Politicas sobre drogas: a ineficiência da moral proibicionista nas políticas de prevenção ao uso e tratamento de dependentes químicos no brasil

Autor: Caio Graco da Rosa – Acadêmico de Direito na Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Email: caiogracorr@gmail.com

Orientador: Prof. Francisco Quintanilha Veras Neto – Pós-Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná, Professor Titular da Universidade Federal de Santa Catarina. Email: quintaveras@gmail.com

Resumo: As políticas de drogas ocupam lugar de destaque nas discussões  sobre segurança e saúde pública, exercendo forte influência sobre a construção normativa da ampla maioria dos estados nacionais  a partir do século XX. O presente artigo propõe uma análise crítica da fundamentação dessas políticas, realizando um traçado histórico sobre o contexto em que foram criadas, além de  avaliar o impacto da implantação dessas na conjuntura sociopolítica recente. Através da consulta a artigos científicos, material jornalistico e bibliográfico, é realizado o estudo de caso de dois modelos atualmente aplicadas no Brasil,  o  Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência – PROERD, e o modelo de Comunidades Terapêuticas – CT’s, com ênfase na avaliação dos dados relacionados a eficácia desses modelos, além dos efeitos secundários gerados. Em se tratar de política pública, a fiscalização e avaliação periódica é instrumento fundamental no aprimoramento dessas, algo que infelizmente ainda não é plenamente efetivado no Brasil, em todas as esferas governamentais.

Palavras-chave: politicas públicas; drogas; PROERD; comunidades terapêuticas.

 

Abstract: The drug policies have great importance, being highlighted in almost all discussions about public security and public health, exercing influence over the normative construction in most of the nations since the 20th century. This article proposes a critic analysis about the origin of those policies, and discuss the effects generated on actual policies. Through consultation of  cientific articles, specialized literature and journalistic material, is realized a case study of two model programs now being aplied at Brazil, the  “Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência – PROERD”, and the Terapeutic Communities, focusing in data avaluation about the effectiveness of these programs and secundary effects produced. Being a public policy, periodic avaluation and fiscalization are essencial requirements for future directions, althrough these requirements aren’t fully accomplishied in Brazil.

Keywords: public policies, drugs, PROERD, terapeutic communities.

 

Sumário: Introdução. 1. Proibicionismo tipo exportação. 2. Educação sobre drogas. 3. Comunidades Terapêuticas.  Conclusão.  Referências

 

 INTRODUÇÃO

A  produção de inimigos públicos é uma técnica amplamente utilizada durante todo o curso da humanidade. As classes dominantes, na necessidade de legitimar seu poder, criaram sucessivas ferramentas de controle das camadas populares, que precisam ser disciplinadas na medida do necessário. No decorrer da história, essa técnica atravessa as mais diversas sociedades, do ocidente ao oriente, readaptando-se conforme as estruturas locais de dominação. Imputando as causas das mazelas sociais a questões alheias as estruturas de poder, as classes dominantes conseguem eximir-se de responsabilidade, manipulando a opinião pública ao indicar categoricamente quais seriam os agentes culpáveis, por  via de regra, pertencentes a grupos que representassem alguma ameaça a estrutura de poder estabelecida.

Através de um processo de negação histórica, suprime-se sistematicamente do conhecimento popular quaisquer referências desalinhadas à visão hegemônica, reprimindo os subversores e demonizando seus ideais. Dessa forma, as novas gerações recaem na ignorância de perceber o mundo a partir do olhar estigmatizador do dominante, reproduzindo irrefletidamente os preconceitos que afligem seus próprios pares.

Na  questão especifica  às drogas, a percepção da ilegalidade de algumas substâncias tem inicio no século XX. No caso brasileiro, as primeiras políticas de criminalização de substâncias surgiram da necessidade de repressão aos negros que, após a abolição da escravidão, e desprovidos de condições mínimas de subsistência, aglomeravam-se nos centros urbanos em busca de trabalho informal, motivo este que acabou despertando  enfurecidas reações das elites políticas e intelectuais da época, que viam a presença de negros como ameaça da ordem social.

 

Com a perda da ferramenta da escravidão há de se criar outras para que se possa controlar a cultura negra que agora luta para fazer parte do tecido social existente. Não se pode correr o risco de os negros impregnarem os brancos e seus costumes, diziam à época políticos, governantes, cidadãos.[1]

 

A ideia de contaminação dos brancos pela cultura negra já era plenamente difundida no Brasil , a miscigenação era observada como motivo de degeneração social, discurso endossado pela comunidade médica e científica da época, a exemplo da criação da Liga Brasileira de Higiene Mental(LHBM) em 1923. Formada por renomados cientistas e figuras públicas, defendiam a eugenia como meio do progresso social, na crença da miscigenação como fator de doenças congênitas e dos problemas sociais.[2]

O viés descriminatório das políticas de drogas era tão evidente que o primeiro órgão de repressão às drogas no Brasil denominava-se “Delegacia de Costumes, Tóxicos e Mistificações – DCTM”, criado em 1934 durante a vigência da ditadura Vargas, que dentre suas atribuições incluíam a repressão aos elementos da cultura negra, como a capoeira, o samba, a umbanda, bem como a diamba – a famosa maconha – utilizada em rituais religiosos e recreativamente. Antes disso, era comum a comercialização irrestrita de cigarros de cannabis e de diversas outras drogas, que eram inclusive recomendadas para diversos usos medicinais e terapêuticos.

 

  1. PROIBICIONISMO TIPO EXPORTAÇÃO

Ao mesmo tempo em que as políticas de drogas constituíam-se de forma muito específica no Brasil, na esfera internacional, o empenho voltado a criminalização das drogas se consolidava através das diversas resoluções internacionais com intuito de regulamentar, fiscalizar e criminalizar atividades relacionadas a entorpecentes. Antes encabeçadas pelas potências europeias, a inclusão de um agente como os Estados Unidos da América representou um novo paradigma das políticas relacionadas às drogas.

Anteriormente, as políticas internacionais não traziam como objetivo a restrição e criminalização de substâncias específicas, tendo em vista que parte majoritária das potências imperialistas mantinham investimentos significativos na comercialização de tais substâncias, principalmente o ópio, o que acabava por esvaziar as conferências realizadas com este fim, a exemplo da Conferência de Xangai de 1909,  resultado do empenho  estadunidense em expandir a  influência proibicionista no âmbito internacional, porém caindo em descrédito frente ao não comparecimento e resistência de grande parte das nações, não possuindo qualquer efeito vinculante aos signatários.

Contudo, a conferência constitui passo decisivo na institucionalização de um movimento que ganhara avantajada influência na política estadunidense. A Anti-Saloon League, movimento sócio politico de orientação cristã protestante criado em 1895 com o propósito de coibir a existência dos chamados saloon’s, bares retratados como fomentadores da degradação social por meio da bebida, jogatina e prostituição oferecidos nesses estabelecimentos. Angariando milhares de adeptos, sua influência  crescera de forma abrupta, aliada a um discurso de fácil assimilação, o movimento já conseguira inserir suas ideias nas classes populares e políticas.[3] A  moral puritana serviu de embasamento para a positivação de instrumentos que prometiam a “cura” ou “limpeza” da sociedade estadunidense, a exemplo do “Volstead Act” –  Lei Seca em 1920, que proibia o uso, porte e a fabricação de bebidas alcoólicas, logo provando-se um fracasso, pelo aumento exponencial da criminalidade organizada, impulsionada pelo comércio paralelo de bebidas, além dos efeitos na saúde pública, ocasionados pela ingestão de álcool de má qualidade, culminando na sua revogação por intermédio da 21º Emenda de 1933. Porém, todo o aparato estatal criado para reprimir o álcool encontrava-se em risco frente a revogação da Lei Seca, logo era necessário achar uma nova justificativa para a existência das diversas agências destinadas a esse fim.  Conforme a necessidade persecutória, novas substâncias eram adicionadas ao rol proibicionista, sendo estas sempre identificadas a minorias já estigmatizadas, a exemplo da associação midiática de irlandeses ao alcoolismo, dos chineses ao ópio, dos mexicanos à maconha e dos negros à cocaína.[4]

 

A “guerra às drogas” não é propriamente uma guerra contra drogas. Não se trata de uma guerra contra coisas. Como quaisquer outras guerras, é sim uma guerra contra pessoas – os produtores, comerciantes e consumidores das substâncias proibidas. Mas, não exatamente todos eles. Os alvos preferenciais da “guerra às drogas” são os mais vulneráveis dentre esses produtores, comerciantes e consumidores. Os “inimigos” nessa guerra são os pobres, marginalizados, não-brancos, os desprovidos de poder.[5]

 

Sobretudo, a experiência adquirida tanto na esfera interna como transnacional logrou exito ao introduzir o proibicionismo como ferramenta de persecução penal, expandindo-se gradativamente. A Convenção de Haia de 1912, marca o primeiro texto legal que prevê o controle á substâncias psicotrópicas, no caso o ópio e a cocaína, restringindo estas ao definir que somente o uso medicinal seria aceitável, fenômeno ligado também ao empenho da classe médica em obter monopólio da prescrição de medicamentos.[6] Cabe salientar a resistência por parte de potências imperialistas, persistindo contrárias a restrição de substancias das quais obtinham proveito econômico, motivo pelo qual a Conferência protelou-se até 1914. O envolvimento estadunidense na Primeira Grande Guerra gerara a expansão dos efeitos da Conferência de Haia; a derrota da Alemanha, grande produtora de cocaína, acrescentado a atmosfera de germanofobia, colaborou na eleição da substância como inimigo de guerra, e a assinatura do Tratado de Versalhes impôs ao país a vinculação a todos os acordos convenientes a vontade dos aliados.

Passo a passo o proibicionismo moldava-se de acordo com a nova hegemonia encabeçada pelos Estados Unidos, que no âmbito interno intensificara a perseguição de psicoativos sucessivamente através de diversos diplomas legais: Harrison Act (1914)Proibia o uso do ópio e da cocaína para fins que não estritamente os recomendados por médicos especialistas; Volstead Act (Lei Seca 1920)Proibia o uso, porte e a fabricação de bebidas alcoólicas; Federal Bureal of Narcotics – FBN (1930) Criada a agência específica para perseguir crimes envolvendo narcóticos; Marijuana Tax Act (1937)Proibia a maconha nos mesmos moldes do Harrison Act, tendo origem na associação dos mexicanos à droga, que imigravam massivamente para o sul e oeste dos Estados Unidos; Boggs Act (1951)Pena mínima de dois anos no consumo ou posse de qualquer quantidade de droga. Com o inicio da Guerra Fria os russos foram responsabilizados pelo tráfico de opioides, numa associação da droga à ameaça comunista;  Narcotics Control Act (1956) – Elevava o tempo mínimo para 5 anos e previa prisão perpétua e pena capital para crimes relacionados.

A identificação dos Estados Unidos como a nova potência capitalista alavancou os ideais pátrios frente a comunidade internacional; o modelo proibicionista provara-se recurso de grande utilidade persecutória, e mostrava-se pronto para ser exportado, infestando a presença proibicionista em diplomas internacionais;  por meio da Liga das Nações (1920-1946) e posteriormente da Organização das Nações Unidas, diversas conferências foram realizadas realizadas com intuito de controlar o uso de entorpecentes, delineando os parâmetros a serem adotados pelos estados, na concretização das políticas proibicionistas, que passam a contar com órgãos de fiscalização internacionais próprios. Readaptando-se  continuamente, as políticas de drogas atravessaram grandes crises mundiais, e exitaram em conquistar ampla influência. Atualmente, três tratados internacionais regulamentam a questão dos entorpecentes no âmbito da ONU, são estas a Convenção Única da ONU sobre Entorpecentes (1961), que controla drogas de origem vegetal; a Convenção da Viena sobre Substâncias Psicotrópicas (1971), ampliando o controle sobre drogas sintéticas, sedativos, estimulantes e alucinógenos e a Convenção da ONU Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (1988), sistematizando o modelo atual de controle internacional de drogas.

 

  1. EDUCAÇÃO SOBRE DROGAS

As políticas sobre drogas entram numa nova fase a partir da década de 70. Com a guinada da política de drogas nos Estados Unidos endossada pelo governo Nixon, e agora drasticamente institucionalizada pelo governo de Ronald Reagan, a “Guerra às Drogas”  ganha novos ares, e começa a partir em busca de novas formas  de inserir-se na opinião pública.[7] Tomando como ponto de partida a criação de uma atmosfera de calamidade, o governo estadunidense buscava o apoio da opinião pública, e o que poderia ser mais apelativo do que a ameaça de pais brancos terem seus filhos aliciados por traficantes diabólicos, majoritariamente ilustrados  por minorias estigmatizadas, como  afrodescendentes e latinos?[8] A “guerra” agora entra nas escolas, sobre a carapuça de programas de prevenção e educação sobre drogas, colocando a cargo das forças de segurança a responsabilidade de doutrinar esses indivíduos em formação a como se portar diante da terrível ameaça das drogas, num raciocínio de que a tão simples fabricação de medo teria a capacidade de afastar estes indivíduos da exposição a esses tipos de substâncias.

 

Após a declaração de guerra, o número de pessoas encarceradas nos Estados Unidos da América por crimes relacionados a drogas aumentou em mais de 2.000%. Em duas décadas, entre 1980 e 2000, o número total de presos norte-americanos passou de cerca de 300.000 para mais de 2 milhões, transformando a antiga “land of the free” no país que mais encarcera em todo o mundo.[9]

 

Políticas como o “Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência – PROERD”, introduzido no Estado do Rio de Janeiro em 1992 e no restante do Brasil em 2002, demonstram o viés do discurso proibicionista. Através da visita de policiais militares às salas de aula, estudantes são apresentados aos malefícios do envolvimento com entorpecentes, porém, na maior parte das vezes ocorre a substituição de um discurso com potencial informativo por uma demonização das drogas, utilizando informações fora de contexto e de origem duvidosa, mas que passam despercebidas visto que o público-alvo desse programa sejam crianças do 5° ao 7° ano do Ensino Fundamental.

Fundamentado a partir do modelo estadunidense de “Educação sobre Drogas”, o programa importa o D.A.R.E – Drug Abuse Resistance Education, criado na cidade de Los Angeles em 1983, que constituía da visitação de agentes de polícia em distritos escolares informando crianças e jovens sobre a ameaça das drogas por meio de informativos, elaborados em conjunto das forças de segurança, entidades de pais, organizações religiosas, cíveis e outras simpáticas a política de “War on Drugs”. Utilizando-se da ideia de “Tolerância Zero”, fora alvo de criticas desde o início, havendo no  decorrer da implementação o surgimento de acusações de abuso por parte das autoridades,  através de metodologias como a chamada “DARE Box”, onde os estudantes, sob a falsa pretensa de anonimato, depositavam bilhetes informando sobre o uso de drogas em seus lares, e a partir da constatação da ilegalidade da substância, era aberta investigação pelas agencias policiais, culminando na prisão de diversos indivíduos, numa sistemática digna de ficção  orwelliana.

 

The Wall Street Journal reported in 1992 that “In two recent cases in Boston, children who had tipped police stepped out of their homes carrying DARE diplomas as police arrived to arrest their parents.” In 1991, 10-year-old Joaquin Herrera of Englewood, Colo., phoned 911, announced, “I’m a DARE kid” and summoned police to his house to discover a couple of ounces of marijuana hidden in a bookshelf, according to the Rocky Mountain News. The boy sat outside his parents’ home in a police patrol car while the police searched the home and arrested the parents. The policeman assigned to the boy’s school commended the boy’s action.[10]­

 

Em 1994, o National Institute of Justice – NIJ, encomendou uma pesquisa para avaliar o potencial de eficácia do programa na prevenção ao uso de drogas, analisando os resultados desde o início da implementação. A pesquisa foi dirigida pelo Research Triangle Intitute – RTI, uma organização amplamente reconhecida na comunidade científica e  produtora de diversos outros estudos encomendados pelo governo dos Estados Unidos.  O resultado não foi exatamente o esperado. A partir dos dados coletados, foi possível observar aspectos positivos em relação ao desenvolvimento individual e ao respeito e simpatia pela autoridade policial, mas ao mesmo tempo, demonstrou que a eficácia do programa em prevenir o uso de drogas, figura central do programa, era extremamente reduzida; apenas 3% de um total de 9300 crianças apresentaram  impacto significativo nesse quesito.[11]

Preocupados com a repercussão negativa, foram publicadas notas de repúdio às conclusões do estudo, alegando que o espaço de amostragem era reduzido, e que foram analisados dados referentes ao currículo antigo do programa, não refletindo o impacto real do currículo atualmente aplicado. Interessante salientar que no ano de 1994, era estimado um gasto de 700 milhões de  dólares com o programa, e qualquer informação que venha a por a eficácia em descrédito colocaria também em risco todo o capital financeiro e político atribuído a ele.

No Brasil, apesar da ampliação acelerada do programa, faltam levantamentos no sentido de avaliar os efeitos da adaptação tupiniquim, sendo escassas as informações disponíveis, havendo pouca ou nenhuma informação centralizada para realização de uma análise comparativa tanto dos efeitos psicopedagógicos, quanto dos orçamentários. Em um dos raros estudos realizados na tentativa de avaliar os efeitos do programa, observando dados obtidos em nível nacional e local, chegou-se a conclusões semelhantes ás realizadas no estudo do RTI, demonstrando que o programa provoca pouquíssimo ou quase nenhum efeito com relação ao abuso de drogas, e reduzidamente com relação á imagem da polícia, somente produzindo efeitos significativos com relação  aos agentes de polícia escalados para aplicação dentro das escolas.[12]

Ainda assim, o programa foi adotado como bandeira do combate às drogas em diversos países do mundo, e vem se expandindo por todos os estados e municípios do Brasil, representando um dos programas de maior amplitude dentro das escolas atualmente. Questiona-se dessa forma a aspiração real dos agentes públicos no empenho de políticas comprovadamente ineficazes.

O resultado observável denota que em razão do desconhecimento sobre o tema, ocorre por muitas vezes a exposição arriscada de jovens à alguma substância, muitas vezes por curiosidade, por não terem qualquer tipo de instrução sobre a droga em si, sua composição, seus efeitos, seu contexto histórico e suas consequências em caso de abuso. Optando por uma demonização ingenua e reprodutora de preconceito, a difusão de informações falsas com uma suposta pretensão de proteger o público resulta num efeito exatamente oposto ao almejado, provocando uma epidemia de ignorância sobre o tema, uma atmosfera de aversão e consequente legitimação da violência sobre as comunidades alvo dessas políticas.

 

  1. COMUNIDADES TERAPÊUTICAS

Quando tratamos de políticas públicas relacionadas a drogas, necessário também examinarmos os tipos de abordagens aplicadas aos consumidores dessas substâncias, principalmente aqueles que se encontram em estado de dependência física ou psíquica, além de tão somente o da via criminal. A Organização Mundial da Saúde classifica a dependência química como transtorno mental, identificado pela CID – 10: F19 “Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de múltiplas drogas e ao uso de outras substâncias psicoativas”, cabendo a utilização de atendimento médico e psicossocial especializado para o efetivo tratamento do paciente.

Em 1991, o Brasil torna-se signatário da Declaração de Caracas, comprometendo-se a promover mudanças na forma de tratamento de saúde mental no país que, pressionado com o clamor público alcançado pelo movimento antimanicomial, institui a criação da Rede de Atenção Psicossocial – RAPS, composta por diversos serviços desde acolhimento institucional até o atendimento psicológico das famílias por meio dos Centros de Atenção Psicossocial – CAPS, projeto iniciado em São Paulo em 1987 e incorporado ao Sistema Único de Saúde na década de 90. Utilizando uma metodologia de tratamento comunitário, o enfoque da rede é proporcionar um atendimento alinhado as diretrizes de direitos humanos, respeitando os direitos civis, políticos e de cidadania dos pacientes,   fortalecendo os laços sociais e fiscalizando ativamente o funcionamento, evitando assim internações compulsórias e a privação de liberdade.

Atualmente existem no Brasil cerca de 445 Centros de Atenção Psicossocial – CAPS voltados ao tratamento de dependentes químicos, fornecendo atendimento multiprofissional especializado aos pacientes e famílias, e procedendo a partir do princípio da redução de danos, reduzindo gradativamente o uso até a abstinência, se possível. Esse modelo tem apresentado resultados expressivos, ao tratar de fatores que não exclusivamente o uso da droga estas políticas tem um alcance muito mais amplo que o simples tratamento do usuário, repercutindo sobre toda a cadeia de atores que compõe o universo de relações de cada indivíduo.[13]

Concorrentemente,  um dos fenômenos de maior expansão no Brasil são as chamadas Comunidades Terapêuticas – CT’s, no qual instituições particulares oferecem o serviço de tratamento para dependentes químicos, principalmente através de internação, em locais como instalações clinicas ou na maior parte das vezes propriedades rurais afastadas, adotando em ampla maioria a abstinência total de substancias. A partir de 2011, o Governo Federal, através da campanha “Crack: é possível vencer”, começa a destinar recursos do orçamento federal a estas instituições, através da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas – SENAD.

Com milhares de instituições no Brasil e no mundo, o surgimento dessas comunidades está diretamente atrelado a expansão de grupos como os Alcoólicos Anônimos, criado nos Estados Unidos na década de 30,  em que  alcoólatras formavam grupos fechados com o intuito de discutirem abertamente sobre problemas relacionados ao vício, principalmente pelo prisma da espiritualidade,  evitando a estigmatização aos olhos da sociedade. [14] Inclusive, dentre as metodologias atualmente utilizadas no Brasil, o emprego da espiritualidade desponta como o mais popular, estando presente em cerca de 96% das instituições,  com maioria  de orientação cristã, sendo 82% ligadas a igrejas e organizações religiosas de acordo com estudo realizado em 500 comunidades pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA.[15] A presença do discurso moralista religioso no tratamento da dependência química é objeto de controvérsia, havendo grande rejeição com relação a eficácia dessa alternativa aos reais efeitos obtidos. Associando as causas de dependência a critérios subjetivos como a fé, transmite-se a ideia que o dependente encontra-se nessa situação por tão simples convicção, com o suposto tratamento ocorrendo numa tentativa de conversão do indivíduo à uma reforma moral, alheia às suas convicções pessoais. Numa espécie de tratamento da alma,  relembram rituais inquisitoriais de purificação, como se aqueles ditos doentes estivessem na verdade amaldiçoados, denotando o desconhecimento desses agentes sobre dependência química, vinculando o moralismo religioso ao discurso proibicionista.

De fato, a expressiva quantidade de denúncias relatando situações de abuso dentro dessas instituições evidenciam o tipo de tratamento oferecido em diversas partes do país. Rotinas de trabalho forçado, leituras exaustivas da Bíblia, condições insalubres de acomodação, restrição ao contato com familiares, ausência de profissionais da saúde, além de penitencias físicas fazem parte da realidade de muitas dessas comunidades, que raramente passam por quaisquer tipo de fiscalização habitual.[16] No Relatório da Inspeção Nacional das Comunidades Terapêuticas de 2017, realizado pelo Ministério Público Federal em 28 comunidades nas cinco regiões do Brasil, foram constatadas uma série de irregularidades; das 28 comunidades visitadas, apenas 2 possuíam laudos médicos de seus internos. Em 16 delas foram observadas práticas de castigo e punição ( execução de tarefas repetitivas, o aumento da laborterapia, a perda de refeições e a violência física. Também  foram  identificadas  práticas  como  isolamento  por  longos  períodos,  privação  de  sono,  supressão  de  alimentação  e  uso  irregular  de  contenção  mecânica  (amarras)  ou  química  (medicamentos)[17].

A falta de comprovação científica quanto a eficácia das CT’s também é ponto de controvérsia entre os defensores dessas instituições, que apresentam resultados que ultrapassam até 50% de taxa de recuperação,  incisivamente contestados pela comunidade científica, com alguns especialistas relatando não passar de 5%.[18]

Apesar disso, parcela expressiva dessas  instituições recebem recursos públicos; 8% recebem simultaneamente da esfera federal, estadual e municipal; outras 56% recebem de pelos menos de duas esferas, ocorrendo a sobreposição de recursos públicos.[19] Funcionando de forma paralela a rede de atenção a saúde mental, o custo dessas instituições representam um contrassenso da administração pública, que deixa  de investir em políticas comprovadamente eficazes, e passa a financiar entes privados na prerrogativa da insuficiência do sistema público, ao tempo que não garante condições adequadas de funcionamento das instituições públicas já existentes.

 

 CONCLUSÃO

Em suma, as políticas apresentadas neste trabalho demonstram-se ineficazes em alcançar seus objetivos centrais, sejam eles a prevenção ao consumo ou o tratamento da dependência de drogas. A ausência de metodologia científica na fundamentação dessas políticas não permite uma análise aprofundada sobre seus efeitos, tornando a coleta de dados comparativos uma tarefa árdua, visto a escassez de produção acadêmica científica, particularmente em âmbito nacional,  sobre o tema.

Apesar de não apresentarem resultados comprovados por fontes independentes, tais políticas são replicadas em diversos países,  frutos da extensiva campanha de criminalização das drogas iniciadas no século XX, com forças que continuam a exercer um lobby extremamente poderoso e amplamente estruturado na política global contemporânea. O caso brasileiro ilustra perfeitamente a aplicação indiscriminada dessas políticas, das quais carecem de mecanismos de fiscalização e avaliação periódica, peças fundamentais no aperfeiçoamento e orientação de qualquer política pública, permitindo a oneração do erário público de forma imprudente, e consequentemente, ineficiente. A insistência governamental em importar modelos estadunidenses de combate á drogas ilícitas é controversa; ao mesmo tempo em que se investe pesadamente na repressão dessas substâncias, o consumo de drogas não sofreu qualquer redução significativa[20], enquanto os efeitos colaterais decorrentes dessas políticas não param de crescer.

Uma mudança de direcionamento das políticas públicas, especialmente no que concerne a direitos humanos, é essencial. A manutenção das políticas proibicionistas além de ineficaz é extremamente danoso, pois implica em elevados custos que poderiam ser revertidos em métodos comprovados, além de reforçar a percepção das drogas como raiz das mazelas sociais, não como consequência. O proibicionismo ao mesmo tempo que coleciona fracassos, pode ser considerado um  modelo de sucesso, a décadas inflamando a opinião pública e legitimando a violência contra seus inimigos, na maioria negros, pobres e periféricas.

 

REFERÊNCIAS

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[1]          . LUNARDON, J. A.. Maconha, Capoeira e Samba: a construção do proibicionismo como uma política de criminalização social. In: I Seminário Internacional de Ciência Política UFRGS, 2015, Porto Alegre. Anais do I Seminário Internacional de Ciência Política.

[2]          . REIS, J. R. Higiene Mental e Eugenia: o projeto de “regeneração nacional” da Liga Brasileira de Higiene Mental. Dissertação de Mestrado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Campinas. Campinas. 1994. p. 287-310. Segundo o autor, diversos setores da psiquiatria brasileira  compartilhavam dos ideais teóricos da psiquiatria alemã, na época orientada pelos ideais eugênicos do partido nazista. A LBHM foi a principal instituição a adotar a eugenia como bandeira política, com membros que defendiam a esterilização compulsória de até 15 milhões de brasileiros.

[3]          . ESCOHOTADO, Antonio. Historia General de las drogas. 3ª ed. Madrid: Espasa. 2000. p. 504-509.

[4]          . R. F. Taffarello. Drogas: falência do proibicionismo e alternativas de política. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo.  São Paulo. 2009. p. 45-46. Segundo o autor, nas primeiras décadas do século XX  devido ao imenso fluxo imigratório rumo aos Estados Unidos iniciado no século anterior, diversos grupos étnicos tentavam buscar espaço dentro do tecido social da sociedade estadunidense. Estigmatizados por uma sociedade extremamente racista e xenofóbica, grupos como irlandeses, latinos, chineses e negros eram alvo de diversas campanhas de ódio que os identificavam como degenerados, viciados em drogas e perigosos.

[5]          . KARAM, Maria Lúcia. Dez anos da Lei 11.343/2006 = dez anos da falida e danosa política proibicionista de “guerra às drogas”. Revista Liberdades. Disponível em: http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=275 Acesso em: 12 de fevereiro de 2019.

[6]          . R. F. Taffarello. Drogas: falência do proibicionismo e alternativas de política. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo.  São Paulo. 2009. p. 47-48.

[7]          .  MILLER, J. Bad Trip: How the War Against Drugs is Destroying America. NY: Nelson Thomas, 2004 p. 71-72.

[8]          A 13ª Emenda. Direção: Ava DuVernay Escritores: Spencer Averick e Ava DuVernay Produtora: KadooFilms. 2016. Titulo Original: 13th

[9]          . KARAM, Maria Lúcia. PROIBIÇÃO ÀS DROGAS E VIOLAÇÃO A DIREITOS FUNDAMENTAIS. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais: RBEC, Belo Horizonte, v. 7, n. 25, p. 169-189, jan./abr. 2013. Disponível em: http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/62985

[10]        . (TRADUÇÃO DO AUTOR: O Wall Street Journal noticiou em 1992 que “em dois casos recentes em Boston, crianças que alertaram a polícia sairam de suas casas carregando diplomas do DARE, enquanto a polícia chegava para prender seus pais.” Em 1991, Joaquin Herrera, um garoto de 10 anos de Englewood, Colo., ligou para o 911, exclamou “Eu sou uma criança do DARE” e chamou a polícia em sua casa para achar alguma onças de maconha escondidas numa estante de livros, de acordo com o canal Rocky Mountain News. O garoto ficou sentado num carro de polícia na frente de sua casa enquanto os policiais revistavam e prendiam seus pais. O agente escalado para o programa na escola do garoto elogiou a ação dele.)  –  James Bovard, “DARE scare: Turning children into informants?” Washington Post , 29 January 1994.

[11]        . RINGWALT, L.; GREENE, J.; ENNET, S.; IACHAN, R.; CLAYTON, R.; LEUKEFELD, C.. Past and Future Directions of the D.A.R.E. Program: An Evaluation Review. Research Triangle Institute. September 1994.

[12]        .  FONSECA, F. ; PINC, T. ; NOGUEIRA, P. ; VALIENGO, C. . Diagnóstico do Programa Educacional de Resistência às Drogas – PROERD. 2014. (Relatório de pesquisa). Analisando o impacto do programa entre grupos controle e grupos em que o programa foi aplicado, nos quesitos relacionados a uso de drogas, diferenças percentuais inferiores de 3% foram constatadas.

[13]        . NASCIMENTO, M. ; BERTOLOTTO, R.  Terapia de fé: Como o vínculo entre religião e tratamentos para dependentes químicos ganhou força no Brasil. Disponível em “https://tab.uol.com.br/drogas-religiao/”. Acesso em 29 de novembro de 2018.

[14]        .  BOLONHES, R. C. M. ; BOARINI, M. L. . Comunidades terapeuticas: novas perspectivas e propostas higienistas. História, Ciências, Saúde-Manguinhos (Impresso), v. 22, p. 1231-1248, 2015.

[15]        . IPEA. Nota Técnica N° 21: Perfil das Comunidades Terapêuticas Brasileiras.  Março de 2017. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=29865. Acesso em: 29 de novembro de 2018.

[16]        . RONCOLATO. M. As violações de direitos em comunidades terapêuticas pelo Brasil. 2018. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/06/20/As-viola%C3%A7%C3%B5es-de-direitos-em-comunidades-terap%C3%Aauticas-pelo-Brasil. Acesso em: 29 de novembro de 2018

[17]        .  Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas – 2017 / Conselho Federal de Psicologia; Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura; Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão / Ministério Público Federal; – Brasília DF: CFP, 2018

[18]        . NASCIMENTO, M. ; BERTOLOTTO, R.  Terapia de fé: Como o vínculo entre religião e tratamentos para dependentes químicos ganhou força no Brasil. Disponível em “https://tab.uol.com.br/drogas-religiao/”. Acesso em 29 de novembro de 2018.

[19]        . IPEA. Nota Técnica N° 21: Perfil das Comunidades Terapêuticas Brasileiras.  Março de 2017. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=29865. Acesso em: 29 de novembro de 2018.

[20]        . World Drug Report 2018 (United Nations publication, Sales No. E.18.XI.9). Disponível em: http://www.unodc.org/wdr2018/index.html

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