Resumo: O presente trabalho se propõe a fazer uma análise crítica acerca da Resolução nº 056/2014 do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade Estadual do Piauí – UESPI, a qual estabeleceu a possibilidade do uso do nome social por travestis e transsexuais nessa instituição, assinalando-se as principais características dessa norma e apontando a maneira como elas interferem, positiva ou negativamente, sobre a complexidade das relações daqueles grupos vulneráveis no meio social. Assim, por meio de pesquisa bibliográfica e documental, através da utilização de leis e publicações específicas sobre o tema, foi feito exame e diferenciação dos conceitos de identidade de gênero e orientação sexual, apontando adequadamente onde travestis e transsexuais se inserem nesses aspectos da personalidade. Feitas essas considerações, passou-se a estudar o que vem a ser nome civil e nome social e a influência de ambos sobre a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana.A partir do referido estudo, chegou-se à conclusão de que a Resolução aprovada pela UESPI, apesar de representar uma conquista na defesa dos direitos das pessoas travestis e transsexuais, possui falhas graves que, ainda que não configurem um retrocesso de direitos, não apontam adequadamente para o avanço que a norma deveria ser.
Palavras chave: travestis – transexuais – nome – discriminação – universidade.
1. Introdução
Os grupos LGBT (sigla paralésbicas, gays, bissexuais, travestis e transsexuais) sempre foram marginalizados em razão da intolerância quanto aos aspectos concernentes às suas condições peculiares. Especialmente quanto às pessoas travestis e transsexuais, estas sempre foram humilhadas por sua condição comportamental, por sua identidade de gênero ou por sua orientação sexual.
As situações vexatórias, violentas e opressoras contra travestis e transsexuais, todas relacionadas à não aceitação dessas pessoas pelos demais (os quais se enquadram nos padrões socialmente toleráveis), são os principais fatores que colaboram para a evasão escolar, em todos os níveis de ensino, por parte daqueles indivíduos. Desde muito cedo, gays, lésbicas, travestis, transsexuais, são submetidos às mais diversas práticas de intolerância, dificultando ou impedindo sua vivência em determinados espaços, principalmente o escolar.
Sem estudos e sem qualificação profissional e, muitas vezes, expulsos de seus lares, restam-lhes pouquíssimas opções de emprego.Frequentemente, por causa de um mercado extremamente preconceituoso, sequer conseguem trabalho. Poucas opções lícitas ou moralmente aceitas pela sociedade ficam à sua disposição.
Com objetivo de interferir positivamente sobre essa realidade, em boa hora a Universidade Estadual do Piauí – UESPI, por meio de seu Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão, através da Resolução nº 056/2014,estabeleceu os parâmetros para o uso do nome social por travestis e transsexuais em atos e documentos internos da universidade. Com base nisso, será feito um estudo sobre a referida Resolução, abordando seus aspectos mais relevantes e analisando sua efetividade quanto medida afirmadora de direitos, no sentido de verificar se ela verdadeiramente atende aos clamores de travestis e transsexuais nos ambientes acadêmico e social. Principalmente, será analisado se a mencionada Resolução é capaz depromover a isonomia no tratamento dessas pessoas no âmbito da Universidade Estadual do Piauí, se ela é a medida mais adequada para esse fim, apontando se ela é suficiente ou não para evitar discriminação contra as “pessoas trans” ou se ela gera alguma violação à identidade de gênero desses grupos.
Dessa forma, será feita abordagem acerca da preferência da população travesti e transsexual ao uso do nome social, considerando sua identidade de gênero e as constantes violações sofridas dentro do ambiente acadêmico, a partir de sua abordagemenquanto medida garantidora do princípio da isonomia e da dignidade da pessoa humana.
2. Identidade de gênero e orientação sexual
Apesar de uma história de décadas de lutas dos grupos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transsexuais) por reconhecimento de direitos e espaço na sociedade, esses grupos ainda enfrentam violações flagrantes e retrocessos que atentam contra suas conquistas. Mesmo quanto a detalhes simples em relação a essas pessoas, a sociedade se encontra em uma realidade de plena ignorância quanto às questões que são encaradas por eles.
Por ser a ignorância um dos principais empecilhos aos avanços dos direitos dos grupos LGBT, além de ser uma das principais causas das diversas formas de agressão que estes grupos enfrentam diariamente, cumpre trazer algumas considerações pertinentes a essa temática (embora sem a mínima pretensão de resolver as celeumas ou de esvaziar as discussões sobre o tema). Algumas das principais questões dizem respeito à diferenciação entre orientação sexual e identidade de gênero, bem como à distinção entre travestis e transsexuais.
Nesse sentido, orientação sexual está relacionada com a forma como o indivíduo expressa sua afetividade ou sua sexualidade, podendo se relacionar com pessoas do mesmo sexo ou não, pelo que será considerado, gay, lésbica, bissexual ou heterossexual. Já a identidade de gênero, entende-se como o fato de o indivíduo expressar sua personalidade, suas características, de acordo com gênero diferente do sexo com o qual nasceu. Dessa forma, não há que se confundir identidade de gênero com orientação sexual, de maneira que o indivíduo pode expressar sua real identidade de gênero sem necessariamente ser considerado gay, lésbica ou bissexual, pois ambas expressões da personalidade não possuem correlação lógica. De acordo com a identidade de gênero, o indivíduo será considerado travesti ou transsexual, mas não necessariamente gay, lésbica ou bissexual.
Assim, convém definir que travesti é a pessoa que possui identidade de gênero diversa do sexo biológico com o qual nasceu. Do mesmo modo, pode-se dizer que, na essência, transsexual recebe conceituação idêntica, sendo igualmente considerado aquele ou aquela que tem sua identidade de gênero diferente de seu sexo morfológico. A diferença entre ambos reside basicamente na aceitação que cada um tem sobre a constituição de seu corpo.
As pessoas travestis se expressam como determinado gênero, se vestem como tal, se comportam de igual maneira, utilizam nome social adequado à sua condição. Todavia, apesar de terem sua identidade inteiramente voltada para outro gênero, aceitam seu corpo tal qual nasceram, não vendo problemas, por exemplo, em se apresentar como uma mulher, mas possuir pênis, não sendo o órgão sexual algo inaceitável em si. Para essas pessoas a cirurgia de readequação de gênero (ou de transgenitalização) não se mostra uma necessidade para sua auto aceitação. Justamente pelo desconforto contínuo com seu sexo e pelo constante sentimento de falta de adequação social, a transsexualidade é tratada como transtorno psicológico (Transtorno de Identidade de Gênero), constando assim na Classificação Internacional de Doenças – CID 10 – sob o código F64.0, com a seguinte definição:
“Trata-se de um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se acompanha em geral de um sentimento de mal estar ou de inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar seu corpo tanto quanto possível ao sexo desejado”[1].
Importante exposição traz a cartilha Promoção dos Direitos Humanos de pessoas LGBT no mundo do trabalho, elaborada pela Organização Internacional do Trabalho – OIT:
“Temos que tomar muito cuidado para não cairmos no simplismo e dizer que uma se opera e a outra não, o que não é uma verdade. Se optássemos por essa resposta deixaríamos de considerar muitas realidades, como por exemplo os homens transexuais, que na sua grande maioria não fazem a faloplastia (construção de um pênis) e nem por isso deixam de ser homens. Não é o órgão sexual que define nosso gênero, que é uma construção social e cultural. Muitas travestis utilizam de meios cirúrgicos para obterem um corpo feminino, com implante de próteses de silicone e utilização de hormônios, sem com isso mudarem a anatomia do seu órgão sexual. O uso desses dois termos é um fenômeno presente na América Latina, especialmente no Brasil, em outras partes do mundo não existe essa diferença e todos esses grupos são considerados transexuais”[2].
Ainda de acordo com a mencionada publicação, “as pessoas transexuais podem ou não recorrer à mudança do sexo biológico através da cirurgia de transgenitalização e as/os que não fizerem a cirurgia não deixam de ser do gênero a que sentem pertencer” (PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DE PESSOAS LGBT NO MUNDO DO TRABALHO…, 2014).
Nesse sentido, o Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul, em ação civil pública ajuizada no ano de 2001, a qual objetivava a realização de cirurgias de readequação de gênero pelo Sistema Único de Saúde, dá a seguinte definição:
“A diferenciação entre transvestismo (chamado de fetichismo transvéstico na quarta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV) e homossexualidade, bem como a diferenciação entre ambos e os transtornos da identidade de gênero são avanços relativamente recentes na psiquiatria. A semelhança e diferenças fenomenológicas dessas entidades ainda estão sob investigação. Para fins clínicos, práticos, entretanto, as diferenças são bem definidas. Ao contrário do transvestismo ou da homossexualidade, os transtornos da identidade de gênero virtualmente sempre envolvem sofrimento pessoal, uma característica que os enquadra no âmbito da psiquiatria.
DEFINIÇÕES
O DSM-IV define os transtornos da identidade de gênero como um grupo heterogêneo de transtornos cuja característica em comum é uma forte e persistente preferência pela condição e papel do sexo oposto. Estes transtornos podem ser manifestados verbalmente, com o indivíduo afirmando que pertence, na verdade, ao sexo oposto, ou de maneira não verbal, por um comportamento do sexo oposto. O componente afetivo dos transtornos da identidade de gênero é comumente denominado disforia de gênero, que pode ser definida como um descontentamento com o sexo biológico, o desejo de possuir o corpo do sexo oposto e o desejo de ser considerado membro do sexo oposto. As formas extremas dos transtornos de identidade de gênero, coletivamente denominadas transexualismo na terceira edição do DSM (DSM-III) e na terceira edição revisada do DSM (DSM-III-R), envolvem, comumente, tentativas de se passar por membro do sexo oposto na sociedade e de obter tratamento hormonal e cirúrgico para simular o fenótipo do sexo biológico oposto.[3]
Apresentadas as devidas considerações e diferenciações, cumpre analisar a respeito ao uso do direito ao nome por parte de travestis e transsexuais, as repercussões jurídicas da utilização desse direito e suas implicações no meio social e na individualidade dessas pessoas.
3. O direito ao nome e a dignidade da pessoa humana
O nome constitui mais que a simples designação de uma pessoa. Elevai além, carregando consigo uma série de elementos que perpassam desde a história do indivíduo e sua família, à sua identificação no meio social.
Fábio Ulhoa Coelho (2014, p. 171) leciona que “O nome é a identificação da pessoa natural. É o principal elemento de individuação de homens e mulheres. Tem importância não apenas jurídica, mas principalmente psicológica: é a base para a construção da personalidade” [4]. Portanto, o nome é uma necessidade, um direito estabelecido pela vida em sociedade, sendo garantido pelo ordenamento jurídico como direito da personalidade, conforme considera o atual Código Civil. O mesmo pensamento é defendido por Carlos Roberto Gonçalves (2014, p. 138), que assim se manifesta:
“O nome representa, sem dúvida, um direito inerente à pessoa humana e constitui, portanto, um direito da personalidade. Desse modo é tratado no Código de 2002, que inovou dedicando um capítulo próprio aos direitos da personalidade, nele disciplinando o direito e a proteção ao nome e ao pseudônimo, assegurados nos arts. 16 a 19 do referido diploma”[5].
Entretanto, assim como pode ser considerada uma informação positiva, o nome também pode se apresentar como uma manifestação vexatória para o indivíduo, seja por se tratar de nome ridicularizante, seja por ele se apresentar de forma antagônica quanto à figura que o detém. Especificamente nos casos nos quais ocorre divergência entre o nome presente nos registros civis e o sexo morfológico da pessoa, o nome civil coloca alguém em situação constrangedora em razão do gênero que apresenta ser diferente do gênero relacionado ao nome presente em seus documentos.
Para evitar a submissão a humilhações, o uso do nome social visa contornar esse problema. Assim como o nome civil, o nome social, que é utilizado por pessoas travestis e transsexuais, também é uma necessidade desses sujeitos de direitos, mas, ao contrário daquele, este provém de escolha do próprio usuário, de acordo com sua subjetividade, especialmente por lhe representar melhor. Segundo acartilha PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DE PESSOAS LGBT NO MUNDO DO TRABALHO, formulada pela Organização Internacional do Trabalho, “Entende-se por nome social aquele pelo qual travestis e transexuais se reconhecem, bem como são identificados/as por sua comunidade e em seu meio social”[6]. De acordo com essa publicação, “O nome social é o nome pelo qual preferem ser chamados/as cotidianamente, em contraste com o nome oficialmente registrado que não reflete sua identidade de gênero”[7].
Nome social é, pois, a designação que o indivíduo, de acordo com suas experiências, suas preferências e suas orientações, escolheu para lhe representar diante dos demais, por entender que o nome assentado em seus registros oficiais não condiz com sua personalidade, com sua identidade de gênero. Busca-se, portanto, evitar situações de humilhação e de discriminação, numa tentativa tanto de confortar sua própria aceitação, como de se integrar à sociedade.
Conforme Roger Raupp Rios (2008, p.21), que entende que a discriminação pode ser considerada em uma tipologia direta e outra indireta, “o direito da antidiscrimnação alcança não só práticas intencionais e conscientes (discriminação direta), mas também realidades permanentes que se reproduzem e se reforçam ao longo do tempo por meio da manutenção de medidas aparentemente neutras, mas efetivamente discriminatórias (discriminaçãoindireta)”[8]. Sob este ponto de vista, é compreende-se a necessidade da tutela jurídica do uso do nome social, política positiva de afirmação daquelas pessoas. RIOS denomina essa tutela jurídica como tratamento positivo diferenciado ou ainda como medida de diferenciação positiva. Sobre isso, assim se manifesta o autor:
“Ao passo que os conceitos de discriminação direta e de discriminação indireta se atribuem, de modo inconteste, a pecha de ilicitude, a discussão em torno das medidas de diferenciação positiva denota um conteúdo valorativo positivo. Tais medidas de diferenciação positiva, com efeito, abrangem não só as chamadas ações afirmativas (também designadas, de modo controverso, como “discriminação benigna”, “discriminação inversa”, “discriminação positiva” e “discriminação reversa”), como também a instituição de tratamentos especiais requeridos pelas especificidades de certos indivíduos ou grupos (discutidos no direito norte-americano sob a denominada accomodationclause)”[9].
Portanto, a tutela jurídica do nome social, enquanto mecanismo de redução dos tormentos relacionados às divergências entre as características biológicas e as comportamentais, representa uma política fundamental para redução das práticas discriminatórias. Deste modo, verifica-se que, mais do que a necessidade de inocorrência de ações e omissões moralmente lesivas, as pessoas trans carecem de práticas diferenciadoras afirmativas protetivas dos postulados constitucionais da dignidade da pessoa humana, promovendo seu tratamento isonômico e sua adequação no meio social.
Campanhas publicitárias, políticas públicas desestimulando atos homofóbicos e violentos e demais atos do poder público ou da iniciativa privada em favor de travestis e transsexuais são insuficientes se não forem acompanhadas do reconhecimento e do respeito do nome social enquanto medida hábil de proteção da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil. Nesse sentido, Tartuce (2014, p.168) informa que o Superior Tribunal de Justiça, em 2009, proferindo o Informativo nº 415, se manifestou do seguinte modo:
“Registro civil. Retificação. Mudança. Sexo. A questão posta no REsp cinge-se à discussão sobre a possibilidade de retificar registro civil no que concerne a prenome e a sexo, tendo em vista a realização de cirurgia de transgenitalização. A Turma entendeu que, no caso, o transexual operado, conforme laudo médico anexado aos autos, convicto de pertencer ao sexo feminino, portando-se e vestindo-se como tal, fica exposto a situações vexatórias ao ser chamado em público pelo nome masculino, visto que a intervenção cirúrgica, por si só, não é capaz de evitar constrangimentos. Assim, acentuou que a interpretação conjugada dos arts. 55 e 58 da Lei de Registros Públicos confere amparo legal para que o recorrente obtenha autorização judicial a fim de alterar seu prenome, substituindo-o pelo apelido público e notório pelo qual é conhecido no meio em que vive, ou seja, o pretendido nome feminino. Ressaltou-se que não entender juridicamente possível o pedido formulado na exordial, como fez o Tribunal a quo, significa postergar o exercício do direito à identidade pessoal e subtrair do indivíduo a prerrogativa de adequar o registro do sexo à sua nova condição física, impedindo, assim, a sua integração na sociedade. Afirmou-se que se deter o julgador a uma codificação generalista, padronizada, implica retirar-lhe a possibilidade de dirimir a controvérsia de forma satisfatória e justa, condicionando-a a uma atuação judicante que não se apresenta como correta para promover a solução do caso concreto, quando indubitável que, mesmo inexistente um expresso preceito legal sobre ele, há que suprir as lacunas por meio dos processos de integração normativa, pois, atuando o juiz supplendi causa, deve adotar a decisão que melhor se coadune com valores maiores do ordenamento jurídico, tais como a dignidade das pessoas. Nesse contexto, tendo em vista os direitos e garantias fundamentais expressos da Constituição de 1988, especialmente os princípios da personalidade e da dignidade da pessoa humana, e levando-se em consideração o disposto nos arts. 4.° e 5.° da Lei de Introdução, decidiu-se autorizar a mudança de sexo de masculino para feminino, que consta do registro de nascimento, adequando-se documentos, logo facilitando a inserção social e profissional. Destacou-se que os documentos públicos devem ser fiéis aos fatos da vida, além do que deve haver segurança nos registros públicos. Dessa forma, no livro cartorário, à margem do registro das retificações de prenome e de sexo do requerente, deve ficar averbado que as modificações feitas decorreram de sentença judicial em ação de retificação de registro civil. Todavia, tal averbação deve constar apenas do livro de registros, não devendo constar, nas certidões do registro público competente, nenhuma referência de que a aludida alteração é oriunda de decisão judicial, tampouco de que ocorreu por motivo de cirurgia de mudança de sexo, evitando, assim, a exposição do recorrente a situações constrangedoras e discriminatórias” (STJ, REsp 737.993/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 10.11.2009. Ver Informativo n. 411)[10].
Ainda que trate especificamente da situação da pessoa transsexualsubmetida a cirurgia de transgenitalização, além de também tratar para os casos de retificação de registro de civil, referido Informativo aponta os elementos e características fundamentais do nome social, além de trazer os contornos constitucionais de sua natureza.São estes os elementos: a proteção da dignidade humana, dos direitos da personalidade, da honra, da integridade moral, a vedação de práticas lesivas degradantes e de discriminação odiosa, da igualdade, da liberdade e da privacidade, todos com amparo no texto constitucional.
De igual modo, conforme informa Tartuce (2014, p. 169), já decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Na oportunidade o Tribunal, também decidindo pela alteração do registro civil do quanto ao sexo e quanto ao nome, fundamentou o acórdão na “inexistência do interesse genérico de uma sociedade democrática em impedir a integração do transexual” [11]. Omencionado Tribunal de Justiça apontou que a referida alteração busca dar efetividade aos comandos previstos nos arts. 1.°, III, e 3.°, IV, da Constituição Federal, os quais correspondem, respectivamente, aos fundamentos e aos objetivos da República Federativa do Brasil.
4. Nome social na universidade estadual do piauí
Nesse momento, oportuno registrar o conteúdo dos Princípios de Yogyakarta, documento da Organização das Nações Unidas que versasobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero.Esse documento, em seu 16º princípio, que trata especificamente da situação educacional dos grupos LGBT, assim dispõe:
“Toda pessoa tem o direito educação, sem discriminação por motivo de sua orientação sexual e identidade de gênero, e respeitando essas características.
Os Estados deverão:
a) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para assegurar o acesso igual à educação e tratamento igual dos e das estudantes, funcionários/as e professores/as no sistema educacional, sem discriminação por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero;
b) Garantir que a educação seja direcionada ao desenvolvimento da personalidade de cada estudante, de seus talentos e de suas capacidades mentais e físicas até seu potencial pleno, atendendo-se as necessidades dos estudantes de todas as orientações sexuais e identidades de gênero;
c) Assegurar que a educação seja direcionada ao desenvolvimento do respeito aos direitos humanos e do respeito aos pais e membros da família de cada criança, identidade cultural, língua e valores, num espírito de entendimento, paz, tolerância e igualdade, levando em consideração e respeitando-as diversas orientações sexuais e identidades de gênero;
d) Garantir que os métodos educacionais, currículos e recursos sirvam para melhorar a compreensão e o respeito pelas diversas orientações sexuais e identidades de gênero, incluindo as necessidades particulares de estudantes, seus pais e familiares relacionadas a essas características;
e) Assegurar que leis e políticas deem proteção adequada a estudantes, funcionários/as e professores/as de diferentes orientações sexuais e identidades de gênero, contra toda forma de exclusão social e violência no ambiente escolar, incluindo intimidação e assédio;
f) Garantir que estudantes sujeitos a tal exclusão ou violência não sejam marginalizados/as ou segregados/as por razões de proteção e que seus interesses sejam identificados e respeitados de uma maneira participativa;
g) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para assegurar que a disciplina nas instituições educacionais seja administrada de forma coerente com a dignidade humana, sem discriminação ou penalidade por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero do ou da estudante, ou de sua expressão;
h) Garantir que toda pessoa tenha acesso a oportunidades e recursos para aprendizado ao longo da vida, sem discriminação por motivos de orientação sexual ou identidade de gênero, inclusive adultos que já tenham sofrido essas formas de discriminação no sistema educacional”[12].
A definição dos Princípios de Yogyakarta retrata a necessidade da preocupação e da realizaçãode práticas, bem como da edição de normas, voltadas para livre manifestação da personalidade, em todas as suas nuances, em respeito ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Nessa esteira, a integração do respeito às diversidades no ambiente acadêmico, promovendo tratamento digno e igualitário às minorias,se mostra imperativa não apenas para o desenvolvimento do sistema educacional, mas para evolução da própria sociedade.
Atendendo às necessidades do movimento LGBT, especialmente dos grupos travestis e transsexuais, a Universidade Estadual do Piauí – UESPI, a partir de requerimento formulado pelo Grupo Matizes, aprovou a Resolução nº 056/2014 do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão – CEPEX. Conforme seu preâmbulo, a referida resolução estabelece, em seus 05 artigos, o direito ao uso do nome social por travestis e transsexuais para fins de registros acadêmicos no âmbito daquela universidade.
A decisão por estabelecer o direito ao uso do nome social no âmbito da UESPI encontra amparo no art. 1º, III, art. 3º, IV, e art. 5º, caput, da Constituição Federal. Também é amparada na Lei Estadual nº 5.916/2009, que assegura às pessoas travestis e transsexuais a identificação pelo nome social em documentos de prestação de serviço quando atendidas nos órgãos da Administração Pública direta e indireta no âmbito do estado do Piauí. A aludida lei possui a seguinte redação:
“Art. 1º As pessoas travestis e transexuais têm direito à identificação por meio do seu nome social, quando do preenchimento de fichas de cadastros, formulários, prontuários e documentos congêneres, para atendimento de serviços prestados por qualquer órgão da Administração Pública direta e indireta do Estado do Piauí.
§ 1º Entende-se por nome social a forma pela qual as pessoas travestis e transexuais se reconhecem, são identificadas, reconhecidas e denominadas por sua comunidade e em sua inserção social.
§ 2º Na ficha de atendimento de prestação de serviço pelo órgão público deverá ser colocado, em primeiro lugar e em destaque, o nome social da pessoa travesti ou transexual e, logo abaixo, a identificação civil.
Art. 2º No prazo de sessenta dias a contar da publicação dessa Lei, o Poder Executivo indicará o órgão da Administração Pública responsável pelo cadastro das pessoas travestis e transexuais que emitirá documento de identificação do nome social.
Art. 3º Nos casos em que o interesse público exigir, inclusive para salvaguardar direitos de terceiros, será considerado o nome civil da pessoa travesti ou transexual.
Art. 4º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.[13]
Conforme as justificativas acerca da mencionada Resolução nº 056/2014 do CEPEX, a decisão pelo estabelecimento do nome social foi tomada “considerando a dimensão humana estabelecida nos princípios filosóficos e sociológicos do Projeto Pedagógico Institucional desta IESque visa o respeito às individualidades inerentes a cada um dos atores que nela convive, e por confiar no conhecimento como forma de libertação/superação de quaisquer obstáculos aos direitos de homens e mulheres” [14].
Verifica-se, portanto, que através da Resolução nº 056/2004 a Universidade Estadual do Piauí intenta corrigir décadas de injustiça e discriminação, proporcionando um tratamento mais humano e digno ao público travesti e transsexual, evitando sua exposição ao ridículo, o que na prática representa medida de grande valia e um grande avanço para as pessoas trans. Essa linha de raciocínio busca dar um caráter efetivo aos postulados constitucionais, como já ressaltado, bem como à Lei Estadual nº 5.916/2009, já colacionada, a qual regulamenta o uso do nome social, mas que ainda possui pouca aplicação pela administração pública do estado do Piauí. Em vista disso, necessário transcrever oteor da referida Resolução:
“Art. 1º – Fica assegurado o uso do nome social aos travestis e transsexuais nos registros, documentos e atos do controle acadêmico na forma disciplinada nesta Resolução.
Parágrafo único – Entende-se por nome civil aquele registrado na certidão de nascimento e por nome social aquele adotado pela pessoa e/ ou conhecido e identificado pela comunidade.
Art. 2º – O (a) aluno (a) poderá requerer, a qualquer tempo, por escrito a inclusão do seu nome social nos documentos escolares internos e, posteriormente, se for caso, a sua exclusão.
Art. 3º – O uso do nome social requerido pelo (a) aluno (a) constará no Diário de Classe, Históricos escolares, Certidões, Atestados, Portarias e Declarações, acompanhado do nome civil.
§ 1.º Nos documentos de identificação estudantil, no endereço de correio eletrônico e nome de usuário em sistema de informática, constará apenas o nome social.
§ 2.º Nos Diplomas e Certificados deverá constar apenas o nome civil.
Art. 4º. – Na solenidade de colação de grau, a outorga de grau será realizada mediante o nome social, sem fazer menção ao nome civil devendo constar apenas na ata o nome civil acompanhado do nome social.
§ 1.º O dispositivo aplicado no caput deste artigo aplica–se às solenidades de entregas de Certificados, premiações e congêneres.
Art. 5.º – Esta resolução entra em vigor a partir no ano letivo 2015.1.”[15]
Conforme o texto da resolução, o nome social será utilizado nos documentos e atos de controle acadêmico da instituição, ficando assim restritos ao âmbito interno da universidade.Essa previsão sobre a utilização interna encontra amparo na Portaria nº 1.612, de 2011, do Ministério da Educação – MEC, a qual restringe o uso do nome social apenas à esfera interna dos atos e procedimentos promovidos no âmbito desse Ministério.
Por essa redação, qualquer ato ou documento cujo alcance perpasse a universidade aparenta ficar fora do arrimo da Resolução, deixando tais indivíduos desamparados de proteção mais concreta, ainda que a informação externalizada diga respeito a conteúdos próprios da universidade, embora exista a aludida Lei Estadual nº 5.916/2009, que dá viés mais amplo a essa garantia no âmbito do Estado. Com tal entendimento, e com base na falta de aplicação efetiva da norma estadual por parte dos demais órgãos e entidades da administração pública, a preocupação da universidade com a proteção contra a discriminação e com a defesa da integridade moral de seus discentes se mostra deficiente, uma vez que sua política antidiscriminatória se refere a espaço demasiadamente reduzido, dentro de um contexto social. Por essa razão, não apenas a resolução fracassaneste aspecto, mas todo o conjunto normativo apontado.
Todavia, nesse aspecto, a deficiência não se resume à vontade ou à atuação da UESPI, como já apontado, mas à falta de correlação entre as formulações da Lei Estadual, da Portaria do Ministério da Educação e os órgãos e entidades que compõem a administração pública no estado do Piauí, além da ausência de leis federais que tratem do tema. Portanto, a timidez da eficiência da medida adotada pela Universidade Estadual do Piauí representa meramente o reflexo de um contexto de atuação descontínua entre as demais instituições. Entretanto, pecou a universidade em não atribuir maior ponto de atuação à política implantada, pois, com base nas disposições da Constituição Federal e da legislação estadual, seria possível dar reflexo mais público e humanístico à medida.
Essa falha fica evidente quando é mostrado o rol de documentos internos nos quais, a requerimento do aluno, constará seu nome social, o que também decorre da citada Portaria do MEC. Ao falar que será feita a indicação ao nome social em diários de classe, históricos escolares, certidões, atestados, portarias e declarações, acompanhados do nome civil, ficam de fora documentos como editais ou outros meios de publicação, que possuem exterioridade muito mais compreensiva, os quais representariam medida muito mais hábil ao seu viés protetivo. Todavia, infelizmente, a UESPI não tem sido a única universidade a reduzir o campo de incidência de utilização do nome social.
É de se levar em consideração também que inexiste exata delimitação do público ao qual a lei se destina. Ainda que faça menção a travestis e transsexuais, não fica claro na Resolução quem, dentro da conjuntura universitária, tem garantido o direito ao uso de seu nome social.Esta dúvida é levantada em razão da supressão a qualquer referência aos docentes, ao corpo técnico, terceirizados, demais profissionais que atuem na universidade e ao público que utiliza os serviços eventualmente oferecidos pela instituição. Em todo o seu texto, a única categoria de sujeitos mencionada pela Resolução é a discente, o que se caracteriza como mais uma falha. Diferentemente, a portaria 1.612/2011 do MEC se direciona a um público bem maior, não apenas por dar esse direito às “pessoas transexuais e travestis”, sem qualquer espécie de delimitação, mas por garantir que todos que compõem a comunidade acadêmica poderão fazer uso do nome social.
Tal limitação por parte da Universidade Estadual não se coaduna com a atual prática das demais universidades que tem reconhecido e admitido o uso do nome social, as quais conferem a maior amplitude possível a tal garantia. É o que tem ocorrido, por exemplo, em universidades como a Universidade Federal de Goiás – UFG e a Universidade Federal da Paraíba – UFPB. A Resolução nº. 39/2013 do Conselho Universitário da UFPB, por exemplo, expressamente engloba todos os integrantes do corpo universitário, conforme se verifica em seu art. 1º:
“Art. 1º. Assegurar aos/as Discentes da UFPB, cujo nome civil não reflita adequadamente sua identidade de gênero, o direito de uso e de inclusão nos registros acadêmicos do seu nome social, nos termos desta Resolução. § 1º Nome social é o modo como a pessoa é reconhecida, identificada e denominada na sua comunidade e no meio social, uma vez que o nome oficial não reflete sua identidade de gênero ou possa implicar em constrangimento. § 2º Para os/as Servidores Técnico-Administrativos e Docentes da UFPB, o direito de uso do nome social será exercido nos termos da Portaria nº 233 do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, de 18 de maio de 2010, devendo ser requerida a sua adoção diretamente a Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas“[16].
Verifica-se outra falha com relação aos Diplomas e certificados emitidos pela Universidade Estadual do Piauí, nos quais constará apenas o nome civil do estudante. Esse entendimento da universidade, apesar de ser seguido por outras instituições, a exemplo da Universidade Federal da Bahia, não traz qualquer avanço para o respeito à igualdade através do uso do nome social. Outras Instituições de Ensino Superior, as quais, ainda que consignem o nome civil em diplomas e certificados, fazem a emissão desses documentos utilizando o nome social do discente, como ocorre com a já mencionada UFPB. Essa é uma política livremente adotada por essa universidade, já que não há tal previsão em nenhuma Portaria do MEC, também não havendo, todavia, nenhuma proibição.
Ainda que apresente falhas ou inconsistências, a adoção, internamente, do nome social pela Universidade Estadual do Piauí representa, ainda que tímido, um avanço em prol dos direitos de travestis e transsexuais, do reconhecimento de sua condição de sujeitos de direitos, enquanto seres humanos. Ainda que timidamente, repita-se, a Universidade Estadual do Piauí participa de uma importante transformação social na qual diversas Instituições de Ensino Superior, com amparo em legislações estaduais e na Portaria nº 1.612/2011 do Ministério da Educação, como a Universidade Federal de Sergipe, a Universidade Federal de São Paulo, a Universidade Federal fluminense, a Universidade Federal do Ceará, a Universidade Estadual de Alagoas, a Universidade Federal do Amapá, a Universidade Federal de Santa Catarina, Universidade, a Federal do Rio Grande do Norte, a Universidade Federal do Paraná, a Universidade Federal do Mato Grosso, a Universidade Federal do Piauí, entre outras, vertem seus esforços em busca de reduzir a discriminação contra esse público que é tão vulnerável.
5. Conclusão
A universidade não é um mero espaço para ensino. Ela é um espaço para disseminação de conhecimento, em uma concepção mais ampla, e, mais do que isso, é um ambiente para formação humana, o que deve compreender não apenas o repasse de informações técnicas dos cursos que nela são ministrados, mas sim a construção de sujeitos críticos aptos à modificação da realidade social. Nesse sentido, essa compreensão de universidade não pode ficar alheia ao contexto social que a cerca. Dessa forma, natural que grande parte das práticas inovadoras e transformadoras, condizentes com a experiência social, surja em seu meio.
O uso do nome social não constitui unicamente a possibilidade de adoção de um prenome não formalizado pela norma jurídica. Ele corrobora na aceitação de indivíduos, até então, execrados pela sociedade. Passam assim a ter um início de possibilidade de substituir os perigos ocasionados pela vida violenta da noite nas esquinas pela visão de uma sociedade que começa a olhar para eles e reconhece-los na amplidão do conceito de “pessoa”, portanto, sujeitos de direitos.
A possibilidade de uso do nome social na Universidade Estadual do Piauí e, mais recentemente, também na Universidade Federal desse estado, é prática extremamente importante para a permanência dos estudantes travestis e transsexuais, respeitando os direitos humanos, a pluralidade, a dignidade humana, a isonomia e a identidade dessas pessoas. Ainda que não atenda satisfatoriamente aos anseios desses grupos e não represente a extinção por completo, constitui importante avanço para a redução do preconceito, na construção de uma sociedade justa e minimamente igualitária.
Todavia, para alcançar esse objetivo quanto ao público travesti e transsexual, não apenas as universidades, mas o Poder Público, as empresas e toda a coletividade devem voltar sua atenção para a redução das diversas formas de discriminação que essas pessoas sofrem diariamente. Tal medida deve ir além do simples reconhecimento da adoção do nome social, pois isso corresponde apenas ao primeiro passo nessa jornada, mas deve vir acompanhada de outras políticas públicas que efetivamente insiram essas pessoas no convívio social, lhe permitam estudar, trabalhar, ter acesso a tratamentos médicos e prevenção de doenças, práticas emancipatórias que retirem essas pessoas da condição de grupos vulneráveis e marginalizados.
Advogado militante na cidade de Teresina/PI. Formado em Bacharelado em Direito pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI
Ter uma conta hackeada no Instagram é uma situação frustrante e preocupante, especialmente considerando o…
O Aviva Vacation Club é um programa de férias que oferece a aquisição de pontos…
A holding familiar é uma estrutura cada vez mais utilizada para organizar e proteger o…
A constituição de uma holding é uma estratégia amplamente utilizada por empresas e famílias para…
Antes de discutir a tributação, é importante entender o conceito de uma holding familiar. Trata-se…
A constituição de uma holding familiar é uma estratégia que muitas famílias utilizam para organizar…