Por Nauê Bernardo Pinheiro de Azevedo e Ana Paula Cury (Souza Cury Advocacia), Pedro Henrique Costodio (Fenelon Costodio Advocacia) e Rafael Favetti (Favetti Sociedade de Advogados)
Conforme se depreende da leitura da lei e do conhecimento do sistema institucional pátrio, a função precípua das cortes superiores é manter incólume o sistema infraconstitucional brasileiro. Com isso, possuem a importante atribuição de unificar entendimentos, conferindo o norte interpretativo para os Tribunais ordinários.
A partir da sistemática de precedentes, reforçada pela entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015 (Lei 13.105/2015), o acesso aos tribunais superiores e ao Supremo Tribunal Federal, pela via recursal, se tornou mais estreito. Os retoques conferidos pela Lei 13.256 de 2016 ao CPC, bem como a redação do art. 932 (que trata das funções do relator nos Tribunais) expõem a força que os precedentes obtiveram no direito brasileiro. Tudo no sentido de garantir uma prestação jurisdicional mais eficaz e com resoluções parecidas para demandas que tenham similitude no caso concreto, evitando ao máximo interpretações discrepantes sobre demandas parecidas. Revelam, ainda, intenção do legislador de levar às cortes superiores ou ao STF apenas aquelas matérias que realmente ultrapassam os limites subjetivos da lide, recaindo sobre a interpretação pura da lei ou de dispositivo constitucional.
Neste sentido, é cada vez mais latente o emprego de uma técnica de interpretação e sistematização de aplicação de precedentes judiciais gerados nas Cortes superiores – a prospective overruling, por meio do qual “os tribunais, ao mudarem suas regras jurisprudenciais, podem, por razões de segurança jurídica (boa-fé e confiança legítima), aplicar a nova orientação apenas para os casos futuros” [1]. Pode-se dizer, de forma expressa, que o ordenamento processual brasileiro acolheu esta técnica, a partir da leitura da redação do art. 927, § 3º do CPC [2].
Por meio da aplicação de tal instituto, os tribunais superiores podem evitar traumas no ordenamento jurídico pátrio, ao indicar, de forma expressa, a partir de que momento a mudança de entendimento jurisprudencial poderá ser aplicada.
Antes da redação atual do CPC, havia certa dificuldade na aplicação de tal entendimento pelos tribunais superiores, de modo que o Supremo Tribunal Federal acabou sedimentando a compatibilidade deste instituto com o ordenamento jurídico brasileiro, mesmo em casos fora do alcance da redação do art. 27 da Lei 9.868/1999. Cita-se, a este respeito, o entendimento firmado no julgamento do Recurso Extraordinário 630.733, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, no qual considerou que, diante da substancial mudança de jurisprudência sobre o caso concreto, foi imposto ao Tribunal, por razões de segurança jurídica, “a tarefa de proceder a ponderação das consequências e o devido ajuste do resultado, adotando a técnica de decisão que possa melhor traduzir a mutação constitucional operada”.
O instituto já foi aplicado em diversos outros casos pelo Supremo Tribunal Federal, de forma a manter incólume a segurança jurídica e confirmar a sensação de segurança que se espera da jurisprudência, prestigiando aqueles que se comportam de acordo com aquilo que foi entendido e firmado pelos tribunais [3].
O Superior Tribunal de Justiça, apesar de inicialmente não adotar a prospective overruling, passou a prestigiar o instituto, ainda que com base em outro dispositivo: a nova redação da Lei de introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), em seu art. 23 [4]. Cita-se, como caso paradigmático a este respeito, o REsp 1.696.396 [5], de relatoria da ministra Nancy Andrighi, em 19/12/2018. Na hipótese, ao reconhecer a taxatividade mitigada do art. 1.015 do CPC (hipóteses de agravo de instrumento), o Superior Tribunal de Justiça estabeleceu tese no sentido de modular os efeitos da decisão, aplicando-se a nova jurisprudência apenas após às decisões interlocutórias proferidas após a publicação do acórdão que a fixar. Tal decisão teve o condão de manter incólume a segurança jurídica, ao fixar marco inicial de vigência de mudança de entendimento jurisprudencial.
A aplicação da técnica pelos tribunais superiores é capaz de ensejar efeitos positivos no tão sobrecarregado sistema judiciário brasileiro. A jurisprudência evolui, e sua evolução tende a acompanhar aquilo que se nota como necessário para geração de resolução de conflitos para pacificação social – a verdadeira função da jurisdição.
Ao analisar os efeitos do precedente a ser criado (podendo ou não recair sobre julgamentos que ainda estão em curso), os Tribunais superiores terão capacidade ainda maior de, a partir de simples fixação de marco inicial da vigência de novo entendimento, prestigiar a segurança jurídica e entregar àquele que se comporta de acordo com o entendimento em vigor à data do ajuizamento da ação uma melhor prestação jurisdicional. A aplicação correta da prospective overruling, desta forma, acabará por proteger a legítima confiança, uma vez que bastará ao magistrado, indicar a aplicabilidade ou não do precedente de corte superior adequado ao caso concreto no momento da materialização da busca pela tutela do Poder Judiciário, sem ter que atentar-se para eventual mudança de entendimento enquanto a lide está em curso.
Com isso, reforça-se o caráter cada vez mais vinculativo dos precedentes e as cortes poderão, de forma menos traumática para o jurisdicionado, analisar a conveniência jurídica da manutenção de determinados entendimentos – ainda que pacíficos e sumulados – sem o risco de afetar a segurança jurídica que se espera do Poder Judiciário.
[1] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende de. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed., São Paulo: Método, 2014, p. 103.
[2] Art. 927 (…)
[3] A este respeito, ver Informativo 921/STF: “em consonância com o instituto da prospective overruling, a mudança jurisprudencial deve ter eficácia ex nunc, porque, do contrário, surpreende quem obedecia à jurisprudência daquele momento. Ao lado do prestígio do precedente, há o prestígio da segurança jurídica, princípio segundo o qual a jurisprudência não pode causar uma surpresa ao jurisdicionado a partir de modificação do panorama jurídico.” R 2422/DF, rel. Min. Luiz Fux, julgamento em 25.10.2018.
[4] Art. 23. A decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.
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