Resumo: reflete sobre o potencial hermenêutico e as implicações filosóficas e ideológicas do debate do direito fundamental à felicidade.
Palavras-chave: direito fundamental à felicidade.
O fervoroso debate sobre o direito fundamental à felicidade – que ainda levanta muitos risos (de alívio, superioridade ou incongruência) entre os debatedores, e que levantará por anos depois de positivado, se o for – mais do que indicar o domínio técnico do manejo de conceitos do direito constitucional (o verso, o que se mostra desse direito), revela de fundo uma concepção mais profunda do próprio direito constitucional, da filosofia do direito e, mais especialmente, das funções do direito em uma sociedade (o anverso, ou seja, as criptoantropologias de qualquer ciência social).
O contexto social brasileiro, sob as diversas abordagens científicas e históricas que lhe tomam por objeto, reflete uma realidade de exclusão, desigualdade, violação, indiferença, dor, infelicidade, em que a negatividade e a privação parecem ser a regra entre as ínsulas de atendimento à dignidade. Nesse cenário, direitos não parecem bastar (e não bastam mesmo, eis que, sem eles, volta-se ao caos), mas, mesmo e ainda assim, há uma asséptica resistência do avesso.
Se um texto constitucional fosse vetorizado pela “realidade”, e se fosse servo dela e de suas facilidades ou dificuldade (aliás, conceito de “realidade” tão subjetivo quanto o de “felicidade”), mesmo das interpretativas, os textos se distorceriam incrivelmente. E.L. Silva Santos[1] criou uma interessante paródia dos direitos humanos, e sob a égide de “pleonasmo”, contrapõe o consagrado artigo primeiro da Declaração dos Direitos de 1789 com uma nova redação: “no ius imperium do Estado liberal, toda democracia deve começar com o primeiro tapa. E o direito, atrasado como sempre, fundamenta-se no primeiro choro”.
O que o autor evidencia pelo cômico e dramático contraste é que entre a declaração do direito e a concreção da realidade há um lapso. E, por isso, a normatividade difere tanto da descrição e da narração, ou seja, de certa forma, do romance. Isso revela um antigo debate do embate entre força normativa e forças sociais e políticas, no qual o direito assume o poder de direcionar, sob pena de se tornar toda sorte de coisa, ajurídica, menos a jurídica. Diante do “não” do real, o direito enfaticamente lança o seu “sim”.
Enrique Dussel[2] condensou a sua larga e fundamentada compreensão ética (pelo verso, anverso e avesso) em um sintético juízo, quando fala que a crise do sistema-mundo em que se exclui a maioria da humanidade, enquanto questão de vida ou morte: “vida humana que não é um conceito, uma ideia, nem um horizonte abstrato, mas o modo de realidade de cada ser humano concreto, condição absoluta da ética e exigência de toda libertação”. Ora, felicidade que não é conceito, mas modo de realidade, mas que depende do conceito, porque o homem é político, mas também linguístico.
Susan Sontag[3] concluiu seu magistral ético-estético “Diante da dor dos outros” mostrando que os vivos são deficitários ante o fim dos mortos (valhamo-nos, aqui, das muitas mortes do humano, não apenas da derradeira): “ ‘Nós’ — esse ‘nós’ é qualquer um que nunca passou por nada parecido com o que eles sofreram — não compreendemos. Nós não percebemos. Não podemos, na verdade, imaginar como é isso. Não podemos imaginar como é pavorosa, como é aterradora a guerra; e como ela se torna normal. Não podemos compreender, não podemos imaginar.”
Pensado a partir da negação, o direito fundamental à felicidade passa a ser palatável. Contextualizado com a Constituição, passa a ser imperativo. Confrontado com a realidade, passa a ser um novo problema ao intérprete, com o potencial de criar novas e mais satisfatórias e inteligentes concreções, seja ele integrante do Estado, do terceiro setor ou da iniciativa privada, ingressando no rol do debate com a democracia, a igualdade, a dignidade, e tudo o mais que torne a convivência possível.
Quando o Direito (como ordenamento) se põe diante de tais problemas, o verdadeiro questionamento recai sobre sua legitimidade e efetividade, em um círculo de fundamento e retorno, que não pode fugir do comprometimento de seus leitores e enunciadores. As suas dificuldades não podem renegar, porque essa não é a sua história nem o seu destino. A felicidade, assim, nascerá como fértil e novo problema jurídico evidenciado, para se construir sistemas e verificar negatividades e exterioridades, e corrigi-las novamente.
O Procurador da República Alexandre Camanho de Assis sintetizou em proporção áurea o que fica em jogo no debate: “é exótico que as pessoas vejam a felicidade como algo exótico. Esse pequeno constrangimento de falar em felicidade é que é o verdadeiro constrangimento em questão”[4].
Superemos, assim, o constrangimento, enfrentando a felicidade e os projetos de felicidade.
advogado em Curitiba, especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná e mestrando em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR
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