Judicial Precedents: Obligation Of Grounds, With Respect To Duties Of Consistency And Integrity. Hermeneutic Theory Of Judicial Decision.
Marco Vicente Dotto Köhler – Pós-graduado, em nível de Especialização lato sensu, em Direito Público, pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL / Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina – ESMESC; em Direito Constitucional, pela Universidade Anhanguera-Uniderp (rede LFG); e em Direito Civil pelas Faculdades Integradas Jacarepaguá – FIJ. E-mail: dottokohler@yahoo.com.br
Resumo:O trabalho utiliza pesquisa bibliográfica, método dedutivo, e visa analisar o sistema de precedentes previsto no Código de Processo Civil de 2015. A ênfase da análise se dá em relação à sua forma correta de utilização, por meio de uma abordagem hermenêutica da teoria da decisão judicial. A análise ocorre sob a perspectiva do Direito como integridade, por meio dos deveres de integridade e coerência como forma de se obter uma fundamentação efetiva das decisões judiciais. Demonstra que tais deveres adequam-se tanto à Constituição quanto ao Código de Processo Civil. Demonstra também que a correta utilização do sistema de precedentes, observada a teoria hermenêutica da decisão judicial, pode ser uma das formas adequadas para se garantir o direito de igualdade, solidificar o Estado Democrático de Direito e a Democracia, e evitar decisões voluntaristas, baseadas na discricionariedade e subjetivismo do julgador, o que possibilitaria elevado grau de insegurança jurídica e falta de previsibilidade das decisões judiciais.
Palavras-chave: Precedentes. Hermenêutica da decisão judicial. Integridade e coerência.
Abstract: This meta-article describes the style to be used in making articles for publication in the Âmbito Jurídico. The work, by means of bibliographic research, by the deductive method, analyzes the precedent system of the Civil Procedure Code of 2015, with emphasis on its correct form of use, through a hermeneutic approach of the judicial decision theory, from the perspective of Law as integrity, and the duty of integrity and coherence as a way to obtain an effective basis for judicial decisions, adapting both to the Constitution and to the Code of Civil Procedure. It demonstrates that the correct use of the precedent system, observing the hermeneutical theory of judicial decision, can be one of the appropriate ways to guarantee the right to equality, solidify the Democratic State of Law and Democracy, and avoid voluntarists decisions, based on discretion and subjectivity of the judge, which would enable a high degree of legal uncertainty and lack of predictability of judicial decisions.
Keywords: Precedent. Hermeneutic of judicial decision. Integrity and coherence.
Sumário: Introdução. 1.Teoria da decisão judicial. 1.1.Dever constitucional de fundamentar a decisão judicial. 1.2.Fundamentação da sentença no CPC/2015. 2.Sistema de precedentes no CPC/2015. 2.1.Precedente, súmulas e jurisprudência. 2.2.O Direito como integridade. 2.3.Dever de integridade e coerência no sistema de precedentes. 3. Teoria hermenêutica da decisão judicial. 3.1.Universalização dos precedentes e a discricionariedade da decisão judicial. 3.2.Correta utilização do sistema de precedentes como garantia da igualdade e da democracia. Conclusão. Referências.
Introdução
O trabalho objetiva demonstrar que é imprescindível ao sistema de precedentes que as decisões judiciais sejam efetivamente elaboradas com observância do dever de fundamentar, previsto na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 93, IX.
Para que a Constituição seja cumprida, a fundamentação das decisões judiciais deve ser elaborada de forma que não contrarie o que está determinado nos artigos 11, caput, e 489, §1º, ambos do Código de Processo Civil.
Busca demonstrar que pela aplicação de uma teoria hermenêutica da decisão judicial, pela qual se explica o dever de integridade e coerência nas decisões, é possível adequá-las ao sistema de precedentes, e este à Constituição.
Para desenvolver o tema proposto, dividiu-se o trabalho para que fosse feita primeiramente a análise da teoria da decisão judicial, com enfoque no dever constitucional de fundamentar e na previsão no CPC/2015 acerca da maneira correta de fundamentação.
A seguir, aborda-se o sistema de precedentes, diferenciando-se os conceitos de precedente, jurisprudência e súmula, com breve explicação da maneira como ocorre a formação e como deve se dar a aplicação de cada um dos institutos.
Tal análise é feita sob o ponto de vista da teoria de Dworkin, no que tange ao Direito como integridade, de modo a demonstrar que para o sistema de precedentes ser utilizado corretamente, para que se possa usufruir dos pontos fortes desse sistema, há que se respeitar os deveres de integridade e coerência no momento da decisão judicial, mormente na fundamentação com base em precedentes, súmulas e/ou jurisprudência.
Por fim, discorre-se sobre a teoria hermenêutica da decisão judicial, ou seja, da decisão judicial sob o holofote da hermenêutica, das regras que devem ser respeitadas na interpretação jurídica dos textos e, consequentemente, na sua aplicação na decisão judicial.
Dessa forma, sob a perspectiva da teoria hermenêutica da decisão judicial, analisa-se a relação que ocorre entre a incorreta perspectiva de universalização dos precedentes e a discricionariedade da decisão judicial.
Por fim, o trabalho aborda a forma correta de utilização do sistema de precedentes, para que efetivamente seja uma garantia da igualdade e da democracia, sendo que um dos caminhos possíveis para atingir tais finalidades de maneira efetiva, segura e que garanta a segurança jurídica e estabilidade do sistema jurídico, é por meio do respeito aos deveres de integridade e coerência.
1 Teoria Da Decisão Judicial
O Código de Processo Civil 2015, no artigo 203, dispõe
“Art. 203. Os pronunciamentos do juiz consistirão em sentenças, decisões interlocutórias e despachos.
[…] (BRASIL, 2015).”
Da estrutura acima percebe-se que nem todos os pronunciamentos do juiz têm caráter decisório, pois “os pronunciamentos judiciais podem decidir determinada questão dentro de um processo, ou ser simplesmente destinados a impulsioná-lo”, sendo que “[…] os atos de mero impulsionamento são denominados de despachos.” (LUNARDI; REZENDE, 2019, p.59 – grifos no original).
Por outro lado, “os provimentos jurisdicionais com conteúdo decisório são denominados de decisões em sentido amplo.” (LUNARDI; REZENDE, 2019, p.59 – grifos no original).
Com relação aos atos decisórios praticados pelo juiz, pode-se afirmar que apenas a sentença “[…] é pronunciamento exclusivo do juiz de primeiro grau, enquanto o despacho e a decisão interlocutória podem ser proferidos em qualquer grau de jurisdição” (NEVES, 2017, p.418-419).
Pode-se dizer que “as decisões (atos com conteúdo decisório) do juiz de primeira instância podem ser: a) decisões interlocutórias; b) sentenças” (LUNARDI; REZENDE, 2019, p.59 – grifos no original) enquanto são chamados de “acórdãos” os pronunciamentos emanados de órgãos colegiados “como os tribunais ou as turmas recursais dos Juizados Especiais” (CÂMARA, 2015, p.133).
1.1 Dever constitucional de fundamentar a decisão judicial
A Constituição Federal, em seu artigo 93, IX, determina que:
“[…]
IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação; (BRASIL, 1988 – Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004 – grifo nosso)”
Há, portanto, dever constitucional de fundamentar a decisão, seja sentença, acórdão ou decisão interlocutória, sob pena de nulidade de tal provimento.
Levando-se em consideração o caráter contramajoritário do Poder Judiciário, que não tem sua legitimação democrática no voto, mas decorrente da própria Constituição (SARMENTO, 2017, p.35), a fundamentação das decisões judiciais é “[…] um fator de legitimação da própria atividade jurisdicional”, pois “[…] o juiz se legitima ato a ato pelo seu argumento.” (LUNARDI; REZENDE, 2019, p. 79).
No mesmo sentido, tem-se que
“[…] a motivação das decisões judiciais é historicamente uma conquista dos últimos séculos, fruto de esforços voltados à limitação do poder dos magistrados, sendo possível o exercício de um controle pela população, com a preocupação na obtenção de julgamentos pautados pela racionalidade. (ALMEIDA apud LUNARDI; REZENDE, 2019, p.79).”
Tendo em vista que a sentença é “[…] o pronunciamento decisório capaz de dar por encerrada a fase cognitiva ou executiva que se desenvolva em um processo”, pois “[…] põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução” (CÂMARA, 2015, p.133-134), aborda-se, a seguir, especificamente o dever de fundamentação da sentença previsto no Código de Processo Civil de 2015.
1.2 Fundamentação da sentença no CPC/2015
O Dever de fundamentar a sentença é um “[…] imperativo constitucional (art. 93, inc. IX) e também uma exigência do Código de Processo Civil (art. 11, caput, e art. 489, §1º)” (LUNARDI e REZENDE, 2019, p.78).
O artigo 11, caput, do CPC/2015, ao dispor que “Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade” (BRASIL, 2015), é praticamente uma síntese do artigo 93, IX, da Constituição, já mencionado e transcrito acima.
Já o artigo 489, II, §1º, I, II, V e VI, vai um pouco além e determina que:
“Art. 489. São elementos essenciais da sentença:
[…]
II – os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;
I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;
[…]
V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. (BRASIL, 2015 – grifo nosso)”
Assim o Código de Processo Civil é enfático ao determinar que todas as decisões judiciais devem ser bem fundamentadas, e o faz ao indicar de forma muito clara que (i) não se considera fundamentada qualquer decisão que não demonstre a relação do que se utiliza como fundamentação normativa e doutrinária e o caso concreto (Incisos I e II), bem como (ii) trata da mera invocação de precedente ou enunciado de súmula sem que se indique a ligação da razão determinante do parâmetro decisório utilizado como fundamento e o caso concreto (Inciso V), ou (iii) a distinção do caso em julgamento que fez deixar de seguir súmula vinculante ao decidir o caso concreto (Inciso VI).
2 Sistema de Precedentes no CPC/2015
O sistema de precedentes insculpido no Código de Processo Civil de 2015 difere do sistema de precedentes da common law, pois “[…] o que se tem no Brasil é a construção de um sistema de formação de decisões judiciais com base em precedentes adaptado às características de um ordenamento de civil law.” (CÂMARA, 2015, p.446).
Apesar de o Código de Processo Civil tratar diretamente do “sistema de precedentes” nos artigos 926 e 927, o sistema brasileiro de precedentes não se circunscreve a apenas esses dois artigos, pois “o legislador se empenhou em difundir, em distintas partes do Código, técnicas de aplicação de precedentes e provimentos vinculantes” (VIANA e NUNES, 2018, p.202).
Tanto é assim que o artigo 489, §1º do CPC, que trata da exigência de fundamentação da sentença, pode ser citado como exemplo dessa difusão, bem como é base teórica de análise da decisão no sistema de precedentes do presente trabalho.
Para que essa análise possa ser feita sob a perspectiva da teoria hermenêutica da decisão judicial e com ênfase na correta utilização do sistema de precedentes, necessário se faz tecer algumas considerações acerca de precedentes judiciais, súmulas e jurisprudência.
2.1 Precedente, súmulas e jurisprudência
Para melhor compreender o sistema de precedentes do Código de Processo Civil, é preciso distinguir os conceitos de precedente, jurisprudência e súmula, que são expressões trazidas constantemente pelo Código de Processo Civil. (NEVES, 2017, p.1389).
Inicia-se pelo conceito de “precedente”, que “[…] é qualquer julgamento que venha a ser utilizado como fundamento de outro julgamento que venha a ser posteriormente proferido.” (NEVES, 2017, p.1389).
Assim “[…] sempre que um órgão jurisdicional se valer de uma decisão previamente proferida para fundamentar sua decisão, empregando-a como base de tal julgamento, a decisão anteriormente prolatada será considerada um precedente.” (NEVES, 2017, p.1389).
Quanto ao termo “jurisprudência”, pode ser considerada como “[…] o resultado de um conjunto de decisões judicias no mesmo sentido sobre uma mesma matéria, proferidas pelos tribunais.” (NEVES, 2017, p.1390).
Note-se que há evidente ligação entre tais conceitos, pois “[…] a identificação de uma linha de jurisprudência constante se faz a partir do exame de um conjunto de decisões judiciais, e cada uma destas decisões poderá ser considerada, quando analisada individualmente, um precedente.” (CÂMARA, 2016, p.427).
Para que a jurisprudência de um tribunal cumpra os deveres determinados no artigo 926, de ser estável, íntegra e coerente, é preciso que “[…] linhas de decisões constantes e uniformes a respeito de determinadas matérias não podem ser simplesmente abandonadas ou modificadas arbitrária ou discricionariamente”, pois há necessidade de que “[…] seus próprios precedentes sejam observados, inclusive por seus órgãos fracionários.” (CÂMARA, 2016, p.427).
A súmula, por sua vez, “[…] é a consolidação objetiva da jurisprudência, ou seja, é a materialização objetiva da jurisprudência” (NEVES, 2017, p.1390).
É preciso deixar claro que súmula não é precedente, pois “trata-se de um extrato de diversos pronunciamentos, isto é, algo que se extrai de diversas decisões sobre a mesma matéria”, sendo, portanto um “[…] extrato da jurisprudência dominante de um tribunal” (CÂMARA, 2016, p.429).
A importância de se distinguir tais termos reside no fato de que é preciso ter claro o conceito de cada um deles para que o sistema de precedentes seja implementado de forma correta, pois:
“[…] a mera invocação de ementas de acórdãos (ou de enunciados de súmulas) como se isso fosse capaz de demonstrar a existência de precedentes e legitimasse a construção de decisões a partir de tais padrões decisórios é manifestação de uma forma de decidir que a própria lei processual reputa como não fundamentada e, portanto, nula, como se pode ver especialmente pela leitura do art. 489, §1º, V, do CPC/2015 (CÂMARA, 2018, p.173).”
A confusão conceitual entre precedente, súmula e jurisprudência, e a falta de comparação dos fatos dos casos concretos e das razões fundamentais das decisões precedentes com o caso concreto que será julgado acaba gerando distorções no sistema de precedentes, pela quebra do dever de integridade e coerência.
2.2 O Direito como integridade
A coerência e a integridade relacionam-se com a busca de um Poder Judiciário em que as decisões tenham o mínimo de previsibilidade, em que as partes dependam mais do texto da lei e da sua interpretação consolidada, do que da discricionariedade do julgador, afinal, “a diferença entre a dignidade e a ruína pode depender de um simples argumento que talvez não fosse tão poderoso aos olhos de outro juiz, ou mesmo o mesmo juiz no dia seguinte.” (DWORKIN, 2014, p.3).
Nesse sentido, “é importante o modo como os juízes decidem os casos” (DWORKIN, 2014, p.3), e não apenas o resultado do julgamento, residindo, aí, a importância do presente estudo, pois, por meio da hermenêutica da decisão judicial pretende-se compreender a forma, o modo como se deve dar a construção das decisões no sistema de precedentes estabelecido pelo Código de Processo Civil de 2015.
Para Dworkin, a concepção do direito como integridade contrapõe-se a outras duas concepções: convencionalismo e pragmatismo jurídico.
Em resumo, no convencionalismo “um direito ou uma responsabilidade só decorre de decisões anteriores se estiver explícito nessas decisões, ou se puder ser explicitado por meio de métodos ou técnicas convencionalmente aceitos pelo conjunto dos profissionais do direito”, decorrendo daí o nome dessa concepção, “segundo [a qual], a moral política não exige respeito pelo passado, de tal modo que, quando a força da convenção se esgota, os juízes devem encontrar, para tomar suas decisões, um fundamento resultante de uma visão prospectiva” (DWORKIN, 2014, p.118-119).
O pragmatismo jurídico, por sua vez, “[…] é uma concepção cética do direito”, pois “nega que uma comunidade assegure alguma vantagem real ao exigir que as decisões de um juiz sejam verificadas por qualquer suposto direito dos litigantes à coerência com outras decisões políticas tomadas no passado” (DWORKIN, 2014, p. 119), sendo incompatível com o sistema de precedentes, pelo fato de que
“oferece uma interpretação muito diferente de nossa prática jurídica: que os juízes tomam e devem tomar quaisquer decisões que lhes pareçam melhores para o futuro da comunidade, ignorando qualquer forma de coerência com o passado como algo que tenha valor por si mesmo (DWORKIN, 2014, p. 119).”
Além do mais, essa concepção incentiva a discricionariedade e subjetivismo do juiz, pois “estimula os juízes a decidir e a agir segundo seus próprios pontos de vista. Pressupõe que essa prática servirá melhor à comunidade […] do que qualquer outro programa alternativo que exija coerência com decisões já tomadas por outros juízes ou pela legislatura.” (DWORKIN, 2014, p.186).
Já o direito como integridade se adequa perfeitamente ao sistema de precedentes, pois “[…] aceita sem reservas o direito e as pretensões juridicamente asseguradas”, sendo condizente com o respeito aos precedentes, e isso ocorre porque uma concepção do direito como integridade
“Supõe que a vinculação ao direito beneficia a sociedade não apenas por oferecer previsibilidade ou equidade processual […], mas por assegurarem, entre os cidadãos, um tipo de igualdade que torna sua comunidade mais genuína e aperfeiçoa sua justificativa moral para exercer o poder político que exerce (DWORKIN, 2014, p.119-120).”
Além disso, essa concepção “[…] nega que as manifestações do direito sejam relatos factuais do convencionalismo, voltados para o passado, ou programas instrumentais do pragmatismo jurídico, voltados para o futuro” de modo que mescla “[…] elementos que se voltam tanto para o passado quanto para o futuro [e] interpretam a prática jurídica contemporânea como uma política em processo de desenvolvimento.” (DWORKIN, 2014, p.271).
Por fim, “sustenta que direitos e responsabilidades decorrem de decisões anteriores e, por isso, têm valor legal, não só quando estão explícitos nessas decisões, mas também quando procedem dos princípios de moral pessoal e política que as decisões explícitas pressupõem a título de justificativa.” (DWORKIN, 2014, p.120).
2.3 Dever de integridade e coerência no sistema de precedentes
Vista a concepção de direito como integridade em contraposição às concepções do direito como convencionalismo e ao pragmatismo jurídico, e demonstrado porque o direito como integridade se adequa ao sistema de precedentes, passa-se a demonstrar como se dá a aplicação prática dessa concepção na decisão judicial no sistema de precedentes.
Os deveres de integridade e coerência não são somente construções doutrinárias da teoria da decisão, mas também imposição legal, conforme caput do artigo 926 do Código de Processo Civil, que determina que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”. (BRASIL, 2015).
No sistema de precedentes, para que a decisão seja íntegra e coerente, não basta utilizar julgados anteriores como fundamento da decisão, sem que se demonstre a correspondência fática e dos fundamentos jurídico da decisão paradigma com o caso concreto que será decidido com fundamento no julgado.
Caso se utilize julgado pretérito sem demonstrar essa relação do julgado com o caso concreto, há risco de insegurança jurídica, pois “[…] a ausência de coerência e integridade na aplicação do Direito gera precedentes contraditórios entre si […]” (MOTTA; RAMIRES, 2018, p.104).
Nesse sentido, tem-se que “a unidade do direito é o resultado de um sistema de precedentes obrigatórios e reflete a coerência da ordem jurídica, viabilizando a previsibilidade e o tratamento uniforme de casos similares.” (MARINONI, 2016, p.105).
Frisa-se que “um sistema judicial caracterizado pelo respeito aos precedentes está longe de ser um sistema dotado de uma mera característica técnica” (MARINONI, 2016, p.104), tanto que a Democracia é resguardada pelo respeito aos precedentes, pois
“Respeitar precedentes é uma maneira de preservar valores indispensáveis ao Estado Democrático de Direito, assim como de viabilizar um modo de viver em que o direito assume a sua devida dignidade, na medida em que, além de ser aplicado de modo igualitário, pode determinar condutas e gerar um modo de vida marcado pela responsabilidade pessoal. (MARINONI, 2016, p.104).”
Para evitar que um mesmo precedente possa acabar justificando decisões contraditórias entre si é que se exige a integridade, como sendo uma atribuição dos juízes, que “[…] devem interpretar o direito como tendo sido criado por um único agente, a comunidade personificada” devendo ser interpretado “[…] de maneira que a história jurídica seja coerente com o presente e com o futuro, permitindo previsibilidade e certeza jurídicas.” (LEITE, 2018, p.124).
Por sua vez, “coerência implica em igualdade” (LEITE, 2018, p.125), e existirá coerência se “[…] os mesmos princípios que foram aplicados nas decisões forem aplicados para os outros casos idênticos” e isso acarretará que esteja “[…] assegurada a integridade do direito a partir da força normativa da Constituição” (STRECK apud LEITE, 2018, p.124-125).
3 Teoria Hermenêutica Da Decisão Judicial
Pode-se afirmar que “[…] hermenêutica é a arte de compreender a linguagem falada e escrita” (SCHMIDT, 2014, p.19), e relaciona-se também com “interpretação”, tendo ambos os termos origem na palavra grega, “hermeneuein” (SCHMIDT, 2014, p.11).
Assim, “a compreensão é necessariamente compreensão hermenêutica […]” e isso porque “a compreensão ocorre como uma fusão do assim chamado horizonte passado do texto com o horizonte presente daquele que compreende.” (SCHMIDT, 2014, p.21).
No campo da decisão judicial, relaciona-se ao presente trabalho o fato de que “‘o intérprete sempre atribui sentido (Sinngebung) ao texto’, [o que] nem de longe pode significar a possibilidade de este estar autorizado a atribuir sentidos de forma arbitrária aos textos, como se o texto e norma estivessem separados.” (STRECK, 2017-a, p.92).
Sendo assim, “[…] é equivocado afirmar, por exemplo, que o juiz primeiro decide, para só depois fundamentar; na verdade, ele só decide porque já encontrou, na antecipação de sentido, o fundamento (a justificação)”. (STRECK, 2017-a, p.93).
Se fosse o processo inverso, de atribuir sentidos para então fundamentar de acordo com esse sentido, isso equivaleria a uma arbitrariedade, pois “os sentidos que atribuirá ao texto não dependem de sua vontade” haja vista que “[…] se o intérprete impuser sua vontade, já não haverá hermenêutica. Não haverá compreensão. Haverá uma extorsão de sentido.” (STRECK, 2017-a, p.94).
Ao buscar compreender a utilização correta dos precedentes, pretende-se demonstrar que por meio de uma teoria hermenêutica da decisão judicial pode ser possível obter maior segurança jurídica, com diminuição de discricionariedades e relativismos e aumento da previsibilidade e da estabilidade do sistema jurídico.
É preciso que o sistema de precedentes não seja desvirtuado, utilizado de forma a universalizar prospectivamente as decisões, agravando ainda mais o problema da discricionariedade judicial, devendo, portanto, ser utilizado corretamente para que possa ser garantia da igualdade e da Democracia.
3.1 Universalização dos precedentes e a discricionariedade da decisão judicial
A abordagem da universalização dos precedentes no presente trabalho é no que tange ao sentido utilizado por alguns autores brasileiros, como, por exemplo, Marinoni, Mitidiero e Arenhart, os quais encampam também a tese de que as cortes superiores é que seriam as responsáveis por interpretar as normas e, por meio de suas decisões, criariam os precedentes para que tribunais e juízes os aplicassem como se fossem “[…] uma espécie de norma que contém em si mesma uma pré-interpretação” (STRECK, 2018, p.56).
Nesse sentido, Mitidiero diferencia as cortes de “vértice”, estas sendo as “cortes supremas”, que atuariam como “Cortes de Precedentes”, das “Cortes de Justiça”, de modo que as funções da Corte de Justiça, compostas pelos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais, seriam as de “[…] exercer controle retrospectivo sobre as causas decididas em primeira instância e uniformizar a jurisprudência […]” enquanto as Cortes de Precedentes, compostas pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça teriam como função “[…] outorgar interpretação prospectiva e dar unidade ao direito.” (MITIDIERO, 2018, p.80-81 – grifos no original).
No entanto, “o precedente não é uma regra abstrata, mas uma regra intimamente ligada aos fatos que lhe deram origem, razão pela qual o conhecimento das suas razões é imprescindível” (MOTTA; RAMIRES, 2018, p.106).
Para que o sistema de precedentes seja legítimo, o dever de respeitá-lo não deve ser consequência de um argumento de força, no sentido de que um precedente “[…] vale porque tem autoridade e não porque tem determinado conteúdo” (STRECK, 2018, p.122 – grifo no original), como se os julgados das cortes superiores fossem “[…] teses gerais e abstratas”, pois “o CPC não disse que ‘as teses’ ou ‘teses abstratas e gerais’ devem ser íntegras e coerentes”, mas, sim, a jurisprudência, que é mais do que precedente. (STRECK, 2018, p.57-58).
Dessa utilização dos precedentes com efeito prospectivo decorrem vários problemas, dentre os quais “[…] o uso indiscriminado de conceitos e abstrações, colhidos em situações concretas e descoladas a posteriori dos casos que lhes deram origem”, gerando outro problema, que é a “legitimação de uma ‘escolha’ arbitrária entre precedentes antagônicos.” (MOTTA; RAMIRES, 2018, p.103).
Se se permitir que precedentes sejam utilizadas como se tivessem caráter geral e abstrato, sem relação com o caso que foi julgado, gera-se o problema inicial, de se ter uma norma com efeito prospectivo, e que pode ser interpretada livremente, e “admitir a existência de poder discricionário é, em última análise, reconhecer a possibilidade de alguém escolher, conforme critérios pessoais, subjetivos, entre duas ou mais soluções, todas igualmente legítimas.” (CÂMARA, 2018, p.235).
Assim como é importante identificar semelhanças entre o caso a ser julgado e o precedente utilizado como fundamentação, é imprescindível a verificação de distinções entre eles, pois “a distinção entre casos, portanto, não é uma forma de se deixar de aplicar o padrão decisório, mas – ao contrário – uma forma de respeitá-lo, estabelecendo com precisão em que casos seus fundamentos determinantes devem incidir” (CÂMARA, 2018, p.290).
A necessidade de que o precedente seja analisado não como uma norma abstrata, decorre do princípio da igualdade, que “[…] impõe a construção de mecanismos de padronização decisória, vez que é essencial assegurar que, diante de casos idênticos, as soluções alcançadas por meio da atividade processual sejam idênticas”, impondo também que “[…] casos distintos recebam soluções distintas.” (CÂMARA, 2018, p. 350).
3.2 Correta utilização do sistema de precedentes como garantia da igualdade e da democracia
O dever de fundamentar a decisão judicial é Constitucional (Art. 93, IX, da Constituição Federal de 1988) e legal (Art. 11, caput, cumulado com Art. 489, §1º, do Código de Processo Civil, de 2015), sendo necessário que “[…] o juiz mostre, com clareza, o percurso lógico do seu raciocínio, fundado nos fatos, nas provas e no direito” (LUNARDI; REZENDE, 2019, p.79).
A integridade e a coerência determinam que se relacione tanto as circunstâncias fáticas quanto a razão fundamental da decisão que serve de precedente com as circunstâncias fáticas do caso a ser julgado, não bastando que se invoquem ementas de jurisprudência, enunciados de súmulas e precedentes “em tese” para que a decisão esteja fundamentada.
Pelo contrário, a fundamentação deve demonstrar inequivocamente a adequação do precedente como razão de decidir o caso concreto a ser julgado:
“A fundamentação tem a função de mostrar às partes do processo as razões que levaram o juiz a se convencer de sua decisão. Assim, a motivação é uma forma de o juiz prestar contas da sua atividade jurisdicional (accountability) às partes do processo, aos demais juízes e à toda a sociedade. (LUNARDI; REZENDE, 2019, p.79 – grifos no original).”
Além do dever de motivar, “há que se levar em conta, ademais, que justificar quer dizer fundamentar. E que isso vai além do ‘motivar’. Posso ter vários motivos para fazer algo; mas talvez nenhum deles seja justificado” (STRECK, 2017, p.644).
Nesse sentido, tem-se que
“[…] uma decisão que se limita a citar decisões tomadas anteriormente sem indicar os motivos pelos quais é ela empregada, no julgamento de um novo caso, como base para a formação desta decisão posterior, é mesmo que uma decisão que deve ser equiparada aos pronunciamentos judiciais não fundamentados. (CÂMARA, 2018, p.174 – grifo nosso).”
No entanto, muitas decisões são feitas sem a fundamentação correta, apenas reproduzindo mecanicamente ementas e enunciados, descumprindo o dever de fundamentação da forma determinada no Art. 489, §1º, do Código de Processo Civil, o que não poderia ocorrer, pois seria uma tentativa de se sustentar “[…] argumentos para esvaziar escaninhos a qualquer custo” (STRECK, 2018, p.68), o que é contrário à Constituição e ao Estado Democrático de Direito, pois o “dever fundamental de justificar as decisões assume especial relevância no plano da transparência do processo democrático de aplicação das leis.” (STRECK, 2017, p.645).
O dever constitucional de fundamentar todas as decisões judiciais é uma forma de obrigar os juízes a prestarem conta à sociedade acerca de suas atuações, pois ninguém pode estar acima da Constituição.
Nesse sentido, não se pode considerar adequadamente fundamentadas decisões que se limitem a transcrever ementas para “[…] afirmar que a matéria já tinha sido objeto de julgamentos anteriores, sem qualquer indicação de quais tenham sido as circunstâncias fáticas dos casos precedentemente julgados”, e sem que tenha “[…] sequer menção a quais tenham sido os fundamentos determinantes das decisões anteriormente proferidas ou a demonstração de que tais fundamentos também seriam aplicáveis ao caso concreto que estava a ser apreciado pelo Tribunal.” (CÂMARA, 2018, p.147 – grifo nosso).
Decisões assim não deveriam se sustentar, pois não cumprem o dever de fundamentar, sendo, como visto, o exato caso mencionado no artigo 489, §1º, V, do Código de Processo Civil.
Além de descumprir o dever de fundamentar, a utilização errada do sistema de precedentes acarreta também um descumprimento do direito fundamental de igualdade, pois, como visto, a falta de integridade e coerência pode gerar facilidades para decisões voluntaristas, discricionárias, que levem em conta mais a vontade do julgador, que os fundamentos legais e todo histórico de decisões do Judiciário.
A democracia será resguardada se as decisões judiciais cumprirem seu dever de fundamentação e, por meio da integridade e da coerência, busca-se “[…] conferir segurança jurídica evitando uma loteria na esfera jurisdicional, restringindo, portando, a prática de um ativismo judicial exacerbado.” (LEITE, 2018, p.125).
Assim, há dever do órgão judicial de proferir “[…] decisão constitucionalmente legítima para o caso concreto, o que só será possível se observadas a coerência e a integridade do ordenamento jurídico” (CÂMARA, 2015, p.432-433).
Nesse sentido, para a utilização de um precedente como um dos fundamentos da decisão, respeitando-se a Constituição Federal (Art. 93, IX) e o Código de Processo Civil (Art. 11 e Art. 489, §1º, VI), é preciso “Identificar a ratio decidendi de uma questão constante de um caso – isto é, o precedente que deve ser aplicado (“precedente case”) – […]” bem como “[…] é preciso saber se essa [ratio decidendi] é aplicável ao caso presente (“instant case”) (MITIDIERO, 2018, p.109 – grifos no original).
O cerne de toda questão está relacionado ao fato de que “a ideia central de um ordenamento jurídico íntegro e coerente é a concretização da isonomia substancial, impedindo-se, deste modo, decisões construídas de forma solipsista pelo juiz, a partir de seus próprios e pessoais valores” (CÂMARA, 2015, p. 433).
Dessa forma, “a decisão deve ser construída – em contraditório, sempre – a partir do que anteriormente já se decidiu a respeito daquela mesma matéria (integridade), de forma a assegurar que em casos análogos se apliquem os mesmos princípios (coerência)” (CÂMARA, 2015, p. 433).
Tanto é assim que “se os casos são suficientemente similares, aplica-se o precedente. Se não o são, deve-se distingui-los (arts. 489, §1º, VI, 927, §1º, e 1.037, §9º, do CPC). (MITIDIERO, 2018, p.113).
Para que isso seja feito corretamente no sistema de precedentes, é necessário que a fundamentação da decisão seja feita corretamente, demonstrando-se a relação dos fatos do caso que gerou o precedente, bem como os fundamentos determinantes da decisão (ratio decidendi), com o caso concreto que será julgado.
Assim, pode-se afirmar que a utilização correta do sistema de precedentes, com respeito aos deveres de integridade e de coerência, são formas de se sustentar a Democracia e o Estado Democrático de Direito.
Conclusão
O trabalho tratou dos precedentes judiciais no Código de Processo Civil de 2015, sob uma perspectiva da teoria hermenêutica da decisão judicial, com observância da obrigação de correta fundamentação da decisão.
Não se pretendeu analisar os vários tipos de padrões decisórios com força vinculante a que se refere o artigo 927 do Código de Processo Civil e como se dá o processo formação de cada um deles, sendo o foco do trabalho o dever de fundamentação das decisões judiciais, com observância do dever de integridade e coerência.
O dever de fundamentar toda e qualquer decisão judicial vem consagrado no artigo 93, IX, da Constituição Federal de 1988, e nos artigos 11, caput, 489, §1º, do Código de Processo Civil.
Quanto ao dever de integridade e coerência, além de serem noções estudadas principalmente pela hermenêutica jurídica, são também deveres legalmente estabelecidos no Código de Processo Civil, no artigo 926.
Como restou demonstrado, o viés hermenêutico da decisão judicial deve ser levado a sério para que o sistema de precedentes brasileiro seja legitimado, por meio de decisões que respeitem o dever de fundamentação, evitando-se que os precedentes sejam utilizados à revelia dos deveres de integridade e coerência, pois se assim ocorrer, há risco de insegurança jurídica, prejudicial ao Estado Democrático de Direito.
Quando se utilizar de precedentes como fundamento para de decidir, sem demonstrar que o caso concreto que será julgado tem semelhança fática com o caso que gerou o precedente, bem como que os fundamentos determinantes – ratio decidendi – para ambas as decisões seja semelhante, pode haver decisões contraditórias entre si ainda que “fundamentadas” em um mesmo precedente.
Isso ocorre comumente quando o sistema de precedentes é utilizado sem observância dessas regras, descumprindo o dever de integridade e coerência.
A mera invocação de ementas, de enunciados de súmulas, ou referência a casos precedentes, sem que se demonstre a relação de semelhança fática do caso a ser julgado com o caso que gerou o precedente, e sem que fique demonstrado que os fundamentos determinantes da razão de decidir o caso anterior se adequam também ao caso posterior, é o mesmo que uma decisão não fundamentada.
Decisões assim acarretam maior poder discricionário aos juízes, permitindo maior margem de voluntarismo, com elevada carga de insegurança jurídica, pela maior possibilidade de decisões contraditórias a casos semelhantes.
Como forma de se evitar que o solipsismo, a subjetividade da vontade dos julgadores se sobreponha à integridade do direito e à coerência do sistema jurídico, deve-se cumprir rigorosamente o dever de fundamentar as decisões judiciais.
Diante de todo o exposto, pode-se concluir que a teoria hermenêutica da decisão judicial fornece fundamentos teóricos que permitem a plena adequação do sistema jurídico brasileiro ao sistema de precedentes do atual Código de Processo Civil, desde que se respeite o Direito como Integridade, encontrando na integridade a na coerência e no cumprimento do dever de fundamentação, conforme preceitua a Constituição (art. 93, IX) e o Código de Processo Civil (art. 489, §1º), a força necessária para que sejam pilares, Estado Democrático de Direito, garantidores da igualdade e da Democracia.
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