Márcio L. Spimpolo[1]
Helena de Oliveira Rosa[2]
Resumo: Em 2020, surgiram questionamentos quanto às funções exercidas pelo síndico dentro de um condomínio, em decorrência das recomendações do Ministério da Saúde, da aprovação de decretos estaduais e municipais cujo teor, direta ou indiretamente, determinavam a restrição do uso de áreas comuns com o intuito de conter a propagação do Covid-19. Tal discussão aprofundou-se com a aprovação do Projeto de Lei 1.179/2020, que trata do Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET), que delega ao síndico o poder de restringir o uso e acesso a áreas comuns do condomínio, assim como a realização de reuniões tanto nas áreas comuns quanto nas unidades privativas dos condôminos. Contribuindo com esse debate, neste trabalho, são analisados os poderes concedidos a essa figura jurídica do condomínio, tendo como base o direito de propriedade brasileiro e o direito comparado, com enfoque para quatro legislações: Espanha, Portugal, França e Catalunha. Analisa-se, ainda, o que é disposto pela Constituição Federal e o Código Civil Brasileiro, no que tange à propriedade e ao tópico do condomínio, ilustrando que a compropriedade garante o uso e o gozo, inclusive das partes comuns, pelos condôminos, não cabendo ao síndico interferir sobre esse direito sem que haja a devida concordância daqueles.
Palavras-chave: Condomínio. Síndico. Direito de propriedade. Direito comparado. Propriedade horizontal.
Abstract: In 2020, several questions have arisen as to the functions exercised by the building manager in a condominium, as a result of the Health Ministry’s recommendations, of the approval of state and city decrees whose content, directly or indirectly, determined the restriction of the use of common areas, aiming to contain the spread of Covid-19. This discussion has deepened with the approval of the Law Project 1.179/2020 Law Project, known as “Emergency and Transitional Legal Regime of the legal relations of Private Law” (RJET), which delegated to the building manager the power to restrict the use and the access of the common areas of the condominium, as well as meetings both in common and private areas of the residents. Contributing to this debate, this paper analyzes the powers granted to this juridical figure of the condominium, based on the Brazilian propriety law and the comparative law, focusing on the legislation of four countries: Spain, Portugal, France and Catalonia. One has analyzed what is disposed by the Federal Constitution and the Brazilian Civil Code in reference to the propriety and the topic of condominiums, illustrating that the co-ownership guarantees the use and enjoyment, including the common parts by the tenants, not making the manager’s role the one of interfering in this right without the due agreement of the former.
Keywords: Condominium. Building manager. Propriety law. Comparative law. Horizontal propriety.
Sumário: Introdução. 1 O Direito de Propriedade e os Princípios Constitucionais. 1.1 Princípio da supremacia da norma constitucional. 1.2 Princípio da privacidade. 1.3 Princípio da propriedade privada. 2 A propriedade privada no direito comparado. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Em maio de 2020, o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Lei (PL) 1.179/2020 que “dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Corona vírus (Covid-19)” (BRASIL, 2020, p. 1). Desde a sua gênese, em 30 de março de 2020, proposta pelo então senador Antonio Anastasia (Partido Social Democrático de Minas Gerais – PSD/MG), até a sansão de parte do projeto pelo Presidente da República, Jair Bolsonaro, em 10 de junho de 2020, transformando-o na Lei 14.010/2020, muitos foram os debates em plataformas virtuais entre vários especialistas, como juristas, juízes, advogados e professores da área do Direito Imobiliário-Condominial, em palestras, aulas e através de lives.
Digno de nota é que os artigos vetados pelo Presidente foram os que mais ganharam luz e voz, nesse período. Dentre eles, destaca-se, para a análise do tema proposto, o artigo 11, com o seu veto mantido pelo Congresso Nacional, cuja matéria é específica para condomínios, com ênfase especial para as funções do síndico:
“Em caráter emergencial, até 30 de outubro de 2020, além dos poderes conferidos ao síndico pelo art. 1.348 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), compete-lhe: I – restringir a utilização das áreas comuns para evitar a propagação da Covid-19, respeitado o acesso à propriedade exclusiva dos condôminos; II – restringir ou proibir a realização de reuniões e festividades e o uso dos abrigos de veículos por terceiros, inclusive nas áreas de propriedade exclusiva dos condôminos, como medida provisoriamente necessária para evitar a propagação da Covid-19, vedada qualquer restrição ao uso exclusivo pelos condôminos e pelo possuidor direto de cada unidade;
Parágrafo único. As restrições e proibições contidas neste artigo não se aplicam aos casos de atendimento médico, à realização de obras de natureza estrutural ou à realização de benfeitorias necessárias”. (BRASIL, 2020, Art. 11).
A aprovação do projeto de lei insere-se em um conjunto de discussões sobre qual deve ser o limite de atuação do síndico em uma situação considerada atípica, como a restrição do uso de espaços públicos por decretos estaduais e municipais. No Brasil, a matéria do condomínio edilício é regulada pelo Código Civil, e, assim como noutras legislações estrangeiras, admite que duas ou mais pessoas tenham o direito pleno sobre um bem (MIRANDA, 2001).
O condomínio, para além de compreender um direito de propriedade sobre uma unidade autônoma, também contempla um direito de copropriedade sobre as partes comuns do edifício (DER MERWE, 2016). Como o direito do proprietário não pode se sobrepor ao de seus vizinhos, considerando que todos são donos da coisa, o condomínio apresenta-se por meio de múltiplas relações jurídicas (MIRANDA, 2001), que se traduzem em dispositivos legais e acordos comunitários entre os moradores; sendo, uma delas, a eleição de um síndico para representar os condôminos e desempenhar o gerenciamento do condomínio.
Nas legislações modernas, “a administração geral do edifício é confiada […] a uma pessoa física ou jurídica, representante dos condôminos” (LOPES, 2003, p. 31), que é o síndico. No direito brasileiro, o síndico é posto como o representante dos condôminos, tanto em juízo quanto fora dele, em tudo o que concerne à administração (MIRANDA, 2001), e tem suas competências reguladas pelo artigo 1.348 do Código Civil.
Pontes de Miranda (2001) explica que o síndico possui poderes em tudo o que concerne à administração, cabendo apenas à maioria dos condôminos retirá-los. Tal ponto é focal, ao se considerar a discussão insurgente quanto aos limites de ditos poderes, em um contexto de exceção representado por uma pandemia.
Com o pretexto de “representar o condomínio, praticando em juízo ou fora dele, os atos necessários à defesa dos interesses comuns” (BRASIL, 2002, Art. 1.348, II), bem como “diligenciar a conservação e a guarda das partes comuns e zelar pela prestação dos serviços que interessem aos possuidores (BRASIL, 2002, Art. 1.348, V), muitos síndicos têm entendido e decidido que, sozinhos, podem restringir e até impedir o uso de áreas comuns, bem como o acesso de visitantes, obras, e também as mudanças, ficando eles resguardados ou blindados sob todos os aspectos, visto que, além do Código Civil, estão seguindo as recomendações dos decretos municipais/estaduais, além das diretrizes do Ministério da Saúde destinadas a evitar a propagação do Covid-19.
Com a sansão de parte do PL 1.179/2020 e o veto do artigo 11 retro mencionado, essa discussão acirra-se, tornando necessária a contribuição de estudiosos do direito imobiliário-condominial sobre os poderes do síndico, objeto de estudo deste trabalho. Dessa forma, o texto se divide em três partes. Na primeira, são analisadas as competências do síndico à luz da Constituição Federal e dos Princípios Constitucionais, com enfoque em como o direito de propriedade se aplica ao condomínio.
Na segunda, é apresentado um panorama de quatro legislações estrangeiras: Espanha, Catalunha, Portugal e França, enfocando como cada uma trata a questão dos poderes do síndico. Por fim, é feita breve análise dos poderes do síndico no Brasil, encaminhando para as conclusões sobre as limitações que devem ser impostas nas decisões do síndico quanto a restringir ou proibir o uso das áreas comuns, mormente em questões relacionadas à unidade privativa.
1 O Direito de Propriedade e os Princípios Constitucionais
Não há que se falar em normas positivadas sem avaliar as questões principiológicas que permeiam o sistema normativo. Este último decorre, quase sempre, dos problemas e conflitos que brotam da sociedade. Para Luís Roberto Barroso (2009, apud QUEIROZ ASSIS et al., 2016), o ponto de partida do intérprete há que ser sempre os Princípios Constitucionais, que são o conjunto de normas que espelha a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e afins.
Segundo o autor, dito de forma sumária, os Princípios Constitucionais são normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que o institui. Diante disso, é fundamental perambular sobre alguns dos mais importantes, visto que o estudo do Direito Condominial, assim como qualquer outro ramo do Direito, organiza-se a partir dos Princípios Constitucionais, que estão diretamente relacionados com o Direito de Propriedade. Dentre eles, os que servirão de fundamento para a presente tese são: 1) O Princípio da Supremacia da Norma Constitucional; 2) O Princípio da Privacidade; 3) O Princípio da Propriedade Privada.
1.1 Princípio da supremacia da norma constitucional
Esse princípio remete aos ensinamentos de Hans Kelsen (1998) de que a Constituição Federal sempre deve se sobrepor às demais normas do ordenamento jurídico. Isso significa dizer que as normas constitucionais devem estar acima de todo trabalho de orientação do profissional do Direito, bem como dos órgãos jurisdicionais (Legislativo e Judiciário). Isto é especialmente relevante dentro deste trabalho, posto que o legislador, seja na esfera federal, estadual ou municipal, tem produzido leis que se aplicam ao Direito Condominial, interferindo sobremaneira na forma de viver de cada um desses microssistemas coletivos, empoderando e responsabilizando os síndicos eleitos.
Nas lições de Queiroz Assis (et al., 2016), tal princípio pode conter dois limites: materiais e formais. No primeiro – Limite Material – as normas infraconstitucionais devem sempre estar submissas e de acordo com as normas superiores. O autor exemplifica que o Regimento Interno do Condomínio não pode estar em dissonância da Convenção Condominial e essa, de igual forma, não pode afrontar as normas de Legislação Civil, que, ao seu tempo, jamais deve contrariar a Constituição Federal e seus princípios. Por isso, em última análise, são os princípios e as normas constitucionais que garantem a validade das normas do regime jurídico condominial.
Quanto ao segundo – Limite Formal –, aplicando diretamente ao Condomínio Edilício, significa dizer que a forma de elaboração e/ou alteração das Convenções e Regulamentos Internos devem se subsumir à formalidade das normas superiores, como, por exemplo, neste caso, as do Código Civil. E este último, por seu turno, quando de sua alteração, nas normas e Princípios Constitucionais.
Esse princípio auxilia a entender que, quando há atribuições ou normas dentro do condomínio, que se apresentem desconexas ou em choque com os diplomas hierarquicamente superiores, necessitam ser imediatamente remediadas e conduzidas ao seu lugar. Como exemplo, pode-se dizer que, em uma Assembleia, se a maioria absoluta dos condôminos decidir pela alteração da finalidade do edifício residencial para comercial, com base numa cláusula convencional expressa, tal decisão estará eivada de nulidade, posto que o Código Civil está numa posição hierarquicamente superior, e determina que, para tal modificação de finalidade do prédio, deve-se obedecer ao quórum da unanimidade dos condôminos (BRASIL, 2002, Art. 1.351).
1.2 Princípio da privacidade
Insculpido no artigo 5o, inciso X, da Constituição Federal, está postulado que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (BRASIL, 1988, Art. 5o, X). Diante da leitura do dispositivo, infere-se que o indivíduo esteja protegido contra intromissões, interferências, ingerências e quaisquer outras imissões na intimidade da vida privada e familiar.
Celso Bastos (1989, p. 63 apud QUEIROZ ASSIS et al., 2016, p. 191) entende que privacidade é:
“[…] a faculdade que tem cada indivíduo de obstar a intromissão de estranhos em sua vida privada e familiar, assim como de impedir-lhes o acesso a informação sobre a privacidade de cada um, e também impedir que sejam divulgados informações sobre esta área da manifestação existencial do ser humano”.
Então, é preciso entender que, diante de tal princípio, qualquer cidadão morando em loteamentos ‘abertos’ ou em condomínios, poderia, a qualquer tempo, utilizar o seu Direito Constitucional de fazer cessar quaisquer intromissões em sua vida privada, sejam elas originárias do Estado, por meio de Leis, Decretos e Resoluções infraconstitucionais, ou mesmo de inúmeras normas, instituídas, muitas vezes, sem o devido amparo constitucional, entre as quais, certamente, se incluem as Convenções e Regulamentos Condominiais e os estatutos de associações de moradores.
Importante trazer à liça o promulgado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos que, já no ano de 1948, sobrelevava o inafastável direito à privacidade como componente básico da vida, segundo o qual “ ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda pessoa tem direito à proteção da lei” (NAÇÕES UNIDAS, 2009, Art. 12).
Ainda, nosso Diploma Civil (2002, Art. 21) ecoa o espírito do Princípio Constitucional e da Declaração dos Direitos Humanos, quando preceitua que “a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar atos contrários a esta norma” (BRASIL, 2002, Art. 21).
Diante desse princípio, percebe-se, de forma mais háptica e inequívoca, quando uma lei, um decreto ou uma resolução atenta contra o Direito imperturbável e inabalável da fruição plena da propriedade. Assim, nem comandos infraconstitucionais e nem mesmo Assembleias Condominiais podem, sob qualquer pretexto, inserir regramento que retire quaisquer daqueles poderes inerentes à privacidade, profusamente consagrados pela Constituição brasileira.
1.3 Princípio da propriedade privada
Tal princípio revela-se como aquele que garante ao proprietário a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que, injustamente, a possua ou detenha, conforme ordenado pelo Código Civil (BRASIL, 2002, Art. 1.228). Excetuando-se algumas limitações fixadas pela própria lei, tem-se que a propriedade é plena e exclusiva.
O disposto no Código Civil, inclusive, encontra seu fundamento e guarida na ordem constitucional. São vários dispositivos constitucionais, que reportam ao Direito de Propriedade. Dentre eles, sobreleva-se o próprio caput do artigo 5o da Constituição, que confere à propriedade o status de Direito Fundamental, ao lado da vida, liberdade, igualdade e segurança.
Se já não bastasse estar, o Direito de Propriedade, catalogado como um dos Direitos Fundamentais da pessoa humana, há outros incisos insertos no mesmo artigo 5o (incisos XXII a XXVI), fato que impede que os seus conteúdos sejam suprimidos ou modificados por Emenda Constitucional. Destaca-se, dentre esses, o inciso XXII, que garante o Direito de Propriedade.
Desse modo, repisando as lições anteriores, qualquer que seja a norma assente (federal, estadual ou municipal), deverá estar sempre subsumida e submissa aos princípios que regem a propriedade privada, e jamais, em nome do sagrado direito de propriedade, retirar-lhe quaisquer dos poderes intrínsecos a ela, qual seja, o direito de usar, fruir e dispor.
2 A propriedade Horizontal no Direito Comparado
Antes do século XX, alguns países já possuíam dispositivos sobre a propriedade horizontal, em seus códigos, baseando-se no artigo 664 do Código Napoleônico. Tal cenário altera-se, em decorrência da crise habitacional observada na maioria dos países, sobretudo dos europeus, após as duas Guerras Mundiais (DER MERWE, 2015). Dessa forma, leis sobre a temática da propriedade horizontal foram aprovadas, com a Bélgica (1924) sendo o primeiro país a regulamentar devidamente o instituto (MILLER, 1998 apud FAZANO, 2007).
Com a regulamentação e posterior modificação das legislações, a propriedade horizontal consolida-se como um direito novo, que combina a propriedade de uma unidade com a copropriedade sobre as partes comuns de um edifício (LOPES, 2003). Tal concepção alterou a forma como os países tratavam, até então, os “sistemas de apartamentos” que, muitas vezes, eram de propriedade de única pessoa, que os alugava, ou, então, eram objeto de contratos de concessão, os chamados leaseholds (EASTHOPE, 2019).
Admitida a multipropriedade em edifícios, surgem diferentes formas de ser proprietário de um apartamento. Para Der Merwe (2015), predominam dois sistemas de propriedade horizontal no mundo: o unitário e o dualístico. O sistema unitário foi adotado em países que desejavam acabar com o princípio de superfícies solo credit, herdado do Direito romano. Trata-se, pois, de um sistema no qual o edifício como um todo é submetido ao regime de copropriedade, atribuindo-se uma fração ideal a cada morador (LOPES, 2003).
Em outras palavras, prevalece a ideia de que o dono de um apartamento é, em primeira instância, coproprietário do terreno e dos edifícios que o compõem. O direito de uso exclusivo concedido a cada proprietário, em relação a uma parte do edifício, é considerado um “incidente auxiliar”, dentro da propriedade conjunta da terra e dos edifícios (DER MERWE, 2015).
Um exemplo desse tipo de propriedade são as cooperativas, nas quais os indivíduos, ao possuírem uma fração do órgão que é proprietário do prédio, obtêm o direito de uso exclusivo sobre as unidades (EASTHOPE, 2019). O órgão, geralmente denominado cooperativa de moradores, designa um gerente para tratar de questões relacionadas à manutenção e ao gerenciamento do prédio (EASTHOPE, 2019). Alguns estados federados norte-americanos adotam o sistema de cooperativas, em que uma sociedade constrói o edifício e garante o seu gozo aos acionistas (FAZANO, 2007).
No sistema dualístico, suas espécies de direitos são combinadas; a propriedade individual do apartamento e a copropriedade das partes comuns, para formar um novo tipo de propriedade composta (DER MERWE, 2015). A propriedade individual da unidade é posta como o elemento mais importante desse sistema (DER MERWE, 2015) e o condomínio é um dos seus principais representantes (EASTHOPE, 2019).
Diante do que foi exposto, percebe-se que o condomínio é definido como um modelo dualístico da propriedade horizontal, na medida em que o proprietário da unidade autônoma é também coproprietário das partes comuns do edifício. Ao comparar o Direito Condominial brasileiro com o de outros países, chega-se a algumas conclusões quanto aos poderes do síndico, mormente quanto às discussões evidenciadas devido à pandemia do Covid-19.
O primeiro país analisado é a Espanha, onde o instituto da Propriedade Horizontal é regulado pela Lei 49/1960, conhecida como Lei de Propriedade Horizontal, segundo a qual as partes comuns e privativas formam um todo indissolúvel. Assim, quem se converte em proprietário de uma unidade autônoma, passará, simultaneamente, a ser coproprietário dos elementos comuns do edifício (BERMÚDEZ, 2018).
A administração do condomínio é feita pelos órgãos de governo da propriedade horizontal, cujas principais figuras são a junta de proprietários, o presidente da comunidade e o administrador. A junta é composta por todos os titulares do regime de propriedade horizontal e tem as funções de um órgão de administração coletiva (REINO DA ESPANHA, 1960). Como pontua Bermúdez (2018), a Junta de Proprietários é a Assembleia na qual todos os proprietários podem intervir e em que são tomadas as decisões que afetam a vida da “comunidade de vizinhos”.
Tanto o presidente quanto o administrador são nomeados e removidos pela Junta de Proprietários (REINO DA ESPANHA, 1960). Enquanto o presidente é o representante legal da comunidade, o administrador possui funções ligadas ao funcionamento e à manutenção do condomínio. O presidente é eleito entre os proprietários, enquanto o cargo de administrador pode ser exercido por um dos proprietários, pelo próprio presidente, ou por uma pessoa jurídica ou física de fora do condomínio (REINO DA ESPANHA, 1960).
A jurisprudência espanhola, representada pelo Supremo Tribunal da Espanha, não possui um critério claro, ao qualificar juridicamente a posição do presidente da comunidade (BERMÚDEZ, 2018). Algumas resoluções o tratam como um órgão que personifica a comunidade de proprietários, e, por isso, suas decisões são consideradas as da própria junta. Outras decisões destacam que a representação do presidente se encontra entre o orgânico e o voluntário, e, por isso, deve ocorrer sempre em acordo com a junta de proprietários (BERMÚDEZ, 2018).
Contudo, o órgão possui consolidada jurisprudência no que concerne aos limites de atuação do presidente. O Supremo Tribunal da Espanha destaca que, mesmo que a Lei 49/1960 reconheça ao presidente da comunidade de proprietários a representação em juízo e fora desse, “isso não significa que esteja legitimado para qualquer atuação pelo simples fato de ostentar o cargo de presidente já que não pode suprir ou corrigir a vontade da comunidade expressada nas juntas ordinárias ou extraordinárias” (CENDOJ, ATS 2.958/2020, p. 3).
O administrador também não tem o poder de decidir sobre o uso das áreas comuns sem o consentimento dos proprietários, na medida em que o Código Civil (Art. 396) garante aos proprietários em regime de propriedade horizontal a copropriedade sobre os elementos comuns do edifício, o que engloba o seu uso e desfrute (REINO DA ESPANHA, 2018, art. 396).
A Catalunha, região autônoma da Espanha, também adota um posicionamento parecido ao espanhol, quanto aos papeis do presidente e do administrador do condomínio. Em 2006, a Catalunha aprovou a Lei 5, que alterou o Livro V do seu Código Civil e tornou inaplicável a Lei de Propriedade Horizontal espanhola em seu território (FAZANO, 2007). Ademais, o país passou a resolver os conflitos de jurisprudência com relação ao condomínio no Tribunal Superior de Justiça Catalão e não mais no Supremo Tribunal Espanhol (FAZANO, 2007).
Assim, a propriedade horizontal é regulada pelo Capítulo III, Livro V, do Código Civil Catalão. As normas catalãs, diferentemente das espanholas, são dispositivas, o que significa que as comunidades de proprietários são regidas por seu próprio título constitutivo, desde que respeitem o que é disposto pelo Código Civil (FAZANO, 2007).
No artigo 553-14 do Código Civil são definidos os órgãos da comunidade de proprietários, que são a presidência, secretaria e junta de proprietários. O cargo de presidência deve ser obrigatoriamente exercido por um dos proprietários, enquanto o de secretário pode ser assumido por um proprietário, ou por uma pessoa externa que atenda às funções de administração.
Diferentemente da lei espanhola, o presidente não pode assumir outras funções (COMUNIDADE AUTÔNOMA DA CATALUNHA, 2006). A legislação catalã coloca a Junta de Proprietários como o “órgão supremo” da comunidade de vizinhos, e estipula que “os acordos […] que privem a qualquer proprietário das faculdades de uso ou desfrute dos elementos comuns […] requer o consentimento expresso dos proprietários afetados” (COMUNIDADE AUTÔNOMA DA CATALUNHA, 2006, Art. 553-25, p. 4). Ou seja, o presidente e o administrador são figuras jurídicas apontadas pela própria junta, e, por isso, precisam de aprovação, ao tomar decisões que afetem diretamente os direitos dos proprietários.
A condição do síndico também pode ser analisada na legislação de Portugal, que tem a propriedade horizontal regulada pelos artigos 1.414 a 1.430 do Código Civil de 1966. Assim como a Espanha, a lei portuguesa estipula que “cada condômino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício” (PORTUGAL, 1966, Art. 1420, 1). O direito de propriedade e copropriedade são incindíveis e não podem ser alienados de forma separada (PORTUGAL, 1966, Art. 1.420, 2).
A administração das partes comuns é responsabilidade tanto do administrador quanto da Assembleia de condôminos, mas a segunda tem o poder de eleger e exonerar o primeiro (PORTUGAL, 1966). Ao analisar os poderes do administrador, no âmbito da legislação portuguesa, Passinhas (2006) argumenta que o administrador possui o poder autônomo de regular o uso das coisas comuns e a prestação de serviços de interesse comum.
Contudo, tal poder é limitado pelo próprio Código Civil, ao determinar que “na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito” (PORTUGAL, 1966, Art. 1, 406). Assim, o administrador não pode violar o direito de copropriedade de cada condômino sobre as partes comuns, privando-os de seu uso (PASSINHAS, 2006).
Na França, a propriedade horizontal é regulada pela Lei 557/1967, que foi posteriormente complementada pelo Decreto 223/1967. Assim como Portugal, Espanha e Catalunha, a legislação francesa trata as partes comuns do edifício como um objeto indiviso, que se inserem dentro do direito de copropriedade de cada condômino (REPÚBLICA FRANCESA, 1965).
Há uma preocupação em salvaguardar os direitos individuais dos proprietários (LOPES, 2003) na medida em que o artigo 8o da Lei 557/1967 estabelece que o regime de copropriedade não pode impor nenhuma restrição aos direitos dos coproprietários, além daqueles justificados pela destinação do edifício (REPÚBLICA FRANCESA, 1965), e o artigo 9o garante o direito de cada proprietário de desfrutar livremente de sua unidade privativa e das áreas comuns, desde que não inflija os direitos dos demais ou o destino do prédio (REPÚBLICA FRANCESA, 1965).
Diferentemente de outras legislações estrangeiras, a Lei 557/1967 acolhe a tese de personalização jurídica da comunidade de proprietários, ao defini-la como um sindicato de personalidade civil, ou uma entidade suis generis (LOPES, 2003). Comumente conhecido como sindicato de coproprietários, as decisões dessa entidade são tomadas na Assembleia de coproprietários e cabe ao síndico executá-las (REPÚBLICA FRANCESA, 1965).
Quanto ao síndico, autores como Givord e Giverdon (1974 apud LOPES, 2003) postulam que é um órgão independente, que age pelo sindicato e não um represente ut singuli dos condôminos. Contudo, a sua ação é limitada, pois a legislação francesa não possui disposições que permitam ao administrador do condomínio, ou a um grupo de proprietários, criar regras sem o consentimento dos demais (DER MERWE, 2015).
Observando as legislações apresentadas, percebe-se que o síndico, por mais que tenha funções próprias atribuídas por lei, não pode sobrepor suas decisões à Assembleia de condôminos. Dessa forma, legislações como a francesa, a espanhola e a catalã postulam que cabe apenas aos condôminos, em uma assembleia, decidir sobre regras que restrinjam os seus direitos de uso e desfrute (DER MERWE, 2015).
Conclusão
Nos dizeres de João Batista Lopes (2003, p. 113), “da maior importância para a vida do condomínio é, inquestionavelmente, a figura do síndico”. Citando o italiano Peretti-Griva, o mesmo autor diz que o síndico é “l’organo executivo del condomínio”. Como tal, compele ao síndico, então, cumprir e fazer cumprir a Convenção do Condomínio, o Regimento Interno e as decisões das Assembleias, além, certamente, das demais normas constitucionais emanadas das diversas autoridades competentes.
Dessa forma, compete esclarecer alguns equívocos que têm sido cometidos quanto à interpretação dos poderes legais do síndico, dando excessivo empoderamento a ele. As funções do síndico são destacadas pelo artigo 1.348, do Código Civil. Estaria, por exemplo, autorizado, com base no inciso II, deste artigo, a decidir por seu próprio alvitre o que deve ser feito nos espaços das áreas comuns – quem entra e quem sai do condomínio, ou se permite ou não obras nas áreas comuns e nas áreas privativas?
O inciso II, do artigo 1.348, do Código Civil, diz textualmente que compete ao síndico “representar, ativa e passivamente, o condomínio, praticando, em juízo ou fora dele, os atos necessários à defesa dos interesses comuns” (BRASIL, 2002, Art. 1.348, II). Considerando que o síndico é apontado como representante do condomínio para os atos necessários à defesa dos interesses comuns, questiona-se até que ponto esse artigo valida as decisões unilaterais que toma.
Como pontuam as lições de João Batista Lopes (2003, p. 114), “a representação do condomínio pelo síndico só é admitida na defesa dos interesses comuns, como, por exemplo, cobrança das despesas, contratação de serviços de interesse do edifício […]”. Assim, ressalta o jurista, “como órgão executivo do condomínio, não pode usurpar funções deliberativas que, por lei, competem à Assembleia”.
Então, não há como afirmar que o síndico saiba os interesses comuns sem antes organizar uma reunião, em forma de Assembleia, para perscrutar os anseios dos condôminos. Por exemplo, no caso do uso das áreas comuns em contexto de pandemia, é importante escutar o que deseja a maioria dos proprietários.
Assim, o síndico deve ser um executor das decisões da Assembleia e não pode decidir sozinho o que fazer em áreas que pertencem a todos os condôminos, como é o caso das áreas comuns de uso regular do condomínio (BRASIL, 2002). Retomando a discussão do Projeto de Lei 1.179/2020, as próprias razões do veto presidencial ao artigo 11 sinalizam que “a propositura legislativa, ao conceder poderes excepcionais para os síndicos suspenderem o uso de áreas comuns e particulares, retira a autonomia e a necessidade das deliberações por Assembleia, em conformidade com seus estatutos, limitando a vontade coletiva dos condôminos” (BRASIL, 2020, n. p.).
Quanto às áreas privativas e de uso exclusivo, também se questiona se, a partir de alguma situação momentânea de restrição governamental, o síndico pode impedir ou limitar que os proprietários exerçam o seu direito de propriedade sem que haja um mandamento constitucional válido.
Utilizando como base a questão do Estado de Exceção, a Constituição Federal contempla algumas situações de exceção, como o estado de defesa (Art. 136) e de sítio (Arts. 137/9), que, em conjunto com a intervenção federal, compõem o “sistema constitucional de combate a crises constitucionais”. Todos consistem em mecanismos excepcionais para situações de crise, e mesmo no contexto de pandemia, o país não se encontra sob nenhum desses decretos, visto que se trata de instrumentos de últimas consequências no Direito brasileiro para o combate a crises institucionais, com inúmeras limitações aos direitos fundamentais do cidadão.
No plano infraconstitucional, está previsto o estado de calamidade pública (Art. 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal), que sabemos já ter sido reconhecida, pelo Congresso Nacional, como importante medida que libera a União federal para gastar mais recursos no combate à pandemia. Além disso, o Governo Federal, em fevereiro de 2020, editou a Lei 13.979 que, ao prever a possibilidade de quarentena, isolamento social, realização compulsória de exames e tratamentos médicos, consiste em norma geral nacional e provê instrumentos importantes para o combate à pandemia.
Ademais, Estados e Municípios, no exercício de suas competências suplementares, adotaram duras medidas, como a proibição do funcionamento de estabelecimentos comerciais e de circulação de pessoas em espaços públicos; restrições ao funcionamento de transportes públicos e privados; etc. Não há, portanto, necessidade de qualquer outra medida restritiva de direitos que possa ser determinada no âmbito de um estado de sítio.
Assim, como não há um Estado de Exceção, nada justifica quaisquer arbitrariedades contra a propriedade privada cometidas pelo próprio Estado, ou por quem quer que se arvore, em especial o síndico de condomínio, a decretar a limitação do uso, do gozo e da disposição da propriedade, mesmo em tempos de pandemia. Não há direitos absolutos, contudo, é necessário inquirir quem pode decidir pelos direitos relativos dos condôminos.
Dentro da parte relativa que cabe aos condôminos, cada um tem direito absoluto sobre ela, e, por isso, deve ser aberta uma possibilidade formal de ouvi-lo, de modo que fique registrada a sua vontade de forma expressa. E isso se mostrou possível em alguns lugares, como é o caso da Catalunha, que autorizou a realização de Assembleias de condôminos por meio de videoconferência, desde que sejam garantidos os meios de deliberação e votação pelos presentes (COMUNIDADE AUTÔNOMA DA CATALUNHA, 2020). Além disso, o próprio Projeto de Lei 1.179/2020, transformado na Lei 14.010/2020, prevê, em seu artigo 12, a possibilidade da realização de Assembleias por meios eletrônicos.
Diante da análise constitucional e do Direito comparado, percebe-se que o síndico é um executor das decisões da Assembleia de condôminos, não competindo a ele desempenhar funções para as quais não foi eleito. A propriedade horizontal é tratada como um direito novo, que engloba o direito à propriedade, tanto das partes privadas quanto das comuns. Por isso, o síndico, como executor das normas internas do condomínio (Convenção, Regimento Interno e decisões de Assembleia), deve buscar sempre submeter à vontade da coletividade quaisquer assuntos relacionados às áreas de uso comum.
REFERÊNCIAS
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[1] Professor e coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito e Gestão Condominial na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap); diretor regional em Ribeirão Preto do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (Ibradim); presidente da Comissão de Direito Imobiliário e Condominial da 12a Subseção-Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). E-mail: marcio@directa.adv.br
[2] Graduada em Relações Internacionais pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus Franca. Pesquisadora do Instituto Paulista de Cidades Criativas e Identidades Culturais (IPCCIC). E-mail: helenaoliveirarosa@gmail.com
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