O princípio da proporcionalidade no Direito Penal

Resumo: O presente trabalho discorrerá sobre a importância do princípio da proporcionalidade no âmbito do Direito Penal. Adotando-se como marco teórico a obra Teoria de los Derechos Fundamentales, de Robert Alexy, discorrer-se-á, primeiramente, à respeito dos princípios, bem como sua normatividade. Em seguida, discorrer-se-á a respeito do princípio da proporcionalidade, abordando seus subprincípios, a saber: necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito. Brevemente, será lançada uma discussão à respeito da distinção entre proporcionalidade e razoabilidade. Por fim, será abordada a incidência do princípio da proporcionalidade no direito penal, e a importância deste princípio para a compreensão das penas privativas de liberdade.[1]


Palavras-chave: Princípio. Proporcionalidade. Razoabilidade. Direito penal. Pena privativa de liberdade.


Sumário: Introdução. 1 O princípio da proporcionalidade. 1.1 Noções preliminares. 1.2 O princípio da proporcionalidade. 1.3 Proporcionalidade versus razoabilidade. 2 A tríplice dimensão do princípio da proporcionalidade: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. 3 A proporcionalidade no Direito Penal. 4 A importância do princípio da proporcionalidade para a compreensão da pena privativa de liberdade. Conclusão. Referências Bibliográficas.


INTRODUÇÃO


É incontestável que o princípio da proporcionalidade é considerado hoje um dos princípios mais importantes de todo o direito, e, em particular, do direito penal.


O princípio da proporcionalidade integra uma exigência ínsita ao Estado Democrático de Direito enquanto tal, que impõe a proteção do indivíduo contra intervenções estatais desnecessárias ou excessivas, que causem aos cidadãos danos mais graves que o indispensável para a proteção dos interesses públicos.


Para entender o campo em que atua o princípio da proporcionalidade, deve-se partir do pressuposto de que os direitos fundamentais se tornariam meras afirmações programáticas caso não fosse possível a jurisdição constitucional, com seu poder de controlar a constitucionalidade das leis.


O papel a ser desenvolvido pelo princípio da proporcionalidade na esfera penal é de suma importância, vez que ele é imanente à essência dos direitos fundamentais, que, enquanto expressão da pretensão à liberdade do cidadão perante o Estado, podem ser limitados somente na medida em que sejam comprovadamente indispensáveis à defesa dos interesses públicos.


E esta é a grande questão dos dias atuais: encontrar o verdadeiro limite de restrição de direitos, sem impor ao indivíduo uma restrição desproporcional a um direito fundamental.


Nesse sentido, pode-se afirmar que, no âmbito do direito penal, o princípio da proporcionalidade implica que este não deve ser utilizado como mero instrumento de poder. Há de estar sempre a serviço dos valores comunitários e individuais. Significa, ainda, que deve ser guardada, em todo e qualquer caso, a proporção entre a sanção penal e a gravidade do fato, como exigência indeclinável da justiça e da dignidade da pessoa humana.


1. O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE


1.1. Noções preliminares


Segundo PICAZO, a idéia de princípio deriva da linguagem da geometria, “onde designava as verdades primeiras”.[2]


O vocábulo princípio se refere a normas de um alto grau de generalidade, e, também, de um alto grau de indeterminação. Sua própria definição é suficiente para traduzir sua posição no ordenamento jurídico – princípios são proposições diretoras de uma ciência, às quais todo o desenvolvimento posterior dessa ciência deve estar subordinado.[3]


Os princípios são considerados, na ciência jurídica, como as normas gerais mais abstratas, que servem de norte e de observação obrigatória para a criação do sistema normativo.


Pode-se apontar os princípios como orientadores de todo o sistema normativo, sejam eles expressos ou implícitos. Diz-se expressos os princípios que se encontram categoricamente previstos em textos normativos, a exemplo do que ocorre com o princípio da legalidade, cuja previsão se encontra no texto de nossa Constituição. Por outro lado, implícitos são aqueles que, embora não estejam expressamente previstos nos textos normativos, podem ser extraídos do conjunto de normas constitucionais.


Quanto ao seu caráter normativo, sejam os princípios expressos ou implícitos, reconhece-se, contemporaneamente, o seu caráter de norma jurídica de alto nível de generalidade e informadoras de todo o ordenamento jurídico. Com esse entendimento, pode-se afirmar que os princípios podem, até mesmo, invalidar regras jurídicas previstas em outros textos legais.


É importante mencionar acerca da evolução das fases pelas quais passou a juridicidade (normatividade) do princípio. Inicialmente, os princípios possuíam caráter jusnaturalista, seguindo-se da fase positivista, para então, modernamente, atribuir-se-lhes uma visão pós-positivista.[4]


Bem sinteticamente, na fase jusnaturalista, disserta BONAVIDES:


“Os princípios habitam ainda a esfera por inteiro abstrata e sua normatividade, basicamente nula e duvidosa, contrasta com o reconhecimento de sua dimensão ético-valorativa de idéia que inspira os postulados de justiça”.[5]


Já em sua fase positivista, os princípios eram extraídos do sistema de normas posto em determinado ordenamento jurídico, servindo-lhe como fonte normativa subsidiária. Aqui os princípios possuem caráter secundário, servindo tão-somente para a integração de lacunas deixadas pela lei.


Na fase pós-positivista, as Constituições, seguindo as lições de BONAVIDES, “acentuam a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais”.[6]


Nesta última fase, portanto, os princípios passam a exercer a primazia sobre todo o ordenamento jurídico, limitando, por meio de valores por eles selecionados, a atividade legislativa.


Os princípios, dado o seu caráter de norma superior às demais normas existentes no ordenamento jurídico, servem de garantia a todos os cidadãos em um Estado Constitucional Democrático. Segundo GRECO, são os princípios “o escudo protetor de todo o cidadão contra os ataques do Estado”.[7] Todas as normas lhe devem obediência, sob pena de serem declaradas inválidas.


Importante lição é a do ilustríssimo Celso Antônio Bandeira de Mello,


“Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa, não só a um específico mandamento obrigatório mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra”.[8]


Assim, pode-se afirmar que os princípios, em uma escala hierárquica, ocupam um lugar de maior destaque e importância, refletindo, obrigatoriamente, sobre todo o ordenamento jurídico.


Segundo ALEXY, os princípios são normas, e as normas compreendem as regras e os princípios. Assim sendo, a diferença entre princípios e regras é, portanto, uma diferença entre duas espécies de normas.[9]


ALEXY traçou uma importante distinção entre regras e princípios. Tal distinção constituiu o marco de uma teoria normativo-material dos direitos fundamentais, um ponto de partida para responder a pergunta acerca da possibilidade e limites de racionalidade no âmbito dos direitos fundamentais.


Para este autor, os princípios são normas de um grau de generalidade relativamente alto, e as regras, normas de um grau de generalidade relativamente baixo. Ambos são normas, porque dizem o dever-ser (caráter deontológico). O ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é: os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes.[10] As regras, por seu turno, aplicam-se ou não ao caso concreto sem essa possibilidade de ponderação.


Os princípios são ordens de otimização, caracterizados pela forma como podem ser cumpridos em diferentes graus, e a medida de seu cumprimento não só depende das possibilidades reais, como também das jurídicas. Segundo ALEXY, os princípios jurídicos consistem apenas em uma espécie de norma jurídica por meio da qual são estabelecidos deveres de otimização, aplicáveis em vários graus, segundo as possibilidades normativas e fáticas. Logo, os princípios possuem apenas uma dimensão de peso, e não determinam as conseqüências normativas de forma direta, como fazem as regras.


1.2. O princípio da proporcionalidade


O princípio da proporcionalidade é a regra fundamental a que devem obedecer tanto os que exercem, quanto os que padecem o poder.[11] Tal princípio tem como seu principal campo de atuação o âmbito dos direitos fundamentais, enquanto critério valorativo constitucional determinante das restrições que podem ser impostas na esfera individual dos cidadãos pelo Estado, e para consecução dos seus fins.[12] Em outras palavras, impõe a proteção do indivíduo contra intervenções estatais desnecessárias ou excessivas, que causem danos ao cidadão maiores que o indispensável para a proteção dos interesses públicos.


Para se compreender o alcance da proporcionalidade como verdadeiro princípio jurídico, é preciso levar em consideração que nos textos constitucionais modernos – e, entre eles, a Constituição de 1988 – os princípios jurídicos formam, ao lado das regras, as modalidades de normas existentes, como já se afirmou. A coexistência de ambos, tendo-se em vista suas fundamentais diferenças e os importantes papéis por eles desenvolvidos, permite a compreensão da Constituição como um sistema aberto, excluindo-se a possibilidade de caracterizar-se como um sistema jurídico de limitada racionalidade prática, caso fosse instituído exclusivamente por regras, assim como não se caracteriza como um sistema falho de segurança jurídica, como ocorreria caso fosse composto apenas por princípios.[13]


O princípio da proporcionalidade é um princípio implícito, que não se encontra expresso na Carta Magna, cuja atuação consiste em limitar a atuação do Poder Público frente aos direitos fundamentais do indivíduo. Como bem assinala BITENCOURT, “o princípio da proporcionalidade é uma consagração do constitucionalismo moderno”.[14]


No Brasil, o termo “princípio da proporcionalidade” foi empregado, pela primeira vez[15], no ano de 1993, pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de controle de constitucionalidade, ao deferir medida liminar de suspensão dos efeitos da Lei paranaense nº 10.248/93, que determinava a obrigatoriedade da presença do consumidor no momento da pesagem de botijões de gás.[16]


Embora não esteja expresso no texto da Constituição Brasileira, é possível extraí-lo da fórmula “Estado Democrático de Direito”, vez que ele comporta um juízo de ponderação entre interesses individuais e coletivos, partindo-se de uma hierarquia de valores que o legislador deve, necessariamente, respeitar. Também através da consagração do princípio da dignidade da pessoa humana, que nada mais é do que o fundamento do Estado Democrático de Direito, bem como os direitos individuais a ela inerentes. Portanto, a Carta de 1988 reconhece a pessoa humana como centro em torno do qual a legislação do Estado – e em especial a legislação penal – deve pautar-se, de forma que, toda e qualquer limitação aos direitos e garantias assegurados constitucionalmente deve, necessariamente, ser ponderada com outros valores constitucionais em jogo.


Sem dúvidas, a proporcionalidade apresenta uma importância estruturante em todo o sistema jurídico, atuando, especificamente, para que seus imperativos de necessidade, idoneidade e proporcionalidade em sentido estrito sejam atendidos e limitem a atuação do poder estatal. Nesse sentido, a proporcionalidade representa uma especial característica de garantia aos cidadãos, vez que impõe que as restrições à liberdade individual sejam contrabalançadas com a necessitada tutela a determinados bens jurídicos, e somente confere legitimidade às intervenções que se mostrarem em conformidade com o ela determina.[17]


A proporcionalidade é algo mais que um critério ou uma regra; constitui um princípio inerente ao Estado de Direito, e a sua devida utilização se apresenta com uma das garantias básicas que devem ser observadas em todo caso em que possam ser lesionados direitos e liberdades individuais.


1.3. Proporcionalidade versus razoabilidade


Quando se fala em princípio da proporcionalidade, há que se observar o fato de que, tanto a doutrina, como também a jurisprudência costumam fazer referência, igualmente, ao princípio da razoabilidade, conceito que mantém uma relação de fungibilidade com o princípio da proporcionalidade.[18] De maneira geral, ambos os conceitos encontram-se presente nos ordenamentos jurídicos atentos à constante busca do equilíbrio entre o exercício do poder e a preservação dos direitos dos cidadãos.[19]


Por outro lado, não é unânime a aceitação de fungibilidade entre proporcionalidade e razoabilidade. Alguns doutrinadores afirmam, por exemplo, que os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade possuem pontos de intersecção, mas não devem ser confundidos. Nesse sentido, Humberto Ávila[20].


O termo razoabilidade, constantemente presente, principalmente, nos ordenamentos norte-americano e italiano, indica que toda intervenção aos direitos individuais deve ser pautada pela razão. Ele enseja uma idéia de adequação, idoneidade, aceitabilidade, lógica, equidade, traduzindo aquilo que é admissível. Sustenta-se, inclusive, que para o senso comum, o que é proporcional também é razoável, embora o inverso não seja necessariamente verdadeiro. Além disso, constata-se que, em muitas aplicações, o termo razoabilidade faz referência aos princípios da necessidade e idoneidade, que são também subprincípios da proporcionalidade.[21]


Embora haja grande controvérsia doutrinária e jurisprudencial, razoabilidade e proporcionalidade não se confundem. São fungíveis, mas possuem um campo normativo específico. Também por isso, não se reduzem um ao outro.


ÁVILA aponta uma distinção entre razoabilidade e proporcionalidade:


“A aplicação da proporcionalidade exige a relação de causalidade entre meio e fim, de tal sorte que, adotando-se o meio, promove-se o fim. Ocorre que a razoabilidade, de acordo com a reconstrução aqui proposta, não faz referência a uma relação de causalidade entre um meio e um fim, tal como o faz o postulado da proporcionalidade”[22].


A razoabilidade, para este autor, é passível de ser enquadrada no exame da proporcionalidade em sentido estrito.


Ainda, segundo BITENCOURT, “a razoabilidade exerce função controladora na aplicação do princípio da proporcionalidade”.[23]


Do mesmo modo, não há que se confundir razoabilidade com racionalidade: são conceitos completamente diversos, que não podem ser confundidos, principalmente quando se trata de verificar se uma norma incriminadora é pertinente. Razoabilidade é a racionalidade entendida como elemento de equilíbrio e de medida, enquanto racionalidade é a qualidade de quem é provido de razão, ou a conformidade a uma ordem ou a um critério racional. Dessa forma, a racionalidade de uma lei diz respeito aos problemas da coerência e da não contradição, enquanto a razoabilidade mede-se em relação ao princípio da oportunidade, ao bom uso do poder, ao exercício de certo grau de discricionariedade.[24]


2. A TRÍPLICE DIMENSÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: ADEQUAÇÃO, NECESSIDADE E PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO ESTRITO


Cada restrição de uma liberdade garantida constitucionalmente por um direito fundamental deve ser adequada, necessária e proporcional à proteção de um bem jurídico que seja, pelo menos, de igual valor, vez que, partindo do pressuposto de que liberdade é a regra, sua restrição, portanto, deve constituir exceção. Tais regras – necessidade, adequação e proporcionalidade (em sentido estrito) são denominadas subprincípios do princípio da proporcionalidade, cuja aplicação implica no equilíbrio entre valores e bens constitucionais. Havendo proporção, é possível equilibrar as exigências do indivíduo e da sociedade, estabelecendo um balanceamento entre os direitos fundamentais.


Segundo ALEXY, necessidade, adequação e proporcionalidade são “parcelas” do princípio da proporcionalidade [25], onde necessidade implica dizer se um princípio tem mais ou menos peso em certa situação conforme as circunstâncias da situação tornem o valor que ele tutela ou promove mais ou menos necessário; adequação significa dizer que um princípio deve ser aplicado a uma situação quando é adequado para ela; e proporcionalidade em sentido estrito, onde “os ganhos devem superar as perdas”.


Conforme definição de Canotilho,


“o princípio da exigibilidade, também conhecido como o princípio da necessidade ou da menor ingerência possível coloca a tônica na idéia de que o cidadão tem o direito à menor desvantagem possível. Assim exigir-se-ia sempre a prova de que, para a obtenção de determinados fins, não era possível adoptar outro meio menos oneroso para o cidadão”.[26]


Ainda o autor define adequação, como sendo o subprincípio que


“impõe que a medida adoptada para a realização do interesse público deva ser apropriada à prossecução do fim ou fins a ele subjacentes. Consequentemente, a exigência de conformidade pressupõe a investigação e a prova de que o acto do poder público é apto para e conforme os fins justificativos de sua adoção […] Trata-se, pois, de controlar a relação de adequação medida-fim”.[27]


Ressalte-se que, para ALEXY, os modelos de adequação e necessidade derivam dos princípios definidos como determinações de otimização com relação às possibilidades fáticas.


Por fim, a proporcionalidade em sentido estrito – stricto sensu – deriva dos direitos fundamentais como determinações de otimização. Trata-se, então, da ponderação propriamente dita, de um mandado de ponderação. Na proporcionalidade em sentido estrito, quanto mais diretamente afete a intromissão do Estado às formas elementares de manifestação da liberdade de atuação humana, com tanto mais cuidado deverão ser sopesadas as razões para sua justificação. Conforme entendimento de ALEXY, na proporcionalidade, os ganhos devem superar as perdas. Existe uma conexão entre a teoria dos princípios e a máxima da proporcionalidade, e em caso de colisão, se requer ponderação, ou seja, a medida permitida de insatisfação ou de afetação de um princípio depende do grau de importância da satisfação do outro.[28]


ÁVILA, igualmente, traduz com clareza os conceitos supracitados:


“O postulado da proporcionalidade exige que o Poder Legislativo e o Poder Executivo escolham, para a realização de seus fins, meios adequados, necessários e proporcionais. Um meio é adequado se promove um fim. Um meio é necessário se, dentre todos aqueles meios igualmente adequados para promover o fim, for menos restritivo relativamente aos direitos fundamentais. E um meio é proporcional, em sentido estrito, se as vantagens que promove superam as desvantagens que provoca”.[29]


3. A PROPORCIONALIDADE NO DIREITO PENAL


O princípio da proporcionalidade desempenha importante função dentro do sistema penal, uma vez que orienta a construção dos tipos incriminadores por meio de uma criteriosa seleção daquelas condutas que possuem dignidade penal, bem como fundamenta a diferenciação nos tratamentos penais dispensados às diversas modalidades delitivas. Além disso, estabelece limites à atividade do legislador penal e, também, do intérprete, posto que estabelece até que ponto é legítima a intervenção do Estado na liberdade individual dos cidadãos.[30]


No âmbito do direito penal, vale ressaltar, a noção de que deve existir uma medida de proporcionalidade no estabelecimento dos delitos e das penas não é recente, uma vez que já constituiu de forma significativa o conteúdo da lei do talião.[31] Assim, a lei do talião, que traduz seu conteúdo através da expressão “olho por olho, dente por dente” pode ser considerada a primeira resposta encontrada para se estabelecer a qualidade da pena a ser imposta a cada conduta delitiva, tendo estado presente em todos os ordenamentos jurídicos arcaicos, desde o Código de Hamurabi, a Bíblia e a Lei das XII Tábuas[32].


No entanto, o conceito de proporcionalidade como um princípio jurídico, com índole constitucional, apto a nortear a atividade legislativa em matéria penal, foi desenvolvido a partir dos impulsos propiciados, principalmente, pelas obras iluministas do século XVIII e, posteriormente, pela doutrina do direito administrativo.


Esta origem iluminista é marcada pelas obras de Charles de Montesquieu e Cesare Beccaria. A obra De l’espirit des lois,[33] de Montesquieu, foi o primeiro trabalho que tratou especificamente da relação de necessária proporcionalidade entre crimes e penas.  No mesmo sentido, Dei delitti e delle pene,[34] de Beccaria, obra que teve como ponto de partida uma concepção estatal e laica do crime (de modo que todo delito constitui um atentado à soberania do Estado), concebe a reação estatal ao crime como defesa da soberania, ou da sociedade, uma espécie de “defesa social”. E desse período, vale ressaltar, deve-se a codificação da proporcionalidade inclusive na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que, em seu art. 8º, versa a seguinte regra: “a lei não deve estabelecer outras penas que as estritas e necessárias”.


Segundo MAGALHÃES GOMES, a origem do conceito de proporcionalidade é penal, e este conceito foi, posteriormente, repassado à doutrina do direito administrativo:


“Importante destacar que este conceito de proporcionalidade, originado no direito penal, foi repassado para o direito de polícia durante a sua etapa de concepção liberal, ocorrida no século XIX, cuja característica maior foi o fortalecimento da proteção das esferas jurídicas individuais através do reconhecimento constitucional dos direitos que limitam o exercício do poder policial.”[35]


Diante disso, o princípio da proporcionalidade converteu-se em regra geral administrativa, sempre atuando diante de circunstâncias onde o legislador ou o administrador não tenha fixado uma medida adequada. Por essa regra, as limitações à liberdade individual não devem nunca superar a medida do que pareça absolutamente necessário, e o meio mais incisivo deve ser a ultima ratio, bem como os interventos lesivos da polícia administrativa não devem ser desproporcionais ao objetivo de interesse público perseguido.


O princípio da proporcionalidade pode ser facilmente deduzido a partir da previsão de proteção de direitos fundamentais amparados pela Constituição de 1988, tais como a declaração da liberdade como um valor superior do ordenamento jurídico, o reconhecimento da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, a igualdade – que proíbe o legislador ordinário de discriminações arbitrárias –, a proibição da aplicação de penas cruéis e desumanas, dentre outros. No entanto, estes são meros exemplos da presença do princípio da proporcionalidade na Constituição brasileira. Seu campo de atuação é ainda maior. Sua abrangência, e, por que não dizer, influência, vai além da simples confrontação das conseqüências que podem advir da aplicação de leis que não observam este princípio. Ele atinge, inclusive, o ato de legislar do poder legislativo.


Ressalta-se, como uma manifestação inequívoca do princípio da proporcionalidade no âmbito do direito penal, a consagração do principio da liberdade, considerado um valor supremo no ordenamento jurídico; é onde o direito penal atua diretamente, pois cabe a ele proteger bens jurídicos à custa do sacrifício da liberdade das pessoas. Neste sentido, o princípio da proporcionalidade apresenta-se como uma regra dirigida à maximização da liberdade.[36]


4. A IMPORTÂNCIA DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE PARA A COMPREENSÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE


Toda pena que não derive da necessidade absoluta, é tirânica. (Montesquieu)


As penas privativas de liberdade constituem o núcleo central de todos os sistemas punitivos do mundo contemporâneo.  Não são tão antigas quanto pode fazer crer sua generalização contemporânea.


A pena privativa de liberdade já se fazia presente na Antiguidade, época em que não possuía caráter de “pena”, vez que as penas propriamente ditas resumiam-se a lesões corporais infamantes, que culminavam com a morte. Continuou existindo durante a Idade Média (ou época pré-moderna), momento histórico em que as penas tornaram-se extremamente bárbaras, caracterizando-se principalmente pelos atos públicos de mutilação e humilhação do acusado – fato que perdurou durante os séculos XVI e XVII, quando o uso da pena de morte se tornou generalizado, sendo a forca a forma mais freqüente de execução. Percebe-se que a pena, nestes períodos históricos, foi aumentando ao longo do tempo seu potencial de crueldade, ao passo que o mecanismo de privação de liberdade permaneceu nesse período com a finalidade única de contenção do acusado até a sentença e a execução da (verdadeira) pena. Em outras palavras, nesta época, a pena de prisão possuía apenas caráter de custódia e tortura do acusado.[37]


Na segunda metade do século XVII, a pena de morte começou a ser questionada, visto que não era um instrumento eficaz contra a criminalidade (que aumentava vertiginosamente nesta época, com a expansão do capitalismo). Iniciou-se, na Europa, um movimento fundamental para o desenvolvimento da pena privativa de liberdade, com a construção de prisões organizadas que visavam corrigir os apenados, através da implantação do trabalho e da disciplina. É clara a influência do sistema capitalista neste movimento: era preciso adquirir mão-de-obra, e não sujeitá-la à destruição; a pena de morte havia se tornado pouco viável do ponto de vista econômico. Assim, através do exercício do controle da força do trabalho, da educação e da “domesticação” do trabalhador, as penas cruéis perdiam força. Somente no século XVIII a privação de liberdade adquiriu caráter de “pena”, e apenas um século depois a prisão converteu-se em pena principal. A prisão constituiria, então, a denominada pena própria de países civilizados.[38]


Em seu último estágio de evolução, a pena de prisão deixou de constituir uma espécie de “vingança privada” para se tornar uma pena pública. Nesse momento, o Estado chamou para si o direito – e também o dever, de proteger a sociedade e, inclusive, o próprio delinqüente. Exatamente aqui o Estado ganhou a titularidade do poder de penar, vencendo a atuação familiar (vingança de sangue e composição) e impondo sua autoridade, implantando critérios de justiça e determinando que a pena fosse proferida por um juiz imparcial.[39]


Mas não parou por aí.


Hoje em dia, se discute a substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direito ou pecuniárias, de forma a somente aplicá-la em ultima ratio, em hipóteses onde todos os outros meios tenham se evidenciado falhos. Em outras palavras, a pena privativa de liberdade deixaria de ser aplicada com tanta freqüência, tornando-se uma excepcionalidade no sistema penal vigente. Assim, a substituição das penas privativas de liberdade passou a ser um dos problemas mais árduos da política criminal de nossos dias, sendo considera a chave para qualquer futura reforma penal.


É certo que a pena privativa de liberdade sempre foi resultado de uma espécie de seletividade, porque por ela serão atingidos indivíduos pertencentes aos setores sociais menos favorecidos e de baixa escolaridade, isto é, os menos aptos para a competição que a sociedade de consumo impõe. Por mais que se pretenda que a pena privativa de liberdade deva preparar o sujeito para a vida livre, o certo é que propicia a formação de uma sociedade antinatural, na qual o sujeito carece das motivações da sociedade livre, surgindo outras, rudes e primitivas, que costumam persistir após a recuperação da liberdade, e que ao entrar em conflito com a sociedade livre, têm a oportunidade manifestar-se.


Ora, a liberdade é um direito inato ao ser humano. O homem nasceu para ser livre, sua liberdade é algo inerente à sua natureza. É um direito garantido a todo cidadão, independente de sua raça, cor, credo, sexo. A pena privativa de liberdade, em alguns casos, por questões de necessidade e por ausência de alternativas diversas, ganha legitimidade para limitar um direito fundamental do ser humano previsto constitucionalmente.


Um dos maiores problemas que o direito penal enfrenta é o de encontrar uma pena que seja proporcional, principalmente quando se tem em mira a descoberta de sanções alternativas à pena privativa de liberdade, que procuram retribuir o “mal” praticado pelo agente, sem restringir demasiadamente a dignidade humana.


Em matéria penal, a exigência da proporcionalidade deve ser determinada mediante um juízo de ponderação entre a carga coativa da pena e o fim perseguido pela cominação penal.[40] É com base no princípio da proporcionalidade que se pode afirmar que um sistema penal somente estará justificado quando a soma das violências – crimes, vinganças e punições arbitrárias – que ele pode prevenir, for superior à das violências constituídas pelas penas que ele pode cominar.


Sendo assim, uma pena deve ser sempre necessária, adequada e proporcional ao mal praticado pelo transgressor e aos fins visados pelo direito penal. É o que se pode extrair da parte final do artigo 59 do Código Penal Brasileiro.


Uma pena só será necessária se não houver outra forma de se atingir a reprovação e, principalmente, a prevenção do delito. Portanto, deve a pena ser, qualitativa e quantitativamente, necessária.[41]


Uma pena adequada é uma pena idônea para a realização dos fins a que se propõe. Nesse sentido, será adequada aquela pena que atua na prevenção do crime, bem como na sua repressão, de modo proporcional e justo. A adequação representa a compatibilidade entre o meio e fim pretendido, razão pela qual muitas vezes é chamada de idoneidade ou conformidade, e determina, basicamente, que o meio de restrição ao direito fundamental deve ser apropriado para atingir o fim perseguido.


E, por fim, uma pena proporcional é sempre aquela que não é excessiva. Para tanto, não deve ser desproporcional ao mal causado pelo delito.[42] Nas palavras de QUEIROZ, “deve o castigo guardar proporção com a gravidade do crime praticado”.[43] Assim, a pena, igualmente, será suficiente, quando se mostrar proporcional ao mal praticado pelo agente. Se ela não respeita a proporcionalidade, torna-se uma violência contra o indivíduo. Isso reflete, por exemplo, na fixação da duração da pena.


Inevitavelmente, a idéia de proporção entre crime e pena relaciona-se, por outro lado, com o conceito de igualdade, e, consequentemente, com o sentimento de justiça.


CONCLUSÃO


Primeiramente, pode-se dizer que o estudo do princípio da proporcionalidade no direito penal, por si só, já pressupõe a adoção de alguns pontos de partida, como o vínculo indissociável entre a Constituição e a elaboração/aplicação das normas penais. O que se pretendeu analisar no presente trabalho é o modo como o princípio da proporcionalidade, presente na Constituição brasileira, atua em relação ao legislador penal, que deve utilizá-lo para construir um direito penal condizente com os valores e a própria realidade social.


Nesse contexto, num Estado Democrático de Direito, conclui-se que o direito penal deve atuar no sentido de preservar os direitos fundamentais contidos na Constituição, de forma que eles não sejam diminuídos senão frente à necessidade de preservação de outros direitos, igualmente essenciais para o ser humano, e somente na medida em que esta diminuição demonstrar-se necessária. A intervenção penal, portanto, deve se apresentar de maneira proporcional ao valor que busca preservar.


Percebe-se que o princípio da proporcionalidade transformou-se num limite à intervenção estatal na esfera da liberdade individual dos cidadãos, e esse limite ainda apresenta-se no ordenamento sob a forma de princípio jurídico, de onde se apreende a necessidade de que seja sempre levado em consideração quando se tratar de estabelecer o alcance da intervenção punitiva. Ademais, o princípio da proporcionalidade cumpre o importante papel de orientar as atividades legislativas e judiciais.


A importância do princípio da proporcionalidade no direito penal se relaciona com o fato de que, num Estado Democrático de Direito, a liberdade constitui um bem primordial, tutelado juridicamente, o que implica dizer que qualquer limitação a este bem deve ser obrigatoriamente balanceada, a fim de que ocorra apenas quando for necessário, adequado e proporcional à proteção de outro bem jurídico igualmente relevante.  Isso deve ocorrer sempre se tomando o ser humano como parâmetro para se avaliar as hipóteses em que é possível limitar a liberdade individual.


Por fim, ressalta-se que não se pode negar a imprescindibilidade da observância destes imperativos – necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito – no âmbito do direito penal, uma vez que este apenas se legitima quando oferece a mais efetiva tutela aos bens jurídicos constitucionais em conflito.


 


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Notas:

[1] Trabalho orientado pelo Prof. Galvão Rabelo, Professor graduado em Direito pela Universidade Federal de Viçosa, pós-graduado pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Presidente Antônio Carlos.

[2] PICAZO apud BONAVIDES, 1997.p. 228

[3] FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Novo dicionário da língua portuguesa.

[4] GRECO, 2008. p. 52

[5] BONAVIDES, 1997.p. 232

[6] BONAVIDES, 1997. p. 234

[7] GRECO, 2008. p. 53

[8]MELLO, 1996. p. 545-546

[9] BONAVIDES, 1997. p. 249

[10]ALEXY, 2001.  p. 86

[11] MULLER apud BONAVIDES, 1997.p. 357

[12] GOMES, 2003. p.35

[13] GOMES, 2003. p. 53

[14] BITENCOURT, 2009. p. 24

[15] GOMES, 2003. p. 50

[16] Tal lei estadual foi julgada inconstitucional através de ADI 855, em março de 2008. O inteiro teor do acórdão encontra-se disponível no site do Supremo Tribunal Federal (http://www.stf.jus.br).

[17] GOMES, 2003.  p. 59

[18] É o posicionamento de Mariângela Gama de Magalhães Gomes. 2003.  p. 38

[19] GOMES, 2003. p. 38

[20] ÁVILA, 2007. p.153

[21] GOMES, 2003.  p. 39

[22] ÁVILA, 2007. p. 158

[23]BITENCOURT, 2009. p. 27

[24] GOMES, 2003.  p. 39

[25] ALEXY, 2001. p.161

[26] CANOTILHO, apud D’URSO, 2007. p. 66

[27] CANOTILHO apud D’URSO, 2007. p. 66-67

[28] ALEXY, 2001. p. 161

[29]ÁVILA, 2007. p. 158.

[30] GOMES, 2003. p. 60

[31] GOMES, 2003. p. 40

[32] FERRAJOLI apud GOMES, 2003. p.41

[33] A obra Do Espírito Das Leis, publicada no ano de 1748, é o livro no qual Montesquieu elabora conceitos sobre formas de governo e exercícios da autoridade política que se tornaram pontos doutrinários básicos da ciência política. Suas teorias exerceram profunda influência no pensamento político moderno, e, inclusive, inspiraram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, elaborada no ano de 1789, durante a Revolução Francesa.

[34] A obra Dos Delitos e das Penas, escrita no ano de 1784, é um clássico do Direito Penal, e sua leitura é considerada basilar para a compreensão da História do Direito.

[35] GOMES, 2003.  p. 50

[36] GOMES, 2003.  p. 66

[37] BITENCOURT, 2009. p.22

[38] CERVINI, 2002. p. 45

[39] LOPES JÚNIOR, 2008. p. 04

[40] HASSEMER apud BITENCOURT, 2009. p. 27

[41] GRECO, 2008. p. 111

[42] CARRARA apud GRECO, 2008.p. 102

[43] QUEIROZ, 2006. p. 48

Informações Sobre o Autor

Graziele Martha Rabelo

Acadêmica do curso de Direito da Universidade Presidente Antônio Carlos


Equipe Âmbito Jurídico

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