Guilherme Henrique Wolf[i]
Alfredo Marcos do Prado[ii]
RESUMO: O presente artigo aborda o tratamento jurídico do paciente com câncer, no que concerne as demandas que compreendam o fornecimento de medicamentos de alto custo indicados para a realização do tratamento e nas dificuldades para adquiri-los, pois que esses medicamentos acabam sendo negados ao paciente, em face de restrições operacionais e orçamentárias, adentrando no estudo do fenômeno conceituado como Judicialização da saúde, que nada mais é que o expressivo número de demandas levadas ao judiciário em que se reivindica a concessão pelo Estado de determinada prestação ligada à garantia do direito fundamental à saúde. Busca-se demonstrar a essencialidade da intervenção judicial frente à omissão Estatal, sendo a única forma de garantir a plena efetivação dos direitos fundamentais à saúde e à vida inseridos na Constituição Federal de 1988, tornando-se necessária a ação do poder público para combater a iniquidade no acesso, na formulação de políticas de assistência farmacêutica, na distribuição gratuita de medicamentos e na ampliação do acesso à população a estes tratamentos. Desde que seguidos critérios mínimos, o fornecimento judicial de medicamentos de alto custo para câncer revela-se plenamente viável.
Palavras-Chave: Câncer. Medicamento. Saúde. Judiciliazação.
ABSTRACT: This article entails the legal treatment of cancer patients, regarding the demands that include the supply of high-cost drugs indicated for the treatment and the difficulties to acquire them, so that these drugs end up being denied to the patients due to operating and budgetary constraints, diving into the study of the phenomenon conceptualized as Judicialization of health, which is nothing more than the expressive number of demands brought to the judiciary claiming the grant of a certain benefit linked to the guarantee of the fundamental right to health . The aim is to demonstrate the essentiality of judicial intervention regarding State omission, being the only way to guarantee the full realization of the fundamental rights to health and life inserted in the Federal Constitution of 1988, making it necessary the action of the public power to combat the inequity in access, the formulation pharmaceutical care policies, the free distribution of medicines and the expansion of population access to these treatments.From the following minimum requirements, or the provision of high cost cancer medicines is fully viable.
Keywords: Cancer. Medicines. Health. Judicialization.
Sumário: Introdução. 1. Do Direito Constitucional à Saúde. 1.1 Da Dignidade da Pessoa Humana. 1.2 Neoplasia Maligna (Câncer). 1.3 Sistema Único de Saúde (SUS). 1.4 Responsabilidade Solidária entre os Entes Federativos. 1.5 Direito à Assistência Farmacêutica. 2.Negativas Utilizadas pelos Entes Públicos no Fornecimento de Medicamentos. 2.1 Ausência do Fármaco Pleiteado nos Protocolos de Distribuição Gratuita de Medicamentos. 2.2 Reserva do Possível. 3. Da Judicialização da Saúde. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente estudo aborda os casos que envolvam o fornecimento judicial de medicamentos de alto custo destinados ao tratamento de pacientes com câncer, abordando os paradigmas que existem no ordenamento jurídico brasileiro, leis e doutrinas, argumentando acerca da importância da responsabilidade e eficácia da Constituição Federal perante os direitos fundamentais inerentes à saúde, na qual o Estado tem o dever de garanti-la, uma vez que ela é direito de todos, garantida mediante políticas sociais e econômicas.
O desenvolvimento da pesquisa aborda o conceito da neoplasia maligna (câncer), o registro de políticas habitacionais como o Sistema Único de Saúde (SUS), até peculiaridades concernentes à dignidade da pessoa humana, a fim de obter o acesso aos medicamentos, para que possa passar por um tratamento digno e adequado. Competindo ao poder público regular o Sistema Único de Saúde, formular e implantar ações que possibilitem o acesso da população aos serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde.
A partir dos apontamentos históricos e jurídicos, se prosseguirá com um entendimento sobre a responsabilidade solidária entre os Entes Federativos analisando a política brasileira de medicamentos, elementos atinentes à assistência farmacêutica no país e a ampliação do acesso da população a medicamentos de alto custo.
Na área de assistência farmacêutica que o sistema de saúde brasileiro ainda se depara com infinitas falhas e dificuldades, aqui se apresentam os problemas mais evidentes, gerados pelas grandes desigualdades sociais e econômicas ainda existentes no país e que apontam restrições ao pleno acesso a medicamentos. A assistência farmacêutica é parte fundamental nos sistemas de importância à saúde, pois em muitos casos a recuperação ou diminuição dos riscos da doença do paciente somente é capaz a partir da utilização de algum medicamento. Logo o Estado deve orientar-se para o atendimento da demanda daqueles medicamentos considerados prioritários e cruciais do ponto de vista de saúde pública, pois não basta apenas declarar que todos têm direito à saúde, é fundamental à eficácia destes direitos pelos órgãos estatais competentes. Entretanto, apesar de ser garantida constitucionalmente, a saúde enfrenta um grave problema que se refere à efetividade das prestações positivas pelo Estado, em diversas situações esses medicamentos acabam sendo negados ao paciente, dando ensejo à interposição das infinitas ações judiciais em que se pleiteiam esses medicamentos.
Busca-se ratificar a necessidade e a importância da intervenção judicial frente à omissão Estatal, sendo a única forma de garantir a plena realização dos direitos fundamentais à saúde e à vida inseridos na Constituição Federal, visto que o direito consagrado constitucionalmente só será efetivamente implementado se o paciente obtiver o acesso ao medicamento pleiteado.
1 DO DIREITO CONSTITUCIONAL À SAÚDE
De longa data a preocupação com a saúde, tendo o conceito de saúde sofrido diversas alterações ao longo dos anos, a partir de diversas visões de mundo, numa construção social e histórica. Atualmente, o conceito adotado é o da Organização Mundial da Saúde que, no preâmbulo de sua Constituição assim a define: “Saúde é o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença”.
O Brasil ao aderir o conceito de saúde da Organização Mundial da Saúde busca o completo bem-estar, físico, mental e social, pois o art. 3º da lei 8.080/90 – Lei Orgânica da Saúde estabelece que:
Art. 3º Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo a saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais. Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social (BRASIL, 1990).
O atual conceito ampliado de saúde desloca-se do campo biológico, ele precisa ser pensado não apenas do ponto de vista da doença, mas dos aspectos econômicos, políticos e sociais, da qualidade de vida e das necessidades básicas do ser humano, seus valores, direitos, deveres do meio em que convive. A saúde é o direito individual de todo cidadão de ter completo bem estar físico e mental. Para isso, é necessário um modelo de promoção e prevenção da saúde que englobe os avanços tecnológicos, dando condições de igualdade às pessoas no intuito de elevar a sua expectativa de vida.
Diante disso, a Constituição Federal de 1988 trouxe vários artigos que estabelecem ser a saúde um direito de todos a ser garantido pelo Estado. Os artigos 5º e 6º fazem referência à saúde como um direito social e pessoal indispensável, indelegável e irrenunciável. Deve ser garantida a todos, por meio de políticas públicas através do acesso universal e igualitário a toda população.
Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
Art. 6°- São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (BRASIL, 1988)
Ademais, em seu art. 23, II, a Constituição Federal atribui competência comum à União, Estados, Distrito Federal e Municípios no que se refere aos cuidados com a saúde, devendo, portanto, os três entes políticos cooperarem pela satisfação plena do direito fundamental à saúde previsto na CF.
Concomitante, os artigos 196 a 200 da Constituição Federal tratam da matéria, ao dispor que a saúde é um dever do Estado, ser garantida a todos mediante políticas públicas voltadas ao acesso universal e de qualidade, positivando o direito à saúde no Brasil em seu texto constitucional, colocando-a no Título Direito Social, no qual destaca, o artigo 196:
Art. 196º – A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e o acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (BRASIL, 1988)
A promoção da saúde consiste na responsabilidade que deve haver por parte do Estado quanto à qualidade de vida da população, já a proteção analisa as políticas de redução de risco que devem ser levadas a cabo pelo Estado, incluindo-se a obrigação fiscalizadora com o intuito de prevenir doenças. Por fim, trata-se o dispositivo supramencionado da recuperação da saúde, sendo a garantia constitucional da necessária interferência estatal com objetivo de recuperar a saúde da pessoa enferma, correspondendo a fundamental busca da cura a ser garantida pelo poder público.
À medida que se garante constitucionalmente determinados direitos, existe o reconhecimento do dever do Estado na efetivação de tais garantias e simultaneamente a faculdade do indivíduo de exigir imediatamente as prestações que constituem seu direito. Portanto, é dever do Estado garantir o direito à saúde, inclusive por meio de ações positivas que assegurem à pessoa o pleno gozo do direito fundamental.
No entanto, a realidade é completamente diferente no que se vê no dia a dia, nos hospitais públicos, há um descaso com a saúde pública, segundo a estimativa da pesquisa realizada pela Comissão de Saúde Global de Alta Qualidade e publicada pelo jornal científico The Lancet, no Brasil, 153 mil mortes por ano são causadas pelo atendimento de má qualidade e 51 mil por falta de acesso a atendimento de saúde (G1, 2018), decorrente da falta de equipamentos, falta de profissionais qualificados e hospitais em péssimas condições para garantir a assistência e o atendimento do paciente, ferindo o princípio da dignidade da pessoa humana.
O princípio da dignidade da pessoa humana está presente na sociedade contemporânea e inserido na Constituição Federal de 1988, no art. 1º, III, no título I “Dos princípios fundamentais”, como fundamento do Estado Democrático de Direito da República Federativa do Brasil, ao lado da soberania, cidadania, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e pluralismo político.
Destaca-se a importância do direito à saúde para a concretização do direito a uma vida digna. Nelson Camatta Moreira esclarece que:
“(…) ao afirmar, no texto constitucional, a dignidade humana, o constituinte buscou colocar o ser humano como credor de ‘bens’ necessários para que ele alcance uma vida digna como pessoa, isto é, como ser concreto, individual, racional e social. A busca desses ‘bens’ estabelece deveres de justiça para o Estado, para a sociedade e para a própria pessoa.” (MOREIRA, 2010, p.187)
Numa conceituação jurídica Alexandre de Moraes (2015), por sua vez, afirma que a dignidade da pessoa humana é um princípio que “concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas”. Corroborando com o entendimento de Moraes, Ingo Wolfgang Sarlet também, propõe uma conceituação jurídica:
“Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos. (SARLET, 2001, p. 60)”
Portanto, dignidade da pessoa humana pode ser compreendida como qualidade daquele que é digno, merecedor de respeito e consideração. Não podendo ser aferida em valor monetário, nem substituída por qualquer outra coisa. Contudo, Sarlet (2001) alega que, “é bem possível visualizar inúmeras situações na qual a dignidade da pessoa humana restou absolutamente violada”, entre elas o direito a saúde, qual será visto ao falar a respeito do tratamento jurídico dos direitos dos portadores de neoplasia maligna.
O câncer é uma doença que pode ser desenvolvida em qualquer cidadão, de qualquer classe social, sendo hoje uma epidemia que preocupa o mundo pela sua agressividade ao ser humano. Atualmente, câncer é o nome geral dado a um conjunto de mais de 100 doenças, que têm em comum o crescimento desordenado de células que tendem a invadir tecidos e órgãos vizinhos.
O câncer pode surgir em qualquer parte do corpo, alguns órgãos são mais afetados do que outros e cada órgão, pode ser acometido por tipos diferenciados de tumor, mais ou menos agressivos. Conhecida cientificamente como neoplasia maligna é uma das doenças existentes mais complexas, pois ela se desenvolve em várias partes do corpo, como um tumor prejudicial que muda completamente a vida do ser humano.
De acordo com o Instituto Nacional de Câncer – INCA, o câncer é a doença que mais mata no mundo, perdendo apenas para as doenças cardiovasculares. Segundo dados publicados pelo International Agency for Research on Cancer (IARC, 2018), subordinado à Organização Mundial de Saúde (OMS) o câncer continua a progredir de maneira alarmante no mundo, com 18,1 milhões de novos casos e 9,6 milhões de óbitos esperados para 2018. O que as entidades alertam, é que serão os países emergentes que mais registrarão o aumento de casos, com um salto de 62% até 2040 e um total de 10 milhões de novos casos.
Ainda, segundo dados do INCA (2018), estima-se para o Brasil, biênio 2018-2019, a ocorrência de 600 mil casos novos de câncer, para cada ano. A distribuição da incidência por Região geográfica mostra que as Regiões Sul e Sudeste concentram 70% da ocorrência de casos novos, isso ocorre pela má assistência à saúde no país, mesmo sendo um direito assegurado pela Constituição Federal, o que mais falta são os deveres e o comprometimento dos órgãos públicos frente a população quando o assunto é saúde. Diante disso, é crucial para o paciente estar instruído sobre seus direitos enunciados por leis, pois vários dos pacientes não buscam o tratamento devido à falta de condições financeiras e de informações precisas relacionadas ao tratamento da doença.
Responsabilidade de o Estado garantir por meio de políticas públicas o direito ao acesso à saúde, através da Constituição e das referidas leis foram estabelecidas as bases jurídicas para a proteção do direito à saúde, sendo criado o Sistema Único de Saúde (SUS), um sistema público constituído para garantir a saúde a todas as pessoas, que visa à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Definido pelo Ministério da Saúde:
“O Sistema Único de Saúde (SUS) é um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo, abrangendo desde o simples atendimento para avaliação da pressão arterial, por meio da Atenção Primária, até o transplante de órgãos, garantindo acesso integral, universal e gratuito para toda a população do país. Com a sua criação, o SUS proporcionou o acesso universal ao sistema público de saúde, sem discriminação. A atenção integral à saúde, e não somente aos cuidados assistenciais, passou a ser um direito de todos os brasileiros, desde a gestação e por toda a vida, com foco na saúde com qualidade de vida, visando a prevenção e a promoção da saúde.”
Assim sendo, com o reconhecimento do direito subjetivo à saúde e com a implementação do Sistema Único de Saúde – SUS, o Estado passou ter o dever de garantir o acesso universal as ações e serviços de saúde. Com o SUS todos os brasileiros, e até mesmo estrangeiros em território nacional, têm acesso a tratamento de saúde gratuito, bastando ir ao um posto de saúde. Em que pese às dificuldades em garantir para todos esse atendimento, diferentemente de outros países e do próprio Brasil, antes de 1988, o SUS não atende somente as pessoas capazes de pagar ou que estejam sob a égide da previdência social.
Para dar uma maior ordenação funcional ao supracitado sistema, a Constituição Federal de 1988 e as normas do SUS previram um modelo de saúde descentralizado, com atribuições divididas entre os entes federados, sendo realizada de forma nacionalmente coordenada através de uma rede regionalizada e hierarquizada qual pertencem a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
1.4 RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA ENTRE OS ENTES FEDERATIVOS
A coletivização da questão da saúde abre espaço para a concretização de uma providência de extrema relevância no trato da questão: o debate entre os Poderes. De acordo com a Constituição Federal e seu Art. 23. “É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (…) II – Cuidar da saúde e a assistência Pública da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência.” (BRASIL, 1988).
Verifica-se, portanto, que se encontra em curso, na Administração Pública, a construção de um modelo de participação de cada uma das três entidades federadas no tema da promoção e execução de políticas públicas na esfera da assistência farmacêutica (CIARLINI, 2016). Ressalta-se que o Supremo Tribunal Federal, por maioria, reafirmou a jurisprudência dominante sobre a matéria, no sentido de que os entes federados têm responsabilidade solidária na assistência à saúde:
“DIREITO À SAÚDE. TRATAMENTO MÉDICO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERADOS. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. REAFIRMAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. O tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou conjuntamente.” (STF – RE 855.178-SE; Relator Ministro Luiz Fux; Data do julgamento 05/03/2015; Data da publicação 16/03/2015). (grifo nosso)
Deste modo, sendo o SUS composto pela União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, formando uma rede regionalizada e hierarquizada, com direção única em cada esfera de governo, reconhece-se, em função da solidariedade, a legitimidade de quaisquer deles para figurar no polo passivo da demanda, individual ou coletivamente.
A Assistência Farmacêutica teve início em 1971 com a instituição da Central de Medicamentos – CEME, esta tinha por objetivo o fornecimento de medicamentos à população sem condições econômicas para adquiri-los, portanto, a assistência farmacêutica constitui parte fundamental dos serviços de atenção à saúde do cidadão, o plano terapêutico para a recuperação do paciente ou para a redução dos riscos da doença e agravos somente é possível a partir da utilização de algum tipo de medicamento, em tais circunstâncias o medicamento é elemento essencial para efetividade do processo de importância à saúde.
“Além do mais, a assistência farmacêutica envolve a pesquisa, o desenvolvimento e a produção de medicamentos e insumos, bem como a sua seleção, programação, aquisição, distribuição, dispensação, garantia da qualidade dos produtos e serviços, acompanhamento e avaliação de sua utilização, na perspectiva de obtenção de resultados concretos e de melhoria da qualidade de vida da população.” (CONASS, 2009).
O conjunto de políticas públicas elaboradas para atender esse objetivo visa à racionalização da prestação coletiva do Estado com base nas principais necessidades da população. Uma dessas políticas é a Política Nacional de Medicamentos – PNM, que fortaleceu os princípios e as diretrizes do SUS, objetivando ainda a garantia da eficácia e segurança no uso racional de medicamentos e o acesso da população aos medicamentos essenciais, a fim de conseguir atingir o maior quadro de usuários, da melhor forma possível.
Entretanto, surge o conflito quando o medicamento prescrito pelo profissional médico que acompanha o paciente não faz parte das Listas de Assistência Farmacêutica do Ministério da Saúde, podendo, em alguns casos o mesmo ser o único capaz de controlar a doença que lhe acomete. Diante de tal situação, Ramiro Nobrega comenta a relação entre medicamento e saúde, sem acesso ao remédio adequado para a enfermidade, por falta de disponibilidade ou incapacidade financeira, significa ausência de saúde.
“Saúde e medicamentos estão estreitamente ligados em nossa sociedade. É difícil pensar a saúde ou a doença sem pensar em medicamentos. Quando vamos ao médico, esperamos receber uma receita ao final da consulta. E desejamos comprar aquele remédio que acreditamos ser a solução para os nossos problemas. Mas antes de efetuar a compra, duas coisas são necessárias: o medicamento deve estar disponível e precisamos de dinheiro para comprá-lo. Os avanços tecnológicos permitiram o desenvolvimento de medicamentos para quase todos os males, principalmente para aqueles mais “rentáveis” para a indústria farmacêutica. Doenças antes mortais já possuem cura ou tratamento adequado. Câncer, AIDS, diabetes, impotência, disfunções hormonais, etc., não há mal para o qual não exista uma pílula que combata seus efeitos. Esse fantástico desenvolvimento traz muitas soluções, mas cria inúmeras necessidades. Encontrar o medicamento desejado é fácil, mas adquiri-lo tornou se um problema.” (NOBREGA, 2009, p.307)
Demonstrado o paciente ser portador de uma doença e necessitar de um determinado medicamento, é apropriado, sensato que o Estado o forneça independente de questões políticas, orçamentárias ou entraves burocráticos. Corrobora com esse pensamento as palavras de Maria Inês Dolci que deixa clara a obrigação estatal de garantir medicamento a todos:
“(…) a responsabilidade essencial do acesso ao medicamento é indelegável e inerente ao Estado e isso é inquestionável. A formulação de políticas farmacêuticas nacionais, a regulamentação farmacêutica, o estabelecimento de normas para diversas profissões da área da saúde, a garantia de acesso aos medicamentos essenciais e a promoção do uso racional de medicamentos é papel do Estado. De acordo com a Constituição Brasileira, os medicamentos essenciais deveriam ser garantidos para todos.” (DOLCI, 2005, p. 57)
Portanto, no momento em que negado o acesso surge a atuação do Judiciário como forma de proteger o direito social à assistência farmacêutica, submetendo o Estado a fornecer o medicamento pleiteado pelo paciente.
O crescente número de ações judiciais propostas em face do Poder Público com o fim de garantir o fornecimento de medicamentos por meio do SUS tem sido motivo de preocupação para os gestores da saúde em todos os níveis federativos e vem sendo chamada como Judicialização da saúde, reflexo claro da falta de atendimento adequado aos brasileiros, que se tenta implementar, por meio do Poder Judiciário, políticas públicas que hoje são deficitárias em nosso país.
2.1 Ausência do Fármaco Pleiteado nos Protocolos de Distribuição Gratuita de Medicamentos
O fornecimento de medicamentos no Brasil é norteado pela elaboração de listas pelo poder público, onde figuram os fármacos disponibilizados à população. Frente à necessária utilização de um medicamento que não integra em nenhuma das listagens oficiais, a pessoa que não dispõe de recursos financeiro para adquirir o fármaco se vê completamente perdida, vez que ao recorrer à Secretaria de Saúde para solicitar a medicação prescrita se depara com a negativa baseada exclusivamente na afirmação de que o medicamento não consta nas listas do SUS, fato que impossibilitaria o seu fornecimento.
As listas de medicamentos, especialmente a Relação Nacional de Medicamentos – RENAME foram elaboradas com o intuito de nortear a atuação estatal no que tange à dispensação de fármacos, jamais tendo sido criada com o intuito de engessar a atuação estatal e prejudicar o cidadão que necessita de determinado medicamento. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001).
A RENAME contempla as drogas consideradas essenciais, sendo definidas pela Organização Mundial de Saúde como aqueles que satisfazem as necessidades prioritárias de cuidado de saúde da população, sendo os medicamentos mais simples e de menor custo. (OMS, 2011). Cumpre destacar que embora seja demasiadamente ampla, a RENAME não é a lista de todos os medicamentos financiados e fornecidos pelo setor público, porém, a aquisição e distribuição dos denominados medicamentos excepcionais, via de regra, fica a cargo da União em parceria com os Estados e Distrito Federal em razão do maior custo destes medicamentos.
A listagem de medicamentos a serem distribuídos pelo Estado Brasileiro, demanda de constantes atualizações eficientes a assistir o avanço da ciência e possibilitar a real eficiência da prestação farmacêutica que passa por constante evolução. De fato, embora ocorram atualizações, é evidente que sempre haverá fármacos cuja eficiência é comprovada e muitas vezes a única capaz de tratar determinada enfermidade no estado em que se encontra que não constarão nas listas oficiais do SUS, dando ensejo à interposição das muitas ações judiciais em que se pleiteiam medicamentos.
Passando da normatização à prática, observa-se nas Secretarias Municipais de Saúde que as listas de medicamentos acabam por engessar a atuação dos agentes, significando um obstáculo para a concessão do medicamento diretamente pela via administrativa, pois, o parecer adotado pelo poder público se traduz na recusa do medicamento caso seja constatado que o fármaco não consta em nenhuma das listas oficiais, não há bom senso e nem sequer a mínima análise de critérios que poderiam levar ao fornecimento, tornando inevitável o ingresso em juízo.
Outra negativa utilizada pelos Entes Públicos no fornecimento de medicamentos é relacionada aos limites orçamentários do Estado, trata-se do princípio da reserva do possível, que consiste na garantia dos direitos já previstos no ordenamento jurídico, desde que existentes os recursos públicos correlatos. Esse princípio se originou na Alemanha, nos anos 1970, partir de um julgamento levado à Corte Constitucional ao tratar do acesso ao ensino universitário público pleiteado por um estudante daquele país quando existia apenas universidades públicas na Alemanha. A decisão conclui que existem “limitações fáticas para o atendimento de todas as demandas de acesso a um direito” (JACOB, 2013).
A teoria da reserva do possível é definida como “limite ao poder do Estado de concretizar efetivamente direitos fundamentais a prestação” (SARLET, 2010), uma vez que o Estado seja acionado de forma administrativa ou judicial, terá que custear com determinados direitos previsto em sua Carta Maior, tais como o direito à saúde, mas, sempre respeitando a sua reserva financeira, vez que o Estado só será responsabilizado por suas obrigações quando há existência de recursos públicos disponíveis.
Os gastos governamentais devem ser guiados e estarem previstos em três instrumentos normativos, a saber: o Plano Plurianual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei Orçamentária Anual (artigos 165 a 169 da CF). Em resumo, esses três instrumentos são responsáveis pela segurança jurídica e pela legalidade dos gastos públicos, a função orçamentária é o instrumento fundamental para a realização de políticas públicas. É sobre esse princípio normativo orçamentário que se define o argumento da reserva do possível quando o Estado é demandado a fazer com que se efetue o direto à saúde.
No que tange ao fornecimento de medicamentos de alto custo, a reserva do possível implica na justificativa de que os recursos financeiros não são suficientes para atender todos os pedidos propostos ao poder público, sendo obrigado a fazer escolhas entre os casos mais necessários. Ademais, alega-se ainda que o fornecimento de um medicamento de alto custo a determinado paciente comprometeria nos serviços básicos de saúde a serem prestados à população.
A Judicialização da saúde consiste no fenômeno de mudança de poder para o Judiciário aquilo que cabia, inicialmente, à análise Administrativa, levadas ao exame jurisdicional para que haja uma decisão definitiva. Esse fenômeno vem crescendo consideravelmente no Brasil com inúmeras ações movidas contra o Estado pleiteando medicamentos, impulsionado principalmente pela ineficiência dos poderes executivo e legislativo.
Um relatório sobre a Judicialização na saúde aponta crescimento de aproximadamente 130% nas demandas de primeira instância entre 2008 e 2017 (INCA, 2017). Esse crescente número de ações judiciais deixa manifesto que as políticas públicas não atendem completamente as necessidades da população, deixando pretexto à inevitável atuação judicial.
Ao tratar-se da negativa baseada na afirmação de que o medicamento não consta em nenhuma das listas oficiais de dispensa de fármacos à população, essa justificativa de modo algum deve ser acolhida, por ser desprovida de qualquer embasamento lógico. O fato de o medicamento não estar integrado ao SUS torna seu fornecimento uma medida excepcional, que deverá seguir os seguintes requisitos: necessidade do medicamento, hipossuficiência do requerente e aprovação do medicamento na ANVISA. A seguir, segue julgado do STJ (REsp 1682973), para que se possa ter uma referência do posicionamento das cortes superiores sobre o tema.
“Mister destacar que eles se encontram todos configurados, constituindo, pois, obrigação do poder público o fornecimento do aludido medicamento, mesmo que não incorporado em atos normativos do SUS”. (grifo nosso)
Em outro julgado (REsp 1657156/RJ Tema 106), o Min. Benedito Gonçalves já havia se pronunciado de forma semelhante, como se pode ler abaixo:
“A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos: (i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; (ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; (iii) existência de registro na ANVISA do medicamento.” (Superior Tribunal de Justiça – REsp 1657156 RJ 2017/0025629-7, Relator: Ministro Benedito Gonçalves. Data de julgamento: 25/04/2018, S1 – Primeira Seção. Data de Publicação: DJe 04/05/2018.). (grifo nosso)
Importante salientar que este julgado foi considerado um importante precedente para que o poder judiciário, aqui considerado na figura do STF, em ações que versam sobre o fornecimento de medicamentos. Portanto, entende-se que é obrigação do ente público o fornecimento de medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS, desde que presentes os três requisitos supracitados.
Já no que tange a negativa dos entes públicos sob a justificativa do princípio da reserva do possível, a Administração Pública usualmente não comprova que o fornecimento do medicamento pleiteado é financeiramente inviável frente ao orçamento estatal. Devido a isto, atualmente tem sido exigida a comprovação da ausência de recursos, não bastando que o Estado meramente afirme tal fato, sem aferir aos autos as respectivas provas. Duciran Van Marsen Farena afirma, que:
“As alegações de negativa de efetivação de um direito social com base no argumento da reserva do possível devem ser sempre analisadas com desconfiança. Não basta simplesmente alegar que não há possibilidades financeiras de se cumprir a ordem judicial; é preciso demonstrá-la. O que não se pode a evocação da reserva do possível converta-se “em verdadeira razão de Estado econômica, num AI-5 econômico que opera, na verdade, como uma anti-Constituição, contra tufo o que a Carta consagrada em matéria de direitos sociais.” (FARENA, 1997, p.12)
Segue julgado do STJ (REsp 1762423), que caminha no mesmo sentido:
“Prevalece o entendimento segundo qual cabe ao ente público o ônus de provar o comprometimento orçamentário como razão para a não disponibilização de medicamento, não bastando para tanto a sua mera referência, mesmo quando adotada como premissa de defesa máxima da “reserva do possível”, sendo certo ainda que no juízo de ponderação entre o interesse financeiro do Estado e o direito à vida previsto na Constituição da República, este há de preponderar.” (Superior Tribunal de Justiça – Resp 1762423 CE 2018/0220698-0, Relator: Ministro Og Fernandes, Data de Publicação: DJ 24/09/2018).
Ademais, outro fator é o dever constitucional do Estado de proporcionar a todos as garantias fundamentais, concretizando-as. Sendo assim, não há como aceitar que a reserva do possível seja válida, pois como supramencionado, com fulcro no artigo 196º, “a saúde é direito de todos e dever do Estado (…)”, sendo configurado como o mais importante direito previsto no artigo 6º da Constituição Federal.
Portanto, não se deve falar em reserva do possível ao tratar-se do direito à saúde, tal alegação é ultrapassada e jamais pode ser considerada suficiente para justificar a omissão estatal no fornecimento de medicamentos de alto custo a pacientes com câncer, caso contrário, se fará indispensável à intervenção judicial, que se revela como única maneira de garantir os direitos fundamentais à saúde e à vida.
CONCLUSÃO
A tomada de decisão frente à demanda judicial de medicamentos é extremamente complexa, envolvendo fundamentos que vão além dos aspectos técnicos e administrativos. Dessa forma, concluiu-se com o presente estudo que, houve uma atenção do constituinte em planejar os gastos realizados pelo Poder Público, porém, é notório que isso não impede o magistrado de decidir que o Estado realize determinada despesa para fazer valer certo direito constitucional, até porque as normas em conflito (previsão orçamentária X direito fundamental) estariam no mesmo plano hierárquico, competindo ao juiz dar prevalência ao direito fundamental dada a sua magnitude axiológica em relação à regra orçamentária.
Observa-se que a jurisprudência vem entendendo que o direito fundamental a saúde jamais pode ser relativizado por motivos que em tese implicariam a desordem das finanças e do orçamento público. Isto é, a justificativa da reserva do possível não deve prosperar nos casos sobre fornecimento de medicamentos de alto custo porque se isso fosse possível provocaria em grave ofensa e violação à Constituição Federal que tem o dever de garantir e assegurar os direitos fundamentais.
Portanto, fica demonstrado que, o simples argumento de limitação orçamentária e a ausência do fármaco pleiteado nos protocolos de distribuição gratuita de medicamentos não são suficientes para limitar o acesso dos cidadãos ao direito à saúde garantido pela Constituição Federal.
Importante considerar normas e medidas a serem adotadas no estudo de casos concretos, que podem colaborar para a efetivação do direito à saúde, portanto, é fundamental a necessidade de uma análise detida, utilizando-se de critérios jurídicos objetivos, em cada caso colocado frente ao judiciário que compreenda o fornecimento de medicamentos de alto custo pelo Estado. Compelindo ao Poder Judiciário, no exercício da função jurisdicional, o dever de exercer os comandos constitucionais, garantindo o direito à saúde e o acesso aos medicamentos pleiteados.
REFERÊNCIAS
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[i]Acadêmico do Curso de Bacharel em Direito da Universidade do Contestado, Campus Mafra/SC, Brasil; e-mail: guihwolf@hotmail.com.
[ii] Professor de Direito da Universidade do Contestado, Mafra/SC, Brasil; Mestre em Planejamento e Governança Pública; Especialista em Direito; Bacharel em Direito; Papiloscopista Policial; prof.alfredoprado@hotmail.com.
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