1.INTRODUÇÃO
Entende-se que o tema das fontes formais do Direito, ou fontes criadoras, como também são chamadas, é da maior relevância para a Ciência do Direito, pois é por meio delas que a norma jurídica se apresenta ao mundo; o Direito Objetivo se materializa nas fontes, e é dessa forma que tanto o cientista, quanto o aplicador, o juiz ou mesmo o cidadão podem tomar conhecimento do corpo normativo que rege suas vidas em sociedade.
“Num sentido de verdadeira precisão geométrica, pode-se encarar a vida jurídica de um povo determinado, numa época precisa, e verificar que toda a normação da coexistência social, em dado momento histórico, se acha submetida a regras dirigidas à vontade de todos.”[1]
Partindo-se dessa premissa, pode-se mesmo dizer que o Direito, sem as fontes formais, perde o caráter de ciência autônoma e se transmuta em filosofia do Direito.
Ora, diante da pluralidade de espécies de fontes formais, quais sejam, leis, princípios, costumes, jurisprudência, doutrina, dentre outras, variando de acordo com o pensamento seguido pelo jurista, é preciso conhecer a teoria por trás de cada uma delas; é necessário que se entenda bem o sistema em que elas coexistem e a maneira pela qual se harmonizam. É, ainda, fundamental entender o processo de sua criação.
Em tempos de forte aproximação entre os dois grandes sistemas jurídicos ocidentais – os já referidos sistemas de Common Law, ou Anglo-Saxão, e de Civil Law, ou Romano-Germânico – optou-se por realizar o estudo das fontes formais do Direito nos Estados Unidos, onde a teoria das fontes foi muito bem desenvolvida desde a independência do país em 1776, para chegar-se, posteriormente, ao Brasil do século XXI e reexaminarem-se as fontes do Direito por aqui. Os juristas norte-americanos, no processo de adaptação do velho Direito Inglês, conceberam um sistema jurídico primoroso que é importante mecanismo de desenvolvimento social. Os juristas brasileiros, por sua vez, acataram as teses do velho Direito Europeu Continental e até hoje tentam aplicá-las.
Neste trabalho, analisar-se-á a doutrina dos judicial precedents como fontes do Direito Anglo-Saxão, convidando o leitor a posteriormente aprofundar-se na análise do atual sistema de fontes do Direito pátrio.
2. OS PRECEDENTES JUDICIAIS COMO FONTE DO DIREITO ANGLO-SAXÃO
2.1.Conceito
A maneira mais simples de conceituar os judicial precedents é como os precedentes judiciais decorrentes de decisões das cortes. Aproxima-se o instituto do que no Brasil revela-se no fenômeno das súmulas jurisprudenciais.
Na Inglaterra, diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos, os judicial precedents não são listados como fonte do Direito, senão a própria common law[2]. O New Penguin Guide to the Law lista como fontes do Direito inglês a common law, statute law, equity e o Direito Europeu[3]. Seguindo a doutrina de GRAY, neste trabalho opta-se por tratar a Common Law em sentido amplo, de sistema, e os judicial precedents como fontes do Direito de tal sistema.
2.2.A doctrine of precedent ou stare decisis
O mais famoso aspecto dos judicial precedents entre os juristas brasileiros é a doctrine of precedent ou stare decisis, doutrina segundo a qual as cortes inferiores são vinculadas pelos precedentes das cortes superiores. O Merriam-Webster’s Dicitionary of Law conceitua stare decisis como “a doutrina pela qual as cortes aderem ao precedente em questões de Direito de forma a assegurar certeza, consistência e estabilidade à administração da justiça”[4]. É preciso tomar-se muito cuidado no estudo deste tema, pois existe uma idéia imprecisa difundida no Brasil de que na Common Law as decisões (em geral) são vinculantes. Na verdade, em primeiro lugar, tecnicamente são as opiniões das cortes, e não as decisões em si, que formam os precedentes, ainda que correntemente se fale em decisões vinculantes[5]; e não são quaisquer opiniões, mas apenas aquelas que influenciaram a decisão[6]. Em segundo lugar, são os precedentes das cortes superiores que vinculam as cortes inferiores; não há vinculação entre cortes da mesma hierarquia, nem se pode falar em força vinculante das decisões das cortes inferiores. Assim, se uma corte inferior se pronuncia sobre uma matéria sobre a qual não há qualquer precedente, sua decisão não resolve o assunto para os casos subseqüentes que envolverem a mesma matéria.
A mais forte corte, cujas decisões são sempre vinculantes, é a House of Lords, na Inglaterra, e a Suprema Corte, nos Estados Unidos.
A força da House of Lords é tão grande que, conforme cristalizado no caso London Tramways Co. v. London City Council de 1898, a corte estava vinculada ao princípio da stare decisis e, portanto, obrigada a seguir as suas decisões precedentes, ainda que tal levasse à injustiça e restringisse o desenvolvimento do Direito. Somente em 1966, por meio do Practice Statement, a House of Lords decidiu que “ela não era vinculada pelas suas decisões antigas e que poderia reinterpretar o Direito se assim o desejasse.”[7]
Veja-se o teor da decisão, da lavra de LORD GARDINER:
“Suas Excelências consideram o uso do precedente como uma fundação indispensável sobre a qual se decide o que é o Direito e sua aplicação a casos individuais. Tal provê, ao menos, um certo grau de certeza sobre o qual os indivíduos podem se basear na condução de seus negócios, bem como constrói uma base para o desenvolvimento ordenado das regras jurídicas.
Suas Excelências, não obstante, reconhecem que uma aderência demasiado rígida ao precedente pode levar à injustiça em um caso particular e também indevidamente restringir o desenvolvimento próprio do Direito. Eles propõem, portanto, modificar sua prática presente e, enquanto tratando as decisões prévias desta corte como normalmente vinculantes, afastar-se de uma decisão prévia quando tal parecer ser o correto a se fazer.
Nesse sentido, eles terão em mente o perigo de incomodar retrospectivamente a base em que contratos, estabelecimento de propriedade e questões fiscais foram desenvolvidos, e também a necessidade especial de certeza quanto ao direito criminal.
Este anúncio não deverá afetar o uso do precedente em qualquer outro lugar que não esta corte”.[8]
Abaixo da House of Lords, a Court of Appeal, a qual está, obviamente, vinculada às decisões daquela, pode modificar as próprias decisões precedentes somente quando: 1. houver erro na decisão precedente; 2. houver duas decisões precedentes contraditórias (caso em que uma será escolhida para prevalecer); 3. a decisão precedente conflitar com decisão posterior da House of Lords[9].
Os judicial precedents constituem talvez a fonte do Direito acerca da qual mais teoria foi construída pelos juristas anglo-saxãos. GRAY, representando a posição doutrinária majoritária nos Estados Unidos, pôs a questão nos seguintes termos:
“Mais uma vez, a qualidade peculiar e o efeito de um Precedente Judicial como uma fonte do Direito devem ser notados. O Precedente pode ser uma fonte do Direito por expressar a opinião de homens doutos, ou por afirmar saudável doutrina moral, mas sua força peculiar como Precedente Judicial não se encontra no fato de estar ou não de acordo com a opinião dos doutos, ou no fato de estar correto; ele é um Precedente Judicial, não porque deveria ter sido criado, mas porque foi criado. A decisão de uma corte pode unir a característica de Precedente Judicial com a característica de uma expressão de pensamento sábio ou de sã moral, porém freqüentemente essas características estão separadas”.[10]
É interessante notar o poder concedido pelo Sistema de Common Law às cortes. As decisões destas geram precedentes, e estes são fontes do Direito, não porque resolveram uma questão da maneira como tal deveria ter sido resolvida, mas simplesmente porque a resolveram daquela forma, no exercício de sua atribuição constitucional. E, como escreveu o grande professor Norte-Americano, embora possam os precedentes ser uma expressão de sabedoria ou de moral, tal freqüentemente não é o caso. Por que, então, dar-lhes força de fonte do Direito?
A discussão sobre o porquê de o sistema assim se organizar leva o pesquisador ao século XVII, em que, na Inglaterra, SIR MATTHEW HALE, Lord Chief Justice of England, assim se posicionou:
“É verdade, as Decisões das Cortes de Justiça, apesar de por Virtude do Direito deste Reino serem vinculantes, como Lei entre as partes, para o Caso particular em Questão, até que revertidas por Erro ou Condenação, ainda assim não criam o Direito propriamente dito (tal apenas o Rei e o Parlamento podem fazer); no entanto, elas têm um peso muito Grande e Autoridade, por Explicar, Declarar e Publicar o que é o Direito deste Reino… embora tais decisões sejam menos do que o Direito, ainda assim elas são a maior Prova do que ele é do que a Opinião de qualquer pessoa privada, assim considerada, de qualquer forma”.[11]
Vê-se que, originalmente, a força atribuída às decisões das cortes não era a de fontes do Direito propriamente ditas, mas a de “maior prova” da interpretação das leis do reino do que a opinião de qualquer outra pessoa.
Um século mais tarde, nos Commentaries on the Laws of England, BLACKSTONE teceu sua opinião acerca dos judicial precedents, sem talvez imaginar a polêmica que futuramente geraria. Melhor do que meramente explicar tal opinião é antes de tudo transcrevê-la:
“Quanto aos costumes gerais, ou o direito comum [common law], propriamente assim chamado; este é o direito, pelo qual procedimentos e determinações nas cortes de justiça ordinárias do rei são guiados e dirigidos. […]
Mas aqui ergue-se uma questão muito natural, e material: como devem esses costumes e máximas ser conhecidos, e por quem deve a sua validade ser determinada? A resposta é: pelos juízes nas diversas cortes de justiça. Eles são o depositário das leis; os oráculos vivos, que devem decidir em todos os casos de dúvida, e que estão vinculados por juramento a decidir de acordo com o direito da terra. Seu conhecimento daquele direito é derivado da experiência e de estudo; de “viginti annorum lucubrationes”[12], que Fortescue menciona; e de estarem há muito pessoalmente acostumados com as decisões judiciais de seus predecessores. E, de fato, essas decisões judiciais são a principal e com mais autoridade prova que pode ser dada de um tal costume como deve fazer parte do direito comum. O próprio julgamento, e todos os procedimentos anteriores a ele, serão cuidadosamente registrados e preservados, sob o nome de registros, em repositórios públicos designados para tal propósito em particular […] Pois é uma regra estabelecida que se sigam os precedentes, quando os mesmos pontos vierem mais uma vez a litígio; tanto para manter a balança da justiça equilibrada e estável, e não sujeita a balançar de acordo com a opinião de cada novo juiz; mas também porque o direito naquele caso, tendo sido solenemente declarado e determinado, o que antes era incerto, e talvez indiferente, é agora uma regra permanente, que não cabe a nenhum juiz subseqüente alterar ou variar, de acordo com seus sentimentos particulares; ele tendo jurado determinar, não de acordo com seu próprio julgamento particular, mas de acordo com as leis e costumes conhecidos da terra; não podendo pronunciar uma nova lei, mas manter e explicar a antiga. Entretanto, essa regra admite uma exceção, onde a determinação anterior for evidentemente contrária à razão, ainda mais se for contrária ao direito divino. Mas mesmo nesses casos o juiz subseqüente não pretenderá criar direito novo, mas apenas vindicar o anterior de distorção. Pois se for descoberto que a decisão anterior é manifestamente absurda ou injusta, será declarado, não que tal sentença era direito ruim, mas que não era direito; isto é, que não é o costume estabelecido no reino, ou foi erradamente determinada. […]
A doutrina do direito, portanto, é esta: que os precedentes e as regras devem ser seguidos, a não ser que manifestamente absurdos ou injustos: pois ainda que sua razão possa não ser óbvia em uma primeira análise, ainda assim uma tal deferência é devida aos tempos passados para que não se suponha que agiram absolutamente sem consideração.”[13]
Seguindo a linha de HALE, BLACKSTONE não admite que os judicial precedents sejam verdadeiras fontes do Direito, ou que os juízes tenham o poder de criar o Direito, mas que apenas são os precedentes evidência do que é, de fato, o Direito, dado que aos juízes é conferida a atribuição de declará-lo. E, apesar de reconhecer a força vinculante dos precedentes, admite a hipótese de seu descarte, toda vez que forem manifestamente absurdos ou injustos, porque, nesse caso, simplesmente não são o Direito.
Ainda que, à primeira vista, a teoria blackstoniana pareça resolver a questão do papel dos judicial precedents no Sistema de Common Law, uma segunda análise levanta uma série de problemas que põem a tese em cheque: (1) quais os critérios objetivos para afirmar-se que uma decisão é lógica e justa e, portanto, tem força de Lei, ou absurda e injusta e, portanto, de ser afastada; (2) como deverá o juiz proceder diante de um problema novo, sobre o qual não haja tratamento em statutes ou em costumes; (3) como garantir que o juiz, de fato, sempre decidirá segundo os costumes?
A primeira pergunta parece ser impossível de se responder, dado o cunho extremamente subjetivo dos adjetivos “absurda” e “injusta”. Nas palavras de GRAY, “[…] como um jurista de Common Law, que vê o sistema de precedentes com complacência, pode supor que ele pode transformar injustiça em justiça inventando uma ficção é um exemplo notável do poder das expressões convencionais.”[14] Quanto à segunda indagação, a resposta, na linha blackstoniana, parece que seria: se ao juiz não é dado criar a Lei, quando esta for omissa, e não houver costumes assentados na sociedade, não poderia o juiz decidir. Mas seria essa a função do juiz na Common Law? GRAY, analisando a opinião do Professor HAMMOND, editor de BLACKSTONE e maior defensor da tese deste, considerou que
“[…] se os juízes têm casos para cuja decisão não haja regras, eu não concebo que ele [HAMMOND] sugeriria que os juízes deixassem os casos sem decisão, ou que decidissem baseados em capricho ou instinto; mas ele considera importante que os juízes deveriam dizer, e as pessoas deveriam acreditar, que as regras de acordo com as quais os juízes decidem esses casos tinham existência prévia.”[15]
E em relação à terceira ponderação, inúmeros foram os exemplos enunciados pelos opositores de BLACKSTONE para ilustrar que muitas vezes o Direito nascido do precedente não só não acompanha os costumes da sociedade como até mesmo os contraria. Um destes será analisado no item 2.3.1.
2.3.1. O caso Pells v. Brown
GRAY cita como exemplo o caso de Pells v. Brown, julgado pela King’s Bench[16] em 1620, na Inglaterra do rei James I, em que a Thomas Brown e seus herdeiros foram legadas terras (in fee simple). Se Thomas morresse sem deixar descendentes, e seu irmão William fosse vivo à época, as terras iriam para este e os herdeiros deste (o que se denomina future contingent interest).
Fee simple, originalmente, significa que a propriedade (dita in fee simple) não sofre limitações (quanto a herdeiros) nem restrições (quanto à transferência). Future contingent (ou contingency) interest é a expressão usada para referir-se a um interesse jurídico futuro em relação a um bem, subordinado a uma condição, a qual, em se implementando, concederá ao beneficiário a propriedade, a posse, o uso ou o gozo do referido bem.
Thomas morreu, estando William vivo, porém um certo Edward Pells apareceu com um documento chamado conveyance, que poderia aqui ser traduzido como escritura de compra e venda, reclamando para si as referidas terras. Àquela época, pensava-se que, recebendo a propriedade in fee simple, ela seria fee simple absolute, ou seja, não sujeita à condição, termo ou encargo, e perfeitamente transferível. A King’s Bench, não obstante, por três votos a um, decidiu que a compra e venda perdia força face à disposição testamentária (future contingent interest) que legava a William as terras após a morte de Thomas. Logo, a fee simple não seria absolute e o future contingent interest seria indestructible. O que se argumenta é que, de maneira alguma, tal era o costume na Inglaterra do século XVII:
“Dizer que havia um costume de que os future contingency interests eram indestructible é um sonho sem base, inventado apenas para evitar a necessidade de se dizer que os juízes criam o Direito”.[17]
Na verdade, o caso se tornou tão célebre que levou à concepção do instituto da fee simple determinable, em que a propriedade estaria sujeita a uma contingency, que não encontra correspondente em vernáculo, mas seria próxima de uma condição extintiva. Em 1855, no julgamento do caso Abbott v. The Essex Companies, a Suprema Corte dos Estados Unidos usou a rule[18] do caso Pells v. Brown para decidir a demanda, reconhecendo que cláusulas testamentárias em que “A deixa seus bens para seus filhos B e C, sendo que, se B ou C morrerem um antes do outro, sem deixar herdeiros, a parte da herança que coube ao falecido passará ao sobrevivente” transferem a propriedade dos bens herdados in fee simple determinable on contingency. A decisão da Corte afirmou que “A regra foi estabelecida muito tempo atrás, no reino de James I, no caso de Pells v. Brown. Esse caso nunca foi questionado ou balançado, e é considerado um ponto cardeal neste ramo do Direito.”[19] Ainda, o aresto cita Lord Kenyon, da House of Lords (corte suprema da Inglaterra), para quem Pells v. Brown foi “a fundação e a carta magna deste ramo do Direito.”[20] No Direito Brasileiro, o instituto que mais próximo chegou da idéia do in fee simple determinable on contingency, no caso do Direito das Sucessões, foi a hoje esvaziada figura do fideicomisso.
Finalmente, é de se notar que: 1. o testador jamais pensara que suas disposições poderiam criar um novo ramo do Direito ao redigir seu testamento; certamente tinha uma intenção em mente, a qual foi infeliz em redigir, gerando a dúvida; 2. quando Thomas Brown alienou as terras para Edward Pells, nenhum dos dois jamais ouvira falar em fee simple determinable on contingency, pois tal instituto foi criado pela corte para decidir a controvérsia; ambos pensavam que a negociação era legítima; 3. nem mesmo William Brown tinha certeza de seu direito, pois não havia, antes do julgamento, nenhum apoio jurídico para ele. Contudo, ao pronunciar-se, a King’s Bench criou Direito novo, que, ao menos para o caso sub judice, foi ex post facto.
2.3.2. A crítica de AUSTIN e GRAY a BLACKSTONE e HAMMOND
BLACKSTONE encontrou em AUSTIN um de seus maiores opositores. Este pronunciou-se sobre “a ficção infantil, empregada pelos nossos juízes, de que a judiciary ou Common Law não é criada por eles, mas é algo miraculoso que não foi criado por ninguém, existindo, suponho eu, desde a eternidade, e meramente declarado de tempos em tempos pelos juízes.”[21] A ironia gritante do comentário revela com qual fervor a oposição se deu.
HAMMOND dedicou-se ao rebate das críticas austinianas, e pontuou:
“A posição de Austin e seus seguidores constrói-se sobre uma confusão entre o aspecto histórico e científico da doutrina. Historicamente considerado, é verdade que nossos juízes criam o Direito. […]
Nós não inferimos que filósofos criam as leis da natureza, como podemos inferir que os juízes criam a lei da terra?”[22]
Já nos Estados Unidos, o debate ganhou novos membros, e GRAY teve a oportunidade de responder ao questionamento de HAMMOND:
“Porque filósofos não criam as leis da natureza, mas, como o Professor Hammond acabou de dizer, os juízes criam “historicamente” as leis da terra. Porque as leis da natureza são independentes da opinião humana, enquanto o Direito da terra é opinião humana”.[23]
Concluiu a crítica apontando que
“Ninguém nunca sonhou em negar que em seu poder de criar o Direito eles [os juízes] estão confinados às leis e às decisões de seus predecessores […]”.[24]
É dizer, os juízes estão sempre vinculados aos statutes que regulam dada matéria e às decisões precedentes sobre o tema, em ambos os casos, se houver, porém nem por isso sua decisão deixa de criar Direito novo.
2.4. A teoria dos judicial precedents nos Estados Unidos
A respeito dos judicial precedents nos Estados Unidos, GRAY propôs cinco questões para o desenvolvimento do estudo: 1. Quão grande é a autoridade de uma decisão na corte em que ela é feita, ou em uma corte de jurisdição coordenada? 2. Há alguma corte que seja absolutamente vinculada pelas suas próprias decisões? 3. É possível uma corte inferior decidir contrariamente a uma corte superior? 4. Qual é o peso, nas cortes de uma jurisdição, das decisões feitas em cortes de outras jurisdições? 5. É possível que as decisões das cortes sejam consideradas fontes do Direito?[25]
Quanto à primeira questão, GRAY salienta que, embora seja um tanto maior na Inglaterra, a força dos precedentes judiciais nos Estados Unidos é muito grande. Entre cortes da mesma hierarquia, entretanto, embora a força continue sendo muito grande, não é vinculante.
Em relação à segunda pergunta, explica que, diferentemente do que se passa na Inglaterra, em que a House of Commons é absolutamente vinculada às suas decisões, o mesmo não se passa entre os Norte-Americanos. Tanto a Suprema Corte dos Estados Unidos quanto as Supremas Cortes Estaduais podem modificar seu entendimento acerca de matéria sobre a qual já há precedente. Na verdade, desde 1966, nem mesmo na Inglaterra a doutrina da vinculação absoluta ao precedente prevalece mais, conforme visto no item 3.3.2, sobre a doctrine of precedent ou stare decisis.
Respondendo à terceira proposição, GRAY explica que, como na Inglaterra, nos Estados Unidos as cortes inferiores estão vinculadas às decisões das cortes superiores. Não obstante, cita os casos de Bridge v. Johnson, People v. Mayor of new York e Etting v. Bank of Unites States em que se afirmou que, mesmo em concluindo um determinado tema, quando uma corte estiver igualmente dividida, esta decisão não gerará precedente. MARSHALL, Chief Justice da Suprema Corte à época do caso Etting, lecionou:
“Nos muito elaborados argumentos que foram levantados pelos advogados, diversos casos foram citados, os quais foram considerados com atenção. Nenhuma tentativa será feita de analisá-los, ou decidir sobre sua aplicação ao caso que temos diante de nós, porque os juízes estão divididos em relação a ele. Conseqüentemente, os princípios jurídicos que foram argüidos não podem ser resolvidos; mas o julgamento é afirmado, a corte estando dividida na opinião sobre ele.”[26]
No que toca à quarta ponderação, a resposta é mais complexa. Por serem os Estados Unidos uma federação, cada um dos cinqüenta Estados tem a mesma estrutura de poder que a União, por serem, tanto aqueles, quanto esta, igualmente pessoas políticas. Destarte, cada Estado tem uma Suprema Corte estadual, e a Justiça Federal inclui a United States Supreme Court, as United States Courts of Appeal e as United States District Courts, entre outras, que aqui não é relevante citar.
Em algumas matérias, a Suprema Corte julga apelação (os recursos, no Sistema de Common Law, são chamados de appeal, não existindo nomes especiais) de casos vindo das Supremas Cortes dos Estados. Porém, em geral, diz-se que as cortes estaduais e as cortes federais têm jurisdição coordenada, existindo distintamente, simplesmente, porque são os órgãos judiciais de comunidades diferentes, ganhando sua legitimidade de corpos políticos diversos. Ademais, a existência das cortes federais justifica-se, não para reexaminar decisões das cortes estaduais que podem conter erros, mas para garantir que as cortes estaduais não aplicarão suas leis parcialmente em favor de seus cidadãos e em detrimento de cidadãos vindos de outros Estados[27]. Ou seja, as cortes federais distritais, sediadas nos diversos Estados, julgam os casos ocorridos naqueles Estados quando as partes envolvidas são de Estados diferentes, para garantir a imparcialidade do julgamento.
Feitas tais considerações, é possível entender a razão de as cortes estaduais de um Estado apenas reconhecerem as decisões de outro Estado como determinando a lei daquele Estado; ou seja, não são fontes do Direito deste Estado. Tal só se passa no caso de Estados que, originalmente, integravam outro, e em relação às decisões anteriores à separação. GRAY cita como exemplos os Estados do Maine e de West Virginia.
E as decisões das cortes inglesas? São elas fonte do Direito dos Estados Unidos? GRAY propõe a análise de três períodos: o anterior ao implemento das colônias americanas, o período entre esse evento e a Revolução de 1776, e aquele posterior à Revolução. No tocante ao primeiro período sugerido, não havendo legislação em sentido contrário, devem as decisões ser consideradas judicial precedents. Quanto ao segundo, por não ter havido conexão entre os tribunais coloniais e os tribunais metropolitanos, GRAY entende que, embora dotadas de muita força, as decisões das cortes inglesas não constituíam verdadeiros precedentes. Alerta, contudo, que tal força era tão grande, devido ao respeito colonial pela metrópole, que pouca diferença prática faz o fato de não serem judicial precedents, pois eram, de qualquer forma, acatadas. Em relação à terceira fase, após a Revolução, naturalmente que as decisões inglesas não têm qualquer força como judicial precedents e, portanto, não são fonte do Direito Norte-Americano.
Por fim, a quinta indagação. São os precedentes judiciais fontes do Direito nos Estados Unidos? Conforme já se demonstrou, a resposta é sim. Entretanto, grande foi o debate gerado em relação à abrangência do Direito nascido dos precedentes.
Os Estados Unidos declararam sua independência do Império Britânico e se constituíram em forma de federação, baseados nos escritos dos famosos federalists. A nova forma de Estado, contudo, trouxe um problema para os Norte-Americanos. A Constituição criou um poder judiciário federal composto de cortes de justiça distritais federais e cortes de apelação, subordinada à Suprema Corte dos Estados Unidos (conforme visto retro), porém criou também o poder judiciário estadual, com composição similar à federal. Ocorre que, se as decisões das cortes criam o Direito, e portanto são fonte criadora, formal, qual Direito devem as cortes federais aplicar? O Direito “federal” derivado das decisões das cortes federais, ou os diversos Direitos estaduais? De se lembrar que, como já explicitado, as cortes federais têm jurisdição coordenada com as cortes estaduais.
2.4.1. A disposição da seção 34 do Judiciary Act
A discussão começa em 1789, com a edição do Judiciary Act, 1 Stat. 73, de 24 de setembro de 1789. A seção 34 do documento assim proveu:
“[…] the laws dos diversos estados, exceto quando a Constituição, tratados, ou statutes dos Estados Unidos prescreverem os proverem o contrário, deverão ser consideradas as regras para a decisão em julgamentos de common law nas cortes dos Estados Unidos nos casos em que forem aplicáveis”[28].
A pergunta que se lançou foi: qual o sentido de the laws? Seria o de Direito estadual, ou de leis estaduais? GRAY argumenta que, naturalmente, o Judiciary Act referia-se ao Direito estadual, por dois motivos: primeiro, o de que nos primeiros cinqüenta anos de existência da Suprema Corte a expressão the laws nunca foi limitada às leis apenas; em segundo lugar, muitos Estados, à época da edição do statute, sequer tinham leis estaduais desenvolvidas.
A Suprema Corte, porém, chocou os juristas ao pronunciar-se, na decisão do caso Swift v. Tyson, em 1842, no sentido de que the laws, no texto do Juciary Act, eram apenas as leis estaduais (statutes of the states). O julgamento, em tom blackstoniano, acatou a alegação de que
“[…] ‘the laws of the several states’, na seção 34 do judiciary act, não significa nada mais do que o sistema constitucional escrito e as leis estaduais; […] Na linguagem comum, a palavra ‘laws’, no plural, significa, e significava em 1789, leis. A mesma palavra também alcança, popularmente e tecnicamente — quando se fala das regulações dos respectivos Estados Unidos — suas constituições e governo, bem como suas leis; e tanto as primeiras, quanto as últimas, estavam indubitavelmente incluídas na seção 34. Por essas razões, a palavra ‘laws’, no lugar de ‘statutes’, foi usado na seção.”[29]
No voto que decidiu o caso, Mr Justice STORY pontuou:
“No uso comum da língua, dificilmente se pode aceitar que as decisões das cortes constituam Lei. Elas são, no máximo, evidência do que o Direito é, e não, elas próprias, Lei. […] A Lei de um estado é mais freqüentemente compreendida como as regras e promulgações da autoridade legislativa estadual, ou os costumes locais assentados que têm força de Lei. Em todos os vários casos que foram até o momento trazidos a nós para decisão, esta corte uniformemente supôs que a interpretação da seção 34 está limitada às leis estaduais, estritamente locais, ou seja, as leis positivadas do estado […]”[30].
Assim procedendo, a Suprema Corte negou a força de fonte do Direito, nas cortes federais, aos precedentes das cortes estaduais. Apesar do espanto causado, aquele tribunal passou a aplicar a rule ordinariamente, muitas vezes sem sequer justificar a tese. Ao que parece, o objetivo seria criar uma federal common law composta dos precedentes judiciais das cortes federais. GRAY sinaliza para o caso Baltimore & Ohio Railroad Co. v. Baugh, em que um juiz, Mr. Justice FIELD, ao votar em sentido contrário à regra, confessou abertamente:
“E eu confesso que, movido e governado pela autoridade daqueles juízes [doutos juízes que caíram no hábito de repetir esta doutrina], eu mesmo, em muitos casos, sem hesitação e com confiança, mas agora, eu penso, erradamente, repeti a mesma doutrina. Mas, não obstante os grandes nomes que podem ser citados em favor da doutrina, e não obstante a freqüência com a qual a doutrina foi reiterada, lá está, como um protesto perpétuo contra tal repetição, a Constituição dos Estados Unidos, que reconhece e preserva a autonomia e independência dos estados.”[31]
Alguns anos após a derrota da opinião de FIELD, a doutrina mais uma vez foi atacada, desta vez pelo celebrado Mr. Justice HOLMES. Primeiramente no julgamento do caso Kuhn v. Fairmont Coal Co. e posteriormente no caso Black & White Taxicab & Transfer Co. v. Brown & Yellow Taxicab & Transfer Co. No julgamento deste último, em voto vencido, HOLMES ponderou que
“Mas a questão é importante e, em minha opinião, a doutrina prevalente foi aceita sobre uma sutil falácia que nunca foi analisada. Se eu estou certo, a falácia resultou em uma assunção inconstitucional de poderes pelas Cortes dos Estados Unidos, a qual nenhum lapso de tempo nem nenhuma respeitável opinião deveria nos fazer hesitar em corrigir.”[32]
Somente em 1938, quando o mestre jurista Norte-Americano já havia falecido (Gray faleceu em 1915), a interpretação foi revista no julgamento do caso Erie Railroad Co. v. Tompkins. Mr. Justice BRANDEIS mudou o entendimento da Suprema Corte ao estabelecer que
“Exceto em questões governadas pela Constituição Federal ou atos do Congresso, o Direito a ser aplicado em qualquer caso é o Direito do estado. E se o Direito do estado será declarado pela sua Legislatura ou pela sua corte mais alta em uma decisão não é matéria de alcance federal.”[33]
O juiz citou as já mencionadas opiniões do Mr. Justice FIELD no caso Baltimore & Ohio Railroad Co. v. Baugh e do Mr. Justice HOLMES nos casos Kuhn v. Fairmont Coal Co. e Black & White Taxicab & Transfer Co. v. Brown & Yellow Taxicab & Transfer Co.
Em 1874 a seção 721 dos Revised Statutes repetiu a disposição da seção 34 do Judiciary Act, ipsis literis. A controvérsia está resolvida, e não há mais discussão sobre a força dos precedentes judiciais, sejam federais ou estaduais, como fonte do Direito.
2.4.2. A posição da Suprema Corte em relação às decisões estaduais no Direito Contratual
A célebre citação do Mr. Justice STORY em Swift v. Brown revelou nítida influência blackstoniana no julgamento da Suprema Corte: “No uso comum da língua, dificilmente se pode aceitar que as decisões das cortes constituam Lei. Elas são, no máximo, evidência do que o Direito é, e não, elas próprias, Lei.”[34]
GRAY demonstrou que, em relação a contratos, a aceitação da tese de BLACKSTONE de que os precedentes judiciais não criam o Direito, porque, na verdade, as decisões das cortes apenas declaram o Direito existente, poderia ter conseqüências desastrosas. O professor explica que há casos em que se celebra um contrato, o qual é perfeitamente válido de acordo com o Direito estadual. Posteriormente, contudo, a Suprema Corte do Estado profere decisão em que considera tal espécie de contrato inválida. Ora, se as decisões judiciais apenas declaram o Direito, então é de se dizer que tal contrato celebrado sempre foi inválido. Se, porém, as cortes criam o Direito, então o contrato celebrado antes da decisão que considerou aquela classe inválida é perfeitamente válido, porque não havia qualquer impedimento à sua celebração quando esta ocorreu. GRAY explica que, em tais casos, a posição da Suprema Corte sempre foi a de que tais contratos são válidos, o que contraria a opinião expressa em Swift v. Brown.[35] Assim se posicionou Mr. Justice TANEY em Ohio Ins. Co. v. Debolt, em 1853: “A opinião sã e verdadeira é que, se o contrato era, segundo a Lei do Estado, válido quando foi feito […] sua validade e obrigatoriedade não pode ser embaraçada por qualquer ato subseqüente da legislatura estadual ou de suas cortes, alterando a construção do Direito.”[36]
Finalmente, tudo o que aqui se analisou serviu para mostrar que, sim, os judicial precedents são fontes do Direito nos Estados Unidos, e não só; são a mais importante fonte.
2.5.O raciocínio que se deve fazer na aplicação dos precedentes judiciais
Na obra An Introduction to Legal Reasoning, Edward H. Levi cuidou com precisão do raciocínio que se deve fazer na aplicação dos precedentes judiciais, que será um raciocínio por exemplo (analógico):
“O padrão básico de raciocínio é o raciocínio por exemplo [analógico]. É raciocínio de caso a caso. É um processo de três fases descrito pela doutrina do precedente em que uma proposição descritiva do primeiro caso se torna uma regra jurídica e então é aplicada à próxima situação similar. Os passos são estes: vê-se a similaridade entre os casos; então, a regra jurídica inerente ao primeiro caso é anunciada; e, por fim, a regra jurídica se torna aplicável ao segundo caso. Esse é um método de raciocínio necessário para o direito, mas que tem características as quais, em outras circunstâncias, seriam consideradas imperfeições.
Essas características se tornam evidentes quando se concebe o processo jurídico como se fosse um método de aplicação de regras jurídicas gerais aos fatos diversos — em resumo, como se a doutrina do precedente significasse que regras gerais, uma vez propriamente determinadas, permanecessem imutáveis, e fossem então aplicáveis, embora imperfeitamente, aos casos posteriores. Se essa fosse a doutrina, seria perturbador descobrir que as regras mudam de caso a caso, e que são refeitas com cada caso. Ainda assim essa mudança nas regras é a qualidade indispensável do direito. Ocorre porque o escopo de uma regra jurídica, e, portanto, o seu significado, depende da determinação de quais fatos serão considerados similares àqueles presentes quando a regra foi primeiro anunciada. O encontro da similaridade ou diferença é o passo chave no processo jurídico.”[37]
O professor explica, então, o papel do juiz, que não é o de repetir o que os seus antecessores julgaram, mas de verificar a existência de similaridades e diferenças relevantes entre vários casos, que o convençam de como deve decidir. “Para chegar ao seu resultado, ele [o juiz] irá ignorar o que o passado considerou importante; ele enfatizará fatos que os juízes anteriores teriam achado que não faziam diferença”[38].
Nesse sentido, é preciso que as partes participem ativamente do processo, apresentando exemplos, ou seja, diferentes decisões passadas, sempre tentando convencer o juiz das semelhanças entre estas e o caso em análise. “Nesse sentido, as partes, assim como a corte, participam da criação do Direito. Nesse sentido, também, os advogados representam mais do que os litigantes.”[39]
Vê-se, claramente, que a aplicação da doutrina do precedente não engessa o sistema, nem torna o julgamento uma operação matemática. Ao contrário, como pontuou LEVI, cada vez que o raciocínio é aplicado, o Direito evolui.
Coautor do Curso Didático de Direito Civil com Elpídio Donizetti. Professor titular de Direito Civil dos cursos de pós-graduação do IUNIB professor convidado de Direito Civil do curso de pós-graduação da Anhanguera e professor voluntário de Direito Civil da FD UFMG. Mestrando em Direito e Justiça na UFMG. Consultor jurídico e advogado.
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