Resumo: O presente trabalho parte do pressuposto que o Brasil está inserido em um Estado Constitucional, portanto, tem a Carta Maior, papel dirigente na demanda e na atividade pública. Em seguida, investiga em qual modelo de Estado o contexto brasileiro pertence ou mais se aproxima, para que sirva como parâmetro de interpretação da norma constitucional. Feito isto, considerado o Estado Social o modelo mais adequado, tem por objetivo analisar quais os fins que esse tipo persegue. Assim, é apresentada a conceituação de políticas públicas e sua adequação constitucional. É identificado no princípio da dignidade da pessoa humana o maior dentre todos os que norteiam as políticas públicas, vinculando toda atividade estatal ao cumprimento deste. Com isso, pode-se analisar a discricionariedade administrativa. Buscou-se a releitura deste conceito a partir da melhor doutrina e verificou-se a presença dessa nova orientação na jurisprudência. Por fim, o trabalho apresentou uma justificativa sobre a judicialização das políticas públicas como demanda social e por que caberia ao Poder Judiciário exercer esse papel. As conclusões são no sentido de reafirmar a nova interpretação do princípio da discricionariedade, onde há a liberdade do agente público limitada pela própria constituição e seus princípios.
Palavras-chave: Políticas Públicas. Princípio da dignidade da pessoa humana. Discricionariedade. Controle jurisdicional.
Abstract: The present paper is based on the assumption that Brazil is inserted in a Constitutional State, therefore, it has a Major Charter, a leading document in the demand and in the public activity. Then, it investigates in which state model the Brazilian context belongs to or is closer to, so it will serve as a parameter of interpretation of the constitutional norm. Having done this, considering the Social State that is most suitable model, it has as objective to analyze what the purpose this type persecutes. Thus, it is presented the conceptualization of public policies and their constitutional adequacy. It is identified the principle of the dignity of the human person as the greatest among all those who guide public policies, linking all state activity to its fulfillment. By this, it is possible to analyze the administrative discretion. It was sought to review this concept from the best doctrine and it was verified the presence of this new orientation in the jurisprudence. Finally, the paper presented a justification about the judicialization of public policies as social demand and why it would be for the Judiciary to act in this role. The conclusions are to reaffirm the new interpretation of the principle of discretion, where there is the freedom of the public agent limited by the constitution itself and its principles.
Keywords: Public Policies. Principle of the dignity of the human person. Discretionary. Jurisdictional control.
Sumário: 1. Introdução. 2. Do Estado Constitucional. 2.1. Evolução dos modelos de Estado. 2.2. Estado Contemporâneo. 3. Dos fins do Estado e das políticas públicas. 3.1. Dos fins do Estado Constitucional: Dignidade da pessoa humana. 3.2. Políticas Públicas. 4. Aplicação da discricionariedade em políticas públicas. 4.1. A discricionariedade: fundamentos e limites. 4.2. Controle jurisdicional de políticas públicas. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Apesar de já ter sido muito trabalhado o tema da discricionariedade administrativa no âmbito jurídico, a proposta ora apresentada busca conhecer um pouco da aplicação deste princípio do ponto de vista da evolução do conceito de Estado e qual seria o modelo brasileiro. De modo a superar possíveis transferências de conceitos estrangeiros que não dão conta de atender à realidade histórica atual.
A questão das políticas públicas toma papel mais relevante ante à insipiente atividade Legislativa e Executiva, onde casos de corrupção política e negligência na gestão da coisa pública infringem a vontade constitucional na busca de uma sociedade mais justa e equilibrada.
Desse modo, o Poder Judiciário cada vez mais é acionado pela comunidade brasileira com intuito de fazer valer seus direitos e garantias fundamentais a fim de viver com dignidade. Com isso, surge a dúvida se o judiciário estaria ultrapassando os limites da separação dos poderes e se poderia, à luz da constituição e das normas vigentes, aceitar tal demanda agindo com ingerência naquilo que estaria adstrito à Administração.
2. DO ESTADO CONSTITUCIONAL
2.1. EVOLUÇÃO DOS MODELOS DE ESTADO
No Brasil é comum se afirmar que o país vive num Estado Democrático de Direito. Para chegar nesta premissa a humanidade se debruçou no conceito de Estado, a fim de melhor entender o que vem a ser e quais seriam as finalidades do próprio Estado. Um longo caminho foi percorrido até a consagração desse termo apresentado e definidor do modelo que vige atualmente.
Para além de se delongar na evolução do conceito de Estado, que permeou o pensamento dos filósofos, como, Thomas Hobbes, John Locke ou Jean-Jacques Rousseau, a partir da observação dos modelos que passariam a existir, ainda se percebe a influência da obra de Nicolau Maquiavel, em Il pricipe, por meio do vocábulo italiano “stato” para o que se entende hoje por Estado[1]: “O principado provém do povo ou dos grandes, segundo a oportunidade que tiver uma ou outra dessas partes.”[2]
Para Maquiavel, a política é marcada, não pelo ideal cristão de unidade entre os homens, mas por algo que é próprio do homem: a constante luta pelo poder[3].
“[…] a história é mestra de nossos atos e máximas dos príncipes; e o mundo sempre foi, de certa forma, habitado por homens que sempre têm paixões iguais; e sempre houve quem serve e quem ordena, e quem serve de má vontade e quem serve de boa vontade, e quem se rebela e se rende.”[4]
O foco, da obra de Maquiavel sempre foi o Estado, não aquele imaginário que nunca existiu, mas aquele capaz de impor a ordem.[5]
Nessa senda, o vocábulo Estado, com origem no latim, status, significa constituição ou ordem, “já empregado com o sentido de condição social, desde o século XII”[6]. Simplificadamente, adotar-se-á, a definição de Celso Ribeiro Bastos, para o qual, “Estado é a organização juridicamente soberana de um povo.”[7]
Destarte, a história nos mostra que diante dos abusos dos chefes de Estado contra os cidadãos, surge um sentimento libertário que visa diminuir o poder absolutista instituído pela monarquia. Com base neste sentimento social, aparece no final do século XVIII, o Estado Liberal, embebidos pelas filosofias Iluministas e Liberalistas.[8]
É no Estado Liberal, que a constituição ganha força, pois firma-se no poder supremo da lei e tem na Constituição um limitador do poder político. O Estado Liberal, primeiro tipo de Estado Constitucional[9], também é chamado de Estado Liberal de Direito ou Estado de Direito.[10]
“Em linhas gerais, esse Estado caracteriza-se pela omissão perante os problemas sociais e econômicos, não consagrando direitos sociais e econômicos no seu texto além da regra básica de não-intervenção no domínio econômico. Garantem ainda, as Constituições liberais, os direitos individuais, entendidos estes como direitos que regulam condutas individuais e protegem a esfera de interesses individuais, contra o Estado, sendo o limite desses direitos o direito do outro e os direitos políticos. O conteúdo desses direitos será variável de Estado para Estado, assim como o tratamento que esses receberão será diverso no tempo e no espaço.”[11]
Apesar do Estado Liberal não dar conta do que prometeu, por causa das desigualdades sociais, dos desequilíbrios nas relações econômicas (eliminação da livre concorrência e da livre iniciativa) – valores caros ao pensamento liberal –, alguns avanços foram notáveis[12].
O Estado de Direito [Liberal] promoveu uma mudança significativa nos conceitos de pessoa e de sociedade, pois considerou o homem como a si mesmo na sua individualidade, e não seu valor enquanto partícipe do grupo social. Além disso, colaborou efetivamente para a abolição da escravatura, a humanização do Direito e do processo penal, a supressão de privilégios de nascimento e a liberdade de imprensa.[13]
Diante do descuido da área social, considerando o indivíduo sem sua individualidade, entra em ascensão os modelos de Estado Socialistas, marcados pelo totalitarismo comunista ou de esquerda, que gerou um sistema jurídico com base na exclusividade da lei e da nula autonomia decisória do juiz.[14]
“As Constituições socialistas consagram uma economia socialista, garantindo a propriedade coletiva e estatal e abolindo a propriedade privada dos meios de produção. Há uma clara ênfase aos direitos econômicos e sociais e uma proposital limitação dos direitos individuais, pois o exercício desses direitos no Estado socialista está condicionado à evolução do Estado e da sociedade socialista que devem ser capazes de educar e preparar o cidadão a viver no futuro em uma sociedade completamente livre, onde não haja Estado, poder ou hierarquia: a sociedade comunista.”[15]
Assim sendo, nesse modelo, o Socialista, a primazia era dada aos objetivos de justiça e bem-estar social e econômico, o que levava à burocratização excessiva do poder político e à intromissão na vida íntima dos cidadãos, dada a falta de respeito aos direitos civis e políticos.[16]
Com isso, surge outro movimento totalitário, de matriz de extrema-direita, que ganha espaço em alguns países na Europa, o fascismo. Porém, mais uma vez os valores liberais foram desprezados em face da predominância da “segurança” do Estado. Sendo assim, as atividades administrativas voltadas para a satisfação dos “direitos” individuais não se consolidavam, ofuscadas pelos interesses dos superiores estatais.[17]
Com o fim da Segunda Grande Guerra Mundial, cresce o ideário democrático[18], cujos direitos sociais representavam a dimensão da igualdade e seu modelo normativo de democracia, era fundamentalmente preocupado com a supremacia do interesse público sobre o privado, como o bem-comum e os objetivos da comunidade.[19] Assim, “o Estado Liberal do século XIX transformou-se, pouco a pouco, no Estado Social do século XX”[20].
“O Estado Social, por sua própria natureza, demanda a participação popular, o que significa que o Estado Social é, também, um Estado Democrático, tem, no povo, a origem do poder político e que se funda na legalidade. Ou seja, um Estado Social Democrático.”[21]
2.2. ESTADO CONTEMPORÂNEO
Nesse andar, apesar de o Estado contemporâneo se enquadrar no modelo de Estado Social[22], esse incremento de novos direitos coletivos[23], também do ponto de vista político, acarretou uma crise da representação política e o aumento da corrupção, com a nova distribuição de forças e com o avanço do neoliberalismo – constituindo-se este espaço-tempo em um “olho do furação”, no qual as incertezas são grandes e já se fala em Estado Pós-Social.[24]
Para Liberati[25], o Estado Pós-Social é a necessária nova fase do Estado Social, pois o século XXI trouxe com uma rapidez diferenciada de outros tempos, uma modificação de cultura, de atividades, de práticas sociais e de Estado, ele conclui que:
“Isso faz com que as atividades e serviços administrativos selecionados pelas políticas públicas sejam executados de maneira diversa, pensando mais no coletivo do que no individual. Isso não quer dizer que a satisfação dos direitos subjetivos fundamentais não seja respeitada ou a necessidade individual não seja contemplada; ao contrário, além desses, o Estado preocupa-se com atender aos reclamos da sociedade como um todo.”[26]
Com base no breve histórico acima é importante salientar que na prática, o Brasil nunca chegou a, razoavelmente, implantar o modelo liberal, nem mesmo o modelo social. Nossa conformação histórica decorre da mistura de tradições do ponto de vista normativo, consubstanciada em constituições anteriores, evolução jurisprudencial e legislações infraconstitucionais[27]. Verifica-se com isso, que existe a fusão das tradições jurídicas e de seus consectários modelos de supremacia do direito e do advento do Estado Democrático Constitucional.[28]
3. DOS FINS DO ESTADO E DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
3.1. DOS FINS DO ESTADO CONSTITUCIONAL: DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Forte no princípio de supremacia da Constituição e no rígido modelo de constituição adotado no Brasil, que reforça e até mesmo fundamenta a teoria de Estado Constitucional[29], é que se pode pensar e praticar uma política pública.
Abstrai-se da Carta Magna o princípio da dignidade da pessoa humana, ponto central no estudo do Estado, no sentido de limitação do poder e da medida de poder que um indivíduo possui dentro da pólis. Esse princípio imporá um limite à atuação estatal, conforme as palavras de Immanuel Kant:
“Age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio. No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade.”[30]
Com base neste mesmo pensamento, o Supremo Tribunal Federal tem didaticamente fundamentado as decisões nesse princípio:
“[…] o postulado da dignidade da pessoa humana, […] considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III), significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Constituição Federal (Art. 5º, incisos LIV e LXXVIII). EC 45/2004. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, ns. 5 e 6). Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (Art. 9º, n. 3) Doutrina. Jurisprudência.”[31]
Os direitos fundamentais são o oxigênio das Constituições democráticas, conforme salientou Paulo Bonavides[32], portanto, inexistindo os direitos fundamentais, as Leis Fundamentais não passariam de amontoados de regras econômicas e de estruturação do Estado. Assim sendo, o fim último das preocupações políticas do Estado transmuda-se para a construção não só de uma sociedade superior, mas também, como ensina Jorge Reis Novais[33], de um espectro cada vez mais alargado, que vai, nos dias de hoje, desde o programa de realização de uma sociedade mais justa, passando pelos valores da solidariedade cristã, até o simples pragmatismo de uma racionalidade econômico-utilitarista.[34]
Neste norte, estão consagrados expressamente direitos fundamentais e sociais dos artigos 5º ao 7º da Constituição brasileira, bem como os advindos de Tratados Internacionais, os quais devem dirigir as políticas públicas instituídas no território nacional. Dada a importância e distinção desse princípio, Almeida Junior afirma:
“A dignidade da pessoa humana constitui elemento basilar de qualquer instrumento jurídico democrático, fundindo-se com os próprios conceitos de liberdade e igualdade que embasaram o surgimento dos direitos fundamentais. Sem a garantia e a implementação da dignidade humana, não há que se falar em liberdade e igualdade. […] este dispositivo revela claramente que o Constituinte Originário colocou o Ser Humano como objetivo central de todo o sistema, de forma que ele esteja totalmente voltado para a sua efetivação. […] É justamente inserida nessa dimensão positiva do princípio da dignidade da pessoa humana que se encontra a noção do mínimo existencial a ser resguardado pelos direitos sociais de prestação.”[35]
Desse modo, ao Estado impõe-se um dever de proteção geral, que resulta do conteúdo jurídico-objetivo positivo dos direitos fundamentais.[36] Por sua vez, quem está na posição de implementação desses direitos são os governantes, ou no sentido geral, o Poder Público, que para tanto vale-se de atores, pessoas, organizações e instituições encarregadas de prover às pessoas direitos previstos no texto constitucional.[37]
Em síntese, a Carta Maior de caráter normativo conduz ao entendimento do qual os direitos fundamentais devem ser observados como parâmetro por todo o ordenamento jurídico, e em toda a tarefa de interpretação da lei (dimensão objetiva). Além disso, garante os direitos subjetivos aos seus titulares (dimensão subjetiva).[38]
3.2. POLÍTICAS PÚBLICAS
Importante observar como o termo “políticas públicas” pode ser definido, em conformidade com o espírito da Lei Maior, em termos de previsão e implementação. Segundo assevera Liberati, “há, de certa forma, na doutrina, uma convergência fundamental sobre a definição de políticas públicas, quando decisões emanam de autoridades governativas, em sentido lato.”[39]
Para Oswaldo Canela Junior, “políticas públicas, no Brasil, são todas aquelas atividades desenvolvidas pelas formas de expressão do poder estatal tendentes à realização dos objetivos insculpidos no art. 3° da Constituição Federal.”[40]. Já para Maria Paula Dallari Bucci, problematizando a questão da transferência dessa locução do âmbito sociológico para o jurídico, explica:
“Outro elemento a causar perplexidade no conceito de política pública, formulado no âmbito da sociologia política e de difícil transposição para o direito, são as omissões, que também podem integrar a política pública. Seja omissão do governo intencional, seja resultado de impasse político ou consequência da não execução das decisões tomadas, ainda assim a atitude do governo e da Administração, num quadro conjuntural definido, pode constituir uma política pública. […]
Como categoria analítica, as políticas públicas envolveriam sempre uma conotação valorativa; de um lado, do ponto de vista de quem quer demonstrar a racionalidade da ação governamental, apontado os vetores que a orientam; do outro lado, da perspectiva de seus opositores, cujo questionamento estará voltado à coerência ou à eficiência da ação governamental.”
“Essa dimensão axiológica das políticas públicas aparece nos fins da ação governamental, os quais se detalham e concretizam em metas e objetivos.”[41]
Em outra obra, a mesma autora, simplifica a conceituação:
“Política pública é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Como tipo ideal, a política pública deve visar a realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera o atingimento dos resultados.”[42]
Nesse rumo, já se pode inferir que as políticas públicas devem ter uma consonância com a previsão constitucional e com os mecanismos de poder, tanto político quanto jurídico, para uma melhor implementação das mesmas. E sobretudo, o povo, alvo da satisfação estatal, no modelo da atual previsão constitucional (art. 3º, CF/88[43]), deverá atentar se as previsões legais estão sendo aplicadas pelos gestores públicos de modo eficaz.
De forma também abrangente, Laura Tavares Soares, leciona que por políticas públicas:
“[…] entende-se um conjunto de princípios, diretrizes, objetivos e normas, de caráter permanente e universal, que orientam a atuação do poder público em uma determinada área. A universalidade é compreendida enquanto garantidora de acesso a todos, porém, sem desconsiderar a diversidade e a heterogeneidade da população e suas regiões.”[44]
Com isso, política pública não é lei, nem se confunde com ela, mas convivem e se completam. A ideia de política está mais próxima de atividade (meio), de modo que, quando confrontados com a legalidade – os atos, decisões ou normas que a compõem, tomados isoladamente, que são de natureza heterogênea – submetem-se a um regime jurídico que lhe é próprio. Assim, o juízo de validade de uma política não se confunde, nunca, com o juízo de validade das normas e dos atos que a compõem.[45]
O catálogo de possíveis políticas públicas a serem implementadas estão disponíveis, expressamente ou não, na Constituição e nas leis infraconstitucionais. Oferece, assim, garantia e segurança jurídica à população.[46] Bem como, servirá de fundamentação para reivindicações contra a negligência do poder público.
4. DA DISCRICIONARIEDADE EM POLÍTICAS PÚBLICAS
4.1. A DISCRICIONARIEDADE: FUNDAMENTOS E LIMITES
Percorrido o caminho para o entendimento do tema de políticas públicas, faz-se necessário o enfrentamento da discussão sobre a discricionariedade administrativa a apreciação dela pelo Poder Judiciário.
Como base para o entendimento da discricionariedade, cabe citar a exímia definição de Celso Antônio Bandeira de Mello:
“Discricionariedade, portanto, é a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto a fim de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca para a situação vertente.”[47]
A partir daí, inicia-se uma nova interpretação[48] no que consiste a verdadeira discricionariedade administrativa no contexto do ordenamento pátrio, considerado o aspecto histórico do próprio Estado, sobretudo na conformação constitucional.
Nesse sentido, Juliana Maia Daniel, vai resumir da seguinte forma: o surgimento do Estado Democrático de Direito trouxe consigo a confluência da concepção política de origem “Roussoniana”, que consiste na máxima de que “todo poder emana do povo” e de origem em Montesquieu, com a tripartição do exercício de poder.[49] “Nesse sentido, as atividades estatais – notadamente as administrativas – nada mais são que o cumprimento dessa vontade geral fixada no texto constitucional e, claro, na lei.”[50]
Em consonância ao que aqui já foi afirmado, a Carta Política de 1988, é um instrumento dirigente que vai apontar os fins que uma política deve alcançar. Os valores que os poderes devem perseguir deverão ser os mesmos estabelecidos na constituição, daí por que se diz que não há liberdade, propriamente dita, de atuação diante na discricionariedade, ela estará sempre vinculada em algum grau à intenção discriminada na legislação.[51]
Sobre a influência da constitucionalização do direito administrativo, Di Pietro, diz:
“Todos esses valores são dirigidos ao legislador, ao magistrado e ao administrador público. A lei que os contrarie será inconstitucional. Eles atuam como limites à discricionariedade administrativa, os quais, se ultrapassados, configuram ato ilícito da Administração, passível de revisão pelo Poder Judiciário.”[52]
Diante disso, Lívia Lage conclui que a discricionariedade também não se trata de uma escolha de agir ou não agir, quando a Constituição determina a atuação positiva do Estado, este não pode se eximir; tão pouco, alegar que a lei não disciplina tal norma programática – “a discricionariedade administrativa jamais poderá se converter em inércia do Estado. Assim sendo, a elaboração de uma lei vincula-se ao Executivo e ao Legislativo, os quais deverão tomá-la como meta, até sua plena concreção. ”[53]
Portanto, os direitos fundamentais constituem verdadeiros parâmetros no controle de discricionariedade.[54] Daí a afirmação de Liberati, ao elencar a dignidade da pessoa humana como princípio maior a ser observado na implementação das políticas públicas:
“Assim, o Estado não pode praticar atos (administrativos) e realizar serviços públicos que não estejam direcionados à completa satisfação do homem. Em outros modos, o Estado se posiciona vinculadamente à obrigação de cumprimento das normas constitucionais que consagram a primazia do respeito ao homem. O Estado não tem discricionariedade social em relação à proteção de todos os direitos do homem, de tudo aquilo que, genericamente, se costuma dizer da dignidade da pessoa humana. Como os direitos fundamentais gozam de um núcleo indisponível, o Estado sofre limitação pela regra constitucional da dignidade humana.”[55]
4.2. CONTROLE JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS
O Estado brasileiro possui matriz social, cuja base está na Constituição.[56] Sendo assim, para que o poder público exerça a atividade política na sociedade, valer-se-á de políticas públicas para atingir um determinado fim, conforme já trabalhado na conceituação deste instituto.
Nesse norte, poderá o poder judiciário analisar os casos em que a finalidade constitucional não é cumprida ou a estreita liberdade que o administrador tem nas escolhas das políticas públicas não são compatíveis com a necessidade/realidade no lugar em que são propostas/aplicadas? Em resumo, para evitar tautologia, o artigo 5º, XXXV, da Constituição legitima a intervenção judicial, porquanto estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Resta fácil, de um lado, a identificação do desrespeito à norma do Carta Magna ou de uma lei, caso em que, o magistrado é capaz de perceber tal infringência.
De outra banda, o complicador se estabelece quando, dentro da discricionariedade administrativa, o agente deixa de cumprir o dever prescrito na norma, geralmente de caráter programático.[57] Ao se omitir ou ao fazer más escolhas.
É cediço que, “a implementação ou execução de políticas públicas derivam de escolhas, pois envolvem conflitos entre as camadas sociais que têm interesses diferentes. Essas escolhas, por sua vez, dependem dos recursos disponíveis que privilegiarão uns em detrimento de outros direitos. ”[58]
Por se tratar de escolha, o conteúdo ético dessas decisões políticas, podem ser calamitosas, por isso, Juliana Maia Daniel, alerta que se o agente estatal, no momento de decisão, realizar uma escolha que não se coaduna com os princípios constitucionais, essa conduta será arbitrária, em vez de discricionária.[59]
Como visto, o novo sentido de discricionariedade não dá liberdade indiscriminada para o agente público agir, logo, a apreciação de seus atos pelo Poder Judiciário se perfaz, sem violar o princípio da separação dos poderes. Nesse senso:
“[…] o moderno estágio de evolução da doutrina, todo poder é uno no Estado e emana do povo, sendo apenas distribuídas as funções típicas e atípicas exercidas em um quadro de normalidade institucional. A doutrina da separação rígida tornou-se, nessa perspectiva, um dos ‘pontos mortos do pensamento político, incompatível com as formas mais adiantadas do processo democrático contemporâneo’.”[60]
Sobre esse assunto já houve mudança de entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que em decisão em 2003, se manifestou assim:
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PODER DISCRICIONÁRIO. ADMINISTRAÇÃO. Trata-se de ação civil pública em que o Ministério Público pleiteia que a municipalidade destine um imóvel para instalação de abrigo e elaboração de programas de proteção à criança e aos adolescentes carentes, que restou negada nas instâncias ordinárias. A Turma negou provimento ao recurso do MP, com fulcro no princípio da discricionariedade, pois a municipalidade tem liberdade de escolher onde devem ser aplicadas as verbas orçamentárias e o que deve ter prioridade, não cabendo, assim, ao Poder Judiciário intervir. Precedentes citados: REsp 169.876-SP, DJ 21/9/1998, e Ag no REsp 252.083-RJ, DJ 26/3/2001. REsp 208.893-PR, Rel. Min. Franciulli Netto, julgado em 19/12/2003.”
A partir desse entendimento, a Administração se garantia na inércia do Poder Judiciário, com condutas questionáveis pela sociedade. Era uma espécie de salvo-conduto[61], no dizer de Antônio Herman, pois também compreende que a discricionariedade não é ilimitada. Decorre daí um dever do judiciário em analisar a matéria quando questionado.
Hodiernamente, o posicionamento do judiciário ante a provocação processual em matéria de discricionariedade administrativa no tocante às políticas públicas mudou consideravelmente, veja-se a seguinte decisão de 2010, pelo Supremo Tribunal Federal:
“EMENTA: CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DE ABUSO E/OU EXPLORAÇÃO SEXUAL. DEVER DE PROTEÇÃO INTEGRAL À INFÂNCIA E À JUVENTUDE. OBRIGAÇÃO CONSTITUCIONAL QUE SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO. PROGRAMA SENTINELA–PROJETO ACORDE. INEXECUÇÃO, PELO MUNICÍPIO DE FLORIANÓPOLIS/SC, DE REFERIDO PROGRAMA DE AÇÃO SOCIAL CUJO ADIMPLEMENTO TRADUZ EXIGÊNCIA DE ORDEM CONSTITUCIONAL. Configuração, no caso, de típica hipótese de omissão inconstitucional imputável ao município. Desrespeito à Constituição provocado por inércia estatal (RTJ 183/818-819). COMPORTAMENTO que transgride a autoridade da lei fundamental (RTJ 185/794-796). Impossibilidade de invocação, pelo Poder Público, da cláusula da reserva do possível sempre que puder resultar, de sua aplicação, comprometimento do núcleo básico que qualifica o mínimo existencial (RTJ 200/191- -197). Caráter cogente e vinculante das normas constitucionais, inclusive daquelas de conteúdo programático, que veiculam diretrizes de políticas públicas. Plena legitimidade jurídica do controle das omissões estatais pelo poder judiciário. A colmatação de omissões inconstitucionais como necessidade institucional fundada em comportamento afirmativo dos juízes e tribunais e de que resulta uma positiva criação jurisprudencial do direito. Precedentes do Supremo Tribunal Federal em tema de implementação de políticas públicas delineadas na constituição da república (RTJ 174/687 – RTJ 175/1212-1213 – RTJ 199/1219 -1220). Recurso extraordinário do Ministério Público estadual conhecido e provido. (RE 482611, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, julgado em 23/03/2010, publicado em DJe-060 DIVULG 06/04/2010 PUBLIC 07/04/2010)”
Neste sentido, outros princípios servem de parâmetro para a limitação do controle jurisdicional das atividades administrativas, como ensina Ada Pellegrini Grinover:
“Há um pressuposto e limites postos à intervenção do Judiciário em políticas públicas. O pressuposto, que autoriza a imediata judicialização do direito, mesmo na ausência de lei ou de atuação administrativa, é a restrição à garantia do mínimo existêncial. Constituem limites à intervenção: a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e a irrazoabilidade da escolha da lei ou do agente público; a reserva do possível, entendida tanto em sentido orçamentário-financeiro como em tempo necessário para o planejamento da nova política pública.”[62]
Num contexto da atual política brasileira, não deveria ser outro o caminho doutrinário e jurisprudencial que o ordenamento pátrio tomasse, considerando o fato de que “as chamadas ‘forças políticas’, que deveriam ser representativas do povo, muitas vezes acoitam as decisões governamentais em troca de subsídios para suas bases eleitorais, pela ascensão a cargos públicos de relevo, pela injeção de recursos financeiros em campanhas eleitorais; enfim, pela troca de alguma benesse. ”[63]
CONCLUSÃO
Diante de todo o exposto, pode-se concluir o seguinte:
1 – O modelo de Estado que mais predomina no contexto brasileiro é o Estado Social, apesar dos pontos de contato com o Estado Liberal, o que leva a alguns a crerem que o modelo que impera atualmente seja o Estado Pós-Social, corrente esta que este trabalho não se filiou. Permanece a ideia social emanada do Texto Constitucional que dirige todos os atos da vida pública.
2 – A Constituição estabelece as prioridades que o Brasil deve observar no curso da administração do Estado, tal como o preconizado no artigo 3º, sendo o princípio da dignidade da pessoa humana o princípio balizador de todos os demais. Pois na persecução deste, o ideal de liberdade e igualdade viriam em decorrência lógica.
3 – Diante dessa convicção, tendo a Poder Público de atuar por meio de políticas públicas, logo, as ações estatais têm o dever de se alinharem a este fim maior, sob pena de infringirem a norma constitucional.
4 – A atuação do Poder Público, por meio de políticas públicas, não se realiza somente diante das normas vinculadas. Há normas de caráter discricionário, porém, a discricionariedade não é ilimitada, nem dá carta branca ao agente de atuar segundo a livre convicção que possua. Deve haver, mesmo na discricionariedade, a vinculação ao interesse público esposado no ordenamento pátrio, guiado pelo princípio da dignidade da pessoa humana, traduzidos nos direitos fundamentais.
5 – Sob essa perspectiva, de discricionariedade, não há falar na não apreciação do Poder Judiciário de matéria que são de livre escolha da administração. Posto que, deve-se preservar os direitos e garantias já conquistados, e cabe ao judiciário verificar se o agente público, por meio das políticas públicas, atingiu um fim social em consonância com o interesse público, à luz dos direitos fundamentais. Sem com isso ferir a separação dos poderes.
Advogada. Especializanda em Direito Público pela Faculdade IDC de Porto Alegre 2017. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande FURG 2013
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