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O ensino e a pesquisa de sociologia e antropologia do Direito nos tempos da pandemia: um relato de experiência

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Gisele Mascarelli Salgado – Professora de Sociologia do Direito e Antropologia da FDSBC-SP, pós-doutora pela USP em Filosofia do Direito.

Resumo: Este artigo busca retratar uma experiência de ensino e pesquisa na disciplina Antropologia e Sociologia Jurídica em uma faculdade de Direito no período da pandemia, apresentando os percursos que foram trilhados tanto pela professora, quanto pelo relato dos alunos. Trata-se de uma análise por meio de um relato de experiência da autora que é professora universitária.

Palavras-chave: ensino, pandemia, Bourdieu, Foucault, experiência de aula.

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Abstract: This article seeks to portray a teaching and research experience in the Anthropology and Legal Sociology discipline in a law school during the pandemic period, presenting the paths taken by both the professor and the students’ reports. This is an analysis through an experience report by the author who is an university professor.

Keywords: teaching, pandemic, Bourdieu, Foucault, classroom experience.

 

Sumário: Introdução, 1) A experiência das aulas, 2) Reformulando os processos avaliativos, 3) A questão da inclusão, 4) Reformulando as pesquisas de iniciação científica e TCC, 5) Suspendendo projetos, interrompendo socializações, 5) Falando de um mundo em mutação, Considerações Finais, Bibliografia.

Summary: Introduction, 1) The experience of classes, 2) Reformulating evaluation processes, 3) The issue of inclusion, 4) Reformulating scientific initiation research and TCC, 5) Suspending projects, interrupting socializations, 5) Speaking of a world in mutation, Final Considerations, Bibliography.

 

Introdução

A disciplina de Sociologia do Direito no Brasil ainda é muito recente nos cursos de Direito e vem trazendo uma série de desafios, como aponta Eliana JUNQUEIRA (2001). Por muitas vezes a própria disciplina vem a ser questionada se é necessária em um curso de Direito com o predomínio de disciplinas dogmáticas. Assim, surgem diversos estudos no qual se pensa sobre o ensino de Sociologia do Direito. A Antropologia do Direito nos cursos é ainda mais recente e poucas faculdades apresentam essa disciplina. De uma maneira muito simplificada, pode-se dizer que essas disciplinas buscam trazer o pensamento crítico e incentivar a análise da realidade. Nesse sentido:

“Uma vez que a sociologia busca compreender as transformações econômicas, políticas e culturais e as formas de organização da vida social, o direito sempre se revelou um tema chave, eis que toda a teoria sociológica sempre esteve preocupada com o conhecimento sobre a manutenção e a alteração das relações de poder na sociedade. Nosso pressuposto é o de que não se pode compreender o que é o direito, suas funções, sua relação com outras áreas ou campos sociais, sem o auxílio de um viés sociológico. Nesse sentido, é fundamental entender o direito no bojo das relações sociais, analisar o seu papel frente às configurações da sociedade, especialmente a nossa sociedade, marcada profundamente pela desigualdade social, a carência de cidadania e a precariedade de acesso à justiça para os grupos sociais vulneráveis”. (MADEIRA e ENGELMAN 2013, p.204)

 

  1. A experiência das aulas

A experiência das salas de aula de maneira remota não era utilizada antes pela faculdade, pois todas as aulas eram presenciais, sendo exigida a presença na aula em mais de 75% das aulas. Muito se discutia sobre a possibilidade do ensino online de Direito, que era frequentemente tido como danoso ao ensino tanto pelas faculdades, quanto pela OAB, que atua na fiscalização do ensino jurídico. Alguns cursos já utilizavam a possibilidade online, mas o curso de Direito era feito em grande parte presencialmente.

Com a pandemia e as restrições de encontro presencial para aulas e atividades complementares, o ensino passou a ser feito de forma online. Em menos de uma semana todas as aulas presenciais estavam sendo feitas de maneira online e tanto alunos como professores lutavam para se adaptar as mudanças.

A aula gravada já era uma realidade em muitos cursinhos de Direito, mas nem todos os professores tinham essa experiência. A dinâmica era muito diferente da sala de aula em muitos pontos. Não havia público. De um teatro, em que o professor e alunos atuavam como atores, passou-se para uma teledramaturgia, em que a cena era gravada para ser apresentada ao público posteriormente. O professor agora era diretor, cenógrafo, figurinista, iluminador e roteirista de um novo produto a ser apresentado para seu público. A linguagem mudava e os meios também.

Dar aula olhando para a câmera em um lugar em sua casa, foi um dos primeiros estranhamentos dos professores. Simplesmente era impossível tentar olhar para um só ponto e não se mexer. As aulas passaram a ser aulas sentadas, mudando a dinâmica do que vinha fazendo até então. O corpo do professor sumia em uns pedaços, enquanto o corpo dos alunos sumiria por quase que por completo.

As aulas na instituição, durante o período de restrição da pandemia, ocorreram de duas maneiras. Inicialmente as aulas eram gravadas e depois postadas aos alunos, para que esses pudessem assistir a qualquer tempo. Em um segundo período, que durou do 2 semestre de 2020 até o fim do ano, as aulas eram em sistema híbrido, ou seja, uma semana era postado aulas gravadas e em outra semana eram feitas aulas ao vivo. A partir do ano de 2021 as aulas passaram a ser ao vivo em um horário que se parecia em muito o que os alunos e professores tinham anteriormente a pandemia.

Em nenhuma das etapas foi exigido dos alunos a presença ao vivo. Isso porque foi imensamente discutido a dificuldade de grande parte dos alunos de se adaptarem para poder ter computadores potentes o suficiente para assistir as aulas ao vivo. Inicialmente muitos compareciam as aulas por meio de chamadas de celulares, o que inviabilizava para muitos deles acompanhar todas as aulas ao vivo. A questão da pobreza digital de alguns alunos foi solucionada por parte da direção ao se abrir de forma excepcional o laboratório de informática e se emprestar computadores. Porém, a pandemia já deixava bem claro que os marcadores da diferença seriam escancarados no ensino remoto.

Assim, muitos alunos passaram a assistir as aulas online sem ligar as câmeras dos computadores. Muitos faziam isso porque não tinham câmeras, outros para manter alguma privacidade de suas casas ou do lugar que assistiam as aulas e outros alunos buscavam no anonimato uma maneira de estar presente e não assistir as aulas. A câmera foi uma questão bem complicada no início das aulas online, gerando uma verdadeira corrida de professores e alunos para a compra de um equipamento para suas aulas. Não bastava a câmera do celular ou mesmo de um computador, era preciso que essa tivesse uma resolução boa para ser transmitida em imagem. Era necessário também uma placa de vídeo boa para o novo ensino, que buscava estar próximo ao mesmo tempo que estava longe. A questão tecnológica surgia em dois pontos, no conhecimento e no acesso a esses materiais (acesso econômico, de conhecimento e de possibilidade de aquisição). Eu mesma me vi entre os milhares de professores que saiam procurando no meio da pandemia um novo equipamento para as aulas.

O que fica evidente é que pela primeira vez em muitos anos o ensino de massa se modificou. Não havia mais os corpos para vigiar e punir, como bem apontou Foucault. O controle sobre os corpos era absolutamente impossível, porque não existiam corpos ali. A presença nas aulas não se tornava mais uma obrigação para alguns pesarosa e muitos alunos se logavam as aulas, mas era evidente que não estavam ali ou estavam fazendo outras coisas. Porém, era diferente de dormir na aula ou mesmo cabular as aulas quando do ensino presencial. Não havia corpo para ser disciplinado. Não havia mais corpo para se ensinar como se vestir, como falar, como se portar como um advogado ou juiz. Fica claro que com a falta da disciplina, se perde o poder:

“A disciplina é uma técnica de poder que implica uma vigilância perpétua e constante dos indivíduos. Não basta olhá-los às vezes ou ver se o que fizeram é conforme a regra. É preciso vigiá-los durante todo o tempo da atividade de submetê-los a uma perpétua pirâmide de olhares. É assim que no exército aparecem sistemas de graus que vão, sem interrupção, do general chefe até o ínfimo soldado, como também os sistemas de inspeção, revistas, paradas, desfiles, etc., que permitem que cada indivíduo seja observado permanentemente”. (FOUCAULT, 2010, p. 106).

Dentre os professores de todo o Brasil discutiu-se nas redes sociais se os alunos deveriam ou não abrir as câmeras. Ocorreram pequenas campanhas, dizendo: Não deixe seu professor sozinho. O desconforto de muitos professores está na mudança do controle e do tipo de ensino que não mais exigia o corpo dos alunos. Essa perspectiva da disciplina pode ser entendida no processo disciplinar que a escola aplica para seus alunos:

“Ao analisar a  escola  sob  a  perspectiva  foucaultiana,  é importante  levar  em  consideração  a  diferenciação  entre  o exercício  de  violência  e  as  relações  de  poder.  O exercício de violência difere das relações de poder, pois enquanto o primeiro faz uso da agressão, seja física, econômica ou de  qualquer outro  tipo,  as  últimas  utilizam-se  de  saberes.  As instituições escolares, enquanto loci de práticas pedagógicas, operam com os saberes, são da ordem da disciplina, do poder disciplinar, funcionando, como já apontava Rajchman (1987), como técnicas que constituem uma estratégia para dividir as  pessoas  em grupos  disciplinados,  individualizados,  controláveis.  Assim, a escola age como dispositivo para instituir o que pode ser dito, feito ou pensado. Segundo Foucault (1995), resulta também das disposições disciplinares o sujeito ser dividido no  seu  interior e  em  relação  aos  outros.  Nessa perspectiva, o processo de disciplinarização transmitido pelas escolas objetiva assegurar a ordenação das multiplicidades humanas. No  seu  estudo  genealógico, ao  tratar  do  nascimento  das sociedades  disciplinares nos  séculos  XVII  e  XVIII,  Foucault demonstra  as  profundas  conexões  dos  saberes  (especialmente aqueles  das  ciências  humanas)  com  o  poder; nesse  mesmo contexto, argumenta que as disciplinas estão ligadas aos regimes de  verdade,  ou  seja,  as  disciplinas  não  apenas  engendram determinadas maneiras de perceber o mundo e de atuar sobre ele, mas, sobretudo, separam o que é considerado verdadeiro daquilo que  não  o  é. O  objetivo  do  poder  disciplinar  não  é  apropriar-se violentamente  de  um  corpo  para  dele  extrair  energia,  afeto, submissão e trabalho, mas é, sim, adestrá-lo, tornando-o dócil e útil para o corpo social. Logo, o poder disciplinar faz de uma punição uma ação racional, calculada e, por isso, econômica. (VALEIRÃO E OLIVEIRA, 2014, p. 80-81)

Porém, não se tratava para muitos de deixar o professor sozinho, mas na impossibilidade de assistir as aulas ao vivo, devido a fatores econômicos. Outros fatores podem ser aqui apontados, pois muitos alunos buscavam preservar a esfera privada de suas casas e da nova dinâmica familiar que se instaurava. Com todas as pessoas em casa, muitas famílias se revezaram no computador, para assistir as aulas e trabalhar. Muitos alunos que trabalhavam em um período em home office, buscavam assistir aulas em outros períodos. Mas isso não era como no presencial, pois a casa e os parcos recursos eram disputados por muita gente da família. O aluno trabalhador enfrentava agora outras dificuldades, que não era somente o cansaço, sono e desgaste ao estudar e trabalhar. A esfera do cuidado também afetava os alunos assistirem as aulas principalmente as mulheres. Muitas mães e irmãs passaram a ter muito mais trabalho doméstico com a pandemia, pois a esfera do cuidado aumentou brutalmente. Cuidar da casa, das crianças, dos parentes, passou a ser muito mais difícil, uma vez que muitos recursos facilitadores estavam fechados ou se tornaram caros demais.

Muitos alunos assistiam aulas em casa e pais assistiam as aulas junto. Algumas vezes fui avisada de comentários de pais ou de experiências que os pais acabavam pedindo para constar. Essa situação era algo inusitado, pois os pais dos alunos dificilmente pareciam nas faculdades de Direito, nem eram ouvidos. Alguns alunos ouviam aulas com fones e avisavam que não poderiam falar daquele assunto com os pais, pois o posicionamento era diverso. Em um episódio ao falar de lei maria da penha, uma aluna comentou que o filho pequeno que assistia a aula perguntou sobre violência doméstica. Nem sempre todos os conteúdos são possíveis para as crianças e passei a avisar desde então, quando a aula continha questões polêmicas ou que falavam de crimes e assuntos considerados inapropriados para crianças.

A casa dos professores também se viu invadida pelo trabalho. Alguns professores transmitiam suas aulas de escritórios, mas em geral a casa passou a ser uma grande sala de visita dos alunos. No início eu fazia das estantes do pequeno escritório que tinha, um cenário com os livros. Era preciso um local que pudesse regular a luz e o som. Depois passei a fazer minhas aulas do meio da sala, onde coloquei um computador de mesa, mais potente para aguentar as transmissões ao vivo. O mundo exterior da vizinhança interferia na aula e muitas vezes o anúncio do “carro do ovo”, “carro da mensagem de aniversário” era ouvido pelos alunos, gerando imensas risadas. Era a vida que gritava que as aulas não eram as mesmas, por mais que nos esforçássemos em fazer parecer que as aulas voltaram ao normal por serem ao vivo.

As aulas ao vivo eram feitas com base em slides, com um roteiro já pronto. Esse roteiro eu já utilizava antes nas aulas presenciais. Porém, muito dos filmes, documentários e músicas que passava foram tirados, simplesmente porque o sistema não aguentava. As aulas passaram a ser em sua grande maioria expositivas. Isso porque era muito difícil fazer trabalhos e exercícios ao vivo ou mesmo fazer seminário. Grande parte das modificações trazidas pela nova educação, como aulas invertidas, se tornavam difíceis de realizar. A interação com os alunos passou a ser muito pelo chat e pouco pela fala do aluno que levantava a mão para perguntar ou comentar algo. Ao mesmo tempo que dava aula eu tinha de olhar para os comentários no chat, para ver se não tinham dúvidas.

O sistema utilizado foi o do google classroom, que fornecia uma ferramenta mais voltada para reuniões de negócios, do que para aulas. Esse sistema já era utilizado antes, para postar textos, indicações de livros e slides de aula. Porém, agora eram aulas inteiras gravadas que iam para os murais de registro das aulas. A aula não era mais um teatro, que não tem memória, mas ficava gravado. Assim, muito do que se comentava nas aulas de críticas à políticas públicas e temas polêmicos, foram aos poucos cortados ou suavizados. Tudo o que se falava nas aulas passava a ser cuidadoso, pois a gravação poderia ser resgatada depois. Ao mesmo tempo que impedia uma aula mais crítica e ácida, esse mecanismo foi importante para alunos denunciarem professores que tinham atitudes racistas, machistas, etc., como foi noticiado em diversos jornais do período[1].

Muitas vezes antes de gravar as aulas eu fazia um período de oitiva dos alunos, perguntando se todos estavam bem. Eram perguntas genuínas, uma vez que muitos alunos adoeceram de covid ao longo do período ou mesmo estavam cuidando de pessoas que adoeceram. O sofrimento psíquico era evidente e falar da dor parecia aliviar e nos emanar como um grupo que tentava além de aprender sociologia e antropologia jurídica, sobreviver à pandemia de Covid 19 e suas questões políticas e econômicas. A contagem das pessoas que adoeciam de depressão na sala e dos mortos que se somavam aos milhares era assunto cotidiano.

 

2. Reformulando os processos avaliativos

Os processos avaliativos foram um dos grandes problemas no sistema educacional remoto. A princípio as provas que exigiam muito da memória do aluno, foram mudadas para trabalhos, que eram postados no sistema e depois entregues em um período estendido. Com o passar da pandemia, no ano de 2021 alguns professores optaram por provas escritas e de testes. Acabei com ficar nos trabalhos, que pareceram mais eficazes para minha disciplina.

Ao longo do período pedi para alunos elaborassem: 1) uma legislação sobre direito das minorias, 2) para que fizessem uma intervenção artística com justificativa em um monumento, explicando a problemática da disputa de poder, 3) elaborassem uma justificativa a uma legislação a ser hipoteticamente remetida à discussão, 4) analisassem uma série de documentários de populações indígenas, quilombolas, ribeirinhas, dos coqueirais, 5) para que propusessem modificações no sistema prisional brasileiro. Todos os trabalhos eram explicados em um roteiro, com as informações do que era pedido e muitas vezes fazia vídeos explicativos.

Esses trabalhos estavam longe do que fazia antes, pois buscava fazer provas mais perto daquelas que os professores de dogmática jurídica faziam, mesmo estando em uma disciplina muito diferente. A possibilidade de criar algo que ia além do tradicional foi extremamente positiva, pois em vez da memória e do bem escrever, foi privilegiado à critica e a criatividade.

Os alunos tinham um período para postar as atividades, que eram feitas em pequenos grupos. Isso possibilitou que muitos alunos se integrassem mais com seus colegas em um período que o contato social era bem escasso. Alguns alunos optaram por fazer trabalhos individuais. Como para cada trabalho era necessário a leitura de diversos textos que foram explicados ao longo da aula e outros sugeridos para leitura, muitos alunos optaram por dividir essas tarefas. Cada trabalho também possibilitava o aluno escolher alguns temas e textos tratados e isso fez com que ocorresse uma identificação maior do aluno e do tema estudado.

A experiência foi bem positiva e no caso do trabalho do projeto de lei, alguns alunos chegaram a levá-los para deputados e vereadores. Um dos trabalhos, feito pela aluna Bianca Azzi, foi selecionado como um dos 500 projetos a serem votados para o Concurso Bora Legislar. O projeto prevê ação afirmativa por direitos das mulheres.

Os alunos a princípio estranharam bastante as avaliações, que eram bem diferentes de tudo o que foi proposto ao longo do curso de Direito. Em uma aula uma turma chegou a me perguntar que tipo de aula eu estaria dando a eles. Uma aluna me questionou se não seria um método de Paulo Freire, mas ela não via isso nas minhas aulas com clareza. Eu deixei claro para a turma que tentava aplicar alguns conceitos que tinha estudado na faculdade de Educação da USP e também a partir de minha experiência no anarquismo.

Todo o processo acadêmico estava diferente e essa possiblidade levava a chance de modificar o processo de avaliação, para um processo não punitivo, aos moldes do que propunha Ferrer que é aqui explicado por Nascimento:

“Nem prêmio,  nem  castigo  constitui significativo e importante lema instituinte  das  escolas  inventadas  pelos anarquistas desde os inícios do movimento  operário  internacional  até  e inclusive     nas     diversas     realizações acontecidas    com    o   movimento    dos trabalhadores  no  Brasil.  O  racionalismo científico defendido pelos educacionistas libertários   tinha   na   singularidade   da criança o ponto basilar incontornável de seu   processo   educacional.   Castigos   e premiações, nesta perspectiva educacional, são inadmissíveis por serem vistos    como    verdadeiros    disparates revelando  na  sua  brutalidade,  frieza  e estupidez,   sua   proveniência   religiosa medieval” (NASCIMENTO, p.112)

Uma das alunas reconheceu que o que eu buscava fazer era incentivar a autonomia, pois cada prova levada a uma pesquisa anterior para que pudessem conhecer o tema e fazer a proposta. Portanto, quem eu mirava era Maurício Tratemberg, crítico feroz de uma educação que não fosse para a crítica. Em seu texto “A delinquência Acadêmica” Tratemberg já apontava a crise das faculdades:

“A universidade está em crise. Isto ocorre porque a sociedade está em crise; através da crise da universidade é que os jovens funcionam  detectando  as  contradições profundas    do    social,    refletidas    na universidade. A universidade não é algo tão  essencial  como  a  linguagem;  ela  é simplesmente uma instituição dominante ligada    à    dominação.    Não    é    uma instituição  neutra;  é  uma  instituição  de classe,  onde  as  contradições  de  classe aparecem.  Para obscurecer esses fatores ela  desenvolve  uma  ideologia  do  saber neutro, científico, a neutralidade cultural e  o  mito  de  um  saber “objetivo”,  acima das contradições sociais. No     século     passado,     período     do capitalismo liberal, ela procurava formar um     tipo     de     “homem”     que     se caracterizava   por   um   comportamento autônomo,   exigido   por   suas   funções sociais:    era    a    universidade    liberal humanista  e  mandarinesca.  Hoje,  ela forma a mão-de-obra destinada a manter nas fábricas o despotismo do capital; nos institutos  de  pesquisa,  cria  aqueles  que deformam   os   dados   econômicos   em detrimento  dos  assalariados;  nas  suas escolas  de  direito  forma  os  aplicadores da legislação de exceção; nas escolas de medicina,  aqueles  que  irão  convertê-la numa  medicina  do  capital  ou  utilizá-la repressivamente contra os deserdados do sistema.   Em   suma,   trata-se   de   “um complô  de  belas  almas”  recheadas  de títulos  acadêmicos,  de  um  doutorismo substituindo  o  bacharelismo,  de  uma nova pedantocracia,  da produção de um saber a serviço do poder, seja ele de que espécie for” (TRATEMBERG, 2002, p,1)

Em um outro episódio de dúvidas dos alunos, eles perceberam que parecia ter mais um outro autor que eu utilizava como referência para montar minhas aulas e meu processo de avaliação diferente, que era Bourdieu. Ao explicar Bourdieu e sua influência no Direito, acabei por tratar de um outro livro A reprodução, para falar do capital cultural. Nesse texto Bourdieu apresenta que há uma seleção dos alunos, que leva em conta características que são privilegiadas pela própria instituição:

“Ignorar, como se faz frequentemente, que as categorias recortadas numa população de estudantes por critérios como a origem social, o sexo ou tal característica do passado escolar foram inegavelmente selecionadas no curso da escolaridade anterior, seria impedir-se de uma total consciência de todas as variações que fazem aparecer esses critérios. Assim, por exemplo, os resultados obtidos de uma prova de linguagem não são somente o feito de estudantes caracterizados por sua formação anterior, sua origem social, seu sexo, ou mesmo todos esses critérios considerados simultaneamente, mas da categoria que, pelo próprio fato de ser dotada do conjunto dessas características, não sofreu a eliminação no grau que uma categoria definida por outras características” (BOURDIEU, 20014, p.95)

Conhecer Bourdieu também me forçava a levar o ensino do Direito para além do que um ensino da elite era desejado. Ao quebrar a cadeia da recompensa das categorias de uma elite nas provas, não se queria a reprodução, mas sim um novo ensino. Assim, a ideia não era excluir. Bourdieu fala dessa exclusão nos seguintes termos:

“A diversificação dos ramos de ensino, associada a procedimentos de orientação e seleção cada vez mais precoces, tende a instaurar práticas de exclusão brandas, ou melhor, insensíveis, no duplo sentido de contínuas, graduais e imperceptíveis, despercebidas, tanto por aqueles que a exercem, como por aqueles que são suas vítimas. A eliminação branda é para a eliminação brutal o que a troca de dons e contradons é para o “dá-se a quem dá”(…)”. (BOURDIEU, 2017, p,248)

 

3. A questão da inclusão

A discussão sobre minorias tão presente nas aulas de Sociologia e antropologia jurídica que buscam um conhecimento crítico, levaram a discussão sobre a inclusão de alunos. Esse era dos temas do momento, devido a um projeto de lei n.619/2019 que chegou a ser aprovado e depois teve seus efeitos suspensos pelo STF. Esse projeto que levava a um retrocesso na política de educação inclusiva, por segregar estudantes, causou um grande desconforto em alunos, que se manifestaram espontaneamente como pessoas com deficiência. Até então eu não conhecia a existência desses alunos, pois nenhum deles tinha me requisitado nenhum tipo de adaptação. Em um ensino remoto em que os corpos resguardados e protegidos em suas casas é que muitos alunos puderam se mostrar como corpos e mentes que eram divergentes. O capacitismo faz com que muitos alunos quando podem tornem suas deficiências invisíveis.

Foi nessa discussão sobre inclusão que falei aos alunos de minha dislexia e de minha luta por provas que pudessem ser feitas em letras adaptadas na faculdade. Grande parte dos alunos não sabiam das adaptações como relógios especiais e letras diferentes para possibilitar uma leitura mais clara.

O espanto ocorreu quando nas primeiras provas de 2021 eu comecei a receber os trabalhos na letra adaptada para disléxicos. Dessa vez, não era eu que propiciava provas adaptadas para os alunos lerem, mas alunos que espontaneamente resolveram buscar a fonte na internet e escrever todo o trabalho para que fosse mais fácil para eu ler. A inclusão desse processo educacional foi minha. Até então nunca tinha recebido nenhum trabalho assim, nem aqueles feitos por alunos disléxicos. Talvez o capacitismo também tenha me impedido de ver que eu também precisava de adaptações. Se a pandemia causou distanciamento, também trouxe gentilezas e empatia de uma maneira que nunca pude imaginar.

 

4. Reformulando as pesquisas de iniciação científica e TCC

As pesquisas de iniciação científica e de TCC são geralmente feitas nas disciplinas de Antropologia e Sociologia jurídica com base em pesquisas empíricas. Assim, se pede para que os alunos rompam o paradigma do trabalho acadêmico de revisão da bibliografia, que é tão comum nas faculdades de Direito. Em oposição a um modelo de tese de láurea, os alunos são chamados a produzir um conhecimento novo e de preferência um saber situado.

Muitos alunos fazem proposta de pesquisas etnográficas em que se faz um trabalho de campo. A possibilidade de ir para além dos muros da biblioteca fascina diversos alunos, que começam a frequentar o campo para fazer seus trabalhos. A pandemia e a impossibilidade de ir a campo, nem que fosse uma mera delegacia de polícia ou uma fila para entrada na cadeia, levou muitos alunos a temerem por seus projetos de pesquisa. Toda parte empírica precisaria ser reformulada ou seria necessário fazer uma pesquisa documental.

Vários alunos optaram por fazer uma pesquisa documental e outros migraram para uma pesquisa netnográfica. Se o que nos restava era o mundo virtual, que tirássemos proveito dele. Porém, era necessário aprender fazer esse tipo de pesquisa. Malinowski não era suficiente, pois além de fora da varanda era preciso adentrar as janelas do mundo virtual. A netnografia é mais do que somente acompanhar discussões no mundo virtual, pois ela exige uma imersão do pesquisador naquela comunidade, assim como se faz na etnografia.

“Enquanto a etnografia se propõe a pesquisar as culturas em seus locais, ou seja, no habitat de um determinado povo ou grupo social, a netnografia busca estudar essas comunidades culturais sem uma localização física fixa, por estarem alocadas no ciberespaço, mas que influenciam tanto ou mais que as tradicionais culturas, em relação ao modo de ser, agir, pensar e ser, dos grupos e pessoas frequentadoras desses novos ambientes constituídos no espaço cibernético”. (FERRO, 2015, p.3)

É preciso conhecer os vocabulários do grupo. Assim, a rede social que mais foi utilizada foi grupos de Facebook, pois eles permitiam. A grande vantagem é que muitos alunos já estavam inseridos em muitos desses grupos de discussões. Outros precisaram se filiar em alguns deles, sempre tomando todos os cuidados com a ética na pesquisa, que foi reportada nos TCCs.

Outras adaptações tiveram de ser feitas e trabalhos que previam entrevistas presenciais passaram a ter entrevistas por meio de Whatsapp, o que de certa maneira facilitou a transcrição. Muitas e muitas reuniões foram marcadas com os alunos para fazer e explicar essas adaptações.

Nem sempre o processo de orientação por via remota se mostrou fácil. Foi aberto uma sala para acolher em alguns horários os alunos. Os alunos apareciam em horários em que se reuniam em grupo e em outras vezes era proposto um horário para atendimento individual.

Outra dificuldade sentida pelos alunos foi o fechamento das bibliotecas. Fazer um trabalho de TCC sem biblioteca parecia impossível para muitos. Essa dificuldade foi um pouco superada pela utilização massiva de artigos acadêmicos, teses e dissertações, que se encontravam disponíveis e que não era preciso pagamento para sua utilização. Muitas revistas de universidades federais deixavam abertos os seus números para que estudantes pesquisassem neles. Mais uma vez aqui a dificuldade de se obter os livros de Direito, que são em geral manuais, possibilitou uma pesquisa melhor, pois agora só o que estava disponível e de fácil acesso eram as pesquisas.

Se durante o período de elaboração de TCCs os alunos já entram em sofrimento psíquico, no período da pandemia isso somente se intensificou. Muitos alunos paralisaram diante na obrigatoriedade da escrita da monografia individual e outros alunos entenderam que diante das demandas ocasionadas pela pandemia no trabalho e no ambiente de casa essa tarefa era impossível.

Essas mudanças para orientação remota, mudanças para pesquisas documentais, entrevistas por Whatsapp, netnografia foram intrigantes e desafiadoras e acabaram mostrando uma forma diferente de se fazer pesquisa empírica.

 

5. Suspendendo projetos, interrompendo socializações

Um dos projetos existentes nas aulas de Antropologia e Sociologia do Direito na faculdade era o projeto Vá e Veja, criado pela professora Carmem Fullin. O objetivo desse projeto era levar os alunos a visitar uma série de órgãos e instituições, para que tivessem um contato mais próximo com a realidade. Os alunos recebiam uma ficha, com uma série de questões que deveriam fazer aos órgãos que visitavam e deveriam trazer essa ficha respondida e carimbada pelas autoridades. Em alguns anos cheguei a pedir que a experiência de visitação também fosse apresentada à sala, trazendo a discussão da falência e sucateamento de diversos órgãos que lidam com o Direito, com por exemplo, as delegacias de polícia e delegacia da mulher. Nessa visita, muitos alunos se deparavam com um mundo do Direito real, que estava muito longe do mundo idílico que a lei apresentava.

Esse projeto não pode mais ser feito durante a pandemia, porque o mundo simplesmente não possibilitava que as pessoas fossem lá nos lugares, vissem e relatassem suas impressões. Muito de uma pesquisa exploratória para as futuras pesquisas não poderia ser feita. Essa visita era interessante para o aluno simular o que era de certa forma uma etnografia. Não com o mesmo rigor, nem mesmo com a técnica e método, mas com um espírito de contar e traduzir um mundo do direito.

Esse projeto também trabalhava com a socialização dos alunos, com eles mesmos e com as autoridades que eles tinham de conversar para conseguir entender o determinado local de visita. Essa socialização foi perdida e não pode ser reposta por outro projeto. Mesmo a socialização em sala de aula também se perdeu um pouco pela fala de laços entre os alunos.

Muitos alunos chegavam mostrar fotos dos locais de visitas, fotos de almoços depois de terminadas as visitas, fotos com os delegados. Essas fotos eram intrigantes pois apontavam para uma socialização e para um certo reconhecimento de que para a comunidade acadêmicas eles eram recebidos por autoridades. Mesmo não sendo o escopo desse projeto, ele acabava por possibilitar o desenvolvimento de um dos capitais mais importantes no campo do Direito, o capital social.

 

6. Falando de um mundo em mutação

É comum que ao longo dos cursos de Antropologia e Sociologia do Direito o mundo de que se fala se transforme, porém na pandemia isso foi feito de uma maneira nunca imaginada. As matérias programadas para as disciplinas não foram alteradas no período da pandemia, porém o mundo estava alterado e muitas coisas foram rediscutidas.

A transformação de vários processos presenciais em virtuais foi uma das questões mais emblemáticas. A partir desses processos virtuais ficou escancarado a violência que mulheres sofrem no judiciário. Durante as aulas era comum as alunas trazerem para a discussão o caso Mariane Ferrer. Sabia-se que mulheres que denunciavam seus estupradores na justiça não eram ouvidas e acabavam sendo vítimas de violência por parte de magistrados e advogados. O que se tinha agora era o vídeo da audiência em que uma mulher pedia desesperadamente ajuda.

A questão da violência contra as mulheres também foi um assunto debatido imensamente durante a pandemia, pois ocorreu um aumento da violência doméstica assustador. Ao mesmo tempo que se estudava o assunto, muitas alunas relatavam espantadas o que ocorria ao seu redor.

As políticas públicas de apoio a minorias também foram reduzidas a pó no período da pandemia, pois o governo brasileiro acelerou o desmonte de uma série de instituições, órgãos e lugares de apoio. O sucateamento que estava em marcha, se avolumou e muito do que se falava na aula como por exemplo justiça restaurativa, não tinham mais seus órgãos e seu funcionamento se encontrava comprometido.

Ocorreu alteração das relações pessoais, que passaram a ser mediadas por redes sociais e grupos de Whatsapp. Mesmo as relações entre os alunos passaram ser em grupos de Whatsapp. O que era relatado era uma exacerbação de conflitos, que em outros tempos, poderiam ser facilmente resolvidos, mas que geravam um grau de violência verbal significativo.

 

 Considerações Finais

O período da pandemia e de restrição das atividades acadêmicas se mostrou muito desafiador para todos os professores no Brasil. Foi a época de se reinventar e superar todos os limites possíveis, para realizar aquilo que os professores entendem que é mais sagrado, dar aula e fazer pesquisa. Dificuldades imensas também foram enfrentadas pelos alunos, que buscavam assistir as aulas e também em fazer uma pesquisa acadêmica sem os suportes que até então conheciam, como a biblioteca.

Também foi um período de mudanças das relações entre alunos e professores, que passaram a se encontrar em um espaço virtual para realização das aulas e orientações. Este artigo buscou trazer o percurso dessas relações em uma Faculdade de Direito em um período de dois anos (2020-2021), com as minhas impressões como professora e relatando algumas impressões dos alunos.

Nas disciplinas de Antropologia e Sociologia jurídica as mudanças do mundo pandêmico impactaram muito as discussões em sala de aula, as relações e também a pesquisa. Outras disciplinas dogmáticas parecem não ter sentido tanto essas mudanças, pois a legislação na maioria das vezes continuava igual e o ensino dogmático também continuava o mesmo. Porém, não é isso que aconteceu na disciplina de antropologia e sociologia jurídica. A mudança dos sistemas de ensino a distância e das provas levou a repensar o próprio ensino dentro das faculdades de Direito. Talvez a pandemia tenha trazido a possibilidade de modificação de um ensino que já estava em crise a muitos anos e ninguém sabia nem como nem onde começar a mudar.

 

 Bibliografia

BOURDIEU, Pierre. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

 

BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação. 16 ed. Petrópolis: Vozes, 2017.

 

FERRO, Ana Paula. A netnografia como metodologia de pesquisa: um recurso de possível. Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queirós, ISSN 2179-9636, Ano 5, número 19, agosto de 2015.  Disponível em: www.faceq.edu.br/regs.

 

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2010.

 

JUNQUEIRA, E. B. Ensaio de sociologia do direito, Rio de Janeiro: Letra Capital, 2001.

 

VALEIRÃO, Kelin e OLIVERIA, Avelino da Rosa. Cadernos de pesquisa: pensamento educacional. Curitiba, v.9, n.22, 2014, p.79-94. Disponível em: https://seer.utp.br/index.php/a/article/view/676/566

 

NASCIMENTO, Rogério Humberto Zeferino. O significado das escolas anarquistas para nossos dias. Revista Espaço Acadêmico. n, 221, 2020. Disponível em: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/52220/751375149738

 

TRATEMBERG, Maurício. A delinquencia acadêmica. Revista Espaço Acadêmico. ano II, n.14, 2002. Disponível em: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/40630/21352

 

STAMFORD DA SILVA, Artur. Passagens da sociologia do direito no Brasil: formação, expansão e desafios à continuidade. In: FEBBRAJO, Alberto, SOUSA Lima, Fernando Rister de, PUGLIESI, Márcio (coord.). Sociologia do direito: teoria e práxis. Curitiba: Juruá, 2015. p. 213-227

 

[1] https://g1.globo.com/pr/campos-gerais-sul/noticia/2021/03/20/professor-universitario-e-demitido-apos-falar-durante-aula-remota-que-se-estupro-e-inevitavel-e-iminente-relaxe-e-aproveite.ghtml e https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/10/12/pb-professor-da-ufcg-faz-comentario-machista-universidade-vai-apurar-caso.htm

 

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