Alexia de Melo Miguel – Acadêmica do curso de Direito na Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) e acadêmica-pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Teoria Crítica. E-mail: alexiamiguel13@gmail.com.
Fernanda Pereira Labiak – Psicóloga pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Mestrado em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora na UNIVALI. Pesquisadora no Grupo de Pesquisa Teoria Crítica. E-mail: fernanda_labiak@yahoo.com.br.
Resumo: Este estudo busca apresentar argumentos doutrinários, legislativos e jurisprudenciais que possibilitam considerar o dano psíquico decorrente da violência psicológica como crime de lesão corporal mediante laudo psicológico, argumentando sobre os entraves dos mecanismos opressores da sociedade brasileira tais como machismo, sexismo e misoginia. Desse modo, a partir da pesquisa bibliográfica realizada em diversas bases de dados, pôde-se selecionar e analisar estudos que contemplassem a temática. Angariou-se argumentos doutrinários, legislativos e jurisprudenciais que justificassem a configuração do crime de lesão corporal proveniente do dano psíquico resultante da violência psicológica. Compreendeu-se que a maior parte das vítimas de violências psicológicas são meninas e mulheres, reflexo da hierarquização dos gêneros presente na sociedade, em que o masculino é colocado como superior ao feminino; logo, as questões que considerem o ser mulher na sociedade tendem a ser invisibilizadas.
Palavras-chave: Dano psíquico. Lesão Corporal. Violência psicológica.
Abstract: This study seeks to present doctrinal, legislative and jurisprudential arguments that make it possible to consider the psychological damage resulting from psychological violence as a crime of bodily injury through a psychological report, arguing about the obstacles of the oppressive mechanisms of Brazilian society such as machismo, sexismo and misogyny. Thus, from the bibliographic research carried out in several databases, it was possible to select and analyze studies that contemplated the theme. Doctrinal, legislative and jurisprudential arguments were raised to justify the configuration of the crime of bodily injury arising from the psychological damage resulting from psychological violence. It was understood that most victims of psychological violence are girls and women, reflecting the hierarchy of genders present in society, in which the male is placed as superior to the female; therefore, issues that consider being a woman in society tend to be invisible.
Keywords: Psychic damage. Bodily injury. Psychological violence.
Sumário: Introdução. 1. Metodologia. 2. Resultados e discussões. Considerações finais. Referências.
Introdução
Uma das violências praticadas contra as mulheres é a violência psicológica, que tem sido negligenciada socialmente e, consequentemente, pelos poderes legislativo, executivo e judiciário. Como uma forma de olhar para o grave fenômeno da violência psicológica contra as mulheres, é importante reconhecer que este fenômeno causa danos à sua saúde mental – dano psíquico – e que há um sistema de opressões patriarcal que retroalimenta esta e outras formas violências contra as mulheres (física, patrimonial, moral e sexual).
O dano psíquico caracteriza-se como um prejuízo ocasionado após evento ou vivência traumática. Nesse sentido, é possível que haja o comprometimento das funções psíquicas tais como: emoção, atenção, memória, raciocínio, entre outras. Por conseguinte, há a possibilidade de que ocorra diversas consequências à vida social da pessoa atingida, por exemplo, a incapacidade de exercer atividades cotidianas e/ou profissionais, apresentando dificuldades de enfrentamento e adaptação a novas situações.
O dano psíquico não deve ser confundido com dano moral, visto que, na seara da responsabilidade civil, em especial, existe certa pelega no que diz respeito às diferenças entre esses dois institutos. Ainda que estes se encontrem dentro da esfera extrapatrimonial, conservam certas características únicas. Enquanto o dano moral configura-se como eminentemente subjetivo, de forma que a sua comprovação depende do convencimento do magistrado acerca dos efeitos íntimos que tal conduta possa ter causado à vítima, o dano psíquico tende a ser de mais fácil concretização, uma vez que apresenta alterações fisiológicas visíveis no organismo da vítima como estresse pós-traumático, depressão, transtorno de ansiedade, distúrbios gastrointestinais nervosos, processos alérgicos, fobias diversas etc. (BUENO, 2015).
As mulheres, como grupo minoritário, não em quantidade, mas em representação política, sofrem com diversos tipos de vulnerabilidades porque está imersa ao sistema de opressões patriarcal sobre o qual a sociedade brasileira está estruturada. O patriarcado segundo Tiburi (2018) se constitui como uma forma de poder, ou seja, um sistema caracterizado por diversos dogmas inquestionáveis, como a hierarquização dos sexos, os quais são “vendidos” pela sociedade como ordens naturais e imodificáveis. A violência, física ou simbólica, como assinalada por Tiburi (2018), é um dos elementos do patriarcado e, portanto, está presente de maneira intensa na sociedade brasileira, manifestada de forma persistente, mas não exclusivamente, no ambiente doméstico.
Para tanto, propõe-se a discussão acerca da possibilidade de o dano psíquico, advindo da violência psicológica, ser considerado crime de lesão corporal nos termos do art. 129 do Código Penal (CP) e, questiona-se, se a inércia do legislativo no que diz respeito à tipificação de tal conduta, bem como se a resistência do judiciário em dar uma interpretação ao tipo penal da lesão corporal que abarque o dano psíquico, não seriam resultado de um sistema patriarcal e misógino que se apresenta de modo estrutural e estruturante na sociedade brasileira, uma vez que a maioria dos crimes que constituem essa seara tem como vítimas as mulheres.
Desse modo, este estudo objetiva apresentar argumentos doutrinários, legislativos e jurisprudenciais que possibilitam considerar o dano psíquico decorrente da violência psicológica como crime de lesão corporal mediante laudo psicológico, tecendo reflexões sobre gênero, o qual pode ser visto como entrave para adoção de medidas de penalização do agressor e proteção e reparação de danos às vítimas desta violência. Salienta-se que este estudo faz parte de uma pesquisa maior sobre dano psíquico e lesão corporal e, dado a amplitude da temática, apresentar-se-á discussões voltadas à violência psicológica.
Por meio da pesquisa bibliográfica, procurou-se cotejar dados e informações para detectar possíveis incoerências, contradições, alinhamento ou similaridades entre os achados bibliográficos. Estabeleceu-se, contudo, a estratégia de pesquisa bibliográfica para facilitar a identificação dos principais trabalhos em meio a uma quantidade grande de possibilidades que permeiam a produção científica mundial e que garantisse a capacidade de estabelecer as fronteiras do conhecimento advindo dos achados científicos.
À vista disso, os procedimentos adotados envolveram uma busca por artigos, periódicos e revistas publicados no Brasil, no período que compreende os anos de 2014 a 2019, a temática investigada foi o dano psíquico decorrente da violência psicológica como crime de lesão corporal. As bases de dados operadas foram: a Scientific Electronic Library Online (Scielo); a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD); o portal de periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes); o Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (Medline); a Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs); o EBSCOhost e o Google Acadêmico.
As expressões utilizadas nas bases de dados foram: “dano psíquico resultante da violência psicológica”; “lesão corporal” e “crime de lesão corporal”. Foram utilizadas as seguintes combinações: “dano psíquico resultante da violência psicológica” e “lesão corporal; “dano psíquico resultante da violência psicológica” e “crime de lesão corporal”. Os resultados encontrados nas bases de dados contabilizaram 1.808 textos que contemplavam as palavras-chaves, a saber: Scielo, Medline, Lilacs e BDTD = zero textos; Capes = oito textos; EBSCOhost = 19 textos; Google Acadêmico = 1.780 textos. Desses resultados, apenas nove, tratam e desenvolvem a temática estudada, apresentando concepções teóricas intentando ampliar perspectivas e entendimentos sobre o assunto. A partir dos estudos selecionados, foram realizados os procedimentos para análise prévia: leitura dos resumos, em seguida, leitura na íntegra dos estudos. Esses procedimentos foram adotados para identificar se os estudos encontrados traziam similaridades ou incoerências com a pesquisa proposta.
Com base na análise dos estudos encontrados na pesquisa bibliográfica realizada, pôde-se compreender que a discussão acerca desse tema ainda é tímida, uma vez que muitos dos artigos científicos selecionados apenas citavam a possibilidade de o dano psíquico ser considerado crime de lesão corporal sem aprofundar nos aspectos jurídicos e psicossociais que envolvem esse cenário. Algumas das contribuições mais efetivas que se encontrou foram com relação à análise do termo “saúde” – constante no tipo penal do art. 129 – e a sua correlação com o que a Organização Mundial da Saúde (OMS) determina. Na análise das elementares que compõem o caput crime de lesão corporal, o termo “saúde” é analisado, de forma pormenorizada, por Ramos (2019), que utiliza o conceito de saúde elaborado pela OMS para confirmar a existência do espectro mental ou psíquico no elemento normativo constante no art. 129, CP. De acordo com a OMS, saúde é definida como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades”. Logo, a saúde compreende, também, o bem-estar mental, cuja ofensa pode culminar no dano psíquico.
Ademais, uma das contribuições importantes que foi destacada pela análise dos estudos advindos da pesquisa bibliográfica, consiste na importância da perícia psíquica e do laudo psicológico para, como fonte de prova do Poder Judiciário, comprovar o dano psíquico, o qual pode se manifestar de diversas formas, sendo uma delas o Transtorno de Estresse Pós-traumático (TEPT), descrito na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), usada no Brasil. O TEPT na CID-10 possui um conjunto de sinais e sintomas que pode servir de critérios objetivos para embasar o laudo psicológico. Quando há um nexo de causalidade, comprovando a materialidade do crime, isso pode, dentro de um processo, a partir de um laudo feito numa produção antecipada de provas, subsidiar a denúncia do Ministério Público e, posteriormente, a sentença (RAMOS, 2019). Cabe salientar que um juiz não fica vinculado apenas ao laudo, entretanto, o laudo tende a ser um fator importante para se dar uma resposta penal ao crime.
Diante das discussões apresentadas nos textos encontrados, é possível inferir que o dano psíquico advindo da violência psicológica pode ser considerado crime de lesão corporal por intermédio de alguns argumentos doutrinários. Nessa perspectiva, pode-se mencionar, doutrinariamente, as considerações de Bitencourt (2014), o qual afirma que a lesão corporal, como bem se depreende do art. 129 do Código Penal (CP), é a ofensa à integridade física ou a saúde de alguém sem animus necandi. Segundo o autor, essa ofensa compreende a violação à normalidade funcional do organismo do indivíduo sob os aspectos físico, fisiológico ou psíquico.
Outro doutrinador, Greco (2010) também assinala a possibilidade de a saúde mental estar protegida pelo tipo penal lesão corporal quando faz referência às contribuições de Hungria (1955). Consoante às disposições de Bittencourt e Greco, Nucci (2013) afirma que o elemento saúde, presente no tipo penal, abrange a normalidade das funções físicas, orgânicas e mentais do indivíduo. Nessa toada, Nucci assinala que a lesão corporal é configurada com o efetivo dano ao corpo, cuja manifestação pode ocorrer externa ou internamente, com “abalos psíquicos comprometedores”, o que compreende, portanto, a saúde mental.
Após a exposição de contribuições doutrinárias, outro argumento a ser ponderado no que se refere à admissão do dano psíquico advindo da violência psicológica como crime de lesão corporal seria a análise do próprio dispositivo legal, qual seja, o art. 129 do CP. Dentro do artigo citado, revela-se imprescindível a análise do §9º, o qual traz uma qualificadora do crime de lesão corporal:
Violência Doméstica
A redação desse parágrafo foi incluída pela Lei nº 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, da qual é característica a expressão “violência doméstica”, utilizada no Código Penal para nomear a qualificadora descrita no §9º. Na Lei especial, a definição de violência doméstica está presente no art. 5º, “para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. Pela análise da redação do art. 5º, pode-se perceber que a violência doméstica inclui o sofrimento psicológico. Isto é, a Lei especial, para a qual o próprio §9º do art. 129, CP, implicitamente, remete, reconhece o enquadramento do aspecto psicológico na violência doméstica.
Assim, quando ocorre a violência psicológica e a comprovação de dano psíquico, vale destacar que, o agressor é passível de condenação e cumprimento de pena de acordo com o Código Penal. O art. 129 do CP divide as lesões corporais em três níveis, leve, grave e gravíssima. A lesão leve está presente no caput do artigo, enquanto as lesões graves e gravíssimas estão dispostas, respectivamente, nos parágrafos primeiro e segundo. Dessa forma, conforme aumenta-se o grau de prejuízo que o dano psíquico causa, as penas também seguem esse aumento. Por isso, o laudo pericial, nesse caso perícia psicológica, é deveras importante para especificar o tipo de lesão e a gravidade que acomete a vítima e, assim, a pena é estabelecida em conformidade com a magnitude da lesão corporal provocada.
Para além dos argumentos apresentados e que tornam legalmente possível o dano psíquico advindo da violência psicológica ser considerado crime de lesão corporal, faz-se necessário questionar: por que há poucos estudos sobre o assunto e poucos casos de julgados no judiciário brasileiro que envolvem esta problemática? É importante considerar que o silêncio a respeito das discussões sobre o dano psíquico no judiciário, legislativo e executivo revela também uma faceta estrutural e estruturante articulada em nossa sociedade, que é a invisibilização da violência contra a mulher, a qual, por meio de vários dispositivos de poder, é negligenciada, assim como as suas vítimas e as profusas formas de violências por elas sofridas.
Sabe-se que a maior parte das vítimas de violência psicológica são mulheres, em geral, submetidas a relacionamentos abusivos em que seus parceiros as menosprezam e as fazem duvidar de sua própria sanidade. Pesquisa realizada pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), em 2017, revelou que as mulheres sofrem quatro vezes mais violência psicológica do que os homens (BRASIL, 2020). Isso pede ações emergenciais na busca pela prevenção da violência de gênero, na especificidade da violência contra a mulher, por meio de uma rede de enfrentamento que perpassa diversas áreas, tais como saúde, educação, segurança pública, assistência psicossocial, cultura e justiça. Enfatiza-se, deste modo, que a resposta penal não pode ser vista como unanimidade para o enfrentamento da violência contra a mulher. Como pondera Ramos (2019), a justiça penal deve ser usada como último recurso, uma vez que não resolve o problema da vítima, mas possibilita olhar para o grave fenômeno da violência contra a mulher, não invisibilizando a agressão e nem o agressor, possibilitando responsabilizá-lo e penalizá-lo.
Aprofundar nas discussões sobre o dano psíquico, advindo da violência psicológica, como crime de lesão corporal envolve transitar pela esfera social para entender o fenômeno da violência psicológica, que, no âmbito da violência doméstica, atinge como vítimas, mais as meninas e as mulheres. De acordo com Beauvoir (2016), o homem é o “Sujeito” e a mulher o “Outro”, a quem é negada singularidade, ou seja, a mulher é definida pelo olhar do homem. Tem, dessa forma, sua autonomia tolhida, na medida em que não se afirma. A autora lembra que o pensamento humano se fundamenta em grande parte na alteridade – diferença -, por esse motivo, observa-se nas sociedades a imposição da característica de “Sujeito Absoluto” a uma determinada coletividade em detrimento da “Outra”, considerada mero objeto. Exemplos desse aspecto não faltam à história: branco e negro, capitalista e proletário, nativo e estrangeiro, homem e mulher, entre outros.
Quando o homem se afirma como detentor de direitos, a mulher é automaticamente posta em um lugar de submissão e de não reconhecimento como sujeito de direitos. Beauvoir (2016) atribui o triunfo do patriarcado ao “privilégio físico” (lê-se a maior força física, em geral, masculina), que contribui para que os homens hierarquizem os gêneros e se considerem, ainda que inconscientemente, sujeitos superiores. Assim, o lugar das mulheres na sociedade é historicamente determinado por uma visão masculina que, temerosa por perder seus privilégios, cria mecanismos de submissão da mulher com o objetivo de neutralizar uma possível ameaça ao seu posto de “Sujeito Absoluto”.
Bourdieu (2012, p.16) em consonância com a teoria de Beauvoir (2016) sobre a dominação masculina, assinala a divisão das atividades e das coisas em sistemas de dualidade opostos: “[…] alto/baixo, em cima/embaixo, na frente/atrás, direito/esquerda […]” e masculino/feminino, categorias criadas socialmente, mas naturalizadas nos indivíduos. Segundo Bourdieu (2012), a divisão entre os sexos parece estar incorporada em uma “ordem natural”, no entanto, é, na verdade, totalmente arbitrária, ainda que pretenda ser vista e percebida como inevitável a fim de se legitimar perante a sociedade. Tem-se, portanto, que a dominação masculina independe de justificação, já que seria “normal”. Os homens não precisam se afirmar, pois são o referencial por meio do qual tudo é definido, inclusive as mulheres, ou seja, o ser e estar das mulheres em sociedade perpassa pela legitimação dos homens.
Nessa toada, a diferença biológica entre homens e mulheres, inscrita em tal ordem social, é utilizada como justificativa para a determinação arbitrária da dominação masculina. A diferenciação anatômica é criada socialmente também como instrumento de legitimação da relação de dominação entre os gêneros, logo, o pênis é associado ao elemento “cheio”, enquanto a vagina relaciona-se com o aspecto não só “vazio”, mas “inverso”. É, nesses termos, o negativo do falo. À vista disso é que Bourdieu (2012) define o ato sexual, sob a leitura masculina, como uma relação social de dominação, apropriação da mulher por parte do homem. Historicamente, a penetração, ato socialmente dirigido à mulher, era considerada sinônimo de submissão, tanto que, na antiguidade, o homem que se submetia à penetração, era “feminizado” e, portanto, humilhado.
Na sociedade contemporânea, o estupro ainda é um visto como um dispositivo de poder, isto é, discursos como “você é tão feia que não merece ser estuprada”[1] têm aceitação social, promovem e elegem representantes políticos, tendo como consequência o respaldo e o fortalecimento da cultura do estupro, da qual meninas e mulheres são as maiores vítimas. Logo, não são adotadas leis específicas que assegurem a segurança das mulheres e tão pouco ações e intervenções públicas e privadas que sejam efetivas quanto a proteção das mulheres e que sejam pautadas na igualdade de tratamento, oportunidades, deveres e direitos.
É possível identificar que as diferenças entre corpos masculinos e femininos são construídas sob a visão androcêntrica que caracteriza o patriarcado, estrutura de poder de exploração do gênero feminino – identificada como primordial à manutenção da relação de hierarquia entre homens e mulheres. Bourdieu (2012) destaca a violência simbólica e física exercidas pelas instituições – igreja, família, escola, Estado – como instrumentos de conservação da desigualdade de gênero. Ele relaciona a violência simbólica à adoção dos sistemas de dominação pelos próprios dominados, vítimas da naturalização das opressões.
O patriarcado, nessa perspectiva, insere diversas características relacionadas ao homem e a mulher, isto é, caracteres opostos que contribuem para a formação de uma masculinidade e uma feminilidade socialmente aceitas e propagadas. A ideologia do patriarcado é, essencialmente, o machismo, que, como assinala Tiburi (2018, p. 63), “é um sistema de crenças em que se aceita a superioridade dos homens devido à sua masculinidade [rechaçada quando presente em mulheres]”. Dessa maneira, enquanto a violência é sofrida pelas mulheres, os homens desfrutam de poder, o confundindo, usualmente, com violência, utilizada para minar a ascensão do poder daqueles que, socialmente, não o detêm – “[…] violência é a destruição do poder possível […]”
As mulheres, no sistema patriarcal, são incentivadas a se menosprezarem, a se submeterem a uma pressão estética que desconsidera as suas particularidades, se reconhecerem como detentoras de virtudes negativas e são postas como resultante do fraquejar de um homem como segue o exemplo: “Tenho cinco filhos. Foram quatro homens. A quinta eu dei uma fraquejada e aí veio uma mulher”[2]. Isso mostra de onde vem o sentimento de culpa internalizado de modo inconsciente pelas mulheres, justamente, por conta de sua condição de ser mulher. Dito de outra forma, a culpa que vem de padrões inatingíveis postos por uma cultura patriarcal, violenta psicologicamente e silencia as mulheres diante do machismo, misoginia e comportamentos sexistas.
As mulheres são, propriamente, impelidas a silenciarem-se e os mecanismos de controle para isso são muitos e variados, à exemplo do discurso: “Quem quiser vir aqui [ao Brasil] fazer sexo com uma mulher, fique à vontade[…].”[3], que evidencia a subjugação delas, revelando a concepção de que elas estão sendo colocadas à mercê das vontades dos homens, podendo ser violadas e violentadas das mais variadas formas. Já aos homens é atrelada a condição de virilidade, confundida, muitas vezes, com a necessidade de expressão de violência, o que gera a alimentação de masculinidades tóxicas, das quais um dos resultados é a violência de gênero.
A violência de gênero, na especificidade da violência contra a mulher, pode ocorrer de várias formas, entre elas, a Lei Maria da Penha aponta as violências física, patrimonial, moral, sexual e psicológica. Todas estas formas de violências podem resultar em dano psíquico, entretanto, a violência psicológica tende a ser a mais comum e a mais naturalizada socialmente e, por isso, muitas vezes, as vítimas desta forma de violência não se percebem no lugar de vítima conforme sinaliza Walker (1979) quando descreve o sentimento de desamparo aprendido.
Walker (1979), a partir das contribuições de Martin Seligman (1975), utiliza a teoria do desamparo aprendido para explicar o porquê da dificuldade que muitas mulheres sentem em sair de um relacionamento abusivo. Afirma, Walker (1979), que, nas etapas iniciais de um relacionamento, a mulher sente que pode mudar o comportamento do agressor. No entanto, ao ver que suas tentativas são inúteis, que todas os seus esforços para dirimir os abusos não surtem efeitos, ela acaba por aceitar que não faz sentido querer mudar o comportamento do agressor, pessoa com quem convive numa relação socioafetivassexual. Essa situação é descrita como desamparo aprendido porque a mulher internaliza ser impossível que qualquer circunstância externa mude o contexto e abuso em que ela vive e, desse modo, ela acaba por aceitar a situação, como se não valesse a pena tentar, como se o desânimo e a resignação passiva fossem a única alternativa. Algumas mulheres chamam esta aceitação de destino e a justificam, expondo os seus sentimentos causados por situações de desamparo, postas como, nada que fazem dá certo para que haja uma mudança e, logo, deixam de tentar empreender mudanças.
Vale pontuar que a relação de causa e efeito da violência psicológica e outras formas de violências contra as mulheres não pode ser explicada de forma simplista e por um único viés teórico e comportamental, por ser um fenômeno complexo que envolve fatores biopsicossociaisculturais a serem considerados. De todo modo, o conceito de desamparo aprendido é uma referência importante para se tecer reflexões sobre a estrutura que hierarquiza os gêneros e coloca as mulheres em posição subalterna perante os homens.
Essa posição que a mulher ocupa na sociedade também pode ser observada nas instituições deliberantes. No Congresso Nacional, por exemplo, com as eleições de 2018, a participação das mulheres na Câmara de Deputados é de apenas 15%, enquanto no Senado Federal o número é ainda menor, 13%. Já com relação ao Poder Judiciário brasileiro, as magistradas representam somente 38,8% do total de juízes em atuação no ano de 2019 segundo o Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Quando as mulheres não se encontram devidamente representadas nesse sistema político vigente, ou seja, no poder legislativo, isso repercute, principalmente, mas não unicamente, na elaboração, aprovação e execução de políticas públicas que considerem as questões do ser mulher na educação, no mercado de trabalho, no âmbito doméstico, na esfera das relações socioafetivas, enfim em todos os espaços que constituem a sociedade contemporânea. Sabe-se que os poucos projetos sobre o enfrentamento da violência contra a mulher que partem do Poder Judiciário brasileiro são encampados por mulheres nesta esfera e muitos acabam não tendo visibilidade devido ao sistema opressor e de privilégios de um gênero (masculino) em detrimento de outro (feminino) que impera na sociedade. Mas tais projetos poderiam resistir tendo mais representatividade das mulheres na esfera judiciária.
No âmbito do Poder Judiciário, é necessário questionar as possíveis interferências do sistema de opressões vigente atualmente nos julgamentos de crimes envolvendo violência contra as mulheres. Porto e Costa (2010), nesse sentido, identificaram alguns padrões em decisões judiciais, a saber, a crença na
[…] reconciliação, idealização da família, ambiguidade quanto à prova material do crime, negação da violência conjugal como crime, justificativa à agressão pelo uso de álcool/drogas, inconformismo/não aceitação da separação, proteção da mulher contra privações econômicas (PORTO; COSTA, 2010, p. 483).
Ou seja, em algumas sentenças, os/as juízes/juízas tentam, de alguma forma, justificar a ocorrência da violência contra a mulher por meio de crenças características do patriarcado, dessa forma, ainda que inconscientemente, esses profissionais validam o sistema de opressões vivido pelas mulheres e os privilégios dos homens. Porto e Costa (2010) informam que as sentenças analisadas foram proferidas por magistrados de ambos os gêneros. À vista disso, enfatiza-se a necessidade de os(as) magistrados(as) olharem para o grave fenômeno da violência psicológica contra a mulher e compreendê-la em sua complexidade. Isso se dá por meio de uma educação que possibilite o desatar das amarras e vendas dos padrões que imperam na sociedade e que promovem desigualdades e violências, despertando para novos tipos de comportamentos, valores, gestos, atitudes e padrões.
Nesse contexto, pondera-se que os sujeitos (homens) praticantes de condutas que geram dano psíquico estão em maioria nos espaços públicos de decisão e, dessa forma, os sujeitos (mulheres) vítimas encontram dificuldades para obter políticas públicas que possibilite dirimir a sua situação de vulnerabilidade. Percebe-se, portanto que parte da resistência em admitir a possibilidade de o dano psíquico ser considerado crime de lesão corporal vem dos mecanismos de opressão que estruturam a sociedade e colocam as mulheres como sujeitos inferiores. Para além da discussão acerca da pertinência do direito penal na solução de problemáticas como essa a longo prazo, torna-se essencial, de imediato, que o Estado repreenda condutas que violam a saúde mental das mulheres.
Considerações finais
Ao longo do desenvolvimento deste artigo, o qual faz parte de uma pesquisa maior acerca da possibilidade de o dano psíquico configurar crime de lesão corporal, procurou-se analisar a correlação existente entre a resistência em admitir tal possibilidade no âmbito da violência psicológica e o sistema de opressões que o patriarcado presente na sociedade brasileira impõe às mulheres, maiores vítimas da violência psicológica. Para a fundamentação deste estudo, realizou-se pesquisa bibliográfica em diversas bases de dados, nas quais foram encontrados alguns textos que tratam da temática, mesmo que somente por uma citação breve. Foram realizadas as leituras das respectivas obras e, a partir delas, foi possível tecer uma análise pautada em doutrinas jurídicas que admitem o dano psíquico advindo da violência psicológica como crime de lesão corporal.
Como mecanismo de resistência à admissão de o dano psíquico ser considerado crime de lesão corporal, foi discutido um dos pilares estruturais e estruturantes da sociedade, o patriarcado, que coloca os homens numa situação de privilégios em detrimento as mulheres. Isso porque, em grande parte, as mulheres são as vítimas da violência psicológica, a qual tem o condão de gerar danos psíquicos deveras prejudiciais à saúde mental. E, quando questões do ser e estar mulher na sociedade não são consideradas, o que se tem é a manutenção do sistema de privilégios dos que exercem o poder, ou seja, os privilégios atribuídos ao gênero masculino em detrimento do gênero feminino. Estes entendimentos foram tecidos com base na construção social baseada em aspectos machistas, misóginos e sexistas, esteios do patriarcado. Reconhece-se que o patriarcado é opressor e incentiva práticas violentas entre os homens, mas reforça-se, neste interim, que as mulheres são vítimas de violências diversas dentro desse sistema pelo fato de serem mulheres.
As transformações que a sociedade contemporânea está vivendo exigem novos tipos de comportamentos, valores, gestos, atitudes e padrões. A inclusão das questões de gênero nos currículos acadêmicos deve ser vista como um compromisso sério e responsável, considerando que o ambiente universitário reproduz o sistema de exclusão e desigualdade presente na sociedade, sendo isso uma barreira para a completa e saudável formação acadêmica. Os currículos das faculdades de Direito, em especial, necessitam abordar estudos concernentes às questões de gênero, assim, os operadores do direito poderão ter visões mais amplas acerca dos problemas sociais e, logo, poderão utilizar seus conhecimentos jurídicos com o intuito de pensar soluções interdisciplinares para problemáticas como a do dano psíquico advindo da violência psicológica.
Diante da análise feita, pôde-se perceber que as mulheres constituem a grande maioria das vítimas de violência de gênero, e que isto precisa ser denunciado e enfrentado de múltiplas formas, entre elas, com a penalização do agressor, ou seja, com a tipificação do dano psíquico advindo da violência psicológica como crime de lesão corporal. Enfatiza-se, portanto, que a justiça penal deve ser usada como último recurso, uma vez que não resolve o problema da vítima, mas possibilita olhar para o grave fenômeno da violência contra a mulher, não invisibilizando a agressão e nem o agressor, possibilitando responsabilizá-lo e penalizá-lo.
Salienta-se, por fim, que, mesmo vivendo em situação de violência, as mulheres continuam sendo sujeitos capazes de resistir e de agir, e, é isso que justifica, o investimento no seu empoderamento e na sua emancipação. Destarte, recomenda-se que sejam realizadas mais pesquisas no âmbito do dano psíquico advindo da violência psicológica, a fim de compreender as suas complexidades biopsicossociaisculturais e trazer para visibilidade algo tão prejudicial à vida humana.
Referências
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RAMALHO, Renan. Bolsonaro vira réu por falar que Maria do Rosário não merece ser estuprada: deputado disse que ela é ‘feia’; ele responderá por apologia ao crime e injúria. defesa nega incitação de outros a estuprar; relator vê desprezo por vítimas. Deputado disse que ela é ‘feia’; ele responderá por apologia ao crime e injúria. Defesa nega incitação de outros a estuprar; relator vê desprezo por vítimas. 2016. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/06/bolsonaro-vira-reu-por-falar-que-maria-do-rosario-nao-merece-ser-estuprada.html. Acesso em: 03 ago. 2020.
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TJ-MA – ACR: 167822008 MA, Relator: LOURIVAL DE JESUS SEREJO SOUSA, Data de Julgamento: 02/03/2009, SAO JOSE DE RIBAMAR.
[1] Fala do Presidente da República do Brasil com mandato vigente de 2019 a 2022 durante discussão com a deputada federal Maria do Rosário em 2014 (RAMALHO, 2016).
[2] Fala do Presidente da República do Brasil com mandato vigente de 2019 a 2022 durante palestra no Rio de Janeiro em abril de 2017 (FOLHA DE SÃO PAULO, 2020).
[3] Fala do Presidente da República do Brasil com mandato vigente de 2019 a 2022 durante café da manhã com jornalistas em abril de 2019 (FOHA DE SÃO PAULO, 2020).
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