A reprodução humana assistida ou RA consiste no emprego de técnicas médicas para que casais, homens ou mulheres, com problemas de infertilidade tenham a possibilidade de ter filhos.
Segundo Gustavo Pereira Leite Ribeiro,
“A reprodução assistida é o conjunto de técnicas que favorecem a fecundação humana, a partir da manipulação de gametas e embriões, objetivando principalmente combater a infertilidade e propiciando o nascimento de uma nova vida humana” (RIBEIRO, 2002, p.286).
Têm-se indícios que a RA teve sua origem na Idade Média, através da técnica de inseminação artificial[1].
“A história da inseminação artificial remonta a Idade Média, confirmando o raciocínio cientificamente simples que envolve a técnica. Os registros indicam que Arnaud de Villeneuve, médico de reis e papas, teria obtido sucesso na inseminação artificial com a introdução do esperma de Henrique IV, de Castela, em sua esposa” (QUEIROZ, 2001, p.71).
Desde então, com os grandes avanços da Medicina, surgiram também novas técnicas de RA[2].
A RA trousse significativas contribuições para a formação da família, vislumbrando a possibilidade de pessoas antes consideradas estéreis, a possibilidade de procriarem por métodos artificiais.
Do modelo patriarcal romano até os moldes plurifamiliares contemporâneos, verifica-se as grandes transformações que os modelos de família sofreram, tanto que no ordenamento jurídico brasileiro foram inseridas as famílias monoparental e anaparental, formadas por um dos pais ou somente de irmãos, respectivamente[3].
Explica Walsir Edson Rodrigues Júnior:
“O conceito e a extensão de família sofreram várias alterações ao longo da história. Em Roma, “o poder do pater familias era exercido sobre os filhos, a mulher e os escravos de maneira absoluta, pois tinha o poder de vida e de morte, de emancipação e de repúdio” (MIRANDA, 2001, p.59) sobre aquelas pessoas. Era ao mesmo tempo juiz, sacerdote e administrador, ou seja, o senhor absoluto do lar.
Contemporaneamente, não existe mais a figura do pater familias como detentor do poder absoluto, como única voz a ser ouvida no ambiente familiar. A família não é mais encarada como unidade de produção, estruturada apenas para atender fins econômicos, políticos, religiosos, e culturais como outrora. Nesse sentido a família deixou de ser objeto de proteção autônoma – colocada como uma realidade baseada em si mesma – e tornou-se funcional, ou seja, instrumento de promoção e desenvolvimento dos seus membros, realçando a dignidade da pessoa humana em suas relações (TEPENDINO, 2001, p.352). É a pessoa que deve ser protegida e colocada no centro do ordenamento jurídico” (RODRIGUES JUNIOR, 2009, p.209-210).
Sendo assim, denota-se a expansão e formação dos novos arranjos familiares que comportam o Estado Democrático de Direito, entendido como pluralismo familiar, visto por alguns autores, como Walsir Edson Rodrigues Junior (2010, p.51) e Maria Berenice Dias (2010, p.67), como princípio jurídico.
Conforme Roger Raupp Rios:
“[…] o regime jurídico da família hoje vigente operou uma ruptura com o paradigma institucional antes prevalente. Este aspecto é muito importante, uma vez que, em virtude desta nova disciplina constitucional, pode-se conferir ao ordenamento jurídico a abertura e a mobilidade que a dinâmica social lhe exige, sem a fixidez de um modelo único que desconheça a pluralidade de estilos de vida e de crenças e o pluralismo que caracterizam nossos dias” (RIOS, 2002, p.496).
Ademais, insta ressaltar que sob a égide do pós-positivismo[4] já não restam dúvidas que a afetividade[5] não é requisito jurídico para a formação da família, nem mesmo para a exigência da procriação e da criação dos filhos, isto é, não existe um dever de amar ou um direito de afeto.
De acordo com Fernanda Campos de Cerqueira Lana e Walsir Edson Rodrigues Júnior:
“[…] a afetividade é um elemento fático, um importante valor reconhecido socialmente e merecedor de atenção jurídica, tendo em vista que é um dos elementos constitutivos da família, porém; não é princípio jurídico. No Estado Democrático de Direito as decisões devem ser jurídicas e nunca morais, eis, então, o maior obstáculo à admissão da reparação por dano moral diante do abandono afetivo nas relações paterno-filiais” (LANA; RODRIGUES JÚNIOR, 2010, p.267).
Todavia, seja por uma exigência social, ou pela realização de um sonho maternal ou paternal, casais, homens ou mulheres, com problemas de fertilidade, hoje recorrem às técnicas de RA.
Apesar da RA ter mais de um século no Brasil, ainda não existe lei que a regulamente, ficando a cargo do Conselho Federal de Medicina seu regramento.
Neste liame, passou a entrar em vigor a partir de 06 de janeiro de 2011, a Resolução n. 1.957/2010, o atual dispositivo normativo médico que dispõe acerca das técnicas de RA, revogando a anterior Resolução n. 1.358/1992.
Uma das principais inovações contidas na nova resolução é a possibilidade dos membros de uniões formadas por homossexuais ou homossexuais solteiros poderem recorrer às técnicas de RA para procriarem.
A homossexualidade, hoje vista na acepção de seu termo[6], designa modo de ser, e por ser um modo de vida, permite ao homossexual auto determinar-se e ser capaz de direitos e obrigações, como o heterossexual, inclusive podendo constituir família.
Segundo Paulo Luiz Netto Lôbo:
“[…] Além do princípio da igualdade das entidades, como decorrência natural do pluralismo reconhecido pela Constituição, há de se ter presente o princípio da liberdade de escolha, como concretização do macro princípio da dignidade da pessoa humana. Consulta a dignidade da pessoa humana a liberdade de escolher e constituir a entidade familiar que melhor corresponda à sua realização existencial. Não pode o legislador definir qual a melhor e mais adequada.
[…] Não é a família per se que é constitucionalmente protegida, mas o lócus indispensável de realização e desenvolvimento da pessoa humana. Sob o ponto de vista do melhor interesse da pessoa, não podem ser protegidas algumas entidades familiares e desprotegidas outras, pois a exclusão refletiria nas pessoas que as integram por opção ou por circunstâncias da vida, comprometendo a realização do princípio da dignidade humana” (LÔBO, 2002, p.43/46).
Não há vedamento legal que impeça a formação de uniões entre pessoas do mesmo sexo, e tão pouco, que seus indivíduos, que não têm possibilidade de procriarem por vias naturais, façam o uso das técnicas de reprodução assistida, com o advento da Resolução n. 1.957/2010 do Conselho Federal de Medicina.
Para Maria Berenice Dias:
“É cada vez mais comum casais homossexuais fazerem uso de bancos de material reprodutivo, o que permite a um do par ser pai ou a mãe biológica […]. Gays utilizam o sêmen de um ou de ambos para fecundar uma mulher. Lésbicas extraem o óvulo de uma, que, fertilizado in vitro, é implantado no útero da outra, que vem a dar à luz. Não há restrição alguma nem pode haver qualquer obstáculo legal para impedir tais práticas […]” (DIAS, 2010, p.368-369).
Enfatiza-se assim as inovações da Resolução n. 1.957/2010[7] do Conselho Federal de Medicina, ao permitir que os indivíduos que compõem as uniões homossexuais ou homossexuais solteiros possam recorrer à RA.
As técnicas de reprodução humana assistida são os métodos aplicados para solucionar problemas de infertilidade, com o fito de gerar um ser humano, por meio da união de gametas masculinos e femininos de forma artificial. Em suma, seria a possibilidade de homens e mulheres terem um filho de forma não natural, ou seja, não concebido por meio da relação sexual em que outras terapêuticas tenham se revelado ineficazes ou consideradas inapropriadas.
Considerando a importância da infertilidade humana como um problema de saúde e da necessidade de harmonizar o uso dessas técnicas com os princípios bioéticos, o CFM editou a Resolução n. 1.957/2010, regulamentando a prática da reprodução humana assistida, uma vez que não existe lei criada pelo devido processo legislativo.
Segundo Débora Ciocci e Edson Borges Junior,
“Assim, não havendo vedação legal específica, nem especificação de crime, são válidas todas as técnicas disponíveis para a resolução de problemas de infertilidade humana, aliás, meio legítimo de satisfazer o direito de todo ser humano de se reproduzir e se perpetuar, com suporte moral e sentimento de igualdade” (OLIVEIRA; BORGES JUNIOR, 2000, p.17).
Calcada no princípio da igualdade e da autonomia privada[8], a Resolução n.1.957/2010 inovou ao permitir que qualquer pessoa capaz possa utilizar as técnicas de RA, o que sugere a inclusão das uniões homossexuais e os homossexuais solteiros.
Considerando que estes indivíduos não possuem condições biológicas para procriarem, as técnicas de RA seriam o meio pelo qual poderiam ter filhos, sendo pais ou mães biológicos da criança.
Assim, afirmam Débora Ciocci e Edson Borges Junior,
“É importante salientar ainda que, para estabelecer a igualdade diante do Direito, o direito à saúde, inerente à personalidade humana, “de todos e dever do Estado”, é mais um aliado à garantia constitucional da prática das técnicas de reprodução humana assistida, pois com os progressos da Medicina no combate à esterilidade, não teria o menor sentido condenar alguém à resignação, impedindo-o da oportunidade de tratamento disponível. Nem se diga que possa haver compensação com a adoção, instituto que cumpre outras finalidades e não satisfaz os mesmos desejos” (OLIVEIRA; BORGES JUNIOR, 2000, p.17).
A evolução do direito de família, hoje positivada no artigo 226 da Constituição da República de 1988, nos revela ser uma cláusula aberta, que abarca vários arranjos familiares, inclusive as uniões homossexuais, visto que não há vedação constitucional ou infra-constitucional.
Coaduna com este entendimento Paulo Luiz Netto Lôbo, para quem:
“No caput do art. 226 operou-se a mais radical transformação, no tocante ao âmbito de vigência da tutela constitucional à família. Não há qualquer referência a determinado tipo de família, como ocorreu com as constituições brasileiras anteriores. Ao suprimir a locação “constituída pelo casamento” (art. 175 da Constituição de 1967-69), sem substituí-la por qualquer outra, pôs sob a tutela constitucional “a família”, ou seja, qualquer família. A cláusula de exclusão desapareceu. O fato de, em seus parágrafos, referir a tipos determinados, para atribuir-lhes certas conseqüências jurídicas, não significa que reinstituiu a cláusula de exclusão, como se ali estivesse a locução “a família, constituída pelo casamento, pela união estável ou pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos”. A interpretação de uma norma ampla não pode suprimir de seus efeitos situações e tipos comuns, restringindo direitos subjetivo”s (LÔBO, 2002, p.44-45).
Neste sentido, esta mesma Carta Magna que repudia qualquer tipo de discriminação, que dispõe que o Estado é pluralista e laico, com respeito à dignidade, liberdade e igualdade dos indivíduos, deve assegurar iguais liberdades fundamentais e o co-desenvolvimento de individuais projetos de vida, que abarcam o Estado Democrático de Direito.
Neste sentido, Habermas afirma que:
“A “sociedade justa” deixa ao critério de todas as pessoas aquilo que elas querem “iniciar com o tempo de suas vidas”. Ela garante a todos a mesma liberdade para desenvolver uma autocompreensão ética, a fim de formar uma concepção pessoal da “boa vida” segundo capacidades e critérios próprios” (HABERMAS, 2004, p.05).
De acordo com Renata Barbosa de Almeida e Walsir Edson Rodrigues Júnior:
“[…] Sendo a entidade familiar uma realidade sediada por pessoas que mantêm entre si afeto e, por isso, apresentam-se reunidas de forma estável e ostensiva, para que a relação homoafetiva seja família basta que ela assim se mostre. Mostrando-se, não é cabível qualquer resistência ou ressalva: trata-se de uma família.
[…] Em conclusão, desde que capaz de cumprir com os pressupostos respectivos, a relação homoafetiva pode corresponder a uma família. Assim sendo, seus componentes tornar-se-ão titulares dos direitos e dos deveres a tanto relacionados, de forma similar às demais famílias, e, eventualmente, de forma singular à especial realidade que condiz, quando isso parece relevante” (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2010, p.80-81).
De forma tardia, mas em tempo, acertadamente o Supremo Tribunal Federal por unanimidade de votos, em 05 de Maio de 2011, julgou procedente as ações ADPF 132 e ADIn 4.277 em uma única decisão, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, reconhecendo, portanto, o reconhecimento da união homossexual. Considerada o marco na conquista dos direitos dos homossexuais este julgado, repercutiu também na possibilidade destes indivíduos recorrem às técnicas de RA para procriarem.
A Medicina deve acompanhar a evolução da sociedade, o que justificou as inovações trazidas pela Resolução n. 1.957/2010. Isto é, a Medicina que encampa a Bioética[9], visa não somente cuidar da saúde, como também da vida, sendo papel do Biodireito[10], assegurar juridicamente estes atos médicos, como a Resolução n. 1.957/2010, ainda que por uma análise jurídica com base nos princípios que regem a Constituição e do Direito Privado, ou seja, em um sistema jurídico constitucionalizado[11], ainda que não haja lei criada pelo devido processo legislativo que trate da utilização das técnicas de RA.
Portanto, aos indivíduos de uniões homossexuais devem ser garantidos os mesmos direitos que os casais heterossexuais, inclusive o acesso às técnicas de RA, sob pena de grave violação ao Estado Democrático de Direito.
Mestre em Direito Privado pela PUC Minas. Especialista em Direito Público pelo IEC PUC Minas. Advogado e membro da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB/MG. Biotécnico. Professor universitário.
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