Direito Civil

Uma análise principiológica dos contratos: com base na Constituição Federal 1988 e os seus princípios

Rogério Gomes de Mesquita Almeida – Advogado e Professor, Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), Mestrando em Direito Constitucional Econômico pela Universidade Alves Faria (UNIALFA), Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Casa Branca (FACAB), Especialista em Direito Contratual pela Faculdade Legale (FALEG), e-mail: rogerioalmeida.advocacia@gmail.com

Orientador Prof.: Joseval Martins Viana – professor e coordenador do núcleo de pós-graduação de Contratos, da Faculdade Legale.

Resumo: O presente estudo visa analisar a forma como o Direito Brasileiro recebeu a nova perspectiva instaurada pela Constituição Federal de 1988. Como método de pesquisa foi utilizado o hipotético-dedutivo, por meio de parâmetros constitucionais para interpretação da legislação vigente. Desta maneira, a dicotomia público-privado não atende mais os anseios do ordenamento jurídico brasileiro, tornando-se ultrapassada e inutilizável. Os princípios que regulam as relações privadas entre pessoas físicas ou jurídicas, em seus negócios jurídicos, emergem atualmente em outros elementos valorativos instituídos pela CF88. O Estado como Juiz, Administrador e Legislador, necessariamente, deve submissão as normas Constitucionais, aplicando os seus preceitos em todas as relações jurídicas reguladas por este. Neste contexto, com a valorização dos princípios constitucionais de carga valorativa humana, o Estado, passa a exercer controle nas relações jurídicas privadas, sempre que necessário, a fim de preservar os fundamentos Constitucionais. A justificativa para tanto, encontra-se, respaldo na própria Constituição Federal de 1988, com o objetivo de preservar da dignidade da pessoa humana e a justiça social.

Palavras-chave: Contratos. Princípios. Efeitos. Valores Constitucionais. Direito Civil.

 

Abstract: The current essay seeks to analyse the way Brazilian Law was approached by a new perspective established by the 1988 federal constitution. A Hypothetico-deductive model was used as the research method through constitucional parameters to interpret the current legislation. Consequently, the public and private law dichotomy, do not assist the Brazilian legal system’s wishes, becoming outdated and unable to use it.The principles that regulate private relationships between individuals or companies, in their legal businesses, currently emerge in other valuing elements instituted by CF88. The State as the Judge, Administrator and Legislator, necessarily, must submit to the Constitutional norms, applying its precepts in all legal relations regulated by it. In this context, with the acknowledgment of the amount of constitutional principles of human valuation, the State starts to exercise control over private legal relations, whenever it is necessary, in order to preserve the Constitutional basis. The justification for this it is found in the 1988 Federal Constitution, with the goal of preserving the dignity of the human being and social justice.

Keywords: Contracts. Principles. Effects. Constitutional Values. Civil right.

 

Sumário: Introdução 1. Introdução aos princípios clássicos dos contratos no direito civil, antes da promulgação da CRFB de 1988; (força vinculante dos contratos, autonomia da vontade, força obrigatória dos contratos “pacta sunt servanda”, e relatividade dos efeitos do contrato. 1.1 Interpretação neoconstitucionalista das relações contratuais privadas. 1.2 A valorização do comportamento das partes e a concretude das avenças; (falar dos princípios gerais do CC, e da boa-fé contratual, e a efetividade e finalidade das avenças). 1.3 Interpretação conforme a constituição nas relações privadas e publicização do direito privado. Conclusão. Referências.

 

INTRODUÇÃO

O Brasil é um pais de grandes proporções e portador de grandes riquezas naturais, sociais e econômicas. Além disso, possui o maior PIB da América Latina e lidera o bloco econômico do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL). Por tudo isso, existe um vasto arcabouço legal para regulação dos negócios jurídicos realizados no Brasil, especialmente, quanto aos de significante valor econômico.

O contrato sempre foi o principal instrumento utilizado para transferência de patrimônio de valor econômico, no entanto, por muito tempo foi norteado somente por princípios de proteção individual dos contratantes. No primeiro momento, este instrumento foi visto como carta obrigacional, criando Lei entre as partes. Em seguida, como estabilizador do direito, garantindo que seus efeitos somente vinculem as partes da avença. Apesar disso, as consequências da avença muitas vezes recaiam em terceiros não interessados, ou incidia de forma desproporcional a uma das partes.

Embora isso, o Poder Constituinte Originário, revolucionou e rompeu com os paradigmas do ordenamento constitucional anterior, promulgando a Constituição Federal de 1988, considerada Constituição Cidadã. A imersão do ordenamento jurídico infraconstitucional foi consequência necessária para promoção da justiça social, perquirida pelo Novo Ordenamento Constitucional.

A dignidade da pessoa humana foi instituída como vetor essencial para interpretação das normas infraconstitucionais. Os acordos não poderiam ser realizados em discordância com os parâmetros constitucionais, devendo estes atender a finalidade social atribuída pela norma. Além disso, a irradiação dos valores constitucionais permitiu outros vetores de interpretação no ordenamento privado, como, o princípio da boa-fé , da probidade e da função social dos contratos, esculpidos no Código Civil de 2002.

No mesmo sentido, os princípios passaram a ter força de Lei e respaldo na Constituição Federal, gerando efeitos sobre a norma infraconstitucional e a subordinando. Esse fenômeno é conhecido mundialmente como pós-positivismo, pois sucedeu o período positivista, e ocorreu a valorização dos princípios constitucionais em detrimento da norma fria, isto é, uma verdadeira Constitucionalização do Direito.

Simultaneamente, o Estado preocupado com diversas situações prejudiciais de direito, nas relações privadas, encampou parte das normas privadas, por meio da publicização do Direito Privado. Essas normas se tornaram públicas e passaram a ter efeito cogente. A intervenção Estatal nos negócios jurídicos, entre particulares, se fazia necessária para consecução dos mandamentos da justiça social e da dignidade da pessoa humana, visto que até então somente existia interesse nestas relações pelos contratantes, ou seja, o contrato quase sempre era desproporcional e danoso à parte menos favorecida.

O comportamento dos contratantes ganha relevância jurídica, a partir do novo paradigma constitucional, como pode ser observado em diferentes normas posteriores a Constituição, como, o Código Civil 2002, Código de Defesa do Consumidor, Estatuto do Idoso, e etc. Nessa perspectiva, o comportamento das pessoas que integram o negócio jurídico passam a serem valorados pelo Estado-Juiz, devendo as partes guardar por todo o contrato com probidade e boa-fé, sob pena de violação contratual.

Hodiernamente, como consequência lógica, a Constitucionalização do Direito promoveu mudanças radicais em todo o ordenamento jurídico, tais como, a interferência estatal nas relações privadas, o ativismo judiciário, e a fundamentação genérica de decretos e outros atos normativos.

 

  1. INTRODUÇÃO AOS PRINCÍPIOS CLÁSSICOS DOS CONTRATOS NO DIREITO CIVIL, ANTES DA PROMULGAÇÃO DA CRFB DE 1988

No Estado Brasileiro, os contratos são os principais instrumentos de transferência de riquezas e de obrigações livremente convencionadas. E por isso, destaca-se a importância deste, para a economia brasileira e o bom convívio social dos indivíduos, desta nação.

Entretanto, em momento anterior a Constituição Federal de 1988, os contratos não carregavam finalidades essenciais, tendo relevância somente entre os particulares interessados, pois eram desprovidos de interesse por parte do Estado, independentemente do tipo de convenção realizada e o fim destinado.

Por conta disso, afirma-se que naquele momento, este instrumento de direitos não transplantavam os interesses sociais contidos pela sociedade da época, caracterizado por um viés político liberal, em que o Estado se omitia em adotar medidas de controle nas relações negociais privadas.

O Contrato era uma zona fria, engessado por duras regras e em grande parte escritas pela parte mais forte, gerando obrigações desproporcionais entre as partes. Ao Estado-Juiz cabia exclusivamente verificar a validade das convenções e viabilizar o seu cumprimento, por meio do judiciário.

O Estado acobertava inúmeras discrepâncias nas convenções jurídicas realizadas entre particulares, no entanto, legalmente constituídas, porém, originando obrigações muitas vezes desumanas, desproporcionais e desarrazoadas, valendo-se da frieza do sistema estatal.

A interpretação da norma era aplicada de acordo com a literalidade do acordo, desprovido de essência, e conforme os ditames liberais.  Os pactos eram realizados entre “homens livres” e de maior idade, sendo considerado justo e perfeito, e apto para criar obrigações entre os interessados.

Em homenagem ao vinculo, especificamente em seus efeitos, repercute o brocardo pacta sunt servanda. A força obrigatória dos contratos era um princípio clássico do direito privado, intocável, e tinha por objetivo defender os interesses compromissados das partes, a qualquer custo.

No mesmo sentido, outro princípio clássico, que prevalecia era o da Autonomia da Vontade. Esse autorizava os indivíduos a pactuar livremente seus interesses privados, aliás, essa liberdade era tão grande que nem mesmo o Estado-Juiz poderia intervir nesses acordos, ficando o mesmo adstrito a dar cumprimento, quando provocado pela parte interessada.

Propositalmente, mais princípios continham arrimo no ordenamento jurídico anterior, especialmente no Código Civil de 1916, como o da a força vinculante dos contratos e a relatividade dos efeitos dos contratos. O primeiro, descreve a regra de que o contrato deve ser cumprido (pacta sunt servanda), já o segundo, repercute quanto aos efeitos do contrato, e a partes que serão atingidas pela convenção.

Inicialmente, o poder vinculante das obrigações restava condicionado as partes que convencionaram, em razão da intangibilidade contratual, apesar disso, com a evolução do ordenamento jurídico e a inovação trazida pelo Pós-Positivismo, implantado pela Constituição Federal de 1988, no Brasil, essas barreiras foram relativizadas pelo interesse da coletividade em situações especificas, como será estudado neste trabalho.

Por consequência disso, todo o ordenamento jurídico passou por relevantes mudanças em razão do fenômeno da Constitucionalização do Direito, abandonando as ideias do Código de Beviláqua, que refletia ideais liberalistas, do século XIX, extremamente conservador e individualista, conferindo poderes extraordinários aos indivíduos, que se encontravam na maioria das vezes em condições desiguais.

Com essa preocupação, o legislador pátrio, promoveu diversos instrumentos jurídicos hábeis para frear tais desigualdades, por exemplo, o Código Civil de 2002, atribuindo ao Estado-Juiz o poder de relativizar as convenções em situações excepcionais em busca de atingir a finalidade da convenção e dar cumprimentos aos preceitos da Constituição Federal de 1988, que trazia como primazia o princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

Em síntese, no decorrer dos anos o ordenamento jurídico brasileiro sofreu muitas mudanças a fim de personificar o direito, perquirindo os objetivos da Carta Suprema e estabelecendo limites para os interesses privados, sempre respeitando a primazia do interesse público ante ao privado, de modo que o espirito das convenções cumprissem de forma regular a finalidade social em prol do bem de toda sociedade.

Por tudo isso, conclui-se, a necessidade de estudo do novo ordenamento constitucional, especialmente quanto a interpretação deste, nas relações públicas e privadas. Despindo-se de ideais meramente liberalistas, e reafirmando a liberdade dos indivíduos de contratar, com outros contornos, consoante as garantias e direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal.

 

1.1 INTERPRETAÇÃO NEOCONSTITUCIONALISTA DAS RELAÇÕES CONTRATUAIS PRIVADAS

O Neoconstitucionalismo representa uma nova perspectiva em relação ao constitucionalismo, influenciado pelo pós-positivismo, preocupa-se não só com as limitações ao poder político, mas também com a eficácia e a concretização dos direitos fundamentais. A Constituição Federal de 1988 é considerada parte deste movimento no Brasil, pois se funda nos ideais do constitucionalismo pós-moderno, tendo por característica a hierarquia entre normas formais e seus valores.

A Constituição assume a posição de centro do sistema jurídico, agindo com imperatividade, e subordinando as demais normas ao seu conteúdo principiológico (axiológico), irradiando esses valores para todo o ordenamento jurídico a fim de promover a concretização destes, de modo a garantir condições dignas aos indivíduos. De outro modo, a Constituição encontra o fim e si.

Neste contexto, o artigo 1º da Carta Humanista, expressa como fundamento da República Federativa do Brasil, em seu inciso III, a dignidade da pessoa humana. O indivíduo é o protagonista dessa nova história, sendo-lhe garantido diversos direitos, por intermédio de políticas públicas promovidas pelo Estado, com a finalidade de dar efetivo cumprimento aos direitos e garantias estabelecidos na Constituição.

Todo o cenário jurídico, sofreu necessariamente, a irradiação dos efeitos constitucionais, tendo por consequência a interferência Estatal em ramos que antes somente continham interesses privados, por meio do ativismo judicial, que aumentou o campo de aplicação dos direitos fundamentais para além das relações entre o indivíduo e Estado, mais, também, para as relações privadas entre particulares. Deste modo, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais é o fenômeno que autoriza o Estado-Juiz promover a aplicação dos direitos fundamentais assegurados na Constituição, nas relações entre partículas no âmbito privado, horizontalmente.

A Constituição atrai para si, maior parte das competências. O fenômeno da Constitucionalização do Direito Privado é constante, inserindo na codificação atual civilista, Código civil de 2002, um sistema de janelas abertas, coordenado por Miguel Reale, baseado na dignidade do homem e amparada em valores sociais. Deste modo, agora, as relações privadas encheram-se de conteúdo valorativo a ser analisado pelo magistrado em diferentes momentos, como na interpretação de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, bem como no controle constitucional difuso e concentrado da norma.

Neste contexto, a Professora Raquel Schoning (2012, pag. 141 e 142) “A Constituição Federal assume o papel de principal no ordenamento jurídico, derrocando, por hegemonia, o posto dantes conferido ao CCB que, não mais se traduz como um sistema completo e fechado, e sim, como um sistema que procura sua identidade e ordenação na Constituição Federal, coexistindo com os demais microssistemas…”. Assim, a Constituição Federal define o seu lugar ante as normas infraconstitucionais, irradiando os seus valores e coexistindo com as mesmas.

O ordenamento jurídico privado passa por mudanças significativas ao ser regulado tanto por suas Leis, quanto pelos preceitos constitucionais. Adaptando-se ao novo contexto jurídico sobreposto ao interesse privado, de modo a observar e obedecer aos comandos balizadores da nova Ordem Constitucional. Atribuindo finalidade social aos pactos realizados entre particulares, em comunhão com a solidariedade social e a livre iniciativa, a fim de promover a existência digna dos indivíduos, em um Estado Democrático de Direito.

Na prática isso quer dizer, que o indivíduo ao exercer a liberdade de contratar deverá atender aos fins sociais destinados a avença, sob pena de violar a liberdade concedida pelo poder constituinte em seu artigo 170 da Constituição Federal. Além de que, deve ser observado se os objetivos perquiridos no contrato não encontram óbices na legislação pertinente. Em caso de problemas, o poder judiciário poderá ser provocado para dirimir eventuais conflitos consoante aos ditames legais e constitucionais.

É importante ressaltar, que nos primórdios a razão era considerada o único objeto de estudo para as ciências jurídicas, que se baseava exclusivamente no fundamento normativo, aplicando o direito de forma fria e literal, independente da ideia de justiça da norma ou da sua proporcionalidade ante ao fato atribuído, desde que fosse regularmente criada, conforme processo legislativo especifico.

Muitos exemplos da forma positivista podem ser extraídos, como, a segunda grande guerra, onde homens aprovaram leis diminuindo e discriminando pessoas, por conteúdo ideológico, nacionalidade, cor da pele, identidade de gênero e orientação sexual. Promovendo na verdade, a coisificação da vida humana, por intermédio da obediência cega de determinado grupo político, em prol do avanço da nação.

Neste sentido, na Alemanha, Soldados foram cegados pelo conteúdo frio da norma, e por isso, proveram a execução de milhares de pessoas em defesa do ordenamento jurídico estatal. No entanto, essas normas foram perfeitamente constituídas, obedecendo o processo legislativo ordenado. Entretanto, essas condutas jamais poderiam ser patrocinadas, se analisadas com um viés humanitário, dotado de valor.

O positivismo tem como grande atrativo o fato de ser considerado um “método seguro”, por ser balizado por leis regularmente aprovadas em um processo legislativo legal, em consonância com a Constituição. Além disso, o estudo do direito como ciência sempre foi consequência de uma cultura racionalista, apegado ao texto legal, conforme apresenta Marcelo Travessos (2015, pag. 5):

No intuito de caracterizar o direito como ciência, que pressupõe objeto próprio de estudo, foram excluídas do âmbito de análise dos juristas todas as questões sociais, econômicas, políticas, filosóficas e morais. Seria objeto de estudo da ciência jurídica tão somente o direito positivo. Esta a ideia do positivismo jurídico. ”

O direito como ciência tinha como pressuposto estudar a própria norma jurídica em si, isto é, analisar a Lei isoladamente como fonte e objeto do estudo da ciência jurídica. Tal regulamentação era esvaziada de preceitos éticos, morais e políticos, o que permitiu o retrocesso e a promoção de grandes barbáries na história, como pode ser observado nos regimes fascista e nazista.

Após a segunda grande guerra, surge o movimento pós-positivista, superando os ideais positivistas e fazendo crítica a sua forma desprovida de conteúdo humano, que velava exclusivamente pela subsunção normativa e a obediência cega dos administrados. Os princípios constitucionais passam a adquirir força de norma, irradiando o seu conteúdo para todo o ordenamento jurídico, de cima para baixo.

 

1.2 A VALORIZAÇÃO DO COMPORTAMENTO DAS PARTES E A CONCRETUDE DAS AVENÇAS

O comportamento humano é o principal objeto de estudo das ciências jurídicas, tendo primazia no arcabouço jurídico estatal com a Constituição Federal, por meio dos direitos e garantias defendidos por esta, e o estabelecimento de normas programáticas a fim de alcançar os objetivos estabelecidos em seu escopo. Não obstante, as normas infraconstitucionais que desta derivam, possuem em seu conteúdo elementos de concretude para fiel execução de seus preceitos.

As garantias e direitos, individuais e coletivos, estão amparados nos diversos ramos do direito, todos com a finalidade de dar concretude e eficácia a norma constitucional. Neste sentido, destaca-se que o direito é uno e indivisível, se conecta umbilicalmente em todas as suas vertentes, podendo ser dividido a título de estudo, classicamente em direito de ordem pública ou privada.

De forma pedagógica, o Direito Civil, sub-ramo do Direito Privado, tem o objetivo de tratar das regras gerais sobre o convívio em sociedade, regulamentando genericamente o comportamento do indivíduo, interesses preponderantemente particulares, por intermédio de mecanismos menos invasivos e suficientes para a regulação e a efetivação dos bens jurídicos tutelados, a fim de promover o bem-estar social.

De outro modo, o Direito Penal, sub-ramo do Direito Público, visa proteger fragmentos do direito, somente aqueles bens jurídicos considerados extremamente relevantes, de forma subsidiária e por meio de sanções mais penosas ao indivíduo, retirando ou restringindo bens jurídicos, como a liberdade, restrições de direitos, multa e perdimento de bens e valores. Observa-se, que o interesse público, também é o bem-comum, porém o imperativo legal veda certas condutas do indivíduo, consideradas inadmissíveis pelo ordenamento jurídico.

Apesar disso, a dicotomia de Direito Público e Privado, não vai de encontro com o dinamismo do direito, estando em decadência, consoante ensinamento de Raquel Schoning (2012, pag. 140) “Evidenciadas as diferenciações, verifica-se que a clássica divisão do Direito em Público e Privado perdeu-se no tempo. Hodiernamente, tamanha é a interdisciplinaridade dos ramos jurídicos, que já não se pode mais efetivar uma distinção”. Nesta senda, entende-se que mesmo no interesse privado existe parcela de interesse público a ser tutelado pelo Estado, como, a intervenção na economia mediante regulamentação de contratos privados.

O interesse deste trabalho é esclarecer que o Direito Privado não pode ser considerado de forma isolada, e sem interferências do Direito Público, que por sua vez, dispõe sobre regras de comportamentos dos indivíduos e da maneira de contratar. Pelo qual pode ser percebido nas normas definidoras, e conceitos jurídicos indeterminados, como, a boa-fé, os bons costumes e a probidade, de modo que tais atos possam ser valorados pelo Estado-Juiz, no caso concreto.

Todas as condutas humanas classificadas e organizadas pelo Diploma Privado, possuem carga valorativa jurídica, pois gozam de proteção e meios de efetivação destes direitos, isto é, o direito de ação, com a pretensão da tutela perquirida levada ao Estado-Juiz, para que este promova a solução pacifica do conflito através de uma sentença. O conteúdo desta sentença é a resposta Estatal ante a problemática apresentada, com o reconhecimento ou não do direito pleiteado na ação judicial. Essa decisão pode ser declaratória ou constitutiva, no primeiro caso, declara a existência de uma relação jurídica, já no segundo caso, cria ou modifica uma relação jurídica.

Entretanto, em relação aos contratos realizados entre pessoas físicas e jurídicas nem sempre é interesse das partes ter suas avenças submetidas a tutela judicial, buscando meios alternativos de resolução de conflitos para dirimir eventuais dissensos ao longo do contrato. As cortes de arbitragem são reguladas pela Lei 9.307/1996, e estabelece em seu artigo 1º “As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.”. A ênfase está na vontade livre e consciente dos contratantes capazes, podendo dispor de direitos relativos ao patrimônio.

O direito de contratar e a forma de execução dos contratos é praticamente livre, desde que as partes estejam em pé de igualdade, contudo, orienta-se sempre pelas disposições constitucionais e legais cogentes, deste modo, o assentimento das partes cria obrigações, muitas vezes atípicas, desconhecidas do ordenamento jurídico. Uma espécie de “quimera” contratual, ou seja, um instrumento estranho composto por partes de diversos tipos de avenças existentes em um único copilado, com regras próprias e situações excepcionais do acordo.

O artigo 421, alterado pela Lei 13.874/2019, do Código Civil, expandiu a liberdade contratual acrescendo o parágrafo único, inovando “Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”. A Lei da Liberdade Econômica promoveu grandes mudanças no Diploma Privado, com o objetivo de estabelecer melhores condições para os contratantes. Assim, explica Nelson Rosenvald e Felipe Netto (2020, pag. 520):

“O objetivo da Lei n. 13.874/19, é reduzir a burocracia e, consequentemente, facilitar e promover os atos negociais privados no Brasil. A lei deve ser observada no âmbito das relações privadas, por isso o art. 1º, § 1º, expressamente, determina a aplica no âmbito do direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho no que for compatível, assim como na regulamentação do exercício de profissões, juntas comerciais, produção e consumo e proteção do meio ambiente. ”

O ordenamento privado recebeu de bom-grado as alterações realizadas pela Lei 13.874/2019, aumentando exponencialmente a validade da vontade das partes e a eficiência dos contratos, blindando o pacto de interferências externas, de modo que possibilita a regulamentação dos riscos oriundos do negócio jurídico no próprio instrumento contratual. No entanto, a função social do contrato continua a ser elemento essencial. A finalidade da avença não pode ser corrompida por interesses privados, tais quais, o enriquecimento sem causa e o uso prejudicial da liberdade de contratar em prejuízo a outros direitos disponíveis e indisponíveis.

Os limites da função social vão além do significado de uma avença entre particulares, diz respeito ao fim almejado do respectivo negócio jurídico, se esse encontra respaldo no ordenamento jurídico ou vedação de alguma norma cogente. Ademais, valoriza a conduta objetiva e subjetiva dos contratantes, de modo que ambas devem agir em conformidade dentro dos limites éticos-morais da sociedade. Os princípios da boa-fé objetiva e da probidade estão estampados no artigo 422 do Códex Privado, como, vetores de interpretação da Lei, consignados de forma consciente, pelo legislativo ao Estado-Juiz.

Nessa perspectiva, o sistema de janelas abertas, utilizado por Miguel Reale na coordenação do Código Civil Brasileiro de 2002, permite ao julgador ter maior autonomia em relação ao conhecimento do caso concreto, atribuindo ao magistrado a tarefa de apreciar cotidianamente os critérios axiológicos, como a política, cultura e os costumes, das partes envolvidas na demanda judicial. Os princípios como já dito, tem valor de norma e podem ser utilizados como fundamento legal de uma decisão judicial, desde que devidamente motivado pelo magistrado. Conforme expõe o professor Carlos Konder (2017, pag 41):

“A atividade interpretativa necessariamente envolve valores, o intérprete está sempre guiado por certos fins, objetivos, indicados pelo próprio direito, que devem ser buscados. Portanto, considerando que isso é inevitável, é preferível que o intérprete assuma e explicite esses fins, para que eles possam ser debatidos democraticamente, do que ocultá-los sob o manto de uma suposta neutralidade na atribuição de significado aos enunciados normativos. ”

A atividade judicante baseada em princípios não é livre e nem arbitrária pois encontra-se limites no ordenamento jurídico, de modo que ao apreciar o caso concreto deverá o juiz fundamentar sua decisão, para que possa ser objeto de controle por parte dos litigantes e do próprio judiciário. O legislador ao atribuir essa tarefa ao julgador não concedeu um “cheque em branco”, diferente disso, impôs um dever legal para que este julgue de acordo com critérios mais verossímeis ao caso concreto, analisando as reais intenções dos contratantes e do contrato.

Passamos a analisar os princípios contratuais da boa-fé objetiva, probidade e a função social, de modo que possamos extrair o conteúdo humano intrínseco em cada negócio jurídico a fim de realizar uma análise axiológica das convenções perante o sistema legal material civil.

A Boa-fé objetiva tem como característica nas relações contratuais, o dever de ambos os contratantes agir de acordo com o esperado pelo outro, com lealdade, essa conduta não pode estar apenas no imaginário (subjetivo) do indivíduo, deve ser exteriorizada por meio de atos capazes de dar cumprimento à obrigação contraída, incluídos os deveres anexos. Os deveres anexos devem ser compreendidos como obrigações acessórias de toda convenção, como, a informação adequada e a transparência.

Nesta toada, verifica-se diversas facetas deste princípio, tais quais: a) a constituição de mora por violação dos deveres anexos (Enunciado 24, da 1ª Jornada de Direito Civil), b) a possibilidade de aplicação do princípio da boa-fé nas fases, pré-contratual e pós-contratual (Enunciado 25, da 1ª Jornada de Direito Civil), c) a possibilidade de o magistrado modificar, suprimir, corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva (Enunciado 26, da 1ª Jornada de Direito Civil), d) o dever do magistrado ao interpretar cláusulas gerais de acordo com todo ordenamento jurídico e fatores metajurídicos (Enunciado 27, da 1ª Jornada de Direito Civil), dentre outras.

Os estudiosos do direito buscam incessantemente corrigir imperfeições e arbítrios na matéria principiológica, por meio dos Enunciados interpretativos visam pacificar determinadas situações. Ao longo dos anos o Conselho da Justiça Federal (CJF) em suas Jornadas de Direito Civil, composto por estudiosos do direito, editaram enunciados interpretativos para auxiliar os juristas na aplicação da Lei, contudo, esses entendimentos consolidados não vinculam o magistrado, servindo apenas de guia na interpretação dos dispositivos.

Apesar disso, alguns conteúdos inovadores dos enunciados do CJF, considerando o princípio da boa-fé, protagonista, ensejador de direitos, merecem menções nesta obra, como; a) a obrigação do credor de evitar o agravamento do próprio prejuízo (Enunciado 169, da 3ª Jornada de Direito Civil), b) a observação do princípio da boa-fé em todas as fases, inclusive em sua execução, de acordo com a natureza do contrato (Enunciado 170, da 3ª Jornada de Direito Civil). Os temas tratados nessas jornadas na maioria das vezes já são tendências na doutrina e na jurisprudência, tendo como principal objetivo atender o mandamento legal de uniformização dos julgados.

No mesmo sentido, não menos importante, destaca-se a teoria do adimplemento substancial (Enunciado 361, da 4ª Jornada de Direito Civil) onde os juristas chegaram ao entendimento que o contrato parcialmente cumprido, de forma substancial, não poderia ser rompido em desrespeito ao princípio da boa-fé, da função social e dos princípios gerais do direito. Além disso, a parte credora poderá exigir da parte devedora o cumprimento da obrigação pelos meios legais existentes. Por outro lado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso Especial 1.622.555, decidiu pela não aplicabilidade da teoria do adimplemento substancial nos contratos de alienação fiduciária.

Em continuação, o comportamento do indivíduo é balizado pela vedação do comportamento contraditório (venire contra factum proprium), em razão do princípio da confiança (Enunciado 362, da 4ª Jornada de Direito Civil), neste caso, o contratante não pode se beneficiar de fato pretérito causado por este, em prejuízo da outra parte, quebrando a confiança e a expectativa gerada pelo seu ato. Essa é a situação do locador que recebe as prestações de aluguel em dinheiro, de forma diferente da estabelecida no contrato, e posteriormente decide alegar a mora do inquilino pelo não cumprimento do estabelecido no contrato, especificamente na forma de pagamento.

Encerrando, em relação ao princípio da boa-fé, o Enunciado 546, da 6ª Jornada de Direito Civil do CJF, explica que nos contratos de seguro de responsabilidade civil deve ser aplicado o princípio da boa-fé e da probidade, de modo que os vícios ou defeitos considerados mínimos não afaste o direito à indenização e ao reembolso. De outro modo, a seguradora não poder alegar mero descumprimento contratual para afastar o dever de indenizar o contratante.

Em seguida, o princípio da Probidade tem origem nos princípios da Socialidade e da Eticidade, ambos norteadores do Código Civil. O “standard” comportamental do homem médio é a principal característica da probidade, ou seja, a idealização das condutas consideradas como corretas. Ao contrário, o indivíduo que destoa desse padrão de conduta é considerado improbo, pois rompe com o sistema pré-estabelecido no ordenamento jurídico.

Finalmente, a Função Social do contrato emerge com a finalidade de resgatar o senso de coletividade ao contrato, ao lado da boa-fé contratual, ambos relativizam as balizas clássicas e ampliam os efeitos preestabelecidos a fim de atender o interesse coletivo. Assim explica, Carlos Konder (2017, pag. 55):

“Afirma-se, assim, que a função social do contrato implica o condicionamento da tutela da liberdade de contratar a interesses da coletividade. Trata-se da proibição de contratos que repercutam negativamente sobre a comunidade e da conservação ou tratamento diferenciado de contratos que repercutam positivamente junto a sociedade. ”

Neste sentido, O Superior Tribunal de Justiça (STJ) nos Recursos Especiais nº 257.880/RJ e 294.057/DF, relativizou o princípio da relatividade dos efeitos do contrato, concedendo ao terceiro prejudicado a possibilidade de ingressar diretamente e solidariamente contra a seguradora e o contratante, conforme enunciado da Súmula 537 do STJ:

“Em ação de reparação de danos, a seguradora denunciada, se aceitar a denunciação ou contestar o pedido do autor, pode ser condenada, direta e solidariamente junto com o segurado, ao pagamento da indenização devida à vítima, nos limites contratados na apólice. ”

Trata-se da eficácia externa dos contratos, pois os indivíduos que compõem a avença não podem se beneficiar da intangibilidade contratual para causar danos alheios, devendo o causador do dano responder objetivamente pelos prejuízos causados em decorrência da execução do pacto.

Conforme descrito exaustivamente neste tópico, a valorização da conduta humana é uma realidade crescente nos tempos atuais em razão do contexto político nacional. O sistema capitalista adotado pelo Brasil tem como característica a não intervenção do Estado na economia, no entanto, essa liberdade não pode ser considerada absoluta devendo o Estado regular matérias imprescindíveis ao bem-estar comum, que ultrapassam os interesses privados e surtem efeitos para toda sociedade, devendo ser encampados pelo Estado, pelo fenômeno da Publicização do Direito Privado.

 

1.3 INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO NAS RELAÇÕES PRIVADAS E PUBLICIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO

O direito está em movimento e o seu dinamismo pode ser observado ao longo do tempo por diversas manifestações políticas e jurídicas, mas, no Brasil, por meio do rompimento da Constituição Federal de 1988, opondo-se aos preceitos constitucionais anteriores, e estabelecendo uma nova ordem política-jurídica, e por consequência, irradiando seus efeitos para todo o arcabouço jurídico infraconstitucional, pelo fenômeno da Constitucionalização do Direito.

Esse fenômeno incialmente pode ser percebido claramente perante o instituto da Recepção da norma infraconstitucional, que orienta que todos os dispositivos legais vigentes e que tenham compatibilidade material com a nova ordem, sejam recepcionados independente de sua forma, devendo para tanto ser compatibilizada no que couber com as diretrizes expostas na nova Carta Suprema. Outro aspecto interessante, é que as normas anteriores a nova Constituição não podem ser objeto de Controle Constitucional, pois uma vez identificada a incompatibilidade da norma anterior, entende-se que está não foi recepcionada.

A Constitucionalização do Direito pode ser entendida como a adequação normativa das Leis aos princípios Constitucionais, ou seja, uma verdadeira restruturação do ordenamento jurídico, alterando suas bases em respeito a novos valores descritos na Constituição Federal. Além disso, inexiste qualquer alteração no texto legal das normas recepcionadas, exceto a não aplicação da parte que não for compatível. Não obstante, a forma de interpretar os dispositivos legais sofreu um grande impacto, agora, deve ser observado os valores explícitos e implícitos da Carta Cidadã, em busca da dignidade da pessoa humana e a justiça social.

E por esse motivo, o sistema judiciário adota a técnica de interpretação conforme a Constituição, que nada mais é que a adequação das normas infraconstitucionais aos parâmetros constitucionais. Devendo o Supremo Tribunal Federal (STF) em caso de conflito na interpretação de normas frente a Constituição, dar a interpretação compatível de modo a zelar pelos valores constitucionais. No entanto, é importante dizer, que a Suprema Corte não pode inovar no ordenamento jurídico por meio desta técnica, sob pena de usurpar a função legislativa e violar o princípio da Separação dos Poderes.

De outra maneira, o fenômeno da Constitucionalização se encontra dentro do movimento Pós-Positivista, tendo como característica a elevação de princípios-valores em detrimento da norma, ocorrendo o movimento conhecido como Principialização do Direito. Neste movimento, existe o empoderamento dos princípios Constitucionais que são considerados fundamentos pela Carta Cidadã em seu art.1º, na respectiva ordem, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e o pluralismo político.

Assim, o Estado nas suas diversas formas de atuação deve respeito e obediência aos imperativos Constitucionais. Quando Legislador não pode editar leis contrárias aos valores da Constituição, quando Juiz não pode aplicar a Lei em desrespeito aos mandamentos Constitucionais, e quando Administrador não pode promover ou executar políticas contrárias aos princípios estabelecidos e aos objetivos da Constituição Federal.

É importante expor, que o Direito Privado demonstrava a necessidade de maior atenção por parte do Estado, uma vez que as relações privadas autorreguláveis apresentavam desigualdades expressivas, entre os indivíduos, pois a política de regulação livre da economia prejudicava os desprivilegiados, criando situações anômalas, desarrazoadas e desproporcionais. Além de que, a ausência de regulamentação por parte do Estado das relações privadas, permitia que os indivíduos mal-intencionados burlassem o sistema a fim de receber vantagens indevidas através da Lei.

De forma enérgica, o Estado através de mecanismos legislativos interferiu na economia e, consequentemente, buscou incorporar matérias que antes só interessavam ao Direito Privado, migrando-as para a proteção do Direito Público, por meio da Publicização do Direito Privado, conforme explica Raquel Schoning (2012, pag. 139):

“Por Publicização do Direito entende-se o grau de interferência do Estado na esfera privatista, ou seja, ocorre quando o Estado, visando o bem da coletividade, interfere no âmbito do Direito Privado, ditando normas que devem ser seguidas, dotando-as de imperatividade.”

O interesse público não pode ser desviado nem mesmo no âmbito privado, pois ambos têm a finalidade comum de promover o bem-estar social de seus indivíduos, isto é, o dever de proteção das relações privadas por intermédio da regulamentação legislativa por meio de regras cogentes no Direito Privado, a fim de evitar situações discrepantes na convivência dos indivíduos. Nesse cenário, verifica-se a intervenção estatal mediante normas obrigatórias nas relações entre particulares que exploram a atividade econômica ou não, impondo limitações legais e administrativas, em razão do interesse púbico, perseguido pela Constituição Federal.

Na verdade, o que ocorre é a relativização do interesse privado em detrimento do interesse público, em obediência aos os valores constitucionais, por meio da Constitucionalização do Direito Privado. Esse viés principiológico autoriza a intervenção estatal nas relações privadas, com o objetivo de garantir o bem-comum e a justiça social, mediante a incorporação dos princípios constitucionais ao direito, e supera a dicotomia de Direito Público e Privado, enaltecendo a pessoa em desvantagem do patrimônio.

No mesmo sentido, pode ser observado o fenômeno da Repersonalização do Direito Civil, considerando o indivíduo como elemento substancial no momento de apreciação da Lei, sempre com base no princípio da dignidade da pessoa humana. O julgador ao analisar o caso concreto deverá formar o seu convencimento observando não só a Lei, mas também, os preceitos constitucionais aplicáveis ao caso, de modo a compatibilizar a norma aos princípios estabelecidos pela Constituição Federal, construindo um direito mais justo, como pode ser estudado na teoria do Patrimônio Mínimo, do Ministro Luiz Edson Fachin.

O fortalecimento do interesse público com a consecução das políticas públicas afirmativas e protecionistas, encontra aconchego no berço da Constituição Federal de 1988, pois torna o Estado Brasileiro mais justo e solidário. Com propriedade, expõe os professores Leonardo Carnut e Jorge Masseran (2018, pag. 4):

“Assim o processo interpretativo terá sempre um norte a ser seguido que é a tutela e a efetividade dos direitos fundamentais, entendidos como direitos individuais, sociais, políticos e econômicos. Em outras palavras, o aplicador do direito já não está adstrito a uma atividade meramente silogística-exegética (DUARTE, 2013, p. 75) mas a um papel construtivo do sentido atribuído ao direito através da sua localização mais precisa possível entre a norma positivada e fato sócio-historicamente situado. ”

Desta maneira, o Judiciário no exercício da sua função típica deverá zelar pela prevalência dos direitos fundamentais, em obediência aos princípios constitucionais, em busca de uma decisão mais justa. A Carta Cidadã foi categórica ao disciplinar em seu artigo 5º, §1º, que as normas de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, em razão da importância desta. Em outras palavras, esses direitos e garantias independem de edição de Lei regulamentadora, podendo ser exercidos desde a sua promulgação, pois possuem aplicabilidade imediata. Embora, estabelecendo critérios definidos por Lei, o Poder Legislativo poderá regulamentar as normas constitucionais de eficácia contida.

Isso quer dizer que o magistrado poderá fundamentar a sua decisão no dispositivo constitucional e aplicar as medidas que considerar necessárias para dar concretude e efetividade ao direito tutelado.

O debate a respeito sobre a concretude e a efetividade é muito importante para o Direito Civil, pois concretude e efetividade são coisas distintas, que muitas vezes acabam por ser consideradas sinônimos pelo uso conjunto. A concretude se refere aos mecanismos de execução da norma, os meios que podem ser utilizados para alcançar o objetivo perseguido, em outras palavras, têm natureza instrumental ao direito. Já a efetividade é a condição da medida de direito produzir os efeitos almejados, no tempo, modo e forma, com o fim de garantir o próprio direito em si, ou seja, tem natureza material.

A preocupação do Legislador em buscar concretude e efetividade pode ser visualizada principalmente nos diplomas processuais, como cita o artigo 139, inciso IV, do CPC, atribuindo ao juiz o poder de “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento da ordem judicial, inclusive as que tenham por objeto prestação pecuniária”. Esse dispositivo confere ao magistrado a capacidade de promover meios capazes para execução da ordem judicial (concretude), a fim de garantir que a medida seja cumprida de forma satisfativa (efetividade).

No entanto, este dispositivo também despertou a preocupação nos jurisdicionados, posto que, diversas decisões arbitrárias surgiram a partir deste, como por exemplo, a apreensão do documento de passaporte em razão do inadimplemento no pagamento de dívidas, assim, colocando em discussão a prevalência do direito de patrimônio e liberdade. Entretanto, essa decisão foi combatida na Suprema Corte (STF), no Recurso Ordinário em Habeas Corpus 173332, com a decisão de inconstitucionalidade da medida de apreensão do documento de passaporte por entender ser incompatível com a natureza do inadimplemento, em continuação, declarou o relator que as medidas excepcionais do artigo 139, inciso IV, do CPC, somente devem ser aplicadas de forma subsidiária e obedecendo os princípios da proporcionalidade e razoabilidade.

No mesmo cenário, o ativismo judicial tem ganhado força no Estado Brasileiro, com atuações do Supremo Tribunal Federal (STF), especialmente nos casos de omissão por mora legislativa, levantando discussões de cunho ético e moral, em regra, provocadas pelo Procurador da República (MPF) e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) por meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO). No entanto, não é o efeito principal desses acórdãos que nos interessa (declaração de mora legislativa), e sim, os efeitos secundários.

Utilizando desta prerrogativa, o Suprema Corte (STF), em virtude de seu papel iluminista, em respeito do comando legal da proibição da discriminação e da dignidade da pessoa humana, inovou no ordenamento jurídico através do julgamento da ADO 26 e do MI 4733, declarando a omissão inconstitucional do Congresso Nacional por não editar Lei para o combate à discriminação a homofobia e transfobia. Além disso, criminalizou condutas consideradas homofóbicas e transfóbicas na Lei 7.716/2018 (Lei do preconceito), e ainda dissertou sobre o intento de homicídio contra o indivíduo por esta condição, o qualificando por motivo torpe.

Uma situação extremamente atípica que nos revela no mínimo a fragilidade do sistema de Separação dos Poderes. Vale destacar, uma breve citação do advogado e orador John Philpot Curran (1808) “ The price of freedom is eternal vigilance”, em tradução livre, “O preço da liberdade é a eterna vigilância”. Essa citação exprime uma preocupação atemporal do indivíduo perante a mão invisível do Estado, devendo o povo figurar de maneira ativa contra os arbítrios estatais, a fim de preservar a manutenção da liberdade e corrigir as aberrações produzidas em nome do povo.

De volta ao cerne da questão, os princípios como centro das atenções despertam receios em parte da comunidade jurídica, principalmente nos legalistas, por não estabelecer critérios objetivos para aplicação da Lei, e ainda, permitir que o Estado-Juiz fundamente discricionariamente a depender de seu interesse, decisões baseadas em princípios, de forma genérica em bel-prazer. Em tom de caos, as limitações ao Estado correm o risco de não surtirem efeitos, produzindo uma nebulosa nuvem de insegurança jurídica, e afastando o interesse econômico de outros países na economia nacional.

Em consequência disso, verifica-se a necessidade de analisar o movimento do Estado como Administração Pública, como tutor do interesse público, em respeito da legalidade estrita. Ou seja, o Estado somente poderá agir se autorizado por Lei, e buscando sempre o interesse público como o seu fim. Assim, afirma o jurista Alexandre Aragão (2004, pag. 54):

“(…) Já a Administração, sendo o próprio Estado na persecução dos seus fins, só pode fazer o que a lei permite, seja vinculada ou discricionariamente: a lei – o próprio Estado – pode determinar à Administração tanto os fins a serem alcançados e também os meios para persegui-los, como pode estabelecer apenas aqueles, deixando para a Administração – não mera executora – a escolha dos meios. ”

Nessa esteira, ainda, sobre a densidade da norma aplicada ao Estado e a racionalização dos princípios como fonte de direito, ressalta-se um novo dilema no debate jurídico, que é a aplicação dos princípios como mandamento permissivo para a Administração dar consecução ao interesse público. Essa corrente afirmativa, tem ganhado adeptos no Brasil, no entanto, esses acrescem uma condição: a autorização legal genérica.

De acordo com esse entendimento, Luís Roberto Barroso (2001, pag. 187), tem um pensamento bastante otimista sobre a principialização da norma dirigida ao Estado, atribuindo amplos poderes normativos à Administração, desde que “ofereça parâmetros adequados e suficientes para atuação normativa”.

Neste sentido, o Estado com direcionamento genérico dado pela Constituição Federal, em seus artigos 170, (preceitua que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por finalidade assegurar a todos uma existência digna), e 174, (prontifica o Estado como agente normativo e regulador da atividade econômica), tomou a decisão de promover a regulamentação de postos de gasolina atribuindo standards jurídicos de caráter técnico – MS 4.578 DF – pois o atendimento de qualidade dos serviços prestados, atendem ao interesse público.

Apesar disso, essa discussão deve ser vista com parcimônia por seus entusiastas, tendo em vista que a legalidade estrita ainda prevalece, como regra, na atuação da Administração Pública.

Muito embora, com a situação atual ocasionada pelo Corona Vírus (COVID-19) e a difusão da pandemia a nível global, os entes federativos estaduais e municipais, editaram decretos emergenciais para a contenção da disseminação do vírus. Estabelecendo medidas cautelares a fim de evitar aglomerações de pessoas, tais quais, o fechamento de aeroportos, rodovias e portos, proibição de reunião de pessoas, proibição de cultos religiosos, dentre outras medidas limitadoras dos direitos fundamentais.

Ao mesmo tempo, a União lançou mão de sua prerrogativa constitucional e editou a Medida Provisória 926/2020, sob fundamento para dispor de procedimentos para aquisição de bens, serviços e outros, para o enfrentamento da crise de saúde pública instaurada no Brasil pelo vírus COVID-19, com o interesse de influir diretamente na decisão dos Estados e Municípios, a respeito das medidas adotadas em âmbito regional e local, especialmente, quanto as restrições ao transporte interestadual e intermunicipal quando interferirem nos serviços públicos e atividades essenciais.

A Medida provisória 926/2020 de forma contrária ao previsto nos decretos Estaduais e Municipais, atribuía a competência da locomoção interestadual e intermunicipal a União, com recomendação técnica e fundamentação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Em outras palavras, estabeleceu que não competia aos Estados e Municípios limitar a circulação de pessoas através de portos, rodovias e aeroportos. Inconformado, o Partido Democrático Trabalhista (PDT), ingressou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.341, com o pedido de declaração de inconstitucionalidade da MD 926/2020.

Em medida cautelar, o Ministro Marco Aurélio, relator, entendeu por inexistir inconstitucionalidade na matéria tratada pela MD 926/2020, contudo, reconheceu sumariamente que a Medida Provisória “não afasta a tomada de providências normativas e administrativas pelos governos estaduais e as prefeituras”.  Reascendendo o debate sobre a atuação Administrativa dos entes federativos como Administração Pública, na edição de decretos normativos, embasados em princípios constitucionais, como o bem-estar social e a saúde pública.

Enfatizo, portanto, que os efeitos desta tendência no Direito Regulamentar da Administração Pública, deve evoluir ao passar do tempo, a depender do entendimento da Suprema Corte (STF) quanto a validade destes decretos fundamentados em situações emergentes, baseados em princípios constitucionais, bem como, a repetição e expansão de poderes atribuídos ao Estado, como Administração Pública.

Mais próximo do fim, saliento, que a Constitucionalização do Direito é evidente em todo ordenamento jurídico, especialmente, por meio de cláusulas abertas, conceitos jurídicos indeterminados, e princípios com força normativa. Interferindo, não só no Estado-Juiz, mas também no Estado-Legislador e Administrador, cada qual com suas nuances, porém, indiscutivelmente presente em todas as suas formas de atuação.

 

CONCLUSÃO

O dinamismo da ciência jurídica contemporânea tem atraído grandes especulações quanto as suas diversas manifestações na aplicação do direito, tendo em vista que anteriormente este era executado de forma monótona, sem variações. Apesar disso, ao longo do desenvolvimento do Estado Brasileiro, novos conceitos de valores foram encampados para o cumprimento do Ordenamento Jurídico Pátrio.

Com a Promulgação da Constituição Federal de 1988, originou-se um novo movimento denominado Neoconstitucionalismo, arraigado de valores, direitos e garantias fundamentais. Além de que, conservava os limites do poder estatal e as estruturas de governo. Também, declarava um novo começo para a liberdade do povo brasileiro, desta vez, assegurando um Estado mais justo e solidário.

De outro modo, agora, o Estado age como ente responsável por direitos e deveres para com os administrados, observando-se, também, os meios de promoção de direitos e garantias assegurados pela Constituição Federal, em grande parte, através de políticas públicas voltadas a fiel execução de seus mandamentos. Nessa perspectiva, Pós-positivista, a aplicação da Lei deve ser compatibilizada necessariamente com os princípios constitucionais.

O Poder Constituinte Originário estabeleceu, por intermédio do poder conferido pelo povo, os mandamentos iniciais, tais quais, os valores a serem perseguidos, fundamentos, objetivos, quanto, as normas programáticas a serem executadas.  Todo o texto constitucional exerceu influência sobre as demais normas jurídicas, tanto na sua criação, como na sua aplicação. O Estado como Administrador resta vinculado a promoção das políticas públicas estabelecidas pela Constituição, a fim de assegurar a sua efetivação e concretude.

Em outro sentido, os indivíduos em suas relações privadas continuavam a difundir seus arbítrios, por meio de convenções anômalas e estranhas ao Novo Ordenamento Jurídico. Notava-se, a ausência de valoração humana por parte dos contratantes, pois conservam-se apenas nos valores clássicos dos contratos, de que o pacto deveria ser cumprido a qualquer custo, pois o contrato é Lei entre as partes, e em caso de descumprimento o Estado-Juiz garantiria o seu êxito.

Com a Constitucionalização do Direito e a promoção de políticas públicas de intervenção na economia, o Ordenamento Jurídico Privado sofreu várias alterações, de modo a permitir a intervenção estatal nos negócios jurídicos entre particulares, quando manifestamente ilegal ou inconstitucional. A Publicização do Direito Privado ocorreu de modo a publicizar normas de caráter geral a fim de diminuir as ingerências nos negócios jurídicos entre particulares, por conseguinte, valorizar a dignidade da pessoa humana e a justiça social.

Deste modo, o Legislador concedeu ao Judiciário de forma consciente a expansão de seus poderes no exercício de sua atividade típica, assim sendo, permitiu um ativismo judiciário nunca visto antes, por meio de seu órgão de cúpula, iniciando um ciclo crescente de movimentos por parte da Suprema Corte (STF) em busca de interpretar todo o sistema jurídico conforme a Constituição Federal. Não obstante, esse poder ganhou grandes proporções e efeitos jamais imaginados, como a criação, alteração e extinção de obrigações, inclusive a adequação típica de um crime.

Por outro lado, a Constitucionalização do Direito interferiu significativamente nas relações privadas ao determinar finalidades precípuas para as avenças, acrescendo conteúdo humano, considerando, portanto, além dos interesses primitivos naturais dos negócios, outros elementos de valor político-social. Por exemplo, o Código Civil de 2002, expõe em seu artigo 422, que os contratantes devem guardar por todo o contrato pelos princípios da Boa-fé e da Probidade, contudo, esses conceitos devem ser preenchidos pelo magistrado ao analisar o caso concreto, de acordo os valores adotados pelo sistema constitucional.

Neste interim, principialização do direito dotou de carga valorativa todas as decisões do Estado, especialmente, o poder judiciário, todavia, também, é possível notar que o Estado como Administrador expandiu seus poderes por meio de seus decretos em plena crise de COVID-19, determinando restrições a locomoção por meio do fechamento de portos, rodovias e aeroportos, sob fundamento de evitar uma crise de saúde pública. Outro fato interessante é a Medida Provisória 926/2020, que dispensou a autorização de Lei para compra de insumos considerados essenciais para enfrentar a pandemia de COVID-19, no entanto, novamente o Estado se funda em conceitos indeterminados.

O aumento da interferência Estatal foi autorizado, em parte, pelo conteúdo de carga valorativa na interpretação do ordenamento jurídico, muito embora, desperta grandes preocupações nos administrados, posto que, a expansão dos poderes da Administração, cresce de forma exacerbada e discricionária, sem passar pelo crivo dos três poderes, concentrando-se ocasionalmente em um deles, isto é, ora no judiciário, ora no executivo e ora no legislativo. É evidente a perda de autonomia do Legislativo, e pode ser considerado um fenômeno anômalo. Justificado por situações excepcionais, contudo, neste momento, pode ser considerado preocupante a ausência de tais limites.

A Constitucionalização do Direito, pode ser observada como a repersonificação do direito, atribuindo valores humanos a todo ordenamento jurídico, entretanto, essa ressignificação desperta uma sensação de instabilidade institucional, tendo em vista que diversas decisões políticas-jurídicas podem ser proferidas em razão de um mesmo mandamento, sem estabelecer claramente os requisitos necessários para tal.

Além disso, a principialização do Direito, resultado do Pós-positivismo, traz consigo um ativismo judicial exacerbado, que ultrapassa os limites do considerado razoável, criando, alterando e suprimindo direitos, por parte de interpretações constitucionais, e assim, usurpando o papel do Legislativo. No mesmo sentido, o Poder Executivo, como Administração, começa a degustar da carga valorativa imbuída nos princípios constitucionais, de modo a utilizar como fundamento de seus decretos, importando numa séria preocupação quanto os limites de seu poder.

De forma pessimista, concluo que, a repersonificação do Direito Privado merece respaldo em nosso ordenamento jurídico, entretanto, é preciso ter cuidado com essas interferências, posto que, essas intervenções podem ocasionar prejuízos tão graves, quanto a ausência delas, necessitando, portanto, de uma atenção especial pelo Estado ao utilizar da carga valorativa dos princípios constitucionais como fundamento de seus atos.

 

REFERÊNCIAS

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