Resumo: Um dos aspectos mais proeminente do Direito, enquanto ciência, está intimamente atrelado ao seu progressivo e constante aspecto de mutabilidade, albergando em seu âmago as carências da sociedade, as realidades fática que possuem o condão de motivar a renovação do sedimento normativo. Neste aspecto, cuida salientar que o instituto civil da usucapião rememora à Lei das Doze Tábuas, de 455 antes de Cristo, sendo um instrumento direcionado para a aquisição da propriedade, quer seja de bens móveis, quer seja de bens imóveis. Para tanto, o único requisito observado concernia a posse continuada por um (annus) ou dois anos (biennun). Neste sentido, o presente se debruça em analisar as hipóteses de reconhecimento da usucapião de coisas móveis, bem como suas modalidades (ordinária e extraordinária) e a influência do Recurso Especial nº 1.582.177/RJ na consecução da via administrativa ou extrajudicial de tal prescrição aquisitiva.
Palavras-chaves: Usucapião de Bens Móveis. Entendimento Jurisprudencial. Prescrição Aquisitiva.
Sumário: 1 Considerações Iniciais; 2 Usucapião: Abordagem Histórica; 3 Usucapião: Abordagem Conceitual do Tema; 4 Da Usucapião de Bens Móveis; 5 Primeiros Comentários ao Recurso Especial nº 1.582.177/RJ: Da Usucapião de Bens Móveis Extrajudicial
1 Considerações Iniciais
Em linhas inaugurais, ao se dispensar uma análise ao tema central do presente, necessário se faz examinar a Ciência Jurídica, assim como suas múltiplas e distintas ramificações, a partir de um viés norteado pelas relevantes modificações que passaram a permear o seu arcabouço teórico-doutrinário, bem como seu sedimento normativo. Nesta perspectiva, valorando os aspectos característicos de mutabilidade que passaram a emoldurar o Direito, é plenamente possível grifar que não subsiste a visão na qual a ciência ora aludida era algo pétreo e estanque, indiferente à gama de situações produzidas pela coletividade, enquanto elemento de convívio entre o ser humano. Como resultante do acinzelado, infere que não mais vigota a imutabilidade dos cânones que outrora orientavam o Direito, o aspecto estanque é achatado pelos anseios e carências vivenciados pela sociedade.
Ainda nessa trilha de exposição, “é cogente a necessidade de adotar como prisma de avaliação o brocardo jurídico 'Ubi societas, ibi jus', ou seja, 'Onde está a sociedade, está o Direito', tornando explícita e cristalina a relação de interdependência que esse binômio mantém”[1]. Com efeito, a utilização da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, como axioma maior de sustentação é mecanismo proeminente, quando se tem, como objeto de ambição, a adequação do texto genérico e abstrato das normas, que integrem o arcabouço pátrio, às nuances e complexidades que influenciam a realidade moderna. Ao lado disso, há que se citar o voto magistral proferido pelo Ministro Eros Grau, ao apreciar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº. 46/DF, “o direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza”[2]. Com grossos traços e cores fortes, prossegue o eminente Ministro Eros Grau abordando que:
“É do presente, na vida real, que se toma as forças que lhe conferem vida. E a realidade social é o presente; o presente é vida — e vida é movimento. Assim, o significado válidos dos textos é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente. A interpretação do direito não é mera dedução dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e seus conflitos”[3].
Como bem pontuado, o fascínio da Ciência Jurídica jaz, justamente, na constante e imprescindível mutabilidade que apresenta, decorrente do dinamismo que reverbera na sociedade e orienta a aplicação dos Diplomas Legais e os institutos jurídicos neles consagrados. Ao lado do esposado, quadra negritar que a visão pós-positivista que passou a permear o Direito, ofertou, por via de consequência, uma rotunda independência dos estudiosos e profissionais da Ciência Jurídica. Por necessário, há que se citar o entendimento de Verdan, “esta doutrina é o ponto culminante de uma progressiva evolução acerca do valor atribuído aos princípios em face da legislação”[4]. Destarte, a partir de uma análise profunda de sustentáculos, infere-se que o ponto central da corrente pós-positivista cinge-se à valoração da robusta tábua principiológica que Direito e, por conseguinte, o arcabouço normativo passando a figurar, nesta tela, como normas de cunho vinculante, flâmulas hasteadas a serem adotadas na aplicação e interpretação do conteúdo das leis. Gize-se a brilhante manifestação apresentada pelo Ministro Marco Aurélio, que, ao abordar acerca das linhas interpretativas que devem orientar a aplicação da Constituição Cidadã, expôs:
“Nessa linha de entendimento é que se torna necessário salientar que a missão do Supremo, a quem compete, repita-se, a guarda da Constituição, é precipuamente a de zelar pela interpretação que se conceda à Carta a maior eficácia possível, diante da realidade circundante. Dessa forma, urge o resgate da interpretação constitucional, para que se evolua de uma interpretação retrospectiva e alheia às transformações sociais, passando-se a realizar a interpretação que aproveite o passado, não para repeti-lo, mas para captar de sua essência lições para a posteridade. O horizonte histórico deve servir como fase na realização da compreensão do intérprete”[5].
Nesta toada, os princípios jurídicos são erigidos à condição de elementos que trazem em seu âmago a propriedade de oferecer uma abrangência ampla, contemplando, de maneira única, as diversas espécies normativas que integram o ordenamento pátrio. Em razão do esposado, tais mandamentos passam a figurar como supernormas, isto é, “preceitos que exprimem valor e, por tal fato, são como pontos de referências para as demais, que desdobram de seu conteúdo”[6]. Percebe-se, a partir da teoria em testilha, que os dogmas jurídicos são desfraldados como verdadeiros pilares sobre os quais o arcabouço teórico que compõe o Direito se estrutura, segundo a brilhante exposição de Tovar[7]. Por óbvio, essa concepção deve ser estendida a interpretação das normas que dão substrato de edificação à ramificação Civilista da Ciência Jurídica, mormente o princípio da função social da propriedade, no que pertine ao instituto da usucapião e seus múltiplos desdobramentos. Trata-se, portanto, de assentar uma ótica analítica influenciada robustamente pela extensão dos princípios jurídicos, os quais, corriqueiramente, têm o condão de permitir a adequação da norma abstrata a situações concretas, assegurando, desta feita, a contemporaneidade do ordenamento jurídico.
2 Usucapião: Abordagem Histórica
In primo loco, cuida argumentar que o instituto civil da usucapião rememora q Lei das Doze Tábuas, de 455 antes de Cristo, como bem anota Farias & Rosenvald[8], afigurando-se como instrumento empregado para a aquisição da propriedade, quer seja de bens móveis, quer seja de bens imóveis. Para tanto, o único requisito observado implicava na posse continuada por um (annus) ou dois anos (biennun). O primeiro prazo era destinado a móveis e outros direitos (coeterum rerum), ao passo que o segundo prazo era aplicado aos imóveis (fundi)[9]. Nesta trilha, guarda harmonia como o expendido os ensinamentos de Madeira, ao lecionar sobre a Sexta Tábua, dicciona que “além de diversas outras disposições, estabelece tal tábua o prazo de dois anos para usucapir bens imóveis e de um ano para o usucapião de bens móveis (VI.5)” [10].
Com efeito, há que se salientar que, durante o período da vigência da Doze Tábuas Romanas, a aquisição da propriedade estava restrita aos cidadãos romanos, ou seja, “somente o cidadão romano podia adquirir a propriedade; somente o solo romano podia ser seu objeto, uma vez que a dominação nacionalizava a terra conquistada”[11]. Com o passar dos séculos, as fronteiras do Império Romano são expandidas, quando começa a se observar o alargamento da possibilidade de usucapir, vez que o possuidor peregrino, passam a ter acesso ao instituto em comento, o qual passa a figurar como uma espécie de prescrição.
Desta feita, vislumbra-se um instrumento de exceção (excepitio), cujo pilar de sustentação tange à posse por longo tempo da coisa, atentando-se para os prazos de 10 (dez) e 20 (vinte) anos. Neste sentido, “o legítimo dono não mais teria acesso à posse se fosse negligente por longo prazo, mas a exceção de prescrição não implicava perda da propriedade”[12]. Assim, ainda que o peregrino pudesse valer-se da exceção, o que já se revelava um avanço no pensamento da época no que pertine à concepção de cidadão e peregrino/estrangeiro, esta não tinha o condão de retirar o domínio do proprietário negligente. Neste sentido, Ferreira destaca:
“Os dois institutos (usucapio e praescriptio) passaram a coexistir. O primeiro só vigorou para os peregrinos e também quanto aos imóveis provinciais a partir de 212; o segundo (longi temporis) teve vigência desde o ano de 199, sendo que a diferença entre ambos era quanto ao prazo – ano e biênio para a usucapio, dez anos (para os presentes – inter praesentes) e vinte anos (para ausentes – inter absentes) para a praescriptio. O prazo foi aumentado devido à grande extensão do império romano. Essa prescrição de longo tempo foi estendida aos imóveis provinciais e coisas móveis, e constituía um meio de defesa processual – praescriptio, isto é, uma prescrição extinta da ação reivindicatória”[13].
Justiniano, em 528 depois de Cristo, funde em um único instituto a usucapio e a praescriptio, vez que, em decorrência a própria evolução do Direito Romano e dos instrumentos ora aludidos, não mais se observava diferenças entre a propriedade civil (objeto da usucapio) e a pretoriana (passível de praescriptio). Houve, a partir das ponderações estruturadas, a unificação dos institutos em um único, denominado usucapião, possibilitando ao possuidor de longo tempo (longi temporis) a utilização ação de cunho reivindicatório, com o escopo de obter a propriedade e não uma mera a exceção, contrapondo-se ao que ocorria no instituto da praescriptio. Em decorrência da evolução do Direito Romano, constata-se que a usucapião, de maneira simultânea, se converteu em modo de perda e aquisição de propriedade, razão pela qual é chamada de “prescrição aquisitiva”. Logo, em razão da fusão dos institutos, verifica-se que a praescriptio passa a se desdobrar em dois instrumentos distintos: a primeira de caráter geral destinada a extinguir todas as ações e a segunda, um modo de adquirir, representado pela antiga usucapião. Ambas as instituições do mesmo elemento: a ação prolongada do tempo. Trata-se de instituto que passou a gozar de rotunda relevância no Direito.
3 Usucapião: Abordagem Conceitual do Tema
Com o escopo de sedimentar as bases sólidas acerca do instituto em estudo, quadra trazer à baila as noções conceituais, doutrinariamente, estruturadas acerca da usucapião. Pois bem, como se infere dos argumentos algures apresentados, o instituto da usucapião afigura-se como instrumento que tem o condão de dar azo à aquisição da propriedade, em razão da posse continuada, no decorrer de determinado defluxo de tempo, sendo, para tanto, imprescindível a observação dos requisitos acinzelados pelo arcabouço jurídico pátrio. Complementando tal ótica, pode-se destacar, com grossos traços, que a prescrição configura modo originário de aquisição de propriedade e de outros direitos reais pela posse prolongada da coisa, acrescida de demais requisitos legais. Em substrato similar, leciona Rodrigues que a usucapião é “modo originário de aquisição de domínio, através da posse mansa e pacífica, por determinado espaço de tempo, fixado na lei”[14] (usucapio est adjectio dominii per continuationem possessionis temporis lege definit).
Faz-se mister avençar que para a substancialização da usucapião, é imprescindível a conjugação de determinados, que abrangem tanto às pessoas a quem o instituto da usucapião importa, às coisas em que a usucapião pode incidir quanto à forma que a mesma se constituirá. Destarte, denotam-se três categorias distintas em que os mencionados requisitos podem ser albergados, quais sejam: pessoais, reais e formais. No que concernem aos requisitos pessoais, segundo os dizeres de Orlando Gomes[15], os requisitos pessoais são exigências relativas à pessoa do possuidor (usucapiente) que ambiciona adquirir a coisa através da usucapião, bem como do proprietário, que, em decorrência da aquisição da propriedade pelo usucapiente, perde a sua. Ab initio, revela-se importante destacar que o adquirente da propriedade, através da usucapião, seja considerado capaz e detenha qualidade para adquiri-la de tal forma.
Por oportuno, há que se registrar que por se tratar de uma prescrição aquisitiva, logo, aplicam-se ao instituto em comento as mesmas causas impeditivas e suspensivas da prescrição, entalhadas nos artigos 197 e 198, ambos da Lei Nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002[16], que institui o Código Civil. Deste modo, “não correndo a prescrição entre ascendentes e descentes, entre marido e mulher, entre incapazes e seus representantes, nenhum deles pode adquirir bem do outro por usucapião”[17]. Vale registrar que, uma vez dissolvida a sociedade conjugal e terminado o poder familiar, os prazos têm início e passam a ser contados. Em relação àquele que sofre os efeitos decorrentes da prescrição aquisitiva, não se infere nas normas pátrias qualquer exigência relativa à capacidade, bastando, tão-somente, que seja proprietária da coisa hábil (res habilis) de ser usucapida. Há que se registrar, neste ponto, que os incapazes podem sofrer os efeitos decorrentes da usucapião, vez que cabe àqueles que os representam impedir a ocorrência. Nesta linha de dicção, Farias & Rosenvald não coadunam com tal entendimento, para tanto, expõem que “da mesma forma ninguém poderá usucapir um bem de titularidade do menor de 16 anos de idade ou de pessoa sob regime de curatela”[18].
Em se de requisitos reais, quadra salientar que, neste item, atrelam-se às coisas e direitos suscetíveis de serem usucapidos, pois há direitos e coisas que a prescrição aquisitiva não incide. Assim, há certos bens que são eivados de imprescritibilidade, a exemplo dos bens públicos, ou seja, aqueles pertencentes a pessoas jurídicas de direito público interno. “Quanto aos bens dominiais, não se admite sejam adquiridos por usucapião, embora suscetíveis de aquisição por outros modos”[19]. Quadra destacar que a prescrição aquisitiva incide apenas nos direitos reais que recaem sobre coisas prescritíveis. Consoante aduz Farias & Rosenvald, “somente os direitos reais que recaiam em coisas usucapíveis poderão ser obtidos por este modo de aquisição originário (seja a título de propriedade, servidão, enfiteuse, usufruto, uso e habitação” [20].
Os denominados requisitos formais da usucapião são responsáveis por atribuir a fisionomia característica da prescrição aquisitiva, oscilando de acordo com os lapsos temporais estabelecidos nos dispositivos legais. Todavia, independentemente da espécie de usucapião, é pungente a necessidade de dois requisitos, a saber: a posse (possessionis) e o lapso temporal (tempus). Aos que se caracterizam pela duração mais curta, exige-se, ainda, a boa-fé (bona fides) e o justo título. A posse ensejadora da usucapião deve ser exercida com animus domini, sendo considerada como o mais importante de seus requisitos, vez que atua como base de sustentação do próprio instituto. Nesse sentido, valiosa é a lição de Orlando Gomes, em especial, quando acrescenta, em relação ao tema em construção, com bastante propriedade, que:
“A posse que conduz à Usucapião, deve ser exercida com animus domini, mansa e pacificamente, contínua e publicamente. a) O animus domini precisa ser frisado para, de logo, afastar a possibilidade de Usucapião dos fâmulos da posse. […] Necessário, por conseguinte, que o possuidor exerça a posse com animus domini. Se há obstáculo objetivo a que possua com esse animus, não pode adquirir a propriedade por usucapião. […] Por fim, é preciso que a intenção de possuir como dono exista desde o momento em que o prescribente se apossa do bem”[21].
Neste giro, cuida explicitar que o animus domini configura a posse qualitativa que possui o condão de evidenciar, ao mundo exterior, que o usucapiente atua como possuidor, externando comportamento ou postura de quem considera, de fato, proprietário da coisa. Mais que isso, na verdade, só existe o ânimo do dano quando a vontade aparente do possuidor se identifica com a do proprietário, isto é, quando explora a coisa com exclusividade e sem subordinação à ordem de quem quer que seja. Por derradeiro, quanto ao animus domini, há que se citar as considerações de Lenine Niquete, que aduz:
“[…] por definição, é o ‘animus domini’ a vontade (ainda que de má-fé) de possuir alguém como se fosse dono, donde o dizer-se que existe mesmo no ladrão, que sabe que a coisa lhe pertence. Mas […] entende-se que para caracterizá-lo não basta aquela vontade: é preciso que ela resulte da ‘causa possessionis’, isto é, do título em virtude do qual se exerce a posse: de modo que se esta foi iniciada por uma ocupação, pacífica ou violente, pouca importa, haverá o ânimo; se, ao contrário, originou-se de um contrato, como o de locação, por exemplo, que implica no reconhecimento do direito dominial de outrem, não se pode reconhecê-lo”[22].
Ao se examinar o instituto da usucapião, denota-se que, em relação aos bens móveis, o lapso temporal exigido é mais curto, porquanto o encurtamento tem como marco justificatório a dificuldade de individualizar os bens móveis usucapiendos, como também a facilidade de sua circulação. Quadra explicitar ainda que, na realidade, em termos econômicos, vigora o ideário de que bens móveis têm menor importância econômica. D'outro passo, o prazo exigido para usucapir bens imóveis é maior, em razão de se entender que “maior deve ser o lapso de tempo no qual o proprietário fique com a possibilidade de opor-se à posse do prescribente, reivindicando o bem”[23]. Vigora a premissa que o proprietário do bem imóvel detém maior interesse em conservá-lo, de tal maneira que sua inércia deve ficar sujeita à prova durante um ínterim maior do que em relação aos bens móveis. Ademais, há que salientar que a diversidade de prazos escora-se, também, em decorrência dos requisitos exigidos para a consumação da usucapião. Por exemplo, o lapso temporal é abreviado quando restam comprovados a boa-fé do usucapiente e o justo título da coisa usucapienda.
Ao lado disso, por oportuno, destaque-se, com fortes cores, que é plenamente viável juntar posse para promover a prescrição aquisitiva. É permitido ao possuidor acrescentar à sua posse a do seu antecessor, desde que ambas sejam consideradas contínuas e pacíficas, pois em ocorrendo o contrário, tal possibilidade não subsistirá. Isto é, a soma de posses é permitida no ordenamento jurídico pátrio, mas para sua utilização é necessário o preenchimento de alguns requisitos. Nesta esteira, há que se evidenciar que aquele que obtém posse precária, clandestina ou violenta, não poderá somar o período anterior para completar o decurso temporal exigido pelo instituto da usucapião/prescrição aquisitiva.
4 Da Usucapião de Bens Móveis
Tradicionalmente, o instituto da usucapião, também nominado de prescrição aquisitiva, é vinculado a bens imóveis, usufruindo, no ordenamento jurídico nacional, de diversas legislações regulando a temática. Contudo, o Código Civil vigente traz à baila duas modalidades de usucapião de bens móveis, uma ordinária e outra extraordinária, respectivamente previstas na redação dos arts. 1.260 e 1.261, consoante se infere:
“Art. 1.260 – Aquele que possuir coisa móvel como sua, contínua e incontestadamente durante três anos, com justo título e boa fé, adquirir-lhe-á a propriedade.
Art. 1.261 – Se a posse da coisa móvel se prolongar por cinco anos, produzirá usucapião, independentemente de título ou boa-fé.” (BRASIL, 2002)
Em ambas as modalidades de usucapião de coisa móvel também incidem as regras da união de posses, tanto pela accessio quanto pelo sucessio possessionis, bem como as causas impeditivas e suspensivas aplicáveis aos institutos esposados alhures. Com efeito, para que se torne possível a aquisição da propriedade do bem móvel, por usucapião, é necessário que fique comprovada a posse, pelo período mínimo de três anos, devendo-se demonstrar, também, que esta é mansa e ininterrupta, e com fundamento em justo título. Venosa[24], ao discorrer sobre a incidência da espécie em comento de prescrição aquisitiva, vai sustentar que a usucapião de bens móveis encontra reconhecimento na necessidade do possuidor da res ter de comprovar e regularizar a propriedade.
Na hipótese de posse superior a cinco anos, torna-se prescindível o justo título, a exemplo do que se observa no instituto da usucapião de imóveis, na modalidade extraordinária. Basta tão-somente o decurso do lapso temporal exigido em lei. Segundo Rodrigues[25], “ainda a respeito dos bens móveis, contempla o legislador duas espécies de usucapião: de um lado a usucapião que se poderia chamar ordinária, em que o usucapiente deverá provar a posse, boa-fé e justo título e que se consuma no exíguo período de três anos”. Denota-se, portanto, que a mens legis do dispositivo civilista que consagra a modalidade ordinária da usucapião de coisas móveis guarda consonância com o artigo que versa sobre mesma espécie em sede de bens imóveis, estabelecendo a necessidade da presença dos elementos comprobatórios do exercício da posse (justo título), bem como a boa-fé. Neste sentido, inclusive, colhe-se entendimento jurisprudencial que serve como substrato:
“Ementa: Processual Civil. Apelação cível. Usucapião de bem móvel. Requisitos. Preenchimento. Manutenção da decisão.- A declaração de aquisição da propriedade de bem móvel por usucapião exige a comprovação de posse mansa e ininterrupta o bem por no mínimo três anos, se com base em justo título; se não houver justo título, o prazo é elevado para cinco anos. – Preenchidos tais pressupostos, a manutenção da sentença, que julga procedente o pedido, é medida que se impõe”. (Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais – Nona Câmara Cível/ Apelação Cível Nº 2.0000.00.494159-9/000/ Relator: Desembargador Tarcísio Martins Costa/ Julgado em 01.04.2008/ Publicado em 19.04.2008).
Venosa[26], ainda, vai lecionar que, tal como ocorre nos bens imóveis, a modalidade extraordinária da usucapião de coisas móveis ignora a imprescindibilidade do justo título e da boa-fé. Em complemento, Rodrigues vai lecionar que “de outro, a usucapião extraordinária, que demanda o período mais amplo de cinco anos, em que basta a prova da posse mansa e pacífica durante aquele intervalo, posto que a lei presume, de maneira irrefragável, o justo título e a boa-fé”[27]. Assim, apesar da escassez jurisprudencial, é possível transcrever o entendimento pretoriano no sentido que:
“Ementa: Apelação Cível. Usucapião de bem móvel. Veículo. Citação por edital. Nulidade. Inocorrência. 1. Transcorrido grande lapso temporal de tramitação do feito e efetuadas todas as diligências possíveis para a citação pessoal, válida a citação por edital, a qual cumpriu as formalidades legais. Preliminar de nulidade afastada. 2. Tangente ao mérito, verifica-se que o autor encontra-se na posse do veículo há mais de cinco anos, em razão de aquisição do mesmo junto à revenda demandada. Logo, preenchido o requisito elencado no artigo 1261 do Código Civil, impõe-se a manutenção da sentença vergastada. Negaram provimento ao apelo. Unânime”. (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Décima Terceira Câmara Cível/ Apelação Cível Nº 70072093958/ Relator: Desembargadora Elisabete Correa Hoeveler/ Julgado em 15.12.2016).
O maior óbice processual, todavia, na usucapião de coisas móveis repousa em saber em face de quem promover o pedido, porque a pretensão, em teoria, é direcionada contra todos. Logo, em hipótese de réu indeterminado, a sentença limita-se a declarar o domínio, homologando, por via de consequência, a pretensão. Incumbe ao magistrado, contudo, exigir a prova necessária, a exemplo da certidão de inexistência de ações possessórias concernentes ao bem descrito na peça exordial. Ora, desconhecido o atual proprietário da coisa móvel, surge, como dúvida, quem figurará no polo passivo da demanda. A solução processual mais aconselhável no caso concreto será a promoção da citação editalícia dos réus desconhecidos, incertos e ausentes, hipótese em que determinará a presença do Ministério Público. Subsistindo a possibilidade de a coisa ter pertencido a entes estatais, é impositiva que seja dada ciência às Fazendas Públicas.
Venosa[28], ainda, vai afirmar que o processo de usucapião de coisa móvel reclama cautela, mas não exagero e engessamento processual. O mesmo há que se apontar em relação à atuação do Ministério Público que, por vezes, exaspera os limites aceitáveis de seu mister, com requerimento de exigências descabidas. Comumente, a prova testemunhal se revelará suficiente para a comprovação da prescrição aquisitiva. Contudo, não é dispensada a possibilidade de prova pericial, caso as circunstâncias da posse da coisa o reclamarem. Caso o efeito da sentença for declaratório, haverá o reconhecimento da preexistência da propriedade da coisa móvel, logo, será a decisão título hábil para o registro administrativo, caso haja necessidade, como se infere nas hipóteses de veículos automotores, navios e aeronaves. É importante, ainda, destacar o efeito secundário mandamental do decisum da usucapião, consistente, caso não haja necessidade de registro, em ser registrada no Cartório de Títulos e Documentos, para conhecimento de terceiros.
5 Primeiros Comentários ao Recurso Especial nº 1.582.177/RJ: Da Usucapião de Bens Móveis Extrajudicial
Recentemente, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o Recurso Especial nº 1.582.177/RJ, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, analisou acerca da usucapião de bens móveis, na modalidade extraordinária, com o escopo de, obtida o reconhecimento da prescrição aquisitiva, promover a transferência do veiculo automotor, perante o órgão administrativo competente, para sua titularidade. O acórdão abriu a interpretação para a propositura, tal como já ocorre nas modalidades de prescrição aquisitiva de bens imóveis, da modalidade extrajudicial ou administrativa para a usucapião de coisas móveis. Neste sentido, segue colacionada a ementa do julgamento paradigmático:
“Ementa: Civil. Usucapião extraordinária. Veículo. Violação ao art. 535, I e II do CPC/73. Não ocorrência. Falta de transferência no órgão administrativo correspondente. Limitação do exercício de propriedade plena. Sucessão de proprietários. Interesse de agir. Existência. 1. Ação de usucapião extraordinária ajuizada em 20.10.2011. Recurso especial atribuído ao gabinete em 25.08.2016. 2. Cinge-se a controvérsia a definir se a recorrente possui interesse de agir para propor ação de usucapião extraordinária, com a finalidade de reconhecimento do domínio de veículo e regularização do registro de propriedade junto ao órgão de trânsito correspondente. […] 4. A ação de usucapião extraordinária, fundamentada no art. 1.261 do Código Civil, pressupõe posse da coisa móvel por cinco anos independentemente de justo título ou boa fé, e tem por objeto a declaração de aquisição de propriedade. 5. Apesar da regra geral de que o domínio de bens móveis se transfere pela tradição, em se tratando de veículo, a falta de transferência da propriedade no órgão de trânsito correspondente limita o exercício da propriedade plena, uma vez que torna impossível ao proprietário que não consta do registro tomar qualquer ato inerente ao seu direito de propriedade, como o de alienar ou de gravar o bem. 6. Possui interesse de agir para propor ação de usucapião extraordinária aquele que tem a propriedade de veículo registrado em nome de terceiros nos Departamentos Estaduais de Trânsito competentes. 7. Recurso especial conhecido e provido”. (Superior Tribunal de Justiça – Terceira Turma/ REsp 1.582.177/RJ/ Relatora: Ministra Nancy Andrighi/ Julgado em 25.10.2016/ Publicado no DJe em 09.11.2016)
No caso do procedimento extrajudicial de bem móvel, será imprescindível ao usucapiente juntar os seguintes documentos: (i) ata notarial lavrada pelo tabelião com tempo de posse; (ii) documento apto a comprovar a inexistência de débitos; (iii) justo título (documento que demonstre a efetiva aquisição da posse do bem) ou quaisquer outros documentos que demonstrem o tempo de posse, tais como pagamento de impostos e das taxas que incidirem sobre o bem; (iv) presença de advogado, nos termos preconizados pelo artigo 1.071 da Lei nº 13.105[29], de 16 de março de 2015, que institui o Código de Processo Civil. Em seguida, com a apresentação dos documentos supramencionados, incumbiria ao Tabelião proceder à intimação da pessoa em cujo nome estiver a coisa, com o escopo de se manifestar no ínterim de quinze dias.
Em havendo manifestação do interessado ou, ainda, caso manifeste sua concordância quanto ao pedido de usucapião, caberá ao tabelião promover a comunicação do procedimento de veiculo ao órgão executivo de trânsito do Estado, desde o pedido esteja em ordem e a documentação apresentada subsidie o pleito. O Código de Trânsito brasileiro, em seu artigo 134, dá um prazo de até 30 dias para que a comunicação de transferência do veículo seja realizada pelo novo proprietário, mas nada impede que nesse período infrações sejam realizadas. Nessa medida, sendo a comunicação realizada imediatamente pelo cartório faz com que sejam evitadas possíveis demandas judiciais o que garante maior segurança jurídica à população. Em observância ao princípio da cautelaridade, o tabelião, na função de pacificador social, exerce atividade preventiva, objetivando evitar o surgimento de demandas futuras acerca do ato lavrado.
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES
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