Direito Penal

Quem é criminoso? Um olhar criminológico

Arthur de Matos Beolchi

Resumo: O presente artigo busca aguçar uma reflexão acerca do que realmente é ser um criminoso. Diariamente nos deparamos com um bombardeio de informações, no qual somos levados indutivamente a crer na existência de uma visão binária de mundo, restrita apenas a dualidade “bom” e “mau”, “perfeito” e “imperfeito”, “criminoso” e “não criminoso”. Todavia, importante refletirmos neste método de pensamento simplista, no qual “eu sou bom, logo vou para o céu”, enquanto ele é “ruim, logo vai direto para às trevas da perdição”. Talvez haja um meio termo entre a paz infinita do paraíso e a agonia eterna do inferno; o carimbo glorioso estampado no bom cidadão e o rótulo perpétuo do delinquente contumaz. Desta forma, será demonstrada neste trabalho uma perspectiva alternativa para definirmos o que é criminoso, ou, talvez, o quanto ser criminoso significa estar dentro de uma determinada normalidade social.

Palavras-chave: Criminologia, Criminoso, Dualidade. Perspectiva.

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Abstract: This article seeks to sharpen a reflection on what it really is to be a criminal. Daily we are faced with a bombardment of information, in which we are inductively led to believe in the existence of a binary worldview, restricted only to the duality “good” and “bad”, “perfect” and “imperfect”, “criminal” and “not criminal”. However, it is important to reflect on this simplistic method of thinking, in which “I am good, soon I will go to heaven”, while it is “bad, soon it goes straight to the darkness of doom”. Perhaps there is a middle ground between the infinite peace of paradise and the eternal agony of hell; the glorious stamp stamped on the good citizen and the perpetual label of the hard-core offender. In this way, an alternative perspective will be demonstrated in this work to define what is criminal, or, perhaps, how much to be criminal means to be within a certain social normality.

Keywords: Criminology, Criminal, Duality. Perspective.

 

Sumário: Introdução. 1 – Dogmática x Zetética. 2 Criminologia. 2.1. Conceito de Criminologia. 2.2. Objeto da Criminologia. 2.2.1. Crime. 2.2.2. Criminoso. 2.2.3. Vítima. 2.2.4. Controle Social. 3. Reflexões sobre o Criminoso. 4. Conclusão. 5. Referências Bibliográficas.

 

Introdução

O presente Artigo Científico tem como finalidade propor uma reflexão acerca do “ser criminoso”, analisando os aspectos que definem ou devem definir a inserção da rotulação em um indivíduo para que este detenha a condição de criminoso.

Para tanto, no primeiro capítulo será abordada a diferenciação entre uma ciência dogmática e uma ciência zetética, conceitos importantíssimos para que possamos enxergar o indivíduo como meio de aplicação da lei penal ou um sujeito, detentor de um corpo humano, sentimentos e motivações para a prática de determinados atos, pois, neste momento, guardem a expressão “motivação”, pois ninguém faz algo apenas por fazer.

No capítulo seguinte, será estudado a espinha dorsal do presente artigo, qual seja, a criminologia em si, seu conceito e objetos de estudo, ocasião em que serão abordadas as definições e requisitos para a real compreensão da expressão crime, criminoso, vítima e controle social, todos estes itens de suma importância para fazermos a perfeita reflexão no tocante ao tema proposto.

Por fim, após analisarmos todo o conjunto teórico acima elencado, será feita uma análise reflexiva sobre a nomenclatura “criminoso”, quem é detentor da condição dessa expressão e quem está sobre o prisma intocável de poder rotular outrem como tal, sem sofrer as consequências de vir um dia ser rotulado.

Pois bem, conforme breve introdução, o tema aqui proposto terá o condão de nos questionarmos diariamente sobre um senso crítico que muitas vezes não nos damos o prazer de devagar, qual seja, a pessoa humana por trás de um indivíduo desviante.

 

1 – Dogmática x Zetética

A fim de que possamos compreender de forma eficaz o tema que está sendo apresentado, indispensável é a diferenciação entre as ciências que seguem a conceituação de dogmática, quanto aquelas que seguem pelo prisma da zetética.

Pois vejamos. Quando falamos em uma ciência calcada pelos nortes da dogmática, estamos enfatizando que a predominância desse estudo visa estabelecer um ensinamento, no qual há um conjunto de pesquisa com limites bem definidos.

Neste sentido, trazemos aqui a definição jurídica de dogmática estabelecida pelo dicionário Aurélio, sendo a dogmática: “Parte do Direito que se dedica ao estudo crítico e classificatório dos preceitos usados como base e fundamento na construção dos valores jurídicos fundamentais de uma sociedade.”

A partir dessa definição, evidenciamos, conforme acima exposto, ser a dogmática um método de estudo bem definido e delimitado, não dando margens a interpretações além daquilo previamente determinado.

Podemos exemplificar a dogmática jurídica pela perspectiva do direito penal, onde encontramos seus limites na fria letra da Lei.

Assim, quando falamos: “art. 121, Código Penal: Matar alguém”. Não fazemos uma reflexão do ato matar – o porquê alguém matou outem – mas, tão somente, evidenciamos um comando normativo negativo informando “não matarás”, pois caso isso ocorra, haverá consequências.

De outro lado, a Zetética trata das ciências calcadas no ato de indagar, questionar, fazer um exercício de compreender a realidade.

Neste sentido, verificando a conceituação trazida pelo Dicionário Aurélio, a Zetética é: “O conjunto de preceitos para resolver um problema ou investigar a razão de uma coisa.”

Por este Norte, podemos aferir que a zetética é consubstanciada pela ciência do ser, do observar a realidade como ela é e não como “deveria-ser”, uma ciência que busca teorizar, aproximando-se da realidade o máximo possível.

Por este motivo indispensável é entendermos a diferenciação entre dogmática e zetética para o deslinde do presente trabalho, uma vez que enquanto observamos ser a dogmática a ciência jurídica do direito penal, a zetética, por sua vez, tem afinidade com o tema proposto da criminologia, pois o olhar criminológico busca se aproximar da realidade, teorizar sobre fatos, compreender o mundo como ele é.

Logo, enquanto o Direito Penal (consubstanciado pela dogmática) busca saber qual o crime um indivíduo cometeu, a Criminologia (calcada pela Zetética) se preocupa em entender o porquê o indivíduo cometeu tal crime.

Desta forma, após compreendermos os conceitos e diferenciações quanto às ciências dogmáticas e zetéticas, em seguida, analisaremos as diretrizes do estudo criminológico, bem como os objetos por ele analisado.

 

2 – Da Criminologia

2.1. Conceituação

Após o tópico introdutório, passemos ao capítulo que será tratado como a “espinha dorsal” deste artigo científico, uma vez que para termos plenas condições de refletirmos sobre o tema proposto, é indispensável compreendermos as noções basilares da criminologia.

Desta forma, o conceito de criminologia deve servir de base para o estudo do criminoso, assim, dentre tantos estudiosos, tive o prazer de trazer a definição do renomado professor Shecaira (apud MOLINA, Antonio García-Pablos de, 2018), em que a conceitua da seguinte forma:

 

“é a criminologia “uma ciência (ou uma área de saber, conforme o entendimento) empírica e interdisciplinar, que se ocupa do estudo do crime, da pessoa do infrator, da vítima e do controle social do comportamento delitivo, e que trata de subministrar uma informação válida, contrastada, sobre a gênese, dinâmica e variáveis principais do crime – contemplado este como problema individual e como problema social -,l assim como sobre os programas de prevenção eficaz do mesmo e técnicas de intervenção positiva no homem delinquente”.

 

Por este conceito, podemos traduzi-lo como sendo a criminologia uma ciência baseada na experiência prática, do mundo real, estudada de forma interdisciplinar, buscando entender o fato por um olhar sociológico, antropológico, biológico, e dentre outras linhas da ciência a fim de se buscar uma efetiva visão criminológica sobre o delito, aquele quem o pratica, sua vítima e os meios adequados para sua prevenção ou coerção da prática delitiva.

Importante destacar que a criminologia é um braço das chamadas ciências criminais, sendo estas a junção dos estudos da dogmática penal (o dever ser; as leis), dos estudos criminológicos (o mundo real) e a efetividade da prática da política criminal (meios de prevenção dos crimes).

Por este conceito, podemos verificar que a criminologia tem objetos específicos de estudos, quais sejam: O delito/crime; o criminoso; a vítima e o controle social, objetos estes que serão a seguir estudados.

 

2.2. Dos Objetos da Criminologia

A criminologia, como qualquer outra área do conhecimento, visa estudar objetos específicos, os quais, podemos elencá-los como sendo o estudo do delito/crime; do criminoso; da vítima; e do controle social.

Nestes termos, passemos ao mérito de cada objeto de estudo.

 

2.2.1. Do Crime

Primeiramente, importante destacar que para a criminologia não há um conceito uníssono de crime, este deverá ser aferido mediante a constatação de quatro requisitos fundamentais e cumulativos para que possamos evidenciar a existência de um delito.

 

Requisitos estes identificados da seguinte forma: (i) incidência massiva; (ii) incidência aflitiva; (iii) persistência espaço-temporal; e, (iv) inequívoco consenso.

 

A fim de que compreendamos o que seria crime aos olhas da criminologia, passemos à análise de cada requisito, começando pela incidência massiva, que nas palavras do professor Shecaira (2018, p.49):

 

“Não há como que atribuir a condição de crime a fato isolado, ocorrido em distante local do país, ainda que tenha causado certa abjeção da comunidade. Se o fato não se reitera, desnecessário tê-lo como delituoso. Um exemplo disso aconteceu, anos atrás, no litor4al do Rio de Janeiro. Houve um encalhe de um filhote de baleia em uma praia carioca e um dos banhistas, que por ali passava, introduziu um palito de sorvete no orifício respiratório do animal. Pouco tempo depois, por pressão de entidades ambientais, o Congresso Nacional aprovou uma lei de cinco artigos (Lei 7.643/1987) em que se descrevia a suposta conduta praticada por aquele banhista: molestamento intencional de cetáceo (art. 1.º com atribuição de uma pena de 2 a 5 anos).”

 

Conforme se vê, importante destacar que não há o que se falar em crime quando o ato praticado é de forma isolada, quase impossível que se repita, e, ainda que se repetir, existem tipos penais abrangentes o bastante para tutelar o bem jurídico protegido, não sendo necessária edição de lei específica para criminalizar condutas quase que isoladas.

 

Em conseguinte, para verificação de um crime deve-se constatar a incidência aflitiva, que o mesmo professor Shecaira (2018, p. 49), assim bem define: “É natural que o crime produza dor, quer à vítima, quer à comunidade como um todo. Assim, é desarrazoado que um fato, sem qualquer relevância social, seja punido na esfera criminal.”

 

O Terceiro requisito, repisa-se, cumulativo para a aferição de um delito, é a persistência espaço-temporal, que o professor Shecaira (2018, p,49-50), assim bem define:

 

“Não há que se ter como delituoso um fato, ainda que seja massivo e aflitivo, se ele não se distribui por nosso território, ao longo de um certo tempo. Isto ocorreu com os furtos de veículos. Sua reiteração, sua lesividade ao bem jurídico, sua persistência espaço-temporal, fizeram com que o legislador aumentasse a pena desses fatos, quando o veículo fosse transportado para outros Estados ou quando transpusesse as fronteiras do país (art. 155, § 5.º, do CP). No entanto, muitos outros fatos não tiveram o mesmo tratamento. Uma moda fugaz, exatamente por sua fugacidade, não deve ser considerada mais do que uma simples moda. Lembram-se, muito mais a título de curiosidade, as transformações efetivadas pelo movimento da Jovem Guarda nos anos 60. Uma das influências deitadas por aquela geração de cantores foi a mudança da indumentária para algo pouco convencional. A utilização de colares, roupas coloridas, anéis, não era muito comum naqueles tempos. Certo dia, um daqueles cantores apresenta-se com um “anel de brucutu”: tratava-se de um pequeno material, parecido com um rosto, que era retirado dos para-brisas dos velhos “fusquinhas” e que tinha a finalidade de direcionar a água para a limpeza dos para-brisas. Foi uma verdadeira febre. Muitas pessoas passaram a desatarraxar os brucutus dos carros parados, causando grande desconforto aos proprietários daqueles veículos. No entanto, por não haver persistência espaço-temporal, ninguém imaginou ampliar a pena para tal conduta, como se fez com o furto dos veículos, mais recente.”

 

Por fim, o último requisito exigido para a constatação de um delito é o inequívoco consenso, que nas palavras do nobre professor Shecaira (2018, p. 50-51):

 

Por derradeiro, o quarto elemento a exigir-se para a configuração de um fato como delituoso é que se tenha um inequívoco consenso a respeito de sua etiologia e de quais técnicas de intervenção seriam mais eficazes para o seu combate. Tomemos como exemplo o uso do álcool. Seguramente poderíamos qualificar o álcool como uma droga lícita, mas uma droga que produz profundas consequências não somente para todos os dependentes, bem como para todos quantos têm que se relacionar com o adicto. Não se tem dúvida, pois, de que o uso indiscriminado de bebidas alcoólicas produz consequências massivas, aflitivas, e de que tais consequências têm uma persistência espaço-temporal. Mas quantos estudiosos sérios proporiam a criminalização do uso ou contrabando do álcool? Quantos cometeriam o mesmo erro do passado, no período da Lei Seca nos Estados Unidos? Sem dúvida, não são todos os fatos que, aflitivos e massivos, com persistência espaço-temporal, devem ser considerados crimes.”

 

Em conseguinte, podemos concluir que para a existência de uma prática delituosa essa ação ou omissão não deve dizer respeito a fato isolado, devendo promover dor, seja à vítima, seja à sociedade como um todo, sendo praticada por todo um território, ao longo do tempo, e devendo existir um consenso sobre sua abjeção perante toda uma comunidade.

Assim, após entendermos o que é crime à luz do pensamento criminológico, passemos ao estudo do criminoso.

 

2.2.2. Do Criminoso

Insta ressaltar que o criminoso é o objeto do presente artigo, contudo, não será neste tópico o ápice da problemática, mas que, sem sombras de dúvidas, nos servirá para compreender melhor a posterior reflexão que se pretende fazer.

Pois bem, partindo da premissa criminológica, o criminoso, igual ao crime, não tem conceito único à luz do olhar da criminologia, contudo, ele será analisado e conceituado de acordo com cada escola criminológica a seguir mencionadas.

Primeiramente, estudaremos o que é criminoso perante a escola clássica, o que, nas palavras do nobre professor Shecaira (2018, p. 51) assim bem define:

 

“A primeira grande perspectiva era a dos chamados clássicos, que entendiam ser o criminoso um pecador que optou pelo mal, embora pudesse e devesse respeitar a lei. Tal aporte advém, naturalmente, das ideias de Jean Jacques Rousseau, firmadas em O contrato social.

 

Por meio desta classificação de criminoso, notadamente formulada no Século XVIII, o criminoso é um indivíduo detentor do livre arbítrio, mas que tendo a possibilidade de escolher a luz, preferiu aventurar-se no caminho do mal.

 

Contudo, já no Século XX, Michel Foulcault (2014, p. 100), faz um irônico comentário a respeito da quebra do Contrato Social formulado por Rousseau:

 

“(…) Ora, daí se definem duas linhas de observação do crime e do criminoso. De um lado, o criminoso designado como inimigo de todos, que têm interesse em perseguir, sai do pacto, desqualifica-se como cidadão e surge trazendo em si como que um fragmento selvagem de natureza; aparece como o celerado, o monstro, o louco talvez, o doente e logo o “animal”. (…)”

 

Em conseguinte, advieram as críticas positivistas no final do Século XIX e início do Século XX, tendo como expoente o renomado médico e filósofo Cesare Lombroso, tendo como obra principal O Homem Delinquente. Por esta perspectiva, o professor Shecaira (2018, p. 51) diz que: “Para eles o livre-arbítrio era uma ilusão subjetiva, algo que pertencia à metafísica. O infrator era um prisioneiro de sua própria patologia (determinismo biológico), ou de processos causais alheios (determinismo social).”

 

A teoria de Lombroso leva em consideração que o criminoso nasce criminoso e não tem liberdade para escolher o seu futuro, sendo a condição de criminoso ligada a fisiologia do indivíduo.

 

Na atualidade, é visivelmente preconceituoso tal pensamento, em que pese fora um avanço criminológico a partir do pensamento lombrosiano, tendo em vista que a criminologia passou a observar os fatores criminógenos por outros ângulos e não apenas pelo aspecto do livre arbítrio. Contudo, a fim de melhor ilustrar os pensamentos de Lombroso quanto ao homem delinquente, segue um breve comentário acerca do livro O Homem Delinquente, de Cesare Lombroso (2016, p. 196):

 

“Quanto às medidas do crânio, estamos também reduzidos a poucos casos, que não bastam certamente para darnos um critério seguro para analogia. Em 14 dementes morais de Virgílio encontramos uma capacidade crânica de 1.450 nas mulheres, 1.538 nos homens, com o máximo de 1.693 e mínimo de 1.518. Justificamos esta falta de analogia, a que contribuiu ainda mais que o peso a escassez dessas medidas. Por outro lado, Campagne teria (e eu creio exagero) encontrado 12 vezes em 13 o crânio diminuído e escondido o occipital nos dementes morais. Krafft-Ebbing e Legrand de Saulle falam da Frequente microencefalia. É um fato de se notar que os microencéfalos tornados adultos, mais ainda que a perda da inteligência, mostram a perversão dos afetos do senso moral.

É frequentemente geral o acordo de não admitir nos dementes morais a grande frequência das anomalias crânicas e fisiognomônicas, que vimos caracterizadas muitas vezes no réu nato. Antes Morel, depois Legrand de Saulle e agora Krafft-Ebbinng, apontam a frequência em macrocéfalos de frequentes cristais ósseas do crânio, de crâneos muito alongados ou muito arredondados, e nas faces a desproporção entre as duas metades da face, lábios volumosos, boca grande, dentes mal conformados com precoce caída nas formas mais graves, volta palatina assimétrica ou escondida, restrita; a campainha da garganta alongada e bífida, aumento e desigualdade das orelhas. Todas anomalias, especialmente as do crâneo, que temos encontrado nos criminosos.”

 

Contudo, evidentemente a teoria lombrosiana é merecedora de diversas críticas, bem como que o notável professor Oswaldo Henrique Duek Marques (2017, p. 135), levando em consideração os ensinamentos de Erick Fromm, descorre sobre o homem da seguinte forma:

 

“Em seu livro Análise do homem (1947), Fromm ressalta que parte significativa dos anseios humanos não pode ser explicada pela força dos instintos. Mesmo que satisfeitos os desejos sexuais, a fome e a sede, o homem “não está satisfeito”. Ele aspira a poder, amor, destruição e põe em risco sua existência em prol de ideias político e religioso.

 

Pois bem, após breve análise da perspectiva lombrosiana para a constatação de um criminoso nato, levando em consideração o aspecto biológico do indivíduo, podemos evidentemente fazer um alerta aos possíveis leitores deste humilde artigo: cuidado, o senhor pode ser um criminoso e ainda não sabe!

 

Conseguintemente, teremos a visão marxista do “ser criminoso”, que nas palavras de Shecaira (2018, p. 52) traduz-se em:

 

“Outra visão da criminalidade foi aquela concebida pelo marxismo que considera a responsabilidade pelo crime como uma decorrência natural de certas estruturas econômicas, de maneira que o infrator se torna mera vítima inocente e fungível daquelas. Quem é culpável é a sociedade.”

 

Por fim, insta salientar que não são estas as únicas definições de “criminoso” evidenciadas na história, contudo, são, notadamente, as mais estudadas aos olhos da criminologia. Importante destacar que, em que pese não tenhamos uma definição pacífica quanto ao criminoso, o professor Shecaira (2018, p. 52) busca uma conceituação cumulativa com as demais definições ao longo da história, como segue:

 

“Dadas as diferentes perspectivas, e em face de todas as discussões posteriores às concepções originais acima formuladas, entende-se que o criminoso é um ser histórico, real, complexo e enigmático. Embora seja, na maior parte das vezes, um ser absolutamente normal, pode estar sujeito às influências do meio (não aos determinismos). Se for verdade que é condicionado, tem vontade própria e uma assombrosa capacidade de transcender, de superar o legado que recebeu e construir seu próprio futuro. Está sujeito a um consciente coletivo, como todos estamos, mas também tem a capacidade ímpar de conservar sua própria opinião e superar-se, transformando e transformando-se. Por isso, as diferentes perspectivas não se excluem; antes, completam-se e permitem um grande mosaico sobre o qual se assenta o direito penal atual.”

 

Após essa breve exposição do Ser Criminoso ao longo do tempo, passemos ao estudo da vítima, matéria importantíssima para que possamos compreender, inclusive, aquele que comete o delito.

 

2.2.3. Da Vítima

A fim de que este artigo não se torne denso demais, faremos aqui uma conceituação simplista do que seria vítima para a criminologia, e, em conseguinte, apresentaremos o processo de vitimização, conteúdo essencial para o deslinde deste trabalho.

Nestes termos, o renomado professor Edgard de Moura Bottencourt (s.d., p. 51) define vítima de acordo com o aspecto que se deseja estudar, ocasião em que faremos o apontamento do aspecto jurídico-penal-restrito e do jurídico-penal-amplo, como segue:

 

“o jurídico-penal-restrito, designando o indivíduo que sofre diretamente as consequências da violação da norma penal; e, por fim, o sentido jurídico-penal-amplo como sendo “que abrange o indivíduo e a comunidade que sofrem diretamente as consequências do crime”.

 

Neste diapasão, temos o processo de vitimização, elencado pelo olhar criminológico como vitimização primária, secundária e terciária.

 

A vitimização primária, conforme preceitua o professor Shecaira (2018, p. 56) é “quando um sujeito é diretamente atingido pela prática de ato delituoso”. Tendo como exemplo, um indivíduo que é roubado; furtado; fraudado; etc.

 

Temos ainda a vitimização secundária, que de acordo com o professor Shecaira (2018, p. 56) “é um derivado das relações existentes entre as vítimas primárias e o Estado em face do aparato repressivo (polícia, burocratização do sistema, falta de sensibilidade dos operadores do direito envolvidos com, alguns processos bastante delicados etc.).”

 

E, por fim, temos a vitimização terciária, que conforme o professor Shecaira (2018, p. 56) define:

 

“é aquela que, mesmo possuindo um envolvimento com um fato delituoso, tem um sofrimento excessivo, além daquele determinado pela lei do país. É o caso do acusado do delito que sofre sevícias, torturas ou outros tipos de violência (às vezes dos próprios presos), ou que responde a processos que evidentemente não lhe deveriam ser imputados (ex.: caso da Escola de Base).”

 

Pois bem, ao analisarmos o que é vítima, e suas espécies de vitimização, já temos arcabouço suficiente para fazer um estudo de reflexão sobre o indivíduo criminoso de forma mais profunda, inclusive como sendo uma das vítimas do próprio crime praticado.

À frente adentraremos ao tópico da reflexão acerca do “criminoso”, contudo, desde logo, gostaria de propor aqui um exercício de observação lógica quanto a um determinado sistema carcerário, pois vejamos.

Primeiramente, importante destacarmos que os fatos abaixo narrados não acontecem em nosso Brasil, mas apenas, hipoteticamente, digamos que um jovem, 18 anos, chamado João, preso em flagrante por furtar um aparelho celular. Estamos aqui a falar de um “criminoso” à luz de nossa sociedade e perante o nosso ordenamento jurídico brasileiro. Pois bem, continuemos, ao adentrar às dependências do sistema carcerário, lhe é retirado seus acessórios pessoais que o identifique (corrente, brincos, anéis, pulseiras) e lhe será raspada a cabeça. Em ato sucessivo seu nome será alterado por um número e suas roupas serão substituídas por uniformes. Aqui teremos a chamada “mutilação do eu”. Esse jovem já não mais será João, será apenas “mais um” dentro do enorme sistema carcerário e sob a “proteção estatal”. Em conseguinte, dentro do sistema carcerário, João passará calor, passará frio, sentirá sede e fome, dormirá em um cubículo com outros 39 detentos, onde ganhará um lugar especial perto ao “buraco” utilizado para que todos os detentos façam suas necessidades fisiológicas comuns. João será agredido pelos demais presos por se recusar a fazer coisas que acha que não devem ser feitas e será reprimido pelos carcereiros quando desobedecer a uma ordem que não concorde.

Pois bem, João, preso por um furto simples, está sendo uma vítima dentro do sistema carcerário, tanto pelos presos, quanto pelo Estado. Pergunta-se: João sairá do sistema carcerário reabilitado? Outra: É razoável a violência sofrida por João, pela por ele praticada?

Passemos ao próximo tópico.

 

3.2.4. Controle Social

O último objeto de estudo analisado pela criminologia é o controle social, que nas palavras do professor Shecaira (2018, p.57) significa que:“(…) podemos definir o controle social como o conjunto de mecanismos e sanções sociais que pretendem submeter o indivíduo aos modelos e normas comunitários.

Conseguintemente, o professor Shecaira (2018, p. 57) divide o controle social em dois sistemas:

 

“De um lado tem-se o controle social informal, que passa pela instância da sociedade civil: família, escola, profissão, opinião pública, grupos de pressão, clubes de serviço etc. Outra instância é a do contrato social formal, identificada com a atuação do aparelho político do Estado. São controles realizados por intermédio da Polícia, das Justiça, do Exército, do Ministério Público, da Administração Penitenciária e de todos os consectários de tais agências, como controle legal, penal etc.”

 

Desta forma, podemos entender o controle social como sendo os mecanismos que nos fazem permanecer dentro dos moldes aceitáveis como normais dentro de uma dada sociedade, ocasião em que o primeiro controle social dar-se-á pela própria sociedade, inclusive, pelo senso de moral e ética do próprio indivíduo, e, em segundo plano, o controle social formal exercido pelo ente Estatal diretamente ao indivíduo, de forma preventiva – pelas Leis – ou repressiva – órgãos de contenção.

Assim, após um apanhado geral sobre o olhar criminológico sobre seus objetos de estudo, temos, agora, perfeitas condições de fazermos uma reflexão maior aprofundada sobre o tema proposto, o qual será seguidamente comentado.

 

  1. Das Reflexões sobre o Criminoso

Primeiramente, gostaria de deixar aqui as primeiras palavras do Marquês de Beccaria (2000, p. 15), no tópico de introdução à sua célebre obra Dos Delitos e Das Penas:

 

“As vantagens da sociedade devem ser distribuídas eqüitativamente entre todos os seus membros.

 

Entretanto, numa reunião de homens, percebe-se a tendência contínua de concentrar no menor número os privilégios, o poder e a felicidade, e só deixar à maioria miséria e debilidade.”

 

Pois bem, iniciaremos nossa conjunta reflexão sobre o que é criminoso, por meio dos conceitos de vítima trazidos pelo professor Edgard de Moura Bottencourt (s.d., p. 51) tanto pelo aspecto jurídico-penal-restrito, quanto pelo jurídico-penal-amplo, como segue:

 

“o jurídico-penal-restrito, designando o indivíduo que sofre diretamente as consequências da violação da norma penal; e, por fim, o sentido jurídico-penal-amplo como sendo “que abrange o indivíduo e a comunidade que sofrem diretamente as consequências do crime”.

 

Desta forma, fazendo um contra senso, vítima é aquela que sofre diretamente as consequências da violação da norma, logo o criminoso, ou “desviante” como gosto de chamar, seria aquele que viola as normas previamente estabelecidas. Assim, desviando-se da sensação de normalidade imposta em determinada comunidade.

Por este raciocínio, chegamos a um conceito comum de criminoso, por uma simples análise à luz da dogmática jurídico-penal, pois criminoso seria aquele que viola as normas, desvia-se da “normalidade” perquirida, contudo, estamos aqui a fazer um exercício de olhar criminológico para o “ser criminoso”, o que nos leva não à pergunta sobre a violação de um dispositivo penal, mas sim o porquê dessa violação por parte do indivíduo, a fim de que possamos compreender melhor o conceito do termo “criminoso”.

Com o escopo de visualizarmos mentalmente a figura de um ser criminoso, trarei abaixo alguns tipos penais para que determinemos o quão criminoso é um indivíduo, pois vejamos.

Um indivíduo que mata outrem, pode ser classificado como criminoso? À luz do ordenamento jurídico brasileiro, tal prática é denominada por homicídio: “Art. 121. Matar alguém:  Pena – reclusão, de seis a vinte anos.”

Antes de respondermos à pergunta acima, continuemos.

Um indivíduo que mediante violência ou grave ameaça, subtrai, para si ou para outrem, coisa alheia móvel, caracterizando, assim, perfeita subsunção ao tipo penal do roupo – art. 157, do Código Penal. E este, poderia ser chamado de “criminoso”?

Avencemos. E no caso do João, aquele que anteriormente contamos sua história, indivíduo de 18 anos que subtraí, para si ou para outrem, coisa alheia móvel, no caso em tela, um celular. Perfeitamente incurso no art. 155, do Código Penal – Furto. Este é um criminoso?

Pois bem, partindo da premissa que nos três exemplos apresentados, todos praticaram um tipo penal, um delito, um ato indesejável e positivado em nosso ordenamento jurídico brasileiro, podemos afirmar que, independentemente do grau de lesividade de cada conduta e em conformidade com o conceito de vítima pela ótica do jurídico-penal-restrito, poderíamos afirmar serem todos os casos atos praticados por criminosos.

Vamos mais adiante. Um empresário que sob a alegação de que caso ele não sonegue parte de seus tributos ao Estado, seria inviável exercer sua atividade econômica e, conseguintemente, teria que despedir diversos empregados sob sua tutela. Este empresário seria um criminoso? Aliás, estamos aqui na presença de um fato típico previsto no art. 1.º, da Lei 8.137/90, pois vejamos:

 

Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:                (Vide Lei nº 9.964, de 10.4.2000)

 

I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;

 

II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;

 

III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;

 

IV – elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;

 

V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.

 

Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

 

Façamos uma reflexão, em uma conversa de bar, seu amigo revela ter matado uma pessoa, você o veria como criminoso? Agora, seu amigo relata que está omitindo parte de sua receita bruta para tentar diminuir seu recolhimento tributário, ainda sim você o veria como um criminoso? A título de curiosidade, um homicídio simples, acaba por tirar uma vida. A sonegação fiscal é tributo destinado aos órgãos públicos para, inclusive, destiná-los ao Sistema Único de Saúde, podendo respectiva sonegação matar muito mais pessoas.

Pois bem, continuemos. Um outro indivíduo, após degustar uma pequena taça de vinho tinto, adentra em seu veículo e vai até o mercado comprar alguns utensílios domésticos. Este mesmo indivíduo conclui suas compras e volta para a sua residência sem maiores problemas. Pergunta-se: Ele é “criminoso”? Pergunta essa pertinente, uma vez que o tipo previsto no art. 306, do Código de Trânsito Brasileiro, diz o seguinte: “Art. 306.  Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência: Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Observem, senhores, o tipo não prevê acidente, lesão corporal ou homicídio, apenas e tão somente o verbo “conduzir”, logo, este cidadão praticou o crime do art. 306 e deve ser chamado, de igual forma, de criminoso?

Após estes diversos exemplos, podemos concluir que a sociedade está acostumada a marginalizar os indivíduos que praticam os denominados “crimes de rua”, tendo como exemplo o homicídio, o roubo, o tráfico ilícito de entorpecentes, mas o que não é reiteradamente levado à informação dos cidadãos é que existem crimes diversos que causam muito mais dor e sofrimento do que esses acima mencionados e que não são vistos como “verdadeiros crimes a ponto do infrator ser rotulado de criminoso”.

Logo, o que podemos aferir do presente trabalho é que todos somos passíveis de sermos criminosos à luz do ordenamento jurídico penal brasileiro, contudo, o que nos resta indagar é o porquê o indivíduo desviante deve ser tratado como um ser abjeto, que deve sofrer além das sanções penais impostas pela legislação vigente. Será que somos menos criminosos do que João, o indivíduo que furtou um celular? Será que por ter furtado um celular, João precisa sofrer toda a repressão penal e carcerária existente, ter seu “eu” violado, retirado do seio social e devolvido com um carimbo estampado em sua testa com a nomenclatura “CRIMINOSO” para o resto de sua vida?

Como podem verificar, o presente artigo não tem o condão de definir quem é o agente criminoso, mas fazer-nos refletir sobre o aspecto humanitário de como, ou porquê alguém deve ser tratado como um ser marginalizado por ter cometido um erro, e será que é razoável que este erro o acompanhe para o resto de sua vida?

Concluo o presente artigo com uma célebre e oportuna frase do grande pensador Sirius Black: “Todos temos luz e trevas dentro de nós. O que nos define é o lado com o qual escolhemos agir”.

Estabelecendo uma analogia a esta sábia frase, façamo-nos entender que podemos todos ser criminosos e “não criminosos”, mas o que realmente importa é como lidamos com nós mesmos e, principalmente, com aqueles que estão enfrentando um processo de criminalização desumano, e que talvez eles não precisem que alguém lhes pergunte “o que eles fizeram”, mas “o porquê fizeram”.

 

Considerações

O presente artigo científico buscou propor uma reflexão profunda acerca do que é ser um criminoso, principalmente aos olhos do estudo criminológico. Assim, analisamos os conceitos fundamentais para que pudéssemos ser capazes de refletir sobre o tema proposto, passando pela diferenciação de dogmática e zetética, apresentando a criminologia, bem como os objetos que ela estuda, focando, especialmente, nos termos “crime”, “criminoso” e vítima, bem como entendendo o processo de vitimização e, inclusive, salientando a forma de desestruturação do eu. Desta forma, após abordarmos os temas de forma clara e objetiva, pudemos aqui propor uma reflexão sobre o “ser criminoso”, ocasião em que a pergunta que fica é: após o estudo aqui apresentado, com que olhos devemos olhar um indivíduo que praticou um fato típico penal. Até porque o ser criminoso não é apenas e tão somente aquele que pratica atos atrozes, mas que talvez o ser criminoso aqui estudado pode ser o pai do nobre leitor, a avó, do nobre leito, ou este que vos escreve.

 

Referências

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas; tradução de Torrieri Guimarães. 3. ed. – São Paulo: Editora Martin Claret Ltda., 2000.

 

BITTENCOURT, Edgard de Moura. Vítima. São Paulo: Ed. Universitária de Direito, [s.d.].

 

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. 42. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

 

Harry Potter e a Ordem da Fenix. Direção: David Yates, Produção: David Heyman, David Barron. Estados Unidos da América: Worner Bros, 2007, 1 DVD.

 

LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente; tradução de Sebastião José Roque. – São Paulo: Ícone, 2016.

 

MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da Pena. 3. ed. – São Paulo: WNF Martins Fontes, 2016.

 

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 7. ed. rev., atul. e ampl. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018.

 

_______. Decreto-Lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-lei/Del2848compilado.htm. Acesso em 26 abril 2020.

 

_______. Lei nº. 9.503, de 23 de setembro de 1997. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9503.htm. Acesso em 27 abril 2020.

 

_______. Lei nº. 8.137, de 27 de dezembro de 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8137.htm. Acesso em 27 abril 2020.

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