Vittoria Bruschi Sperandio
Resumo: O artigo tem por escopo colocar em discussão, através de abordagem exploratória e qualitativa, a grave crise migratória – e sintomática, inserida em uma crise global ainda maior – que assola a fronteira entre Estados Unidos e México. Analisa, portanto, o cenário social, político e jurídico frente à política de tolerância zero do Governo Trump e as consequentes violações de direitos humanos oriundas deste contexto, estabelecendo um paralelo com o tratamento dado aos requerentes de asilo, além da conduta do governo do Brasil em relação às famílias brasileiras detidas e separadas, em virtude de tentativas de travessias ilegais, bem como as disposições humanistas concernentes à situação, dentre elas o posicionamento da Organização das Nações Unidas.
Palavras-chave: Imigração ilegal. Política de tolerância zero. Separação de famílias. Direitos Humanos. Organização das Nações Unidas.
Abstract: The article aims to discuss, through an exploratory and qualitative approach, the serious migratory crisis – and symptomatic, inserted in a major global crisis – that plagues the border between the United States of America and Mexico. It analyzes, therefore, the social, political and legal scenario considering the zero tolerance policy of the Trump Government and the consequent violations of human rights arising from this context, establishing a parallel with the treatment given to asylum seekers, in addition to the conduct of the Brazilian government in relation to the Brazilian families detained and separated due to attempts at illegal crossings, as well as the humanist dispositions concerning the situation, among them, the position of the United Nations.
Keywords: Illegal immigration. Zero tolerance policy. Family separation. Human rights. United Nations Organization.
Sumário: Introdução. 1. Cenário sócio-político. 1.1. Política de imigração no governo do ex-presidente Barack Obama. 1.2. Política de separação de famílias nos Estados Unidos é sintoma de uma crise migratória global. 2. O que diz o Governo Trump. 3. Posicionamento do governo do Brasil em relação aos cidadãos brasileiros detidos nos Estados Unidos por imigração ilegal. 3.1 Saída voluntária e deportação: diferenças e consequências. 4. As violações de direitos humanos em decorrência da política de tolerância zero frente aos dispositivos legais internacionais. 4.1. Estados Unidos: legislação interna. 4.2. Resolução da Organização dos Estados Americanos (OEA). Conclusão.
Introdução
É de notório saber que o problema de imigração ilegal na fronteira entre Estados Unidos e México sempre existiu. Entretanto, o assunto ganhou maior evidência já durante a campanha presidencial de Donald Trump, conduzida sob o slogan “America for americans” (América para americanos). E, após, no início de seu mandato, quando adotou a polêmica política de tolerância zero em relação à imigração ilegal no país, que autorizou a separação de famílias que tentassem entrar no país de modo ilegal.
Ocorre que, após serem divulgados áudios e imagens de crianças em extremo sofrimento psicológico, por terem sido separadas dos pais, uma onda de protestos, aderidos pela sociedade e pela comunidade jurídica, se ergueu para pressionar o governo norte-americano a acabar com a política, o qual cedeu, e baixou uma ordem executiva determinando a cessação dos processos de separação das famílias detidas ao atravessarem a fronteira ilegalmente.
Apenas no período entre abril e maio de 2018, o governo Trump separou aproximadamente dois mil imigrantes menores de seus pais na fronteira entre Estados Unidos e México, sob a égide da famigerada política de tolerância zero (WHITE, 2018).
A política basicamente ordena a detenção de pessoas que tentam entrar nos Estados Unidos ilegalmente e sua automática persecução criminal, enquanto seus filhos são levados separadamente em custódia, sozinhos.
A exposição de imagens e áudios de bebês chorando e crianças presas em celas – que mais se assemelham a jaulas – provocou indignação e protestos generalizados, liderados por políticos, organizações religiosas e de direitos humanos, que classificaram a prática como uma evidente violação dos direitos humanos, além de altamente traumatizante para os pais e as crianças.
Diante do contexto, cedendo à pressão popular, o presidente Donald Trump assinou uma ordem executiva para fazer cessar sua própria política de separação familiar. Agentes da Patrulha da Fronteira aparentemente pararam de entregar adultos imigrantes, que cruzaram a fronteira com crianças, às autoridades responsáveis para serem processados criminalmente.
Contudo, ainda que isto coloque fim à prática de separação, também marca o início de outra, qual seja, a ameaça de detenção prolongada e indefinida das famílias imigrantes.
Ademais, a administração não divulgou nenhum plano que vise reunir famílias de solicitantes de refúgio já separadas, que pretendam prosseguir com suas reivindicações de modo legal, ocasião em que pedidos de expulsão ou extradição ficam suspensos, de acordo com o que estabelecem as diretrizes globais, regulamentadas pelo ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) e pela Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA DO GOVERNO FEDERAL, [200-?]).
Importante ainda sobrelevar que, de acordo com a Organização de Direitos Humanos “Human Rights Watch”, a mídia norte-americana relatou diversos casos em que pais detidos foram coagidos a assinar ordens de deportação, em troca de poder se reunirem com seus filhos novamente (ROOT e SCHMIDT, 2018).
Significa dizer que, apesar do aparente recuo do governo estadunidense no que tange à política de tolerância zero relacionada à imigração ilegal, outros problemas passam a surgir, advindos da mesma questão.
Embora tenha ocorrido um recorde de deportações durante o governo Obama – mais de 3 milhões de pessoas foram deportadas entre 2009 e 2016, de acordo com dados do Departamento de Segurança Nacional dos Estados Unidos – a sua administração priorizava processos criminais contra membros de gangues, pessoas que efetivamente representavam risco para a segurança nacional, ou que já haviam cometido outros crimes anteriormente.
Segundo dados do governo na época, cerca 55% dos deportados no ano fiscal de 2011, por exemplo, haviam sido condenados por crimes como homicídio, estupro, tráfico ou posse de drogas, dirigir sob influência de álcool, dentre outros.
Imigrantes ilegais sem esse tipo de histórico normalmente respondiam a processos civis, em que não há prisão, e as famílias ficavam juntas enquanto aguardavam a decisão de um tribunal de imigração sobre se poderiam ou não ficar no país. A política de Barack Obama de dar prioridade à deportação de criminosos condenados chegou a ser criticada por alguns republicanos, por, segundo eles, indicar uma maior tolerância a imigrantes ilegais que não cometeram crimes (BBC BRASIL, 2018).
Em nota publicada em seu perfil na rede social “Facebook”, em 20 de junho de 2018, o ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, criticou a política de tolerância zero de Donald Trump: “Somos uma nação que aceita a crueldade de arrancar crianças dos braços de seus pais, ou somos a nação que valoriza a família e trabalha para os manter juntos?” (GOMES, 2018).
1.2 Política de separação de famílias nos Estados Unidos: sintoma de uma crise migratória global
É nítida a correlação existente entre a política de tolerância zero em apreço e a ordem executiva de proibição de viagens, denominada “travel ban”, que quando foi assinada, incutiu verdadeiro temor em milhares de residentes legais dos Estados Unidos em deixar o país, pelo risco de não poderem mais retornar.
Neste contexto, advogados humanistas e cidadãos novamente inspiraram protestos em massa, juntamente com escritórios de prestação de serviços jurídicos voluntários, as chamadas “pro bono legal clinics”, que começaram a obter sucesso em seus pleitos perante os Tribunais norte-americanos.
Desse modo, o governo foi forçado a editar a ordem executiva de proibição de viagem para residentes legais, importante conquista alcançada pela comunidade jurídica humanista, traduzida na prática, pela redução da lista de países alcançados pela ordem, a manutenção dos vistos já concedidos e a ausência de proibições de ingresso de refugiados sírios indefinidamente.
Noutro viés, a modificação da ordem tornou mais difícil o acesso aos Tribunais, à medida que agora as pessoas afetadas pelo dispositivo, raramente conseguem sequer entrar no país, o que consequentemente diminui as demandas judiciais em solo norte-americano e a possibilidade de reversão da situação (ROOT e SCHMIDT, 2018).
Desta feita, ambas as políticas – de proibição de viagens e de separação e detenção de famílias imigrantes – são sintomas de uma crise global muito maior: como os países anfitriões recebem seus imigrantes, os quais muitas vezes estão fugindo de situações instáveis ou desumanas.
Segundo Brian Root e Rachel Schmidt (2018), analistas de dados da Organização de Direitos Humanos “Human Rights Watch”, “a política de separação familiar é cruel. Mas isso está acontecendo ao mesmo tempo em que italianos abandonam barcos, e as autoridades mexicanas parecem indiferentes à violência e intimidação das gangues criminosas que os solicitantes de refúgio sofrem quando viajam para o norte”.
Ainda não existem detalhes específicos sobre como ou quando o processo de separação de famílias imigrantes vai acabar e, durante este período, violações de direitos humanos se fazem presentes cada vez mais, acarretando sérias preocupações em relação à saúde física e psicológica de famílias detidas, principalmente crianças, que tornam-se extremamente vulneráveis em razão do mecanismo do sistema de detenção, que não possui tratamento médico adequado e apresenta graves falhas procedimentais.
Nas palavras do próprio presidente, os imigrantes ilegais “infestam” os Estados Unidos da América, e enquanto líder, vem repetidamente tentando culpar os democratas, alegando que uma lei que a oposição defendeu, é a responsável por este imbróglio (WHITE, 2018), qual seja, a lei de tráfico de seres humanos, sancionada na era Bush.
Ratificando o posicionamento do presidente, a Secretária de Segurança Interna, Kirstjen Nielsen, criticou a lei de tráfico de seres humanos da era Bush, que proibiu o retorno imediato de crianças menores desacompanhadas ao seus países de origem, a menos que viessem do México ou do Canadá. Além disso, criticou o Congresso por não corrigir as lacunas legislativas, asseverando que: “O Congresso e os tribunais criaram esse problema, e só o Congresso pode consertá-lo”.
A secretária afirmou ainda durante uma conferência de imprensa: “não temos uma política de separar as famílias na fronteira. Ponto final”.
Os partidários da administração Trump sustentam ainda que muitos destes imigrantes não são necessariamente refugiados, e se não querem ser separados de seus filhos, ou detidos junto a eles, não deveriam tentar entrar no país ilegalmente.
A ordem executiva para fazer cessar a separação de famílias conserva a severidade da política de imigração, à medida que o governo asseverou que a nova diretriz de manter famílias unidas só será aplicada “quando apropriada e consistente com a lei e com os recursos disponíveis” (ROOT e SCHMIDT, 2018), o que gera diversas interpretações altamente subjetivas, que abrem brechas a sua aplicação ou não, de modo discricionário.
Durante um discurso, em meados de junho de 2018, quando o assunto era alvo de protestos, Donald Trump afirmou: “eu não quero que crianças sejam separadas de seus pais, mas quando você processa os pais por entrarem ilegalmente – o que deve acontecer – você tem que separar as crianças” (WHITE, 2018).
Nesse viés, de acordo com o jornal “The Washington Post”, o procurador-geral dos Estados Unidos, Jeff Sessions, em uma entrevista em Maio de 2018, confirmou que a separação de famílias não foi intencional, e asseverou: “Se você não quer que seus filhos sejam separados de você, então não os traga ilegalmente para atravessar a fronteira. Não é nossa culpa”. Posteriormente, afirmou ainda: “[…] Espero que as pessoas recebam a mensagem e cruzem a fronteira pelo porto de entrada, e não a atravessem ilegalmente” (BLAKE, 2018).
Por outro lado, a fim de combater a política da oposição, os senadores democratas assinaram um projeto de lei para deter as separações familiares, mas o documento tem poucas chances de obter aprovação no Congresso, majoritariamente controlado pelos republicanos (WHITE, 2018).
A política de tolerância zero da administração Trump atinge também cidadãos brasileiros que tentam entrar nos Estados Unidos de modo ilegal. Segundo dados fornecidos pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos do governo dos EUA ao Consulado do Brasil, na cidade de Houston, no estado do Texas, estima-se que 49 (quarenta e nove) crianças brasileiras foram separadas dos pais (TREVISAN, 2018).
O Palácio do Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, condenou a separação das famílias. Foi divulgado em nota, orientação aos consulados do Brasil nos Estados Unidos, a mapear os abrigos onde estão alojadas crianças brasileiras separadas dos pais, bem como prestar assistência a elas com visitas constantes, fornecimento de informações sobre os pais e orientação jurídica (AGÊNCIA BRASIL, 2018).
Não obstante, afirmou que a separação familiar é uma “prática cruel e em clara dissonância com instrumentos internacionais de proteção aos direitos da criança” (TREVISAN, 2018).
Por seu turno, o ministro dos Direitos Humanos, Gustavo Rocha, demonstrou preocupação com a situação das crianças: “Para a criança, o melhor é a saída voluntária porque isso não impede que ela volte ao país. [O caso de haver uma criança sozinha] traz uma vulnerabilidade maior” (CRAIDE, 2018).
Paralelamente ao esforço de reunir as famílias, o Ministério dos Direitos Humanos vai orientar os imigrantes brasileiros que queiram deixar os Estados Unidos e retornar de forma voluntária para o Brasil. O empenho do governo brasileiro, segundo o ministro, é para evitar deportações. O processo de deportação inviabiliza o retorno de estrangeiros aos Estados Unidos – o que constituiria uma punição a mais às crianças e adolescentes (CRAIDE, 2018).
O ministro ainda manifestou preocupação sobre a importância da conscientização dos brasileiros no que tange à imigração, alegando que o maior interesse a ser protegido, neste contexto, é o da criança, e a travessia ilegal dos pais não o cumpre da melhor forma.
3.1 Saída voluntária e deportação: diferenças e consequências
Os institutos jurídicos da saída voluntária e da deportação merecem especial destaque no âmbito da discussão sobre imigração ilegal, frente à política de tolerância zero do governo norte-americano.
Isto porque, a aplicação de um ou de outro, determina as consequências a que vão estar submetidos os imigrantes ilegais para o resto de suas vidas.
Especial relevo é dado às crianças imigrantes, pois na grande maioria das vezes fazem a travessia ilegal não por escolha própria, mas pela de seus pais.
Sob esta ótica, é possível que o imigrante ilegal formule pedido de saída voluntária ao Departamento de Segurança Interna (Department of Homeland Security – DHS) ou a um juiz de imigração, ao invés de ser deportado, para evitar que conste pedido de remoção no registro do imigrante (BRAY, 200-?).
A denominada Saída Voluntária, permite que o imigrante ilegal deixe os Estados Unidos, desde que arque com todas as despesas de transporte. O instituto pode ser requerido perante o Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos, antes de audiência no Tribunal; perante o juiz de imigração, na primeira audiência em tribunal; ou ao fim do processo judicial de imigração, de acordo com as especificidades de cada caso (BRAY, 200-?).
O DHS tem autoridade para permitir a saída voluntária antes de se dar início ao processo judicial, e um juiz de imigração tem o poder de conceder uma ordem de saída voluntária na primeira audiência ou na conclusão do processo judicial.
No entanto, obter a qualificação para fazer jus ao instituto da saída voluntária torna-se mais difícil depois da conclusão do processo, se for determinada a remoção do imigrante.
O requisito básico para obter a permissão do DHS ou de um juiz de imigração na primeira audiência, é a ausência de condenação por crime grave e de convicções terroristas. O DHS ou o juiz de imigração também deve entender que o imigrante realmente pretende deixar os Estados Unidos, e não está apenas usando a oportunidade para se esquivar do DHS (BRAY, 200-?).
Outros requisitos básicos que competem ao imigrante solicitante são retirar qualquer pedido eventualmente formulado para cancelamento da remoção, admitir que as alegações do DHS sobre a remoção são verdadeiras, e renunciar ao seu direito de recorrer da decisão do juiz.
A solicitação de saída voluntária ao final do processo, dependerá do juiz de imigração, que considerará todos os fatos do caso e a impressão geral durante a audiência, bem como se você parece merecedor da oportunidade de partir voluntariamente.
Existem outros requisitos adicionais, quais sejam, produzir os documentos de viagem necessários para viajar, comprovar que possui meios financeiros para partir e comprovar ter sido uma pessoa de bom caráter moral nos cinco anos anteriores (BRAY, 200-?).
Tratando-se de deportação, as consequências são mais graves. Há a imposição de uma barreira à reentrada do imigrante deportado, que o impede de retornar aos Estados Unidos por vários anos. Contudo, algumas razões de remoção ensejam consequências mais graves, como condenação por crime de alto potencial ofensivo ou uma fraude de visto, as quais podem justificar uma vedação permanente de entrada no país (BRAY, 200-?).
Assim, se o imigrante tentar entrar novamente no país sem permissão prévia, pode ser sancionado com multa, prisão ou ambos. Uma concessão de saída voluntária elimina a barreira à reentrada e, portanto, outras consequências potenciais que podem surgir com uma ordem de remoção, configurando meio mais benéfico de deixar o país.
É de notório saber que todos os imigrantes, incluindo refugiados, são protegidos pela legislação internacional, especialmente as crianças. Nesse sentido, a grande preocupação em torno da implementação da política de tolerância zero é o resguardo dos direitos humanos, principalmente os direitos da criança pois, considerando a prática de separação de famílias e o “abrigamento” dos infantes em jaulas enquanto seus pais respondem à Justiça – o que pode durar meses -, fica evidente que o controle de imigração se sobrepôs à proteção dos direitos da pessoa humana.
Os direitos humanos consistem em um conjunto de direitos considerado indispensável para uma vida humana pautada na liberdade, igualdade e dignidade. Os direitos humanos são os direitos essenciais e indispensáveis à vida digna.
Não há um rol predeterminado desse conjunto mínimo de direitos essenciais a uma vida digna. As necessidades humanas variam e, de acordo com o contexto histórico de uma época, novas demandas sociais são traduzidas juridicamente e inseridas na lista dos direitos humanos (RAMOS, 2017. p. 21).
Importante destacar que, de acordo com a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, vulgo Pacto de San José de Costa Rica, do qual os Estados Unidos é signatário, dispõe que os direitos essenciais do homem não derivam do fato de ser nacional de determinado Estado, mas sim do fato de ter como fundamento os atributos da pessoa humana, razão por que justificam uma proteção internacional (COSTA RICA, 1969).
Ademais, o dispositivo internacional prevê, em seu artigo segundo, o dever dos países signatários em adotar disposições de direito interno, de acordo com suas normas constitucionais, para garantir a efetividade dos direitos e liberdades constantes da Convenção (COSTA RICA, 1969).
No artigo quinto, do mesmo diploma legal, está previsto o direito à integridade pessoal, traduzido pelo respeito à integridade física, psíquica e moral e pela vedação de “penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes”, ao estabelecer que “toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano” (COSTA RICA, 1969).
Ainda, em seu artigo dezenove, estabelece que “toda criança tem direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer por parte da sua família, da sociedade e do Estado” (COSTA RICA, 1969).
No que concerne aos direitos das crianças especificamente, relevante sublinhar que, de acordo com o Escritório da ONU, os Estados Unidos é o “único país do mundo que não ratificou a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança” (ONU NEWS, 2018).
Além disso, os Estados Unidos se retirou do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (UNHRC) no mês de junho de 2018, sob a justificativa de que não concordava com a “política anti-israelense” do órgão. Coincidentemente, na mesma época em que o país recebeu duras críticas do alto comissário da entidade, Zeid Ra’ad Al Hussein, por sua política de tolerância zero contra a imigração (RUIC, 2018).
Sob outra ótica, os Estados Unidos concordaram com a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, quando se juntou a outros 145 países ao ratificar o chamado Protocolo Relativo ao Estatuto dos Refugiados, em 1968.
Estes tratados definem um “refugiado” como uma pessoa que foge do seu país de origem, em razão de receio fundado de perseguição com base em raça, religião, nacionalidade, filiação a um determinado grupo social ou opinião política.
Nos termos dos tratados, os refugiados têm o direito humano de solicitar asilo. Além disso, esses tratados proíbem os países de expulsar refugiados ou enviar imigrantes para países onde sua vida ou liberdade seria ameaçada com base nas mesmas cinco categorias, o que consagra o princípio do non-refoulement (proibição do rechaço).
O princípio da proibição do rechaço, apenas não poderá ser invocado se o refugiado for considerado, por motivos sérios, um perigo à segurança do país, ou se for condenado definitivamente por um crime ou delito particularmente grave, constitua ameaça para a comunidade do país no qual ele se encontre, de acordo com o artigo 33 do Protocolo em comento (RAMOS, 2017, p. 181).
Esses tratados também proíbem os países de punir refugiados por entrarem ilegalmente se sua vida ou liberdade foi ameaçada em seu país de origem.
Apesar disso, a administração Trump está processando também os requerentes de asilo. Significa dizer que, quando o governo dos EUA processa ou aprisiona esses solicitantes de refúgio, viola seus direitos protegidos nos dois tratados que reconhecem o direito humano de pedir asilo.
Outro tratado que protege os que estão envolvidos nas políticas de imigração do governo Trump é o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, o qual teve por finalidade tornar juridicamente vinculantes aos Estados vários direitos já contidos na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, detalhando-os e criando mecanismos de monitoramento internacional relativos a sua implementação pelos Estados Partes (RAMOS, 2017, p. 155).
Tal tratado foi ratificado pelos Estados Unidos em 1992 e determina que, quando um governo aprisiona uma pessoa, deve tratá-la humanamente e com respeito, em razão da dignidade inerente à pessoa humana. Assim, a detenção indefinida de imigrantes constitui violação ao Pacto.
Os Estados Unidos atualmente possui mais de 10.000 (dez mil) crianças detidas, que permanecem uma média de 56 (cinquenta e seis) dias em centros de detenção, de acordo com o jornal “The Washington Post”.
De acordo com dados do ano de 2017, compilados pelo “Global Detention Project” (Projeto de Detenção Global), os Estados Unidos têm mais de 300.000 (trezentos mil) imigrantes detidos em geral, dos quais mais de 40.000 (quarenta mil) são requerentes de asilo (NICHOLSON, 2018).
Destarte, com a nova ordem do presidente Trump ordenando a detenção por tempo indeterminado, esses números certamente aumentarão, e o Pacto proíbe expressamente a detenção de imigrantes dessa maneira, visto que garante “o direito à liberdade” e proíbe a “prisão ou detenção arbitrária”, além de dispor que os Estados permitam que qualquer detido discuta sua detenção perante um tribunal, e sem demora (NICHOLSON, 2018).
No que se refere às condições de abrigamento das crianças, tem-se que de acordo com descobertas atestadas pela Academia Americana de Pediatria, as condições nas instalações de detenção nos EUA, que incluem forçar as crianças a dormir em pisos de cimento, banheiros abertos, exposição constante à luz, água e alimentos insuficientes, falta de instalações de banho e temperaturas extremamente frias, são altamente traumatizantes para as crianças (NICHOLSON, 2018).
Ainda segundo a academia, os efeitos psicológicos da detenção em crianças e pais geralmente incluem ansiedade, depressão e transtorno de estresse pós-traumático (NICHOLSON, 2018).
Para as mais de duas mil crianças separadas de seus pais na fronteira, os efeitos são ainda mais prejudiciais. Em um artigo recente, publicado no “New England Journal of Medicine”, a pediatra Dr. Fiona Danaher afirmou que a separação pode impedir o desenvolvimento de crianças e causar doenças físicas e mentais ao longo da vida (NICHOLSON, 2018).
Ao deter e separar famílias, a própria estrutura da família é interrompida indefinidamente. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos reconhece explicitamente o direito fundamental à vida familiar, proíbe os governos de interferirem na vida da família e exige que eles protejam as crianças e suas conexões com a família, independentemente de sua origem nacional (NICHOLSON, 2018).
Nesse viés, destaca-se também a Declaração de Nova York sobre refugiados e migrantes, de natureza jurídica “soft law” (sem força vinculante), mas que ainda assim deve ser utilizado como instrumento de interpretação da dignidade humana e das obrigações internacionais de tratados (RAMOS, 2017, p. 305).
A Declaração foi adotada por consenso entre os 193 Estados membros da ONU, tendo como pano de fundo o aumento dos fluxos de pessoas em todo o globo nas últimas décadas, tanto em virtude de conflitos internos, perseguições, violações maciças de direitos humanos, mudanças climáticas, desastres de toda natureza ou por busca de melhores condições de vida (RAMOS, 2017, p. 306).
Assim, para enfrentar essa situação, os Estados adotaram, sobretudo, os compromissos genéricos de proteger os direitos humanos de todos os refugiados e migrantes, não importando o estatuto migratório, respeitando a Declaração Universal de Direitos Humanos e demais tratados internacionais (RAMOS, 2017, p. 306).
Desse modo, ainda que se afirme que nem todos os imigrantes ilegais são requerentes de asilo, há a situação das crianças, pois ainda que tentem entrar no país ilegalmente, sozinhas ou acompanhadas de seus pais, devem ser prioritariamente protegidas.
4.1 Estados Unidos: legislação interna
Igualmente, a questão concernente aos imigrantes ilegais entra em conflito com as leis domésticas dos Estados Unidos da América.
A detenção de crianças viola um acordo judicial de 1997, que exige a libertação de crianças imigrantes dentro de 20 dias.
Outrossim, na data de 24 de junho de 2018, o presidente Trump determinou a imediata deportação de todos os imigrantes ilegais, sem qualquer revisão judicial, o que além de violar as leis acima consignadas, viola o princípio do devido processo, consagrado pela Constituição do país, que estabelece que o governo não pode privar ninguém de sua “vida, liberdade ou propriedade, sem o devido processo legal” (NICHOLSON, 2018).
Em fevereiro, a Suprema Corte se recusou a decidir sobre a legalidade da detenção de requerentes de asilo e outros imigrantes por longos períodos, sem audiências de fiança. O juiz Stephen Breyer, em discordância, argumentou que a detenção de imigrantes por longos períodos, sem qualquer revisão judicial era inconstitucional. Isto porque, a cláusula do devido processo legal – na própria linguagem da Carta Magna dos Estados Unidos – impede a detenção arbitrária, e a liberdade da restrição corporal está contida em uma esfera mais ampla de liberdade, aquela “lato sensu” protegida por lei (NICHOLSON, 2018).
4.2 Resolução da Organização dos Estados Americanos (OEA)
Em meio à crise, a Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou em junho de 2018, uma resolução patrocinada pelo México, que denuncia a política de imigração de tolerância zero do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump (BUSINESS STANDARD, 2018).
A resolução, que foi também apoiada pelos países do Triângulo Norte da América Central (El Salvador, Honduras e Guatemala – países pobres e violentos que são a fonte de um grande número de solicitantes de asilo nos Estados Unidos), foi surpreendentemente aprovada por consenso e sem oposição dos Estados Unidos, durante uma sessão do Conselho Permanente da OEA.
Basicamente, a resolução ostentou enérgica condenação à prática de separação de famílias imigrantes no país, pois consiste em flagrante violação de direitos humanos, e solicitou medidas urgentes para reunificá-las (EXAME, 2018).
No documento, o Conselho Permanente também incentivou a intervenção da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), fazendo visitas à região de fronteira a fim de “observar as consequências das políticas migratórias, de refúgio e asilo implementadas pelos Estados Unidos” (EXAME, 2018).
Apesar de não possuírem força vinculante e serem considerados meras recomendações, os relatórios temáticos da OEA são amplamente divulgados e podem servir para que a Comissão Internacional de Direitos Humanos venha a processar os Estados infratores perante a Corte Internacional de Direitos Humanos (RAMOS, 2017, p. 316).
Após o presidente Trump assinar a ordem executiva que põe fim ao processamento criminal automático dos adultos imigrantes em situação ilegal, que levava à separação das famílias, o texto da Resolução foi modificado somente para incluir menção à necessidade de “implementar as medidas recentemente anunciadas dirigidas a evitar a separação de famílias” (EXAME, 2018).
Conclusão
Com a crescente crise migratória, que assola dentre inúmeras outras nações, os Estados Unidos, e tende apenas a aumentar nas próximas décadas, denota-se ser de extrema urgência encontrar diretrizes mais flexíveis e humanas para o denominado controle de fronteiras.
Nesse espeque, ao basear os direitos na humanidade comum a todos os seres, não na nacionalidade ou em qualquer outra característica, a lei internacional de direitos humanos demonstra-se fundamental para desafiar o sentimento anti-imigrante, que majoritariamente limita os direitos que deveriam ser concedidos a todos, mas muitas vezes estão disponíveis apenas às classes privilegiadas.
Os princípios humanistas existem por uma razão. A história ensina muito claramente que sua ausência fatalmente condiciona o florescimento da tirania, que prejudica principalmente os menos poderosos.
Não significa dizer que o direito soberano dos Estados Unidos de defender suas fronteiras e estabelecer sua própria política de imigração não é legítimo, porque é. Porém, este direito deve ser exercido em observância às diretrizes internacionais de direitos humanos, as quais devem ser implementadas no âmbito doméstico, de acordo com a Constituição do país, nos termos do que dispõem os tratados internacionais.
Até porque, é impossível discernir quem de fato são os refugiados, dentre a totalidade dos imigrantes ilegais, razão pela qual a política mais plausível é não processar criminalmente, de forma automática, todos eles.
Com a cessação da política de tolerância zero, o governo estadunidense poderá abster-se de processos em massa e permitir que o Ministério Público exerça sua discricionariedade em relação aos processos criminais por entrada ilegal, o que desafogaria sobremaneira a máquina pública.
No entanto, se ainda assim os promotores tiverem boas razões para processar os imigrantes ilegais não solicitantes de asilo, as unidades familiares devem ser mentidas unidas, garantindo que os adultos não-cidadãos, sejam colocados em um ambiente de custódia ao menos próximo às instalações em que seus filhos estejam mantidos, facilitando as visitas familiares e a reunião o mais rápido possível.
Quanto às famílias já separadas, medidas adequadas precisam ser tomadas para permitir que as crianças e seus pais sejam rapidamente reunidos, bem como para garantir que os pais não sejam deportados enquanto seus filhos ainda estiverem sob custódia.
Finalmente, o Congresso necessita agir para reformar a Lei de Imigração dos Estados Unidos, a fim de respeitar os direitos das pessoas que buscam asilo, e das famílias em geral, principalmente das crianças, em razão de sua vulnerabilidade.
Embora o país tenha o direito indiscutível de policiar suas fronteiras, criminalizar famílias e traumatizar crianças não deveria ser a tática de qualquer governo, principalmente de um governo pautado na democracia.
Referências bibliográficas
WHITE, Jeremy B. Immigrant Family separations: The reality of US-Mexico border crisis. Jun. 2018. Disponível em: <https://www.independent.co.uk/news/world/americas/us-politics/borderimmigrants-facts-trump-us-mexico-children-families-separate-a8406831.html#explainer-question-3>. Acesso em: 6 ago. 2018.
ROOT, Brian; SCHMIDT, Rachel. Family separation: A Flashpoint in the Global Migrant Crisis. Jun. 2018. Disponível em: <https://www.hrw.org/news/2018/06/29/family-separation-flashpoint-global-migrant-crisis>. Acesso em: 6 ago. 2018.
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