direito e conseqüentemente o mundo. É nesse sentido que essas significações do Direito são parecidas com a significação do malandro, pois elas organizam a sociedade brasileira, produzindo sua identidade.
2.1. Positivação Legal, liberdade negativa e as lacunas
A positivação legal se inicia no fim do século XIX e tem como seu ponto auge o século XX. As normas passam a fazer parte de um Direito que se encontra sistematizado e que tem como guardião o Estado. Há um movimento de abstração e universalização das normas jurídicas, passando essas a valer para mais pessoas e em diversos lugares ao mesmo tempo. O direito passa a regrar grande parte da vida das pessoas, em suas diferentes atividades públicas e privadas, e o espaço do não legislado passa a ser cada vez menor.
Ocorre uma redução naquilo que os juristas chamam de “mínimo de liberdade”, que é o espaço das condutas humanas que não são regradas de maneira positiva, nem negativa, ou seja, sob essa conduta não há uma sanção, nem a prescrição de uma conduta oposta. Esse mínimo de liberdade se liga àquelas condutas que o Estado não regra, porque não as considera fundamentais. No entender de Kelsen o mínimo de liberdade sempre existirá em um ordenamento jurídico:
“A ordem jurídica pode limitar mais ou menos a liberdade do indivíduo enquanto lhe dirige prescrições mais ou menos numerosas. Fica sempre garantido, porém, um mínimo de liberdade, isto é, de ausência de vinculação jurídica, uma esfera de existência humana na qual não penetra qualquer comando ou proibição”[29].
Diminui-se o âmbito da liberdade, pois aumenta o número de condutas regradas pela legislação. O Direito começa a cuidar de quase tudo, regulamentando a vida privada e a vida pública, a organização do Estado, a saúde pública, a proteção da fauna e flora, a educação, a família, o comércio, os crimes, etc. Tudo passa a ser objeto de regulamentação. Restam cada vez menos condutas não reguladas pelo direito, diminuindo com isso a liberdade negativa.
As leis também passam a ter uma duração mais curta, e necessitam ser revogadas. Como grande parte das condutas passa a ser regrada, quando essas se alteram ou o Estado busca alteração nas condutas, é necessário alterar as leis. Trocam-se leis velhas por novas, extinguindo as velhas para que não haja conflito de leis no tempo. A avalanche legislativa se multiplica no tempo e no conteúdo.
Para que essa postura do Direito de regulação da vida social em quase todos os âmbitos fosse efetivada, foi necessário criar algumas presunções jurídicas. Assim, surge a necessidade de uma regra que feche o sistema das regras jurídicas, impedindo que não haja julgamento (por parte do juiz) e impedindo que se alegue o desconhecimento das leis. Tratam-se as duas de presunções que ajudam a fechar o sistema jurídico, pois asseguram que o conteúdo das normas seja exigido e que a pessoa uma vez processada terá necessariamente seu julgamento.
Porém, não deixam de ser presunção, pois o conhecimento de uma legislação que se agiganta todo dia não é possível a não ser por um especialista e mesmo este tem dificuldades em tal tarefa. O juiz deve julgar, mas não se assegura que exista sempre uma norma que se sirva para cada situação. Assim, as lacunas existem no ordenamento jurídico, pois são esferas de não regramento, porém para aqueles que lidam com a lei as lacunas não existem, para que possa ter fechamento do sistema.
O círculo de condutas regradas se fecha e é difícil pensar em lacunas. A malandragem e a vadiagem não podem ser sinônimos em uma sociedade que está pautada no trabalho. Mesmo o malandro, sambista ou fora da lei, tem de trabalhar. Para se inserir no mundo do trabalho, o malandro tem de aceitar muitas das regras sociais e jurídicas. O preço para a não aceitação é a marginalidade completa. O sistema capitalista e o novo Direito positivado fecham suas malhas e impedem muitas condutas desviantes. A liberdade negativa se restringe a uma esfera cada vez menor.
Porém, nada é estático e ao mesmo tempo em que o Direito corre atrás para legislar sobre muitas ações, a sociedade se transforma e cria outras novas ações que não estão ainda reguladas. Isso cria um movimento interessante entre sociedade e legislação. Se no século XX a positivação no Brasil foi intensa causando a impossibilidade de atuação do malandro, o século XXI surge outras condutas e agora o malandro toma outro fôlego, como o hacker tratado na música de Zeca Baleiro. O hacker, devido a uma falta de criminalização e regulação do universo virtual, teve durante bons anos no Brasil, possibilidade de cometer diversas condutas que propiciavam vantagens que eram no mínimo imorais.
O direito se mostra dinâmico assimilando as novas condutas humanas e regrando-as. O malandro irá atuar especialmente na falta de regramento para algumas condutas. É na demora do Direito em positivar que o malandro age. O malandro também pode agir quando a lei existe, mas não é exigida pelo Estado e socialmente. É esse malandro que lembra os juristas da diferença entre validade e eficácia da lei.
2.2. A Tipificação, sanção e aplicação
A teoria das normas, que tem por base um direito positivado, entende que para que exista uma norma que possa ser chamada de jurídica é necessário que esta tenha uma sanção, ou que outra norma do sistema jurídico lhe traga uma sanção. Isso leva a seguinte consideração de Kelsen:
“Proposições jurídicas são, por exemplo, as seguintes: Se alguém comete um crime, deve ser-lhe aplicada uma pena; se alguém não paga a sua dívida, deve proceder-se a uma execução forçada do seu patrimônio; se alguém é atacado de doença contagiosa, deve ser internado num estabelecimento adequado. Procurando uma fórmula geral, temos: sob determinados pressupostos, fixados pela ordem jurídica, deve efetivar-se um ato de coerção, pela mesma ordem jurídica estabelecido”[30].
A coerção nesse sentido passa a ser um ato decorrente de um não cumprimento de uma norma jurídica. O Direito pode ser entendido como um sistema de controle de comportamentos via sanção. Porém, de nada vale essa sanção se não for aplicada. Com isso cria-se no sistema jurídico uma presunção de que toda conduta tipificada como crime receberá uma sanção. Esta presunção é importante também, para que se tenha receio de se cometer condutas tipificadas, e com isso haja um maior controle social. Porém, nem todas as condutas tidas como ilícitas recebem a sanção, uma vez que nem todas chegam ao judiciário. Há um longo caminho entre a realização das condutas tidas como ilícitas e o recebimento de algum tipo de pena. Caminho que passa por um aparato fiscalizador, policial, investigativo que nem sempre consegue levar ao judiciário todas as condutas ilícitas reportadas.
Também há aquelas condutas ilícitas que nem chegam ao conhecimento de algum órgão estatal. Muitos dos conflitos e condutas ilícitas não vão ao judiciário, pois são resolvidos pela própria sociedade. Isso aumenta ainda mais quando se trata de uma comunidade relativamente fechada que tenha controle de seus membros. Só se leva ao Estado as condutas ilícitas realmente graves, que podem ameaçar o grupo.
Essa seleção das condutas ilícitas pela própria sociedade decorre da inflação das normas punitivas e reguladoras. Como tudo é regrado qualquer desvio da conduta prevista, pode ser considerado um crime. Existem variações na sanção, porém ela existe de algum modo. Para a sociedade há comportamentos que mesmo não desejados, não causam tanta lesão e não deveriam ser apenados. Há um grande filtro social do que vai “virar crime”. Quanto maior a fiscalização estatal nas condutas dos indivíduos, mais se diminui a possibilidade de se “escapar da lei”.
Uma dentre as muitas estratégias do malandro é cometer a conduta anti-jurídica, seja ela um crime ou contravenção penal, e torcer para que a sanção não lhe seja aplicada. O malandro sabe que nem todas as condutas anti-jurídicas são efetivamente punidas. Grande parte da teoria do Direito atual desconsidera esses aspectos sociais, que fazem com que a sanção nunca chegue. Assim, se afastam do “Direito como se dá na sociedade”, para lidar com um “Direito na teoria”. O que se pretende enfatizar com isso é que o Direito é práxis, é poiesis e não somente se reduz a normatização escrita estatal. O malandro e o criminoso jogam com a sorte e esperam que o dever-ser da norma nunca se materialize em sanção.
2.3. Pluralidade de ordenamentos jurídicos
Há uma grande diferença entre as normas que o direito apresenta, e como essas se verificam na sociedade. O direito geralmente utilizado e estudado formalmente nas escolas é o direito oficial, que é posto pelo Estado e estabelece como a sociedade deve funcionar. Porém, a sociedade não está presa somente ao plano do dever-ser.
O Direito não se limita nem nunca se limitou ao legislado. Essa foi uma das formulações para que houvesse um fortalecimento do Estado, através de uma sistematização jurídica. Isso permitiria que somente houvesse um direito tido como exigível, o direito oficial e estatal. A pluralidade de direitos não foi apagada, porém foi enfraquecida devido ao seu desprestígio frente ao direito oficial.
No Brasil é possível se perceber com clareza que a presunção da teoria hegemônica do Direito de que o Direito estatal é o único direito, é uma evidente presunção. Há outras ordens que competem com o Direito estatal, muitas delas são as vezes mais fortes que as próprias normas jurídicas estatais, conseguindo maior controle social. A pluralidade de fontes de normatização é evidente em um país de proporções continentais e em que o Estado não tem total controle sobre o povo.
A figura do malandro também é interessante para ressaltar essa pluralidade de fontes normativas. O malandro vive sob as normas jurídicas estatais, mas também sob normas sociais de dois tipos: normas da cidade/elite e normas do morro. Esses diferentes ordenamentos impõem normas de conduta e exigem que essas sejam respeitadas. Essas normas sociais formam ordenamentos jurídicos, que funcionam paralelamente ao Direito estatal, e suas normas não são menos importantes, nem suas sanções menos rigorosas.
A versão do direito positivado como direito único gerou uma reação de confrontamento por parte da sociedade, mas também uma reação de negociação. Sabendo como as leis eram produzidas, como eram exigidas e suas presunções, alguns membros da sociedade passam a desmascarar a totalidade normativa do Estado. Assim, sem entrar em choque com as normas, pode-se viver a margem delas, pois há uma sombra do não legislado, do não fiscalizado, do não sabido
2.4. O malandro e as significações do Direito
O malandro é tido como uma figura que consegue sobreviver à margem da sociedade. Na sua definição mais romântica, como a de Noel, ou a mais pesada, como a de Wilson Batista ou de Bezerra da Silva, o malandro não é a pessoa que está inserida na sociedade. Todos esses malandros não estão totalmente inseridos dentro de um sistema capitalista, nem obedecem completamente às leis do Estado.
A transformação da figura do malandro é reflexo de uma transformação social que também gerou uma transformação do Direito. O Direito começa a pautar grande parte das condutas da modernidade. O malandro que podia viver antes a margem da lei, não cumprindo algumas leis, pois sabia que não responderia por sua conduta, seja porque ela estava nas lacunas da lei para a definição de crime, seja porque o aparato policial do Estado não conseguia fiscalizar e levar a julgamento todos os crimes. Esse panorama começa a sofrer transformações e o malandro não consegue mais escapar das leis. A saída para isso ou é a resignação do malandro, vista na figura do malandro de Chico Buarque, ou a passagem do malandro para a marginalidade, como no malandro de Bezerra da Silva.
A sociedade brasileira sofre diversas mudanças desde o início do século XX até a atualidade e o Direito também se transforma. As velhas significações sociais do Direito, não conseguem dar conta de explicar a complexidade dessas transformações e muitas passam a ser menos utilizadas, ou são utilizadas somente para dar respaldo a uma “tradição inventada”. As mudanças por que sofre o malandro são esclarecedoras de mudanças em outras significações sociais, como as do Direito, em que essa mudança não salta aos olhos do estudioso do Direito, por estar habituado ao tradicional.
3. Malandro e o crime
O Direito Penal é tido por muitos como um direito dos pobres, uma vez que é sob a população pobre que as penas mais emblemáticas recaem. Através das penas e em especial das penas que restringiam de algum modo a liberdade, aquele que não possuía bens poderia expurgar um dano social causado ao Estado. O Direito Civil em que vigem relações entre iguais, é possível se restabelecer situações de desequilíbrio através da propriedade/dinheiro. O Direito Penal somente pode manter essa lógica de trocas presente no Direito Civil, se o trabalho passa a ser entendido como uma das esferas mais importantes socialmente. Esse trabalho também deve poder ser quantificado em tempo e dinheiro. Assim, a impossibilidade de usufruir o tempo, passa a ser uma pena a ser temida, pois leva a uma exclusão social.
O malandro pertencendo às camadas pobres da sociedade tinha mais contato com a área do Direito Penal, pois os outros ramos do Direito não lhe eram muito acessíveis. A proteção do Direito civil como proprietário, contratante, empresário e testador, não lhe servia muito. A família também poderia ter uma estrutura e funcionamento diferente da família tida como oficial e somente esta última recebia proteção legal. A esfera do trabalho muitas vezes não era regulada através das normas jurídicas, e o Direito do Trabalho dificilmente não lhe cabia.
Nas músicas de Bezerra da Silva o malandro somente toma contato com o Estado através de seus representantes que buscam a manutenção da ordem. O malandro se relaciona com o policial (figura que ele teme), com o delegado e remotamente com o juiz, que tenta convencer. Essa é a proposta da música “Meu bom juiz”[31], em que o narrador faz a defesa do malandro perante a autoridade judiciária.
Historicamente a figura do malandro sempre foi tida como depreciativa no Direito Penal, ao contrário do que ocorria nos morros e de certa forma na sociedade brasileira em geral. O malandro era comparado ao vadio e a ele não eram assegurados os mesmos direitos que o cidadão/proprietário. Muitos degredados portugueses que vieram para o Brasil, em sua formação, foram considerados e apenados por serem vadios.
Ainda hoje a vadiagem é prevista com sanção pela Lei de Contravenção Penal (Dec-Lei 3688/41) e o Código Penal entende que é possível prisão preventiva, com pena de detenção ao vadio (art. 313, com redação da Lei 6416, Código Penal). Na Lei de Contravenção Penal o vadio é definido como aquele que não tem renda para sobrevivência, que tem condições para o trabalho, mas que não trabalha.
O movimento entre a figura do vadio e do malandro é duplo. A sociedade irá considerar os hábitos de vida de uma pessoa e suas condutas, como significações da malandragem. Ao mesmo tempo o Estado, não podendo permitir que suas regras não sejam cumpridas, propiciando a manutenção da ordem capitalista e respeito à figura do Estado, não entende que a pessoa é um malandro, mas sim vadio ou mesmo criminoso.
Dentro da esfera penal também é conhecida a figura do malandro como a do “171”, que se refere ao artigo do Código Penal que trata do estelionato. O número passou a designar o estelionatário e de certa forma também se referir ao malandro. O estelionatário é aquele que: obtém “para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”. Essa definição legal de estelionatário pode estar ligada a uma representação do malandro. Esse malandro não seria propriamente o sambista de Noel, nem o de Bezerra da Silva, que está mais ligado ao crime violento.
O malandro estelionatário seria a personificação da esperteza, que se utiliza de mecanismos para ganhar dinheiro sem precisar trabalhar, muitas vezes causando prejuízo a outros. Esse é o malandro que é muitas vezes visto com condescendência pela sociedade brasileira. O malandro estelionatário que não causa grandes problemas sociais e que sua conduta acarreta prejuízo de pouco valor, muitas vezes não é visto como um mau elemento social, mesmo que sua conduta seja criminosa.
No Brasil há momentos em que o malandro será legitimado, outros em que se busca uma transformação e eliminação dessa figura do imaginário popular. Porém, o malandro vem sobrevivendo, como ideal de resistência às regras impostas de fora. O Direito estatal não poderá nunca respaldar essa figura, uma vez que o malandro coloca em xeque diversas presunções jurídicas e tenta viver a margem de uma sociedade capitalista. Nessa ótica o malandro, nunca será malandro, mas sempre criminoso. A sociedade brasileira atual se não dá respaldo total ao malandro, dá respaldo à malandragem e ao “jeitinho”, que se tornaram práticas sociais instituídas.
4. Malandro, a vantagem e as leis
A vantagem que o malandro obtém não é socialmente recriminada. Isso porque na sociedade brasileira não é má vista uma pessoa que tem vantagens e consegue dinheiro sem trabalhar. Ter vantagem em algo, mesmo que inconsciente, faz parte do imaginário brasileiro de ter uma boa vida. A vantagem do malandro pode ser ilícita, como é o caso do malandro estelionatário, mas também pode ser lícita, ofendendo a moral. Talvez o que diferencie o malandro do verdadeiro estelionatário, está no fato do malandro não visar exatamente o produto da vantagem, mas sim em obter alguma vantagem. Para o malandro não é o valor da vantagem que o leva a cometer o estelionato, mas o que foca é a própria conduta. Nesse sentido pode-se citar uma propaganda de cigarros feita por um jogador brasileiro, que tinha como slogan “Porque agente tem que levar vantagem em tudo”. De tão emblemática essa questão da vantagem, essa slogan foi incorporado ao imaginário e ficou conhecido como “lei de Gerson”, em referência ao nome do jogador que fazia o anúncio.
A própria vantagem dentro do Direito aplicado no Brasil foi mantida durante muitos anos. No Brasil colônia a vantagem ou privilégio não era tido como um problema, mas sim como uma regalia que algumas pessoas podiam usufruir. Um Direito aplicado igualmente a todos não era o que se esperava que acontecesse. Ter ou conseguir privilégios na aplicação da lei era um fator importante. Tirar essa possibilidade significava igualar todas as pessoas. Privilégios significam que há pessoas mais importantes do que as outras e devem ser tratadas de modo diferente[32]. Isso é próprio de sociedades em que sobrevive uma estrutura de privilégios quase feudais.
O direito colonial brasileiro vai além da vantagem ao estabelecer dois tipos de direitos: um para a grande massa e outro para a elite[33]. O direito europeu é o direito que é mais aplicado à elite, que é quem o Estado português quer controlar. A grande massa acaba criando um direito local, diferente do oficial e ficavam a mercê da elite rural que distribuía alguns “direitos” quando e como queria. O povo não tendo respaldo de um Direito Estatal, somente tem acesso a melhorias de condição de vida através das “vantagens” concedidas pelos senhores. A “vantagem” passa a ser uma espécie de direito que é mediado por uma pessoa privada. Geralmente a questão da vantagem é retratada como uma afronta à legislação estatal, porém a “vantagem” pode indicar a presença de diversos tipos de direito, que não só o direito estatal.
4.1. A vantagem e o “jeitinho”
A questão da vantagem está tão incorporada na sociedade brasileira, que ela não é apenas feita pelo malandro, mas por todos. Por isso, pode-se ir além da figura do malandro e se pensar em malandragem, que significaria que pessoas que não são necessariamente malandras, tenham algumas vezes comportamentos malandros, socialmente e juridicamente não recriminados. Essa malandragem generalizada na sociedade brasileira pode ser vista no famoso “jeitinho”. Damatta entende que o jeitinho é uma relação interpessoal, em que se discute a aplicação das normas. Nas palavras do autor :
“O “jeito” é um modo e um estilo de realizar. Mas que modo é esse? É lógico que ele indica algo importante. É, sobretudo, um modo simpático, desesperado ou humano de relacionar o impessoal com o pessoal; nos casos – ou no caso – de permitir juntar um problema pessoal (atraso, falta de dinheiro, ignorância das leis por falta de divulgação, confusão legal, ambigüidade do texto da lei, má vontade do agente da norma ou do usuário, injustiça da própria lei, feita para uma dada situação, mas aplicada universalmente etc.) com um problema impessoal. Em geral, o jeito é um modo pacífico e até mesmo legítimo de resolver tais problemas, provocando essa junção inteiramente casuística da lei com a pessoa que a está utilizando”[34].
O “jeitinho”, portanto, é uma maneira de se lidar com as regras, sejam elas regras sociais, normas jurídicas ou normas da esfera privada. Ao utilizar-se do expediente do “jeitinho” o objetivo não é a não aplicação da regra, ou em outras palavras, não é um pedido para afastar a norma, mas um pedido para que a norma não seja aplicada no caso específico. A vantagem aqui é dada baseada não no conteúdo do que se pede, ou seja, não é um julgamento de não aplicação porque quem deveria aplicar considera a regra injusta ou sem sentido. Não se aplica a norma tomando como base a pessoa que pede. Assim, uma relação de amizade, hierarquia social ou econômica, coleguismo ou identificação é utilizada para que a norma não seja aplicada.
Damatta identifica no Brasil uma característica peculiar de lidar com a lei, que passa pelas relações sociais. O antropólogo entende que no Brasil as leis são feitas para casos impessoais e para serem aplicadas para um indivíduo, porém quando aplicadas tem que se confrontar com a pessoalidade e com a hierarquia social. Nesse sentido, afirma Damatta:
“Quer dizer, a obediência às leis configura na sociedade brasileira uma situação de pleno anonimato e grande inferioridade. Normalmente é um sinal de ausência de relações e são as relações – repito que permitem revestir uma pessoa de humanidade, resgatando-a de sua condição de universalidade que é dada nos papéis de “cidadão” e de “indivíduo”.”[35]
A rede de relações é tão forte, que deve ser considerada para a aplicação da lei. Nesse sentido é exemplar a famosa frase: “Aos amigos tudo, aos inimigos: os rigores da lei”. O universalismo na aplicação da lei é totalmente ignorado, quando se insere a questão da pessoalidade.
No âmbito do judiciário é plenamente possível que uma norma não seja aplicada a um caso concreto. Essa situação pode ocorrer quando um caso permite que várias normas sejam aplicadas, e para o caso concreto a norma escolhida para aplicação não é a ideal, mas sim uma outra. Porém, nesses casos há a utilização de alguma norma. O “jeitinho”, utilizado pelo malandro em grande escala e pelas pessoas em situações esparsas, leva a não aplicação da regra. Essa instituição brasileira é por isso muito mais utilizada quando não há formalidades que levem o registro da aplicação da regra e no âmbito do Estado, é em geral mais utilizada por funcionários públicos de pequeno escalão. Desse modo, o “jeitinho” se diferencia dos favores políticos e das alianças econômico-políticas, devido a sua pessoalidade.
Há dois pontos importantes quando se trata dessa relação com a lei, que se por meio do “jeitinho”: a questão da heteronomia e da expressão do Estado como “outro”. O Estado na modernidade é entendido como “outro” e não como sendo a própria sociedade, assim como era Grécia antiga[36]. Aristóteles em sua “Política” não faz a diferenciação entre Estado e sociedade. Entender que o Estado é outro, leva a uma outra preocupação e a um outro cuidado, que não é o mesmo quando se trata do “eu”. Sendo o Estado um “outro” este será desrespeitado. Aqui funciona uma lógica de duplo desrespeito, em que o cidadão se sentindo desrespeitado pelo Estado, o desrespeita também.
Quando se entender o Estado como um “outro” é possível chegar a conclusão que as normas estatais são heterônomas e com isso cria-se um desrespeito a essas normas que não refletem uma esfera de discussão, pois são impostas. A saída para esse impasse é aumentar a esfera de discussão pública e participação política, para se chegar a uma autonomia.
Considerações Finais
A palavra ‘malandro’ somente tem sentido, dentro de uma cultura, que não tem como ideal se seguir todas as leis estatais. A figura do malandro dificilmente existiria em uma sociedade em que privilegia o herói, que dá sua vida pelo país, aquele que segue as normas sociais e jurídicas acima de tudo. O malandro somente pode ser malandro na cultura brasileira. O malandro e suas relações com a sociedade ajuda a entender, como o ideal de Direito estudado nas escolas, está distante do Direito como é praticado e entendido pela sociedade brasileira.
O positivismo jurídico que dá especial relevância às leis estatais ainda é a posição hegemômica nos estudos de Direito. Porém, essa posição não consegue dar conta de explicar a relação do malandro com o Direito na sociedade brasileira, ao: a) desconsiderar a aplicação do Direito e a fiscalização da sanção, b) não conseguir tipificar uma conduta na mesma velocidade que se criam novas condutas, c) fazer o controle da conduta fundamentalmente no Direito, d) entender que o Direito somente está restrito ao Direito estatal positivado.
O malandro não é apenas uma figura que aponta para ligação de uma pessoa com as normas, mas que reflete um modo de lidar com as normas da sociedade brasileira. Enquanto o positivismo jurídico vê na não observância à norma, um fator que gera a imputação de uma sanção; a sociedade brasileira negocia o tempo inteiro com as normas, e não vê nisso uma conduta ilícita. Cabe ao Estado entender essa conduta como ilícita, considerando o Direito como norma, para fins de controle social. Porém, não pode o estudioso do Direito, entender que o Direito apenas se limita ao normado pelo Estado. Para tentar ultrapassar a posição hegemônica do positivismo jurídico, o Direito foi definido como uma instituição imaginária da sociedade. Essa definição é uma tentativa de entender como o direito significa e é significado da sociedade.
Pós Doutora em Direito pela FD-USP Doutora e Mestre em Direito pela PUC-SP bacharel em História Direito e Filosofia
http://lattes.cnpq.br/7694043009061056
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