Silvia Diener Cavalcanti[i]
Resumo: O presente artigo tem a intenção de abordar o trágico episódio ocorrido na cidade do Rio de Janeiro o qual culminou na violenta morte do refugiado congolês Moïse Kabagambe confrontando o direito fundamental à segurança previsto constitucionalmente à discriminação que o crime em si pode estar relacionado. Longe de ser tratado aprofundado sobre direitos fundamentais, o trabalho almeja incitar as discussões sobre um direito tão importante na própria origem dos Estados modernos e seu alcance aos cidadãos, portanto, distante de ser um fim em si mesmo, o estudo pretende abrir as discussões sobre racismo, xenofobia e aporofobia adentrando brevemente sobre as legislações previstas no ordenamento de combate à discriminação bem como trazer de forma suscinta o conceito destes atos discriminatórios e como relacionam-se ao ocorrido a Moïse Kabagambe. Pretende-se também discutir se o episódio pode impactar a imagem do país internacionalmente.
Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Segurança. Xenofobia. Racismo. Aporofobia.
Abstract: This article intends to address the tragic episode that took place in the city of Rio de Janeiro, which culminated in the violent death of Congolese refugee Moïse Kabagambe, confronting the fundamental right to security provided by the Constitution to the discrimination that the crime itself may be related to. Far from being an in-depth treatment of fundamental rights, the work aims to incite discussions about a right so important in the very origin of modern States and its reach to citizens, therefore, far from being an end in itself, the study intends to open discussions about racism, xenophobia and aporophobia, briefly entering into the legislation provided for in the anti-discrimination order as well as briefly bringing the concept of these discriminatory acts and how they relate to what happened to Moïse Kabagambe. It is also intended to discuss whether the episode can impact the country’s image internationally.
Keywords: Fundamental Rights. Safety. Xenophobia. Racism. Aporophobia.
Sumário: Introdução. 1. O dever constitucional de segurança e proteção. 2. Segurança, violência e a banalização da vida. 3. Discriminação, um problema antigo 3.1 Racismo. 3.2 Xenofobia. 3.3 Aporofobia. 4. Direitos humanos e o enfrentamento à violência contra refugiados. 5. Multiculturalismo e tolerância. Conclusão. Referências
Introdução
A sobrevivência estabelece estreita relação com a necessidade de segurança e antecede à própria racionalidade, podendo ser considerada irracional posto que é inerente tanto em animais quanto em seres humanos. O homem luta por sobrevivência desde sempre e nesse aspecto também luta desde sempre por segurança. Pois bem, o homem enquanto indivíduo percebeu que para sua sobrevivência, a vivência em grupos poderia garantir segurança a si e aos demais é nesse sentido que as sociedades se firmaram e evoluíram até alcançar o modelo que se tem hoje e passaram a constituir-se como Estados de Direito. A segurança, portanto, norteou todo esse processo e hoje figura como fundamento e justificativa à constituição dos Estados modernos. Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 concede à Segurança o status de Fundamento e inclui esta no rol dos direitos fundamentais consagrados no artigo 5º:
“ Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança (…)” bem como está incluído entre os direitos sociais elencados no artigo 6º “ São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança (…)” (Brasil, 1988)
Observa-se, portanto, que todo aquele que dentro do território brasileiro será protegido sem qualquer diferenciação posto que o Princípio à Igualdade veda a discriminação é por esta via que o presente trabalho pretende, de forma geral, discutir o direito à segurança confrontando este à própria banalização da vida abordando como exemplo o recente episódio ocorrido na cidade do Rio de Janeiro em que o imigrante refugiado congolês Moïse Kabagambe, foi vítima de homicídio.
Desta feita, é importante destacar que esta propositura não tem a intenção de estabelecer um tratado sobre o direito à segurança ou sobre direitos fundamentais, mas tão somente confrontar tais direitos constitucionalmente previstos face à possível mediocrização do direito à vida, se há alguma pretensão na presente análise, está é meramente instigar outras investigações sobre o tema que claramente não finda aqui.
A metodologia deste trabalho é basicamente pautada na pesquisa bibliográfica que de acordo com Barros e Lehfeld (2007), este tipo de pesquisa é utilizada para resolver um problema ou adquirir conhecimentos, exatamente o que se pretende nesse breve artigo.
O presente ensaio, está dividido em três partes, a saber: a primeira parte traz uma análise sobre o dever constitucional de segurança e proteção, a segunda parte traz um confronto entre segurança, violência e a banalização da vida e a terceira e última parte constituída pelas considerações finais.
Como se observa, a longa constituição dos Estados nacionais foi historicamente justificada pelo argumento de que o Estado deve proteger os seus e é com base nesse discurso que guerras começaram terminaram e tantos cidadãos morreram em nome da segurança e manutenção dos Estados. Visto isto, a noção de Estado no sentido mais amplo possível, permeia a segurança, seja para sua manutenção e soberania, seja internamente entre seus cidadãos, de sorte que seu dever não se resume em proteger os cidadãos ou todas as pessoas que estão ali no território, mas também de se proteger enquanto ente internacionalmente consolidado capaz de gerir, organizar toda a máquina estatal. Reduzir a noção de segurança somente às pessoas seria minimizar a importância da manutenção do próprio Estado, por outro lado, não se pode deixar de prestar a devida homenagem à segurança como princípio e fundamento de todo e qualquer Estado que se intitula democrático. Assim, a segurança pública é de fato um dever do Estado mas todos são responsáveis conforme nos mostra Aveline (2009):
“O dever de proteção e promoção do direito à segurança pública do Estado passa pela manutenção de uma ordem pública democrática, conforme com a Constituição e assentada no respeito aos direitos fundamentais. A preservação da ordem pública não constitui um fim em si mesmo, mas sim o meio pelo qual se protege a pessoa. Em essência, a segurança pública, num regime democrático, tem por finalidade última, embora não exclusiva, proteger e promover a intangibilidade da pessoa enquanto membro de uma comunidade, da qual não pode prescindir para a realização plena e efetiva de seus direitos fundamentais, cujo livre exercício e fruição por todos e por cada um não prescindem de uma convivência pacífica e ordenada.” (Aveline, 2009, p. 13)
Mas o que seria a segurança pública? Aveline (2009) assevera ainda que a segurança pública enquanto direito fundamental é como o próprio autor denomina essencialmente “ponderativa” e nesse sentido o Estado elege as prioridades sobre quem e como será atendido.
Por todo exposto questiona-se o Estado democrático e de direito firmado no conceito de segurança estaria de fato tornando este um direito acessível a todos? É uma questão complexa e demanda uma análise extensa em diversas direções pois percebe-se que uma das maiores preocupações da população é a segurança.
Aqui chegamos adiante faz-se uma breve análise do episódio ocorrido no Rio de Janeiro que findou com morte violenta do congolês Moïse Kabagambe.
Por que a morte do congolês Moïse Kabagambe provocou comoção e deixou a sociedade assustada diante de uma cidade conhecida por ter diversos casos de violência? Os motivos seriam diversos: primeiro porque a vítima é estrangeira e negra e segundo pelo elevado grau de violência que não restou à vítima qualquer possibilidade de defesa.
Resumidamente e de acordo com informações do portal G1
“Jovem de 24 anos veio para o Brasil como refugiado político em 2014 com a mãe e os irmãos. Ele trabalhava em um quiosque na Barra da Tijuca. Família diz que ele foi vítima de agressões após cobrar o pagamento atrasado tendo sido espancado até a morte por mais de três pessoas.” (Globo)
A violência com que o crime ocorreu deixaram a sociedade alerta e nesse sentido pergunta-se o quanto o Estado de Direito fundado na segurança de fato tem cumprido com este papel. Casos como este demonstram e reiteram o que parece ser nítido nesse momento, a banalização da vida. Nesse ponto, Streck (2022) concorda que “quando o mal se banaliza, perde-se a capacidade de indignação, diz-se. A morte do congolês Moïse Kabogambe é difícil de ser contada. Difícil até de se falar. A sangria do cotidiano nos banalizou.” Destarte, o autor assente quão difícil é compreender a barbárie e do mesmo modo explicá-la no âmbito jurídico ou sociológico.
Para Gonzaga (2018) o Estado é responsável por aprovisionar seus cidadãos independentemente de distinções de sexo, idade, classe social ou raça de segurança e proteção, porém, para a autora, o tema segurança pública é onde essa distinção torna-se mais evidente.
A violência sofrida por Moïse Kabagambe revela ainda um dado alarmante, que é a proteção ao estrangeiro, em especial o refugiado.
Nesse caminho cabe aqui ressaltar o que diz Constituição Federal de 1988:
“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – (…)
II – (…)
III – (…);
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” (Brasil, 1988)
Apesar desta previsão constitucional, percebe-se a ineficiência do Estado em proteger todos que estão em seu território. O caso em apreço, terrivelmente doloroso não só para os familiares, mas também para todos aqueles que buscam no Brasil melhores oportunidades revelam toda intolerância da nossa sociedade.
Nesse aspecto fica claro que questões relacionadas a violência passam também por uma mudança na mentalidade das pessoas. A vida não pode ser banalizada a ponto de a pessoa perdê-la por motivos absolutamente infundados. A verdade é que não existe motivo para este crime.
A morte de Moïse Kabagambe levanta também sérias discussões sobre a discriminação relacionada a xenofobia, racismo e ainda aporofobia nesse sentido é importante trazer o conceito de cada tipo de discriminação e como podem estar relacionadas ao crime contra a vida de Moïse Kabagambe.
3.1 Racismo
Um dos marcos mais importantes na implementação de políticas de igualdade foi a proclamação da Declaração Universal dos Direitos do Homem pela Organização das Nações Unidas em 1948 o qual configurou sem dúvida alguma um divisor de águas na busca por um mundo pacífico, justo e equânime no pós-guerra.
Conforme assevera Rosa (2008) os princípios disciplinados tanto na Declaração Universal dos Direitos do Homem quanto em vários documentos produzidos posteriormente conferiram punições para a discriminação com base em critérios de raça em diversos países ocidentais, o que demonstra a vontade de enquadrar tal prática não somente como antijurídica, mas como crime que deve ser punido. Apesar de a autora trazer um ponto de vista europeu, pode-se afirmar que no Brasil, a Constituição de 1988 em seu artigo 5º inc. XLII diz que: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. (Brasil, 1988) Observa-se, portanto, que ao inserir este tema no ordenamento brasileiro, o legislador buscou tutelar o direito do cidadão que fosse discriminado por conta da sua raça ou cor.
Não obstante, o preconceito racial no Brasil permanece. É uma falha grave e que ainda hoje incide com frequência em diversos setores da sociedade. Uma gama de fatores influencia e permite a propagação da impunidade e do sentimento de impotência que a maioria da população sente em relação ao racismo.
Crimes, como o que ocorreu com Moïse Kabagambe não são incomuns e muitos culpados ainda ficam impunes, pois as leis mostram-se ineficazes e o Poder Público revela-se incapaz de estabelecer ações que colaborem com a redução desta prática. Nas palavras de Fischer, Grinberg e Mattos (2018) o Brasil foi a maior e mais longeva sociedade escravista do continente americano. Nessa esfera de pensamento e com vistas a minimizar e corrigir erros e atrocidades da história brasileira em que a população negra foi não só escravizada, mas excluída de toda e qualquer possibilidade de ascensão social é que foi promulgado o Estatuto da Igualdade Racial, Lei 12.288 de 2010. Segundo Chagas (2018) “a existência do Estatuto legitimou o discurso de negros e negras que sofrem e lutam diariamente contra o racismo em um país embebido com a herança histórica da escravatura”. Com 65 artigos este diploma tem por finalidade diminuir as desigualdades sociais e garantir oportunidades iguais para todos os cidadãos independente de raça ou cor cabendo ao poder público promover programas e medidas específicos para reduzir a desigualdade racial.
Mas o que se observa é justamente o oposto. Em especial nesse momento de pandemia a que o país vivencia há cerca de dois anos, a intolerância parece ter se acentuado de sorte que os ataques racistas são percebidos também nas redes sociais.
Para a ONG Human Rights Watch em entrevista ao Jornal Nexo (2022) o contexto em que a população negra é submetida no Brasil as chances de sofrerem um homicídio é triplicada se comparada a pessoas não negras, o que só reforça a ideia de insegurança às minorias.
3.2 Xenofobia
A xenofobia está associada ao preconceito contra diferentes culturas e etnicidade – na verdade é a discriminação contra grupos étnicos o que não é nenhuma novidade. Muitos povos foram ao longo da história hostilizados a ponto de verdadeiros genocídios ou etnocídios acontecerem e serem justificados pela pretensa e falsa ideia de superioridade de um povo em relação a outro. A própria Bíblia, o livro mais lido de todos os tempos retrata no capítulo denominado Êxodo, a saga dos hebreus que abandonaram o cativeiro imposto pelos egípcios e migraram em busca da terra prometida. Os exemplos não param por aí, judeus, armênios, curdos, índios e tantos outros. É por estas e outras razões que grupos inteiros de uma mesma origem migram em busca de melhores condições de vida.
Para Redin, Minchola e Almeida (2020):
“As migrações internacionais apontam para um dos maiores desafios de direitos humanos, o reconhecimento de direitos para além e em face de um Estado-nação, que, portanto, coloca em discussão os limites do modelo de “cidadania” concebido na modernidade como possibilidade de direitos.” (Redin, Minchola e Almeida, 2020)
Pois bem, em que pese os desafios inerentes à própria organização e administração de um país, o fato é que o mundo após a Segunda Guerra Mundial percebeu que os nacionalismos, extremismos, radicalismo precisam ser rompidos e a ajuda entre os países mostra-se imperativa para que a paz mundial se estabeleça. Não se pode deixar de mencionar que essa perspectiva humanitária amplamente enaltecida pelos europeus ocorreu após os genocídios de alemães contra judeus, mas de todo modo, não deixa de ser relevante.
No bojo dos discursos humanitários relacionados aos imigrantes e refugiados, a morte de Moïse sem dúvida alguma pode expor o Brasil negativamente frente a órgãos internacionais como o Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados).
O caso Moïse Kabagambe ainda não teve um desfecho jurídico, ou seja, os culpados pelo brutal assassinato ainda não foram julgados, mas mostra claramente que políticas públicas de proteção a minorias são urgentes. O Brasil como um país que historicamente sempre teve um fluxo migratório movimentado deve voltar os olhos a esta população que vê no país um refúgio muitas vezes de guerras, calamidades sociais, humanitárias e outros. Quando um imigrante busca no Brasil proteção, o que este deve fazer é cumprir a Constituição protegendo a todos independentemente de cor, sexo, religião e outros conforme o caput do artigo 5º ressalta:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade(…)” (Brasil, 1988)
É imprescindível esclarecer que igualdade não é dar tratamento igual a todos posto que as minorias historicamente oprimidas no Brasil, merecem tratamento diferenciado com vistas a proporcionar a estes igualdade de condições na sociedade. Dessa forma, em que pese o texto constitucional trazer a palavra igualdade, esta não pode ser interpretada no sentido denotativo e sim em um sentido amplo e extensivo que possa de fato alcançar a todos.
3.3 Aporofobia
Pode ser entendida como preconceito e discriminação aos pobres. Cavalcante vai além e destaca que a aporofobia tem origem na ascensão da sociedade de consumo que verdade do preconceito originado da sociedade de consumo, que segrega pessoas pobres, consideradas inadequadas à economia de mercado.
O termo aporofobia surgiu a partir dos estudos da filósofa espanhola Adela Cortina (2017) cujo conceito ela mesma o fez após exaustiva análise sobre um movimento de exclusão das pessoas em situação de vulnerabilidade e pobres na Espanha. Faz-se necessário trazer o importante esclarecimento sobre o tema:
“A partir de uma análise minuciosa dos fluxos migratórios de 2016 na Espanha, a referida autora notou que o movimento de rejeição aos imigrantes não era derivado e fundamentado nas origens étnicas e raciais dos indivíduos, tampouco da condição de estrangeiros, mas, sim, de situação de vulnerabilidade e pobreza que vivenciavam os sujeitos em imigração. Deste modo, Adela Cortina (2017) demonstra a nítida diferença entre os estrangeiros que figuram como turistas e os que estão na situação de refugiados, uma vez que os turistas representam desenvolvimento econômico, proporcionando um sentimento generalizado de entusiasmo, o qual é impulsionado, especialmente, pela mídia e pelos meios de comunicação. Em contrapartida, não se verifica a mesma hospitalidade e boas-vindas com outros tipos de estrangeiros. Isto porque os refugiados então em busca de refúgio e não são turistas dispostos a investir dinheiro, trata-se de refugiados políticos e imigrantes pobres. “ (Agnoletto e Zeifert 2021)
Do mesmo modo que o racismo impera na história da sociedade há bastante tempo, a discriminação em relação aos pobres não seria também uma novidade. Pode-se afirmar que Adela Cortina (2017) foi a primeira pessoa realizar um minucioso estudo sobre esta questão, de forma que o que sempre velado, tornou-se revelado.
Finalmente realizada esta breve análise sobre racismo, xenofobia e aporofobia é importante trazer para a discussão suas relações ao ocorrido com Moïse Kabagambe.
Distante de uma análise sociológica sobre as profundas raízes do preconceito e da discriminação, o caso concreto permite associá-lo a três formas de discriminação: o racismo, a xenofobia e a aporofobia. Moïse reunia consigo características físicas, sociais e econômicas. Longe de ser justificativa, ressalte-se que conforme anteriormente explanado, pessoas negras são de longa data vítimas de discriminação racial. A xenofobia pode ser associada ao caso, conforme também já elucidado, em especial porque Moïse não era um turista, que em geral não sofre discriminações como esta, mas um refugiado em busca de emprego e melhores condições de vida. Este fato deixa-o vulnerável a diversas injustiças, violências, intolerâncias e discriminações. E por último, a aporofobia, que é aversão a pessoas pobres. Este último tipo de preconceito e discriminação merece ser estudado de forma mais aprofundada, mas não seria leviano relacioná-la ao que ocorreu com Moïse, por sua própria condição econômica, a violência e brutalidade a que foi submetido.
O refugiado em geral é uma pessoa que foi levada a deixar seu país por ausência de condições à sua sobrevivência, fato que o enseja a buscar em outro país esperanças de melhorias de vida.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), Agência da ONU para Refugiados criado em 1950, para ajudar milhões de europeus que fugiram ou perderam suas casas traz o conceito de refugiado:
“São pessoas que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados.”(ACNUR)
O Brasil traz consigo uma história de grande fluxo de imigrantes que vêm no país um local pacífico, sem guerras e em respeito à legislação pelo menos três diplomas disciplinam a criação e implementação de políticas públicas voltadas à integração de refugiados. Insta ressaltar a importância dessas legislações que o no cenário mundial como país acolhedor e sensível às questões humanitárias de outros países. A Constituição de 1988, a Lei 12.288 de 2010, e a Lei 9.474/97 formam a base legal dessas políticas, mas foi a Lei 13.445 de 2017 que de fato aprofundou os debates sobre os direitos e deveres dos imigrantes no Brasil e trazendo os seguintes princípios, diretrizes e garantias:
“Art. 3º A política migratória brasileira rege-se pelos seguintes princípios e diretrizes:
I – universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos;
II – repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação;
III – não criminalização da migração;
IV – não discriminação em razão dos critérios ou dos procedimentos pelos quais a pessoa foi admitida em território nacional;
V – promoção de entrada regular e de regularização documental;
VI – acolhida humanitária;
VII – desenvolvimento econômico, turístico, social, cultural, esportivo, científico e tecnológico do Brasil;
VIII – garantia do direito à reunião familiar;
IX – igualdade de tratamento e de oportunidade ao migrante e a seus familiares;
X – inclusão social, laboral e produtiva do migrante por meio de políticas públicas;
XI – acesso igualitário e livre do migrante a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social;
XII – promoção e difusão de direitos, liberdades, garantias e obrigações do migrante;
XIII – diálogo social na formulação, na execução e na avaliação de políticas migratórias e promoção da participação cidadã do migrante;
XIV – fortalecimento da integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, mediante constituição de espaços de cidadania e de livre circulação de pessoas;
XV – cooperação internacional com Estados de origem, de trânsito e de destino de movimentos migratórios, a fim de garantir efetiva proteção aos direitos humanos do migrante;
XVI – integração e desenvolvimento das regiões de fronteira e articulação de políticas públicas regionais capazes de garantir efetividade aos direitos do residente fronteiriço;
XVII – proteção integral e atenção ao superior interesse da criança e do adolescente migrante;
XVIII – observância ao disposto em tratado;
XIX – proteção ao brasileiro no exterior;
XX – migração e desenvolvimento humano no local de origem, como direitos inalienáveis de todas as pessoas;
XXI – promoção do reconhecimento acadêmico e do exercício profissional no Brasil, nos termos da lei; e
XXII – repúdio a práticas de expulsão ou de deportação coletivas.
Art. 4º Ao migrante é garantida no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança. (…)” (Brasil, 2017)
Observa-se, portanto, que o aparato legislativo é de caráter humanitário e tem por objetivo acolher e ajudar quem busca refúgio. Mas por outro lado, cabe aos gestores implementar políticas públicas que alcancem as expectativas dos imigrantes trazendo a estes dignidade e oportunidades.
Avocando de volta a discussão sobre o caso Moïse Kabagambe, insta ressaltar o importante relatório realizado em pela Acnur (2020) o qual aponta que dentre as preocupações dos refugiados 42% desses incorrem em situações de violência com a comunidade. Por esse percentual elevado demonstra-se que ainda há muitos desafios a serem superados. É bem verdade que no contexto da pandemia da COVID-19 a intolerância cresceu consideravelmente, de sorte que a parcela da população mais vulnerável foi de fato a que permaneceu atingida pela violência, mas há questões que passam por uma mudança de mentalidade e de percepção nas quais projetos educativos podem ser eficazes e nesse ponto a escola pode ser uma aliada. Projetos sociais que levem aos estabelecimentos de ensino discussões que quebrem o racismo, a xenofobia e toda sorte de discriminação devem ser adotados pelos governos pois o texto constitucional deve ser cumprido no sentido de repudiar atos discriminatórios que levem à morte quem procura proteção no país.
Tendo em vista o crescente número de imigrantes que o Brasil tem recebido nos últimos anos, é importante que se abra um diálogo entre multicultura e educação. Nesse sentido, Candau (2008) afirma que
“não há educação que não esteja imersa nos processos culturais do contexto em que se situa. Neste sentido, não é possível conceber uma experiência pedagógica desculturalizada, isto é, desvinculada totalmente das questões culturais da sociedade.” (Candau, 2008, p. 15)
Para a autora existe uma relação muito próxima entre educação e cultura as quais não podem ser analisados separadamente.
Feita esta importante consideração percebe-se que a problemática que envolve discriminações, racismo, xenofobia, aporofobia e tantas outras necessariamente passam pela educação como alicerce para combater e quem sabe exterminar. O Brasil apesar de ter toda uma legislação que acolhe imigrantes observa-se em contrapartida que a sociedade em si parece não participar do mesmo ideal. Os motivos são diversos mas percebe-se que existe uma carência colossal em projetos sociais. Acabar com a criminalidade, para além de ser desafiador, é também uma questão social. As minorias precisam ser ouvidas e do mesmo modo, especialistas. Ocorre que muitos projetos sociais são comandados por técnicos e não por especialistas e muitas vezes são projetos com fundo muito mais político que efetivamente social. Talvez por esta e outras razões é que não possui o alcance que se espera.
Conclusão
Não se pode dizer que a violência tal a que foi relatada aqui foi um caso isolado, ao contrário. É por esta razão que os debates sobre a segurança devem continuar tendo em vista que estabelecer uma sociedade pacífica e que proteja seus cidadãos é imperativo. O caso Moïse expôs o Brasil a questionamentos que devem ser respondidos face à comoção social que este fato trágico demonstrou. É verdade que o tema é complexo, por outro lado ações que reduzam violências como esta são necessárias, caso contrário, todo o discurso constitucional e em outras legislações torna-se ineficaz se não consegue alcançar seus objetivos. Nesse sentido cabe ao poder público o enfrentamento desses problemas que não se resolvem somente com policiais nas ruas, mas com projetos sociais e educacionais que visem uma mudança de pensamento voltado à tolerância, equidade, igualdade.
A sociedade não pode permanecer calada face ao que ocorreu a Moïse Kabagambe. O silêncio somente institucionaliza a impunidade e a intolerância. Em oposição, a sociedade deve manifestar-se e exigir que o poder público cumpra com seus deveres constitucionais de garantir a segurança a todos indistintamente.
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[i] Graduada em Licenciatura em Geografia pela Universidade de Brasília (1999). Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Estácio Brasília (2021). Advogada. Pós-graduada em Direito Processual Civil pela Facuminas, (2021).
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