Resumo: O presente artigo, feito com base na metodologia de pesquisa bibliográfica, aborda os principais entendimentos dos estudiosos do Direito do Trabalho acerca do princípio da boa-fé e, como resultados, verifica-se ser princípio que assegura a confiança, lealdade e contribui para o resguardo contra ilícitos no contrato de trabalho.
Palavras-chave: Boa-fé. Confiança. Lealdade.
Abstract: This article, based on the methodology of bibliographical research, addresses the main understandings of Labor Law scholars about the principle of good faith and, as results, it is a principle that ensures trust, loyalty and contributes to the protection against illicit contracts.
Keywords: Good Faith. Confidence. Loyalty.
Sumário: Introdução. 1. Desenvolvimento. Conclusão. Referências.
Introdução:
O sintagma boa-fé é utilizado no Direito de modo multifacetado, nem sempre significando o mesmo fenômeno jurídico. A própria legislação registra a boa-fé como conceito indeterminado, ora como princípio, ora modelando um significado objetivo como standard jurídico e como regra de comportamento. Aqui, vamos qualificá-la tão somente como instituto ou modelo jurídico com o amparo da lei. (MARTINS-COSTA, 2015, p. 39).
“O standard jurídico da boa-fé, que rege toda matéria contratual, permite, por sua rara maleabilidade, acolher os mais diversos aspectos das relações de trabalho.” O direito se aperfeiçoa quando se leva em conta a boa-fé dos sujeitos de direito. (PLÁ RODRIGUEZ, 2015, p. 422).
Na lição aristotélica, a boa-fé objetiva convenciona um padrão de conduta que atrai a confiança, a lealdade e a cooperação, para a realização do bem, por meio da ação, em uma concepção semelhante à da amizade. Salienta-se a importância da ação na definição jurídica do fato, ultrapassando os elementos subjetivos e internos, que indicam o individualismo perante os deveres de conduta. Portanto, não basta estar de boa-fé, mas é necessário agir de acordo com os parâmetros de conduta, inspirados no ideal do homem probo, denominado o bom pai de família, sob pena de ilicitude, o que será aferido mediante cada caso concreto. (GONÇALVES, 2008, p. 20).
1. Desenvolvimento
Nosso idioma dispõe de uma única expressão linguística “boa-fé” para designar duas realidades jurídicas diversas que são discernidas pelo adjetivo: a boa-fé subjetiva e a boa-fé objetiva. O conteúdo específico da boa-fé está ligado às circunstâncias e fatores vitais do contexto da sua aplicação, tornando impossível apresentar uma definição a priori e conclusa do que vem a ser “boa-fé objetiva”. (MARTINS-COSTA, 2015, p. 41).
O que se tem é que o agir conforme a boa-fé objetiva seria o agir com probidade, correção e comportamento leal, viabilizando um adequado negócio no campo da relação obrigacional. O Código Civil de 2002 coloca a boa-fé objetiva como medida de aferição da licitude no exercício do direito e de negócios jurídicos e acentua sua importância no Direito das Obrigações. (MARTINS-COSTA, 2015, p. 41/43).
A boa-fé consiste em instrumento facilitador do convívio, porque institui um parâmetro ético de conduta e prescreve comportamentos retos e leais que prestigiam a confiança, diminuindo a insegurança em razão da falta de limites para a ação. (GONÇALVES, 2008, p. 26).
Na lição da magistrada Camila de Jesus Mello Gonçalves:
“A garantia da boa-fé e a manutenção da confiança formam a base do tráfico jurídico e, em particular, de toda vinculação jurídica individual, aplicando-se a todos os ramos do Direito. Ora, isso revela a essencialidade da boa-fé e da confiança para o próprio relacionamento humano, independentemente do jurídico. (…). A existência de uma relação de confiança entre os intervenientes distingue a exigência da conduta de boa-fé da exigência de conduta ajustada socialmente, de acordo com os bons costumes.” (Gonçalves, 2008, p. 40).
A boa-fé é um princípio de grande alcance e, portanto, aplica-se em vários ramos do direito. Encontramos sua aplicação no direito civil, empresarial, trabalhista e outros. A boa-fé pressupõe que todos se comportem de acordo com padrão ético, moral, de confiança e lealdade que se espera do homem comum. Assim, num contrato, as partes devem perseguir esse tipo de comportamento, mesmo que esse padrão não esteja previsto na lei ou no contrato. Trata-se de uma espécie de norma de conduta que determina como as partes devem agir quando selam um contrato. (BOMFIM, 2017, p. 227).
Para Judith Martins-Costa:
“A fides enquanto garantia da palavra dada, espraiando-se em vários institutos promissórios (…) o que se visa tutelar é o ‘estado de confiança’ de quem justamente confiou, sancionando-se a conduta contrária à confiança do emissor da declaração. Os símbolos, talvez mais que os signos, expressam esse conteúdo. No domínio das obrigações esse era o espaço da deusa Fides, sendo-lhe consagrada a manus dextra, a palma da mão direita, o que está na origem do gesto (ainda hoje cotidianamente repetido por quem confia) de darem-se as mãos, sacramentando o pactuado. A dextrarum iunctio entre duas pessoas não era mera saudação, antes servindo para demonstrar que, por seu intermédio, as pessoas se ligavam pelo vinculum Fidei, vínculo sacro, ao menos na idade arcaica, divinizado como a Fides que estava no seu substrato.” (MARTINS-COSTA, 2015, p. 52/53).
A boa-fé, no atual panorama doutrinário e jurisprudencial, é constantemente citada, anunciada e estigmatizada no nosso Direito, mas nem sempre compreendida, pois distinções básicas são ignoradas. Há uma ‘explosão’ do emprego da boa-fé, muitas vezes não criterioso e não se trata de uma ocorrência apenas de âmbito nacional. (MARTINS-COSTA, 2015, p. 10).
A boa-fé deve estar presente no ato da contratação, na execução e na extinção do contrato de trabalho, pois a má-fé deve ser punida pelo abuso e rejeitado pelo direito, nos termos do art. 187 do Código Civil, que prevê: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa fé ou pelos bons costumes.”. (BOMFIM, 2017, p. 227).
O que se crê é que, se há obrigação de ter rendimento no trabalho é porque se parte do princípio da boa-fé e que entre as exigências impostas está a de dar um empenho normal no cumprimento da tarefa estipulada no contrato de trabalho. Considerando que a obrigação envolve, também, o empregador que deve cumprir suas obrigações. (PLÁ RODRIGUEZ, 2015, p. 420).
Pode-se dizer que este princípio é dotado de singular desempenho. Essa intensidade que o direito contemporâneo adquiriu se deve a socialização do direito, assim como as ideias do moderno solidarismo econômico que impregna quase todas as manifestações da experiência jurídica atual. (PLÁ RODRIGUEZ, 2015, p. 421).
A boa-fé pode ser objetiva e subjetiva. A objetiva determina que a pessoa siga uma conduta pautada pela ética, com caráter, honestidade, lealdade e probidade. Exige um agir de acordo com os padrões sociais reconhecidos como ideais de conduta considerando os fatos concretos e não a vontade do agente. A boa-fé subjetiva comprova o estado de consciência, o psicológico e a íntima convicção do agente. Na sua conduta manifesta sua vontade e crê que ela seja correta acerca do negócio que realiza. Tem noção do conhecimento ou desconhecimento da situação. O Código Civil de 2002 prestigiou a boa-fé objetiva, por ser mais fácil a sua constatação e aderida perfeitamente no Direito do Trabalho nos contratos e deve ser respeitada no ajuste, na execução e na extinção do contrato de trabalho. (BOMFIM, 2017, p. 227/ 228).
Francisco Alberto da Motta Peixoto Giordani (2011, p. 181) explica:
“A boa-fé objetiva diz com o dever de agir com correção e de maneira honesta, observando os padrões de conduta que a sociedade espera e aguarda de uma pessoa, nos seus compromissos e maneira de agir com os demais, de modo a não frustrar a expectativa de outra pessoa. Assim, a boa-fé objetiva não tem ligação direta com o que se passa no íntimo do indivíduo, mas atine ao seu modo de agir externo, como o faz, no meio em que vive e interage com os outros (…).”.
Plá Rodriguez sustenta: “A boa-fé, entendida no significado objetivo de cumprimento honesto e escrupuloso das obrigações contratuais, se distingue da boa-fé subjetiva ou psicológica abrangente do erro ou falsa crença.” (PLÁ RODRIGUEZ, 2015, p. 422).
A confiança está presente na boa-fé objetiva como na boa-fé subjetiva, ambas passíveis de proteção jurídica; a confiança constitui uma ponte entre as duas, devendo firmar em ambas. No plano dogmático, a boa-fé subjetiva corresponde à disposição de tutela de confiança, representa o momento essencial da confiança, enquanto a boa-fé objetiva encerra a tutela de confiança por conceitos indeterminados e provenientes de institutos gerais, que lhe confere base juspositiva, quando lhe faltar base legal específica, certo que ambas asseguram sua dignidade jurídica cuja proteção ultrapassa a esfera civil. (GONÇALVES, 2008, p. 41).
A frequência no emprego desse instituto jurídico denominado como boa-fé objetiva tem um lado virtuoso e outro perverso. Virtuoso porque se apoia no Direito brasileiro e não afasta da ética adstrita à conduta contratual. Perverso quando o uso exagerado e desmedido desloca dos critérios dogmáticos dos quais se vincula maculando e esvaziando o seu conteúdo, diminuindo sua força específica. Estabelecer critérios é também estabelecer limite. A ausência de limites implica em opinião, como elucida Judith Martins-Costa com o antigo provérbio: “Quando as margens são ultrapassadas, caem todos os limites”. (MARTINS-COSTA, 2015, p. 11).
Martins-Costa traz a seguinte lição: a visão da aplicação da boa-fé, portanto, de um lado, encontra-se o seu desenvolvimento nas decisões jurisprudenciais responsáveis, pois utilizam a conexão entre o fato e a configuração que terá, no caso, o princípio da boa-fé, e respeita ao mandamento constitucional da sentença; de outro lado, encontra o seu emprego traduzido no subjetivismo hermenêutico, invocando a boa-fé objetiva ora como simples argumento de autoridade distanciado dos fatos cuja ordem é a razão de ser; ora como desculpa ao personalismo de um julgador contrário a situação democrática; ora flatus vocis, que não agrega ao convencimento. Nesses casos, o julgador restringe-se a proclamar boa-fé sem explicitar as razões, de fato e de direito, e o faz, sem revelar a questão que aparece a direção dada pela boa-fé, e não indica como encontrou a solução para a qual foi orientado pelo princípio. Assim, o instituto da boa-fé resta transformado, difusamente empregada, sem distinções, mediações, em muitas situações desiguais. O princípio da boa-fé de figura da Ciência Jurídica torna-se uma máquina do voluntarismo, que afasta a construção dogmática segura e consolidada pela racionalidade do universo jurídico, sem nada construir. (MARTINS-COSTA, 2015, p. 11).
A boa-fé é um instituto jurídico relacional, pois atua articulado com outros princípios, regras legais, negociais e costumeiras, construindo-se continuamente com outra fontes prescritas: a lei, o negócio jurídico, os usos e as decisões dos órgãos que aplicam o Direito. Esse princípio da boa-fé tem a função integrativa de colmatar às lacunas do contrato e do sistema bem como a função corretora em sua dupla vertente: a de coibir o exercício jurídico ilícito, e servindo como pauta de controle do conteúdo contratual e, ainda, como coordenadora da tensão entre o justo e o útil, quando se trata de analisar e decidir sobre o adimplemento e inadimplemento das Obrigações. (MARTINS-COSTA, 2015, p. 12/13).
O mais importante a realçar é que este princípio de boa-fé tem, no Direito do Trabalho, um sentido especial em razão da pessoalidade que existe neste ramo do direito. O contrato de trabalho não estabelece somente direito e obrigações de ordem exclusivamente patrimonial, mas, sobretudo pessoal. Estabelece uma relação estável e contínua, que exige confiança das partes em vários planos, em direções opostas e por um período prolongado de tempo, “uma duração e uma necessidade muito superiores às que podem ter em contratos que se esgotam em um intercâmbio único de prestações ou em uma simples correspondência de prestações materiais”, o que se exige de ambas as partes é a boa-fé. (PLÁ RODRIGUEZ, 2015, p. 424).
Na verdade, um princípio não é o mesmo que uma obrigação ou várias obrigações que una as partes. É uma ideia geral que compreende e respalda as obrigações que originam de seu conteúdo e as transcende, ultrapassa e serve para orientar a interpretação, para suprimir as omissões e servir de inspiração ao próprio legislador no caso concreto. (PLÁ RODRIGUEZ, 2015, p. 424).
Insiste-se que o trabalhador deve apresentar rendimento no trabalho, que se faça bem e num ritmo regular, mas deixa-se de colocar outras implicações contidas na ideia de que o trabalhador deve trabalhar com lealdade, prescindindo da projeção desse princípio da conduta do empregador. Este deve agir lealmente e cumprir suas obrigações de boa-fé. (PLÁ RODRIGUES, 2015, p. 427).
Américo Plá Rodriguez ensina que:
“1) o trabalhador deve reservar ao empregador todo o tempo a que se comprometeu, evitando o trabalho para terceiros durante o horário de trabalho;
2) o trabalhador está impedido de revelar segredos de fábricação ou segredos comerciais;
3) o trabalhador deve abster-se de fazer concorrência desleal; e
4) o trabalhador deve evitar todas as formas de corrupção especificadas na legislação.” (PLÁ RODRIGUEZ, 2015, p. 429/430).
Em relação ao empregador há, ainda, deveres análogos. O princípio da boa-fé deve presidir toda relação de trabalho e não pode ficar restrito ao âmbito de determinadas obrigações. Américo Plá Rodriguez afirma: “No exercício de sua autoridade o empregador está jungido por uma obrigação de lealdade e de correção.” (PLÁ RODRIGUEZ, 2015, p. 430).
A boa-fé desperta a solidariedade, na medida em que implica comportamentos de colaboração e deveres de assistência e cuidado recíproco. A solidariedade abarca a ideia de confiança entre os pares, pressupondo meio próprio para a tutela de confiança direta ou por via reflexa. (Gonçalves, 2008, p. 54).
O princípio da boa-fé manifesta-se de várias formas: por meio do dever do empregado de cumprir as ordens legais, guardar segredos profissionais, fazer suas atividades com zelo evitando danos e abster-se de concorrer com o empregador. A CLT pune a transgressão desses deveres com a dispensa por justa causa (art. 482 da Consolidação das Leis do Trabalho), embora nem toda dispensa por justa causa implica falta ao dever de boa-fé. (BARROS, 2008, p. 187/188).
Alice Monteiro de Barros pondera que:
“A relação de emprego gerada por esse contrato é impregnada de uma ‘dimensão humana’ e de um ‘conteúdo ético’ não encontrados em outros tipos de contrato. O direito do empregado de não ser discriminado e o direito à dignidade guardam coerência com os valores pessoais e morais, que estão acima dos direitos patrimoniais envolvidos nessa relação contratual.” (BARROS, 2008, p. 187).
Conclusão:
Não se pode perder de vista que a proteção da boa-fé propicia maior segurança ao tráfico jurídico, na circulação de riquezas, o que é necessário frente a crescente impessoalidade das operações econômicas, suavizadas pelo interesse social, talvez pela necessidade social dessas operações e da circulação de riquezas. (GIORDANI, 2011, p. 184).
Prosseguindo, o eminente autor Francisco Giordani menciona que:
“O princípio da boa-fé é tido como sendo de rasgo constitucional, quer por conta da cláusula geral de dignidade da pessoa humana, art. 1º, III, da CF/1988, quer como consectário do art. 3º, I, que fixa ser objetivo fundamental entre nós, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sendo, justamente, essa solidariedade que dá embasamento, que dá vida, a boa-fé, o que fica fácil de se aceitar e compreender, diante do que já referido nas linhas transatas, e que atesta a sua relevância para a sociedade e para o direito nos dias que correm.” (Giordani, 2011, p. 184/185):
Embora sua importância, o princípio da boa-fé “não era, de uma maneira generalizada, muito referido em obras mais recuadas no tempo”, quando se usava no direito do trabalho era para lembrar ou enumerar as obrigações do empregado.
José Ernesto Manzi destaca que:
“A boa-fé não é uma norma, nem se reduz a uma ou mais obrigações, é um princípio jurídico fundamental, algo que devemos admitir como pressuposto de todo o ordenamento jurídico, informando-lhe a totalidade e aflorando, de modo expresso e múltiplo, em diferentes normas, ainda que nem sempre referido de forma explícita, sob este nome, embora esta explicitação se torne, dia a dia, mais comum. Os antigos juristas só admitiam os efeitos da boa-fé nos casos em que, de maneira expressa e literal, o ordenamento jurídico fazia alusão a ela; na evolução atual tornou-se um princípio geral, informando a totalidade das normas, com características de postulado moral e jurídico.” (apud GIORDANI, 2011, p. 180).
Não que o empregado não estivesse submetido a esse princípio, porém as referências eram superficiais. O normal era falar da boa-fé para realçar uma postura que se esperava do empregado nos seus afazeres, tendo em vista como o empregado procedia. (GIORDANI, 2011, p. 185/186).
Pode-se assegurar a pertinência do tema como característica do ordenamento jurídico trabalhista, pois cada vez mais as relações de trabalho necessitam da boa-fé para a realização da dignidade da pessoa humana. “A dignidade da pessoa humana é a prova de que o homem é um ser de razão compelido ao outro pelo sentimento, o de fraternidade, o qual, se às vezes se ensaia solapar pelo interesse de um ou outro ganho, nem por isso destrói a certeza de que o centro de tudo ainda é a esperança de que a transcendência do homem faz-se no coração do outro, nunca na inteligência aprisionada no vislumbre do próprio espelho. Afinal, mesmo de ouro que seja o espelho, só cabe a imagem isolada. Já o coração, ah! coração cabe tudo.” (Cármen Lúcia Antunes Rocha in Mudanças no Direito do Trabalho nos 25 anos do TRT da 15ª Região: Livro comemorativo do Jubileu de Prata. Francisco Alberto da Motta Peixoto Giordani (coordenador). p. 47).
Advogada. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestra em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas
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