Recuperação judicial: a Lei 11.101/2005 como consolidação dos princípios da ordem econômica constitucional

Resumo: O presente artigo visa caracterizar os princípios constitucionais da ordem econômica para demonstrar como a legislação complementar atua para concretizar e consolidar a aplicação destes princípios. Iremos nos ater à análise da Lei 11.101/05, principalmente ao instituto da recuperação judicial, como uma das principais intervenções estatais no âmbito da economia interna, intervenção esta com a finalidade de atingir o objetivo da justiça social e atender ao incentivo da atividade econômica. Por fim, analisaremos os efeitos da previsão da recuperação judicial, consideraremos a evolução do antigo conceito de falência com caráter punitivo, passando pela análise do instituto da concordata até alcançarmos o instituto da recuperação judicial, constatando o que mudou na economia e na sociedade, verificando se foi alcançado o objetivo do Estado de através deste instituto concretizar a justiça social nas relações econômicas. [1]

Palavras-chave: Ordem Econômica; falência; recuperação judicial; justiça social.

Abstract: This paper aims to characterize the constitutional principles of economic order to demonstrate how complementary legislation acts to achieve and consolidate the application of these principles. We will stick to the analysis of Law 11.101/05, especially the institution of court-supervised enterprise reorganization, as a major state intervention in the domestic economy, this intervention in order to achieve the goal of social justice and serve to encourage economic activity. Finally, we will analyze the effects of the prediction of court-supervised reorganization, consider the evolution of the previous concept of bankruptcy with punitive character, going through the analysis of the institution of bankruptcy until we reach the institute from court-supervised reorganization, noting what has changed in the economy and society, checking if the goal was achieved through the rule of this institute to achieve social justice in economic relations.

Keywords: Economic Order; bankruptcy; court-supervised enterprise reorganization; social justice.

Sumário: Introdução; 1. Princípios da Ordem Econômica Constitucional; 2. A evolução jurídica do instituto da falência; 3. O controle econômico estatal por meio da recuperação judicial; 4. Os efeitos da recuperação: benefícios econômicos e sociais;  Considerações finais; 5. Referências bibliográficas.

Introdução

A Constituição Federal de 1988 inaugurou um sistema de princípios de Ordem Econômica que, interpretado conjuntamente com os princípios de Ordem Social, impõem ao Estado uma atuação neoliberal, onde deve haver a intervenção estatal para garantir a efetividade dos direitos de ordem social. Nesse sentido, principalmente visando a integração do princípio da realização da justiça social, surgem legislações complementares trazendo instrumentos que efetivam a aplicação de tais direitos.

Com essa intenção, surgiu a Lei 11.101/05, a Lei de Recuperação e Falência de Empresas, a qual cumpriu o papel da efetivação das normas da Ordem Social e Econômica através da instituição da recuperação judicial e extrajudicial, que trouxe para as empresas uma maior possibilidade de recuperação diante de crises, que hoje são consideradas como eventualidades a que todos os empresários estão sujeitos.

Tais institutos surgiram em razão da indispensável função das empresas no âmbito social e econômico, sendo assim, o Estado age com sua intervenção para buscar meios de atingir a continuidade da empresa, garantindo, assim, a permanência dos benefícios trazidos por estas. Assim, as formas de recuperação de empresas trazem em si o objetivo de promover a justiça social, quando mantém no mercado empresas que geram empregos e movimentam a economia.

Portanto, foi fundamental a criação do instituto da recuperação de empresas, que efetivou os princípios constitucionais das Ordens Econômica e Social, produzindo efeitos benéficos nestas áreas no Estado.

Nem sempre o direito falimentar teve esta visão das empresas, as quais não tinham seu valor social e econômico reconhecidos devidamente pela legislação. Deste modo, sofreram os empresários que se submetiam a crises econômicas e financeiras, pois não havia, no país, uma rede de proteção para aqueles que necessitassem. Na realidade, o que havia era uma grande perspectiva punitiva aos empresários que incorressem em falência.

Dessa forma, é evidente a evolução na legislação brasileira, com efeitos protetivos tanto aos empresários, quanto aos credores, mas também aos empregados e ao mercado em geral, pois são as empresas as maiores movimentadoras do mercado interno e externo.

Ainda em relação à Lei 11.101/05, surgiram, com esta, grandes questionamentos acerca do nível de intervenção estatal na economia e na liberdade da iniciativa privada, o que de fato ocorre e é legitimado tanto pela Constituição Federal, quanto pelas legislações complementares que limitam esta intervenção.

Assim, nosso estudo tem a intenção de relacionar a Lei 11.101/05 com os princípios da Ordem Social e Econômica, a fim de demonstrar que há, de forma legitimada, a intervenção estatal nas empresas em razão da sua função econômica e social.   

Para estudar o tema, analisamos os princípios constitucionais que norteiam a aplicação da referida lei; em seguida, partimos para a compreensão dos institutos do direito falimentar, compreendendo sua evolução. A partir daí adquirimos a compreensão básica para entender onde e quando o Estado intervém na economia e com quais fundamentos. Por fim, verificamos os benefícios sociais e econômicos produzidos em razão da aplicação dos novos institutos previstos na nova lei falimentar.

2. Princípios da Ordem Econômica Constitucional

Os princípios da Ordem Econômica adquiriram caráter constitucional no ordenamento brasileiro a partir da Constituição de 1934, quando esta ganhou um capítulo voltado para a temática, lendo-se, em seu art. 115:

“A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a todos existência digna. Dentro desses limites, é assegurada a liberdade econômica.”[2].

 Já a Constituição de 1988 publicita os princípios para manter a forma econômica capitalista, com base na apropriação privada dos meios de produção e na iniciativa privada (art. 170). Assim, desde o início da constitucionalização da ordem econômica, como assevera José Afonso da Silva, “a atuação do Estado não é nada menos do que uma tentativa de pôr ordem na vida econômica e social, de arrumar a desordem que provinha do liberalismo.” [3].

Nesse sentido, em relação à ordem econômica, o liberalismo pregava a total ausência de intervenção estatal na economia. Mas, hoje, com a previsão constitucional de princípios expressos nos incisos do art. 170, o constituinte optou por um ordenamento composto, i.e., a ordem econômica na Carta de 1988 é dotada de princípios e soluções que abrem brechas para a hegemonia de um capitalismo neoliberal, mas também permite o intervencionismo sistemático, aliado ao dirigismo planificador, ressaltando inclusive elementos socializantes, em razão do “paralelismo de princípios.” [4].

No exame destes princípios, em relação com as demais exigências da ordem econômica (objetivo, finalidades, fundamentos), estudaremos sobre a atuação estatal no domínio econômico e dos instrumentos de participação do Estado na economia.

Assim, enfatizamos que a ordem constitucional econômica se constrói e interpreta através da compreensão da sua base em dois fundamentos, quais sejam: a valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, à luz do seu principal objetivo, o alcance da justiça social. Nesse sentido, temos a lição de Caio Tácito:

“[…] integrando a livre iniciativa com a valorização do trabalho, as noções do planejamento estatal e da liberdade de mercado, visando o equilíbrio harmônico entre a liberdade da empresa e a regulamentação da atividade econômica. À luz dessa ambivalência devem ser entendidas e interpretadas as linhas mestras da ordem econômica na vigente Constituição.” [5]

Não há qualquer sentido em discutir o conceito de constituição econômica, enquanto a doutrina ainda não firmou orientação segura sobre o tema, contudo, considerá-la-emos como a parte da Constituição que interpreta o sistema econômico, que estrutura o sistema econômico, no caso, o capitalista.[6].

Aqui, extrapolando o sentido de Constituição econômica formal, iremos buscar encontrar num prisma material, através da relação com a legislação complementar e da hermenêutica holística constitucional, o conteúdo fundamental das normas disciplinadoras da atividade econômica.

Apenas com a leitura do Título VII, Capítulo I da Carta de 1988, já obtemos a noção que a mesma conectou a economia de mercado com a preocupação acerca dos valores sociais. Assim, a economia de mercado segue princípios próprios, ditados pela livre concorrência, mas ressalvadas ao Estado as funções reguladora e normativa.

Isto significa que a Constituição consagra uma economia de mercado, de natureza capitalista, em razão da iniciativa privada. Contudo, apesar de capitalista, a ordem econômica dá prioridade aos valores do trabalho humano acima de qualquer outro valor da economia de mercado. Desse modo, como princípio, essa prioridade orienta e permite a intervenção estatal para efetivar os valores sociais do trabalho que constitui fundamento da própria República Federativa do Brasil. [7].

Dessa forma, para concretizar ainda o princípio da Dignidade Humana e como seu desdobramento, temos os princípios da ordem econômica que propõem equilibrar a interação entre as relações de produção e a melhoria das condições de vida dos trabalhadores. Sendo assim, o art. 170 da CF/88 supracitado deve ser interpretado no contexto de preocupação com a justiça social e com o bem-estar coletivo.

A norma constitucional deixa claro que o Estado pretende atenuar sua vocação intervencionista, o que justifica as iniciativas de privatização de empresas públicas com o fim de “enxugar” a máquina administrativa. Esta pretensão é evidenciada no art. 174 da Constituição Federal:

“Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”.[8]

Portanto, o Estado ao se denominar agente normativo, afirma a sua função de  regulador da atividade econômica, incumbindo-lhe, fiscalizar, incentivar e planejar. O planejamento é basilar para o setor público e indicativo para o campo privado[9].

 Com função integrativa ao princípio da livre concorrência, a Lei n. 8.884/1994 instituiu o CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica, cujos dispositivos foram revogados pela nova Lei n. 12.529 de 30 de novembro de 2011, a qual estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, além de dispor sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica. Assim, em total conformidade com os princípios constitucionais da ordem econômica, aduz o art. 1º da Lei 12.529:

“Esta Lei estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência – SBDC e dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico.”[10]

São leis como esta que, elaboradas em conformidade com a Constituição, garantem a consolidação e a concretude necessária para a aplicação dos princípios constitucionais. A lei que iremos analisar em conjunto com os princípios da ordem econômica constitucional será a Lei 11.101 de 9 de fevereiro de 2005, principalmente em relação à recuperação judicial, instituto que revolucionou o direito falimentar e o conectou com o objetivo da justiça social no âmbito da intervenção estatal na economia.

3. A evolução jurídica do instituto da falência

Nos primórdios, a falência era dotada de caráter punitivo em razão da conexão com o conceito de obrigação, assim, no direito romano, o devedor respondia por suas obrigações com a liberdade e até com a vida. Ao observarmos o instituto da falência na Idade Média, percebemos que ali também era dotada de caráter punitivo, vista como um delito, impondo ao falido as penas de prisão à mutilação, em razão de o falido ser considerado nessa época como um fraudador.

A partir da elaboração do Código Comercial francês, de 1807, observou-se grande evolução no instituto da falência, uma vez que iniciou a diferenciação entre devedores honestos e desonestos, muito embora ainda impusesse severas restrições ao falido. No Brasil Colônia, havia a sujeição às regras jurídicas de Portugal, assim, nas Ordenações Afonsinas de 1603 consagrava-se a quebra dos comerciantes fazendo a distinção entre aqueles “ladrões públicos”, os desonestos e os que “caírem em pobreza sem culpa sua”, estes não sendo punidos[11].

Com o Alvará de 13 de novembro de 1756, publicado pelo Marquês de Pombal, surgiu um verdadeiro processo de falência a ser aplicado no Brasil, porém ainda nesse sentido punitivo para o falido que incorresse em falência fraudulenta.

Após a proclamação da Independência do Brasil, o Decreto n. 917 derrogou em 24 de novembro de 1890 a legislação de Portugal até então aplicada, daí sucederam-se algumas legislações pátrias até que se chegasse ao Decreto-lei n. 7.661 de 21 de junho de 1945 que permaneceu em vigor até a promulgação da atual lei falimentar Lei n. 11.101, de 9 de fevereiro de 2005[12].

A grande inovação da nova lei de falência e recuperação de empresas é a inserção do princípio da recuperação econômica da empresa com o propósito de manter a fonte produtora de emprego e dos interesses dos credores, para promover a preservação da empresa em razão da sua função social e o estímulo à atividade econômica.

Com a finalidade evitar as desastrosas consequências da quebra e possibilitando a composição com os credores através da dilação concedida ao devedor para solver suas obrigações, surgiu, antes da nova lei de falências, a concordata.

A concordata surgiu com o propósito claro de humanizar o processo de execução dos bens do devedor, evitando a falência, visando à sobrevivência da empresa. Este instituto sofreu inúmeras alterações numa evolução que resulta no surgimento da recuperação judicial.

A concordata suspensiva foi a primeira a ser introduzida no direito pátrio, esta era caracterizada por ser concedida ao falido a livre administração de seus bens no decorrer do processo falimentar, não era admitida a concessão desta para os devedores que fossem julgados com culpa ou sua falência fosse decorrente de fraude.

Havia também a concordata preventiva, requerida como modo de evitar a falência, esta possuía as espécies judicial e extrajudicial, a primeira levada a efeito perante o juiz; e, a segunda, firmada fora dos autos do processo, mas exigindo homologação judicial.[13].

Modificações trazidas pelo Dec. 917/1890, Lei 2.024/1908, e pelo Dec. 5.746/1929,  atribuíram ao instituto da concordata em geral, na visão de Trajano Miranda Valverde, as seguintes características:

“Desde o Código de 1850 as seguintes regras se mantém firmes: a) não poder haver concordata quando o falido agiu com culpa ou fraude; b) para a validade da concordata é necessário que a proposta tenha sido apoiada por uma determinada maioria de credores e de creditores; c) é reconhecida aos dissidentes o direito de se oporem à homologação da concordata; d) a sua eficácia em relação a todos os interessados depende da homologação pelo juiz; e) com a homologação forma-se a concordata, que se torna obrigatória para todos os credores, salvo os privilegiados e os que têm uma garantia real, podendo estes credores, se renunciam às suas vantagens ou garantias, tomar parte na votação de concordata, ficando, por isso, sujeitos aos seus efeitos; f) a concordata pode ser rescindida em determinados casos. Essas regras, certamente nem sempre com a mesma amplitude através da nossa legislação, constituem as colunas mestras em que se apoia a construção jurídica da concordata, quer suspensiva, quer preventiva da falência.”[14]

O Decreto-lei 7.661/1945 trouxe ao ordenamento jurídico significativas alterações no regime de concordatas até então vigente, mudanças essas que implicaram no rompimento da tradição história do direito brasileiro no tocante à matéria. Assim, a antiga Lei de Falências pôs fim à exigência de aprovação prévia dos credores, fazendo assim que a concordata assumisse a condição de “favor judicial concedido pelo juiz” [15].

Em razão da compreensão da relevância das atividades econômicas para o progresso da sociedade, a Lei n. 11.101/05, a nova lei de falência e recuperação de empresas, passou a se preocupar com a função social da empresa, fazendo surgir o princípio da preservação da empresa.

Baseados nesse princípio, vários pontos do direito falimentar brasileiro foram alterados pela nova de lei de falência e recuperação de empresas, dentre os quais se destaca a substituição da figura da concordata pelo instituto da recuperação judicial[16]. Nesse sentido, verifica-se a total intenção do legislador de consolidar a ordem econômica constitucional através da criação do instituto da recuperação judicial, conforme se verifica no texto do art. 47 da referida lei:

“A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.”[17]

Assim, sabendo que a Constituição Federal, no capítulo acerca dos princípios da atividade econômica destacou que a ordem econômica deve seguir princípios como a propriedade privada, a função social da propriedade e a livre concorrência, sempre com o objetivo de alcançar a justiça social, observamos que o art. 47 supracitado encontra-se em total conformidade com estes princípios, enquanto é puramente uma aplicação à prática econômica dos princípios constitucionais.

Dessa forma, após termos observado a evolução do conceito punitivo de falência e do instituto da concordata, finalmente chegamos até a recuperação judicial. Aqui, apenas pelas breves linhas já discutidas sobre o tema, já percebemos que houve uma modificação do pensamento do legislador ensejado pelas alterações no mundo fático, pois, o desenvolvimento das relações socioeconômicas, o processo de globalização e a Revolução Industrial transformaram o pensamento da sociedade e do legislador acerca do conceito de crise. Assim, passou-se a considerar que é normal a passagem de qualquer empresa por uma crise, por ser inerente à atividade empresarial.

Portanto, conjuntamente com a ideia de total normalidade e inerência da crise aos estabelecimentos empresariais, soma-se a questão da necessidade de o Estado atuar como garantidor da função social da propriedade e da justiça social. Dessa forma, é dever constitucional dos poderes estatais assinalar e impor a concreção deste princípio. Sendo assim, unindo essas duas ideias, seria ilógico numa sociedade em que reconhecesse a normalidade da crise, assim como atribui às empresas uma função social inegável em razão da produção de emprego e renda, puni-las por enfrentar uma crise ou obriga-las a “fechar as portas” quando a situação financeira não lhes favorece.

A falência ou a não preservação de uma empresa é um mal para a sociedade como um todo, por trazer prejuízos econômicos e sociais. Por essa razão, é dever do Estado agir em prol da preservação da empresa, o que foi justamente a ideia do surgimento do instituto da recuperação judicial: um modo de intervenção estatal na economia, para buscar a recuperação dos empresários individuais e das sociedades empresárias em crise, “em reconhecimento à função social da empresa e em homenagem ao princípio da preservação da empresa.” [18].

4. O controle econômico estatal por meio da recuperação judicial

Através da análise realizada acerca dos princípios norteadores da Ordem Econômica Constitucional notamos que há uma interação entre tais princípios e a Lei de Recuperação de Empresas e Falências (lei 11.101/05), principalmente por difundirem uma interdependência entre fatores econômicos e sociais.

Assim, percebemos a necessidade da preservação do Instituto Empresarial enquanto gerador de empregos, recolhedor de tributos e meio de movimentação da economia e do mercado. Nesse contexto, havendo a necessidade da manutenção da empresa, que se exigiu a adequação do sistema legislativo para alcançar tal fim.

Portanto, a Lei de Recuperação de Empresas e falência é o meio consolidador dos princípios orientados na conhecida Constituição Econômica, trazendo instrumentos efetivos para proporcionar a permanência viável da empresa no mercado.

Justamente por essa importante questão, dissertamos no tópico anterior sobre a evolução do conceito de falência, o surgimento da concordata e a implantação da recuperação judicial, pois é inegável que houve uma evolução no sentido de reconhecer a empresa na sua importância social e econômica e hoje os institutos da recuperação tanto judicial quanto extrajudicial representam imprescindíveis meios efetivos de soerguimento da empresa.

Desde a concordata é visível a proteção à continuidade do Instituto Empresarial através de concessões de benefícios como dilação de prazo para pagamento de credores evitando (concordata preventiva) ou suspendendo a falência (concordata suspensiva).

Entretanto, apesar de tais benesses poucas empresas eram exitosas para permanecer no mercado, dessa forma, ficou perceptível que os incentivos oferecidos pela concordata não eram suficientes para a recuperação das empresas.

Então, surgiram as formas de recuperação de empresas previstas na Lei 11.101/05. Tais formas apresentaram novos mecanismos de recuperação apresentados na lei apenas por meio de um rol exemplificativo, o que não proíbe de serem efetivados outros meios necessários para a recuperação e a continuidade da empresa. Dessa forma, na assembleia de credores o empresário pode juntamente com os credores buscar alternativas de composição para superar as dificuldades pelas quais atravessa a empresa.

Esta previsão tem em vista a proteção tanto da continuidade da empresa para que se efetive a justiça social, mas também proporciona benefícios para credores, para os empregados e para a sociedade.[19]

Na hipótese da recuperação extrajudicial, a intervenção do Estado  existe porém se dá uma maior liberdade ao empresário e aos credores, mesmo quando a homologação judicial é exigível, o que não ocorre naqueles casos em que houve a aprovação unânime dos credores do plano de recuperação, e não há a necessidade de homologação judicial, tornando-se esta facultativa.

Entretanto, na recuperação judicial, a intervenção estatal é bem mais clara, lembrando-se de ressalvar que tal intervenção é requerida pelo empresário quando do pedido de recuperação judicial.

Durante o período da recuperação judicial o empresário mantém-se no exercício da administração da empresa, salvo nas situações de exceção prevista na lei. Porém, o Estado averiguará de perto e com ajuda dos credores as atividades da empresa no período de recuperação.

No processo falimentar haverá diversos momentos em que se evidenciará a intervenção estatal. Como primeiro momento, poderíamos citar que desde o pedido de recuperação judicial, fica o empresário impedido de alienar ou onerar os bens da empresa enquanto estiver em recuperação.[20] Aqui, fica evidente que tendo patrimônio próprio, a empresa de abstém de direitos em razão da intervenção estatal para que possa receber os benefícios concedidos pelo instituto da recuperação judicial.

Assim, a recuperação judicial põe fim à liberdade sem freios da iniciativa privada quando impõe os limites do plano de recuperação. Assim, a empresa apenas poderá se comportar e executar os atos que são conferidos pelo plano, enquanto durar a recuperação judicial. Lembrando que à empresa em recuperação, que não cumprir o plano, incidirá a pena de ser decretada a sua falência.

Para justificar e limitar a intervenção estatal na economia e principalmente na recuperação de empresas é preciso nortear esta intervenção pelos princípios do art. 170 da Constituição:

“A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003); VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995)

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.[21].

Assim, entende-se que há no Brasil um liberalismo econômico mitigado, enquanto estabelece liberdades no exercício da economia, mas exige a interação e a proteção de direitos da ordem social. Portanto, no direito falimentar, enquanto há a liberdade de atuação dos interesses dos credores também deve haver a limitação pelos valores sociais da Constituição.

Além disso, o instituto da recuperação de empresas decorre da proteção à função social da propriedade e à propriedade privada, dessa forma, o processo de recuperação judicial se relaciona aos princípios da ordem econômica, em função da importância econômica da empresa.

5. Os efeitos da recuperação: benefícios econômicos e sociais

A Nova Lei de Falência e Recuperação insere, pois, um novo padrão normativo balizado pelo conceito socioeconômico e a função empresarial inserida no objetivo estatal de estabilidade econômica. Através do instituto da recuperação, então, é possível aferir continuidade à realização, por parte da empresa, de sua função social, beneficiando-se as relações trabalhistas, os contratos, o adimplemento dos débitos tributários, que não são interrompidos, mas, ao contrário, executa-se a devida segurança jurídica na ordem econômica.

Apenas os efeitos da recuperação concretizam os objetivos do artigo 47, a saber:

“Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.”[22]

Assim, busca pela satisfação e proteção dos direitos dos empregados, credores e Fazenda Pública vai muito além da própria garantia constitucional devida pelo Estado, mas situa-se na importância de manutenção da ordem no ambiente econômico e social sob a dinâmica capitalista, conferindo uma maior estabilidade através da potencialização da atividade produtiva mesmo em seus momentos de crise. Esse, pois, foi o esforço do legislador que excedeu o puro instituto de recuperação da pessoa do falido para o benefício dos afetados por sua falência.

Nas palavras de Jorge Lobo apud Bezerra Filho:

“O que se verificava é que o sistema anterior não conseguia proteger os credores da empresa concordatária ou falida e não conseguia também, por outro lado, preservar a atividade empresária, apresentando-se como sistema incapaz de preservar qualquer tipo de interesse, atendendo apenas, na grade maioria das vezes, ao empresário oportunista e desonesto.”[23]

A preservação da empresa não é benefício somente do empresário, mas também de todos que dele dependem de maneira direta, como seus credores e empregados; e também de maneira indireta, como a ordem socioeconômica imediata em que está inserida a empresa, a quem a não recuperação deixaria temporariamente deficiente, afetando a distribuição de empregos, a circulação de renda local, a concorrência, e, até mesmo, no caso de empresas de grande porte, o sistema financeiro de investimentos, ações e títulos.

Tais benefícios decorrem da possibilidade de manutenção da função social de toda empresa. Na ordem econômica neoliberal, a regra é de máximo aproveitamento. Assim observa a lei de recuperação, aos estender os benefícios devidos pela empresa em sua função-social obrigatória, mesmo além do seu pleno aproveitamento. O critério da eficiência é aqui observado através da execução do plano de recuperação, uma vez que este tem como objeto a minimização de perdas (em relação aos credores e ao empresário) e a maximização de benefícios (para toda a ordem socioeconômica) permitindo, em último nível, a colaboração para a plenitude de bem estar social alcançada através da máxima utilidade da economia capitalista e sua concretização no âmbito social.

Os efeitos da recuperação judicial buscam atender, justos e bem distribuídos, todos os interesses envolvidos na possibilidade da concordata da empresa, realizando um equilíbrio de interesses empresarial, financeiros e sociais, até o limite de sua viabilidade. Percebe-se, pois, a pretensão de benefício através da recuperação, que se encerra ao momento que provada a impossibilidade do vencimento dos débitos à custa dos ganhos. Ou seja, além da regulação financeira de insolvência, a negação da recuperação representa, também, a negação da propagação do saldo negativo na realização das funções sociais empresariais. Por que permitir a continuação daquilo prejudicial à ordem em que se insere? A retirada de tais empresas da ordem socioeconômica consta, em si mesma, de uma benfeitoria.

Aí, pois, justifica-se a função socioeconômica da recuperação: se esta fosse somente direcionada aos interesses dos credores (cujo pagamento também poderia ser pretendido na concordata) e do empresário, a diferença entre o instituto falimentar e o recuperacional teria apenas consequências para ambos. No entanto, pela consideração dos interesses de toda a estrutura orgânica social e econômica da empresa, esta deve ser cuidadosamente ponderada, medidos seus benefícios e custos, para a concessão da permanência da entidade crítica no funcionamento hermético da ordem capitalista liberal.
Considerações finais

O advento do instituto da recuperação judicial nos ânimos da nova lei falimentar trouxe, além de um dispositivo alternativo de reabilitação da atividade empresarial. Através dos novos parâmetros, podemos aferir da intenção do legislador a pretensão de abarcar não somente os interesses imediatos na execução da massa falimentar, como também de todos aqueles que vêm a ser afetados pela mesma.

Desse modo, é através da lei 11.101/2005 que percebemos a concretização da função socioeconômica da empresa, mesmo após sua declarada fragilidade. A importância da empresa para a coletividade ultrapassa os limites de seu pleno aproveitamento e estende-se até o limite de sua vantagem em relação aos ônus causados pela crise.

A função social realizada pela empresa, entende-se, afinal, não busca limitar ou condicionar a sua atuação, mas é instrumento da promoção da justiça econômica e social a ser garantida pelo Estado. Pode-se, pois, falar em funcionalização das empresas pelo Estado, pela mera execução de sua atividade na ordem econômico-social, sem que isto represente ônus ou limitação ao empresário. A execução desse papel não é meramente acessória, sendo indissociável de sua função econômica.

Conclui-se, pois, que a função econômica da empresa tem desdobramentos que excedem o campo financeiro – de interesse operacional dos credores -, mas também atua na geração das garantias sociais, ainda que enquanto meio, promovendo canal de execução do programa previdenciário e da competitividade regional, a exemplo. Basta pesar se esses benefícios somam-se aos custos operacionais resultando em um saldo positivo, para que seja não só possível, como também viável e benéfica, a manutenção da empresa em processo de recuperação. Não constitui, no entanto, esse entendimento, na crença de plena funcionalização das funções empresariais. A capacidade da empresa em recuperação será sacrificada em razão da execução dos interesses sobre a massa falimentar, entretanto, a potencialidade de recuperação será executada através do plano, para que seja restaurado o completo exercício de suas atribuições e superada a crise empresarial.

Importa-se, pois, que a lei 11.105/05 trata-se de importante mecanismo de proteção dos direitos e interesses da coletividade nas mais diversas esferas, garantindo a preservação do equilíbrio da atividade econômica e seus efeitos na ordem em que se insere, sejam circulação de bens, obtenção de receitas tributárias e das diversas relações jurídicas diretas consequências do exercício da empresa. Mesmo enquadrado sob o título de falimentar, tal dispositivo dispõe sobre mais garantias que possa transparecer, alçando até os últimos níveis da busca constitucional pela plenitude da dignidade humana, justiça e bem estar social.

 

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RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Curso de Direito Empresarial: o novo regime jurídico-empresarial brasileiro. 4. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2010. p. 726.
SILVA. José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
SILVA, Juliana Maria Rocha Bezerra da. A INTERVENÇÃO ESTATAL NODOMÍNIO ECONÔMICO PRIVADO ATRAVÉS DA NOVA LEI DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS E FALÊNCIAS (LEI11.101/05). Orientador: Bento Herculano Duarte Neto. Defesa:11/7/2011.
TÁCITO. Caio. Temas de direito público: estudos e pareceres, Rio de Janeiro, Renovar, 1997, v.2.
VALVERDE. Trajano de Miranda. A falência no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Ariel, 1934.
Notas:
[1] Trabalho orientado pelo juiz Antonio Carneiro de Paiva Junior, Juiz de Direito no Estado da Paraíba. Graduado pela Universidade Federal da Paraíba. 
[2] BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. 16 de julho de 1934.
[3] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
[4] BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada.7.ed. São Paulo:Saraiva,2006.
[5] TÁCITO. Caio. Temas de direito público: estudos e pareceres, Rio de Janeiro, Renovar, 1997, v.2, p. 1135.
[6]SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p.770.
[7]SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 768.
[8] BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988.
[9] GRAU. Eros Roberto, Planejamento econômico e regra jurídica, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1977.
[10] BRASIL. LEI Nº 12.529, DE 30 DE NOVEMBRO DE 2011.
[11] ALMEIDA. Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa. 26 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 32.
[12] Idem, ibidem, p. 33.
[13] Idem, ibidem, p. 318.
[14] VALVERDE, Trajano de Miranda. A falência no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Ariel, 1934, p. 13.
[15] ALMEIDA. Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa. 26 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 318.
[16] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Curso de Direito Empresarial: o novo regime jurídico-empresarial brasileiro. 4. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2010. p. 727.
[17] BRASIL. Lei n. 11.101, DE 9 DE FEVEREIRO DE 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm >
[18] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Curso de Direito Empresarial: o novo regime jurídico-empresarial brasileiro. 4. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2010. p. 727.
[19] SILVA, Juliana Maria Rocha Bezerra da. A INTERVENÇÃO ESTATAL NODOMÍNIO ECONÔMICO PRIVADO ATRAVÉS DA NOVA LEI DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS E FALÊNCIAS (LEI11.101/05). Orientador: Bento Herculano Duarte Neto. Defesa:11/7/2011.
[20] COELHO. Fábio Ulhoa. Comentários à nova lei de falências e de recuperação de empresas (Lei n. 11.101, de 9-2-2005). 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
[21] BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
[22] BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
[23] BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova lei de recuperação e falência comentada. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

Informações Sobre o Autor

Rayssa Kelly Duarte Carneiro de Paiva

Acadêmica de Direito pela Universidade Federal da Paraíba


Equipe Âmbito Jurídico

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