Direito Civil

A Alteração Do Nome e do Sexo Civil das Pessoas Trans no Brasil e na França: Um Estudo Comparativo

Autor: Guilherme Mendes Rodrigues – Acadêmico de Direito da Universidade Católica de Pernambuco (guilhermendesr@gmail.com)

Orientadora: Mirza Maria Porto de Mendonça – Professora universitária da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP, membra do comitê de ética em pesquisa – (mirzaporto@bol.com.br)

Resumo: O seguinte estudo tem como objetivo estimular a discussão a respeito da possibilidade de alteração do Nome e do Sexo Civil da população transexual. Isso porque são inegáveis os impactos psicológicos negativos e empecilhos administrativos que esses institutos podem trazer a esses indivíduos. Para isso, após pesquisa bibliográfica, buscou-se estabelecer uma relação comparativa entre essa realidade no Brasil e na França com a intenção de perceber as similitudes e as diferenças presentes nos dois sistemas. Dessa forma, pretende-se, ainda, esclarecer a importância de facilitar esses procedimentos de alteração como uma forma de garantir a equidade no ordenamento jurídico.

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Palavras-chave: NOME CIVIL. DIREITOS DA PERSONALIDADE. SEXO CIVIL. TRANSEXUALIDADE. DIREITO CIVIL.

 

Résumé: L’étude suivante a comme objectif stimuler la discussion à propos de la possibilité de changement du Prénom et du Sexe Civil de la population transsexuelle. C’est parce que sont indéniables les conséquences psychologiques négatives et l’obstacles administratifs que ces institutes amènent à ces individus. Pour cela, après recherche bibliographique, on a cherché à établir une relation comparative entre cette réalité au Brésil et en France avec l’intention d’apercevoir les similarités et les différences présentent aux deux systèmes. Ainsi, on vise à clarifier l’importance de faciliter ces procédures de changement comme une façon d’assurer l’équité dans l’ordre juridique.

Mot-clé : NOM CIVIL. DROITS DE LA PERSONNALITÉ. SEXE CIVIL. TRANSSEXUALITÉ. DROIT CIVIL.

 

Abstract: The following study aims to stimulate the discussion about the possibility of civil Name and Sex changing by the transgender population. This is due to the psychological negative impacts and administrative obstacles that these institutes might bring to those individuals.  To that end, after a literature review, it was sought to establish a comparative relation between this reality in Brazil and in France in order to perceive the similarities and differences in both systems. Thus, it is intended to, in addition, clarify the importance of simplifying those changing procedures as a way of assuring equity in the juridical order.

Keywords: CIVIL NAME. PERSONALITY RIGHTS. CIVIL SEX. TRANSEXUALITY. CIVIL LAW.

 

Resumen: El siguiente estudio tiene como objetivo estimular la discusión sobre la posibilidad de cambio del nombre y del sexo civil de la población transexual.  Esto porque son innegables los impactos psicológicos y obstáculos administrativos que eses institutos pueden traer a esas personas.  Para eso, después de la investigación bibliográfica, se intentó establecer una relación comparativa entre esa realidad en Brasil y Francia, buscando percibir las similitudes y diferencias presentes en los dos sistemas. Por lo tanto, se pretende, todavía, aclarar la importancia de facilitar esos procedimientos de cambio como una forma de garantizar la equidad en el sistema legal.

Palabras claves: NOMBRE CIVIL.  DERECHOS DE LA PERSONALIDAD. SEXO CIVIL. TRANSEXUALIDAD. DERECHO CIVIL.

 

Sumário: Introdução. 1. Os Diretos da Personalidade. 2. O Nome Civil da Pessoa Natural. 3. A Transexualidade e a possibilidade de alteração do Nome e do Sexo Civil no ordenamento jurídico brasileiro. 4. A possibilidade de alteração do Nome e do Sexo Civil das Pessoas Trans no ordenamento jurídico Francês. Conclusão. Referências.

 

INTRODUÇÃO

O nome civil, muitas vezes entendido como um mero signo diferenciador do Estado, é, na realidade, uma das mais chamativas maneiras como os indivíduos se apresentam à sociedade. Consequentemente, entende-se que existe uma ligação entre o nome e a personalidade de um indivíduo, sendo o nome um bem jurídico pessoal, intransferível e digno de proteção estatal. Assim, é acertado afirmar que o Nome Civil é um direito da personalidade em suas características e efeitos:

 

“O direito ao nome tem natureza evidentemente extrapatrimonial, haja vista que ninguém pode dispor do próprio nome, alienando-o ou abandonando à mercê de terceiros. ” (GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, 2019)

 

Desse modo, é indispensável pontuar que tal instituto representa grande constrangimento e dor de cabeça, desde o princípio, para uma parcela da população; a população trans. Por isso, à luz do princípio constitucional da Dignidade Humana e dos Direitos Humanos, é razoável que esses indivíduos tenham acesso à faculdade de alteração do nome nos registros civis com maior facilidade.  

 

Nesse quadro, considerando a amplitude do debate acerca dos direitos civis da população transexual, é válido trazer para a discussão a ideia do Direito Comparado. Segundo ela, é possível que sejam trabalhados conceitos e institutos advindos de outros ordenamentos jurídicos na construção do sistema pátrio. Nesse sentido, muitas foram as influências de outros países no Direito brasileiro. A França, em particular, se fez presente no Brasil por meio do Direito Administrativo e do Direito Civil. Sobre esse assunto, ao falar do Código Civil de 1916, exemplifica o professor Antônio Junqueira de Azevedo:

 

“Todavia, em outros domínios civilistas, há presença do direito francês. A teoria da responsabilidade civil no Código Civil brasileiro é totalmente derivada do Código de Napoleão, cujo art. 1.382 determina: “Todo fato causado pelo homem, que causa prejuízo a outrem, obriga aquele por cuja culpa este aconteceu, a reparar o dano.” E o art. 1.383 estabelece: “Todo homem é responsável pelo prejuízo que causou, não somente por seu fato mas também por sua negligência e imprudência.” O art. 159 do Código Civil brasileiro dispõe: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. A verificação da culpa e a avaliação da responsabilidade, regulam-se pelo disposto neste Código.” A teoria brasileira da responsabilidade parte daí e seu desenvolvimento sobre a responsabilidade por fato de terceiro ou por fato das coisas acompanha direito francês. ” (JUNQUEIRA DE AZEVEDO, 1994)

 

Assim, dada a inegável e relevante influência do Direito francês no ordenamento brasileiro, a importância do Nome civil como uma expressão dos direitos da personalidade e a emergência sobre os direitos civis das pessoas trans em todo mundo; é relevante refletir, em um breve estudo comparativo, a partir do seguinte questionamento: De que maneira o ordenamento jurídico francês e o brasileiro tutelam essa faculdade/direito no que diz respeito às peculiaridades da vivência transgênero?

 

Para isso, de posse de palavras-chave como “Direitos da Personalidade”; “Alteração de nome”, “Transexualidade” e “Nome civil”, foi feito um levantamento bibliográfico por meio da ferramenta da Biblioteca Digital da Universidade Católica de Pernambuco, das ferramentas de pesquisa da plataforma CAPES e da Plataforma Sucupira.  Destarte, foi possível fazer a leitura de manuais de Direito Civil Brasileiro dos autores Maria Helena Diniz, Silvio de Salva Venosa, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho.

Além disso, foram acessados artigos científicos por meio das publicações Revue Juridique de L’Ouest, Persée, Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo e a Reseau Eurojuris France. É importante registrar, ainda, que, por meio de sítios eletrônicos institucionais, como o site do Supremo Tribunal Federal e o site de serviços públicos da República Francesa, foram identificadas e comparadas as legislações e as jurisprudências cabíveis. Desse modo, buscou-se construir um texto que esclarecesse essa questão.

 

  1. OS DIREITOS DA PERSONALIDADE

Os Direitos Personalíssimos são aqueles inerentes às Pessoas Jurídicas e Naturais, englobando suas relações com o mundo externo. Historicamente, esses direitos, também nomeados de Direitos da Personalidade, foram reconhecidos a partir da Antiguidade, quando já eram passíveis de punição as agressões de caráter físico e moral contra Pessoas Naturais. No entanto, apenas foram positivados, de fato, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1789, que tutelava a valorização do indivíduo e de suas liberdades. Sobre o tema, explica Maria Helena Diniz:

 

“Os Direitos da Personalidade são direitos comuns da existência, porque são simples permissões dadas pela norma jurídica, a cada pessoa, de defender um bem que a natureza lhe deu, de maneira primordial e direta. A vida humana, p. ex., é um bem anterior ao direito, que a norma jurídica deve respeitar”. (DINIZ, 2014, p. 136)

 

Desse modo, os Direitos da Personalidade possuem um caráter abstrato e intangível, alcançando bens imateriais e diferenciando-se dos Direitos Patrimoniais. Esses têm, conceitualmente, relação direta com bens e valores econômicos. Por outro lado, o desrespeito aos Direitos Personalíssimos pode ter uma valoração material, por meio de uma prestação indenizatória. Entretanto, por mais vultosa que possa vir a ser essa reparação pecuniária, ela jamais conseguirá inverter, de maneira integral, o dano causado à Personalidade.  (VENOSA, 2019)

 

No ordenamento jurídico brasileiro, os Direitos da Personalidade estão previstos na Constituição Federal de 1988, no Título II, das Garantias e Direitos Fundamentais, capítulo I, dos direitos e deveres individuais e coletivos, art. 5º; onde há a previsão de liberdade, igualdade e outros direitos. Já no Código Civil Brasileiro de 2002, essas garantias estão expressas no Capítulo II, artigos 11 a 21.

 

É válido destacar, ainda, que os Direitos Personalíssimos são direitos subjetivos “excludendi alios”, ou seja, que garantem a proteção dos bens tutelados por meio da expectativa de um comportamento negativo de terceiros (DINIZ, 2014). Destarte, há a esperança de que não haja o ataque a nenhum dos bens relacionados à personalidade e, caso haja, é criada a possibilidade de pleitear-se o Direito subjetivo. Outro ponto importante sobre essa temática são as características que a Doutrina atribui aos Direitos da Personalidade, as quais são essenciais para identificá-los enquanto grupo na legislação, uma vez que esses direitos são de difícil identificação:

 

“Não há que se entender que nossa lei, ou qualquer lei comparada, apresente um número fechado para elencar os direitos da personalidade. Terá essa natureza todo o direito subjetivo pessoal que apresentar as mesmas características” (VENOSA, 2003, p. 150)

 

Assim, entende-se que os Direitos Personalíssimos são: absolutos, gerais, extrapatrimoniais, indisponíveis, impenhoráveis, vitalícios e imprescritíveis, Logo, além de possuírem oponibilidade erga omnes, esses Direitos não são passíveis de valoração material, de renúncia e de penhora. E, ainda, não estão submetidos à ação temporal, acompanhando seus detentores durante toda a vida. (GAGLIANO E PAMPLONA FILHO, 2019)

 

Dentro desse contexto, apesar de divergências doutrinárias, o nome civil é entendido no ordenamento jurídico brasileiro como sendo um Direito Personalíssimo. Sendo expressamente classificado e tutelado como tal, no Código Civil, nos artigos 16 a 19. Nesses artigos, estão previstos o direito universal ao prenome e ao sobrenome, a vedação ao uso do nome para fins comerciais indevidos e/ou difamatórios e o amparo ao pseudônimo adotado em atividades lícitas. (BRASIL, 2002)

 

  1. O NOME CIVIL DA PESSOA NATURAL

O nome é um signo de extrema importância para a vida em sociedade. Por meio dele, o indivíduo passa a ser identificado a partir de seu nascimento no âmbito da família e da comunidade na qual ele está inserido. Nesse sentido, o nome civil da Pessoa Natural pode ser entendido como sendo a mais relevante expressão da personalidade. (VENOSA, 2019)

De acordo com a Lei de Registros Públicos, o nome civil é formado pelo prenome, comumente chamado de “nome de batismo”, e pelo nome, também chamado de “apelido de família” ou “sobrenome”.

Diante desse quadro, é interessante pontuar que a Lei de Registros Públicos classifica o Nome como sendo, a princípio, imutável. Contudo, a própria norma, além de entendimentos jurisprudenciais, admite tal mudança em caráter excepcional e com observância de requisitos objetivos e subjetivos:

“Art. 58. O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios.

Parágrafo único. A substituição do prenome será ainda admitida em razão de fundada coação ou ameaça decorrente da colaboração com a apuração de crime, por determinação, em sentença, de juiz competente, ouvido o Ministério Público. ”  (BRASIL, 1973)

Dessa forma, além das possibilidades expostas, o nome também poderá ser alterado em caso de casamento, divórcio, adoção de sobrenome de padrasto ou madrasta, comprovado constrangimento, inclusão de alcunha, flagrante erro de escrita ou transexualidade. (VENOSA, 2019)

 

  1. A TRANSEXUALIDADE E A POSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO DO NOME E DO SEXO CIVIL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

A transexualidade, também chamada de Incongruência de gênero, tem sido tratada como tabu ao longo da história. Atualmente, já removida do cadastro mundial de doenças feito pela Organização Mundial da Saúde (OMS), tal condição tem permeado discussões em diversas áreas do conhecimento (NAÇÕES UNIDAS, 2019). Sobre o tema, Pedrini esclarece:

 

“Uma experiência trans e suas corpovicências podem ser entendidas como um modo de experienciar uma identidade de gênero, afirmando sujeitos que querem se mostrar ao mundo e desejam pertencer a ele de outro modo, para além do que lhes é imposto desde antes de seu nascimento. ” (PEDRINI, 2017)

 

Nessa seara, tem-se, então, diferentes conceitos: Gênero, Sexo Biológico e Sexo Civil. Assim, o gênero diz respeito à identificação e ao papel dos indivíduos na sociedade; expressando-se, muitas vezes, a partir de comportamentos esperados vinculados às ideias de masculino e feminino. Daí surge a expressão “identidade de gênero”.  Já o Sexo Biológico se refere às características sexuais físicas presentes no indivíduo desde o seu nascimento, como o pênis e a vagina – que podem passar por intervenções cirúrgicas com o objetivo de adequar o visual do corpo ao gênero do indivíduo. Por fim, o Sexo Civil é aquele constante nos registros de estado, como a certidão de nascimento. Esse ideário tem respaldo jurídico, como é possível observar no seguinte julgamento:

 

APELAÇÃO CÍVEL. RETIFICAÇÃO DO REGISTRO CIVIL. TRANSEXUALISMO. ALTERAÇÃO DO GÊNERO. AUSÊNCIA DE CIRURGIA DE REDESIGNAÇÃO SEXUAL OU TRANSGENITALIZAÇÃO. POSSIBILIDADE. O sexo é físico-biológico, caracterizado pela presença de aparelho genital e outras características que diferenciam os seres humanos entre machos e fêmeas, além da presença do código genético que, igualmente, determina a constituição do sexo – cromossomas XX e XY. O gênero, por sua vez, refere-se ao aspecto psicossocial, ou seja, como o indivíduo se sente e se comporta frente aos padrões estabelecidos como femininos e masculinos a partir do substrato físico-biológico. É um modo de organização de modelos que são transmitidos tendo em vista as estruturas sociais e as relações que se estabelecem entre os sexos. Considerando que o gênero prepondera sobre o sexo, identificando-se o indivíduo transexual com o gênero oposto ao seu sexo biológico e cromossômico, impõe-se a retificação do registro civil, independentemente da realização de cirurgia de redesignação sexual ou transgenitalização, porquanto deve espelhar a forma como o indivíduo se vê, se comporta e é visto socialmente. APELAÇÃO PROVIDA, POR MAIORIA. (Apelação Cível Nº 70065879033, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liselena Schifino Robles Ribeiro, Julgado em 26/08/2015) (PORTO ALEGRE, 2015)

 

Dentro dessa realidade, o Nome passa a ser uma ferramenta essencial para a auto expressão e afirmação das pessoas transexuais. Por conseguinte, o caráter de manifestação máxima da Personalidade presente no Nome civil, no que diz respeito à população trans, ganha uma posição ainda mais relevante. Face a essa realidade, o ordenamento jurídico brasileiro admite a possibilidade de alteração do nome civil e do sexo jurídico em razão da Incongruência de gênero.

 

Assim, hoje, dada a crescente presença do tema na sociedade brasileira, e conforme os entendimentos de Tratados Internacionais, como o Pacto de San Jose da Costa Rica, o processo de retificação do nome da pessoa transexual foi desburocratizado e teve sua legitimidade reforçada a partir da nova interpretação dada ao artigo 58 da lei de registros públicos, decidida pelo STF no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275:

Decisão: O Tribunal, por maioria, vencidos, em parte, os Ministros Marco Aurélio e, em menor extensão, os Ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, julgou procedente a ação para dar interpretação conforme a Constituição e o Pacto de São José da Costa Rica ao art. 58 da Lei 6.015/73, de modo a reconhecer aos transgêneros que assim o desejarem, independentemente da cirurgia de transgenitalização, ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, o direito à substituição de prenome e sexo diretamente no registro civil. Impedido o Ministro Dias Toffoli. Redator para o acórdão o Ministro Edson Fachin. Presidiu o julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 1º.3.2018. (BRASIL, 2018)

Nesse contexto, o Conselho Nacional de Justiça regulamentou essa possibilidade de alteração do nome civil e do sexo jurídico por meio do Provimento nº 73. Nele, está prevista a possibilidade de feitura da retificação por vias administrativas e de maneira sigilosa, dispensada a necessidade de cirurgia de redesignação sexual, tratamento hormonal ou parecer médico / psicológico. Dessa forma, no Brasil, é possível que seja feita a averbação do novo prenome e sexo em cartório no Registro Civil de Pessoas Naturais (RCPN):

Art. 2º Toda pessoa maior de 18 anos completos habilitada à prática de todos os atos da vida civil poderá requerer ao ofício do RCPN a alteração e a averbação do prenome e do gênero, a fim de adequá-los à identidade autopercebida. (BRASIL, 2018)

Assim, fica dispensada, também, a obrigatoriedade de autorização judicial e a alteração/averbação do prenome e do sexo ficam condicionadas apenas à capacidade jurídica, à autonomia da vontade e à apresentação dos documentos listados nos § § 6º e 7º do art. 4º do Provimento nº 73 do CNJ:

  • 6º A pessoa requerente deverá apresentar ao ofício do RCPN, no ato do requerimento, os seguintes documentos:

I – certidão de nascimento atualizada;

II – certidão de casamento atualizada, se for o caso;

Edição nº 119/2018 Brasília – DF, disponibilização sexta-feira, 29 de junho de 2018

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III – cópia do registro geral de identidade (RG);

IV – cópia da identificação civil nacional (ICN), se for o caso;

V – cópia do passaporte brasileiro, se for o caso;

VI – cópia do cadastro de pessoa física (CPF) no Ministério da Fazenda;

VII – cópia do título de eleitor;

IX – cópia de carteira de identidade social, se for o caso;

X – comprovante de endereço;

XI – certidão do distribuidor cível do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal);

XII – certidão do distribuidor criminal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal);

XIII – certidão de execução criminal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal);

XIV – certidão dos tabelionatos de protestos do local de residência dos últimos cinco anos;

XV – certidão da Justiça Eleitoral do local de residência dos últimos cinco anos;

XVI – certidão da Justiça do Trabalho do local de residência dos últimos cinco anos;

XVII – certidão da Justiça Militar, se for o caso.

  • 7º Além dos documentos listados no parágrafo anterior, é facultado à pessoa requerente juntar ao requerimento, para instrução do procedimento previsto no presente provimento, os seguintes documentos:

I – laudo médico que ateste a transexualidade/travestilidade;

II – parecer psicológico que ateste a transexualidade/travestilidade;

III – laudo médico que ateste a realização de cirurgia de redesignação de sexo.  (BRASIL, 2018)

Dessa forma, o ordenamento jurídico pátrio se posiciona em conformidade com a tendência de naturalização e despatologização das transexualidades presente nos posicionamentos da OMS e de entidades voltadas aos Direitos Humanos mundo afora.

 

  1. A POSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO DO NOME E DO SEXO CIVIL DAS PESSOAS TRANS NO ORDENAMENTO JURÍDICO FRANCÊS

Na França, a questão da transexualidade no âmbito jurídico começou a ser debatida no início dos anos 1990 e, naquela época, havia o entendimento jurisprudencial de que a vivência trans não justificaria a alteração do sexo e do nome nos registros civis devido à indisponibilidade absoluta dos direitos da personalidade. Posteriormente, em 1992, por entender que tal entendimento violaria o artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem – que versa sobre a liberdade na vida privada e familiar – o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem estava na eminência de condenar o Estado francês.

Por conseguinte, a mudança de sexo e nome nos registros passou a ser admitida, sob a condição de que fossem observados critérios médicos – como o diagnóstico de disforia de gênero e a cirurgia de redesignação, e requisitos sociais. Tal concepção vigorou em territórios franceses por longos anos até que, em 2016, considerando os pedidos de “desmedicalização” da transexualidade por parte de associações especializadas, foi retirada a exigência de procedimentos cirúrgicos por meio da lei nº 2016-1547 de 18 novembro de 2016. Esse processo histórico de mudanças no ordenamento francês foi resumido pela Réseau Eurojuris France:

 

“Assim, passamos da proibição, sob a autoridade da indisponibilidade absoluta do estado das pessoas, à autorização sob o controle progressivamente restrito do juiz, consagrado recentemente pelo Parlamento” (RÉSEAU EUROJURIS FRANCE, 2018)

 

Nesse quadro, vigora na França, atualmente, um sistema dual para a alteração do nome e sexo civil das pessoas trans. Por um lado, para que seja feita a alteração do nome civil, é preciso que o cidadão francês, transexual ou não, se dirija à Prefeitura do município onde habita, sem necessidade de advogado, ou onde foi registrado no nascimento; desde que possa comprovar interesse legítimo na alteração, sendo a transexualidade um entre vários casos possíveis. Assim, todo cidadão francês plenamente capaz, menor acompanhado dos seus representantes legais ou maior incapaz acompanhado do seu curador pode realizar a alteração de nome após fazer a devida justificativa de interesse legítimo, como mostra o caput do artigo 60 do Código Civil Francês:

 

“Art. 60 Toda pessoa pode solicitar ao oficial de Estado Civil a mudança do prenome. A solicitação é entregue ao oficial de Estado Civil do lugar de residência ou do lugar onde foi feito o registro de nascimento. Caso seja um menor ou um maior em tutela, o pedido deve ser feito pelo seu representante legal. “ (FRANÇA, 2020)

 

Para isso, conforme os artigos 60 a 61-4 do Código Civil Francês, é preciso estar de posse da seguinte documentação:

Comprovantes de identidade e de residência

  • Cópia integral e original do registro de nascimento, datando menos de 3 meses
  • Peça de identidade original no prazo de validade
  • Comprovante de residência recente. Caso o demandante seja abrigado por um terceiro, é preciso ter em mãos um comprovante de residência deste + um atestado desse terceiro certificando o abrigo.

Comprovantes do interesse legítimo da demanda

  • Infância ou escolaridade: certificado de nascimento, cópia do cartão de saúde, cópia do livro de registro de família, cópia de diplomas etc.
  • Vida Profissional: contrato de trabalho, declaração de colegas de trabalho (acompanhados de peça de identidade), cópias de e-mails profissionais etc.
  • Vida Administrativa: cópias de documentos de identidade antigos ou atuais, faturas, comprovante de residência, etc.
  • Vida Pessoal (família, amigos, lazer): declaração dos próximos, certificado de inscrição em uma atividade de lazer, etc.

É possível, também, que seja feita a juntada de declarações médicas demonstrando as dificuldades causadas por conta do nome que será modificado.”  (RÉPUBLIQUE FRANÇAISE, 2020)

 

Por outro lado, para que seja feita a alteração da menção do sexo no estado civil, o procedimento não é meramente administrativo. Para isso, é preciso que o interessado, que tem total capacidade postulatória, faça, perante o tribunal de onde mora ou de onde nasceu, um requerimento por escrito solicitando a mudança.

Esse requerimento pode ser entregue pessoalmente ou enviado por correio e deve demonstrar que o interessado se apresenta publicamente de acordo com o gênero debatido; é conhecido pelos seus entes próximos como tal e já fez a modificação do nome. Para isso, é preciso que constem, no requerimento, diferentes meios de prova – como depoimentos, fotos, atestados médicos etc. Além disso, de acordo com o artigo 61-5 do Código Civil Francês, essa faculdade fica restrita aos maiores e aos menores emancipados:

 

“Art. 61-5 Toda pessoa maior ou menor emancipada que demonstrar por uma reunião suficiente de fatos que a menção relativa ao seu sexo nos atos do registro civil não corresponde àquela pela qual ela se apresenta e é conhecida pode obter a modificação. ” (FRANÇA, 2020)

 

Posteriormente, poderá ser marcada uma audiência perante o juiz para que o requerente e os envolvidos possam ser escutados, sem a presença do público e sem a obrigatoriedade da presença de um advogado. (RÉPUBLIQUE FRANÇAISE, 2019).

 

CONCLUSÃO

É incontestável a relevância do nome e do sexo civil como formas de identificação e autoafirmação num ordenamento jurídico. Dada essa realidade e considerando as especificidades referentes à população trans, tanto o ordenamento brasileiro, quanto o francês facilitaram o acesso dos indivíduos “T” ao direito de alteração do nome nos registros civis, muitas vezes diretamente relacionado à mudança do sexo nos mesmos registros.

Nesse sentido, ambos os países buscaram romper com a lógica da patologização e medicalização das transexualidades, eliminando a exigência de diagnósticos e cirurgias para que as alterações jurídicas fossem devidamente efetuadas. Sobre isso, detalha Armelle Coffin, estudiosa do Direito Francês em tradução livre:

 

“O novo artigo 61-5 do Código Civil Francês muda radicalmente o direito positivo, já que a pessoa que efetua a demanda de mudança do sexo jurídico não é mais obrigada a ter se submetido a tratamentos médicos, uma operação cirúrgica ou uma esterilização. Fala-se, então, de uma desmedicalização da mudança de sexo” (COFFIN, 2016)

 

Dentro desse contexto, por outro lado, é importante frisar que, apesar de convergirem em relação à desmedicalização, o tratamento dado a essa problemática nos dois países diverge no que diz respeito à judicialização do processo da mudança.

Enquanto no Brasil, a demanda envolvendo o nome e o sexo civil pode ser resolvida simplesmente por vias administrativas em cartório. Na França, os pedidos devem ser tratados de maneira separada, sendo a questão do nome resolvida administrativamente perante a prefeitura e a do sexo tratada face a um tribunal, num processo que pode ser visto como constrangedor.

Entretanto, apesar dessa diferença, é importante frisar que em ambos os países os cidadãos têm capacidade postulatória plena para solicitar as demandas, não havendo necessidade de advogado. Além disso, os ordenamentos convergem quanto ao fato de que apenas aqueles cidadãos que detém capacidade plena, os maiores de 18 anos e os emancipados, têm a faculdade de pleitear a alteração da menção do sexo civil.

Por fim, é importante pontuar que a facilitação das mudanças civis referentes às pessoas trans é apenas um passo inicial, baseado nas ideias de isonomia e equidade, em relação à luta para que essa população seja plenamente acolhida nos ambientes jurídicos e administrativos. Isso porque, historicamente, tais espaços foram cenários de constrangimentos e discriminações, uma vez que tais cidadãos se viam forçados a, todo tempo, prestar esclarecimentos sobre suas identidades.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Lei de Registros Públicos. Brasília, DF, 31 dez. 1973.

 

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil Brasileiro. Brasília, DF.

 

BRASIL. Provimento do CNJ nº 73, de 28 de junho de 2018. Diário de Justiça do CNJ. Brasília, DF, 29 jun. 2018.

 

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275. Brasília, DF, 01 de março de 2018. Diário Oficial da União.

 

FRANÇA. Código Civil Francês, de 14 de fevereiro de 2020. Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/affichCode.do?cidTexte=LEGITEXT000006070721. Acesso em: 29 jun. 2020.

 

COFFIN, Armelle. Réflexions autour de la loi du 12 octobre 2016 portant sur le changement de la mention du sexe à l’état civil. Revue Juridique de L’ouest, Rennes, v. 4, p. 81-84, 2016.

 

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 31. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. v. ISBN 9788502213999 (v.1).

 

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil, volume 1: parte geral. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. 1 v.

 

JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Influência do direito francês sobre o direito brasileiro. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 89, p. 183-194, 1994.

 

NAÇÕES UNIDAS. OMS retira a transexualidade da lista de doenças mentais. 2019. Disponível em: https://nacoesunidas.org/oms-retira-a-transexualidade-da-lista-de-doencas-mentais/. Acesso em: 06 abr. 2020.

 

PEDRINI, Mateus Dias. HOMENS TRANS(BORDADOS): EXPERIÊNCIAS JUNTAS E MISTURADAS NA PRODUÇÃO DE OUTRAS MASCULINIDADES. 2017. 141 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação em Psicologia Institucional, Universidade Federal do EspÍrito Santo, Vitória, 2017.

 

RÉPUBLIQUE FRANÇAISE. Changement de prénom. 2020. Disponível em: https://www.service-public.fr/particuliers/vosdroits/F885. Acesso em: 08 jun. 2020.

 

RÉPUBLIQUE FRANÇAISE. Changement de sexe. 2019. Disponível em: https://www.service-public.fr/particuliers/vosdroits/F34826. Acesso em: 09 jun. 2020.

 

RÉSEAU EUROJURIS FRANCE (França). UNE BRÈVE HISTOIRE DU CHANGEMENT DE SEXE À L’ÉTAT CIVIL EN FRANCE. 2018. Disponível em: https://www.eurojuris.fr/articles/changement-de-sexe-a-l-etat-civil-37515.htm. Acesso em: 12 jun. 2020.

 

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação civil nº 70065879033. Porto Alegre, RS, 26 de agosto de 2015. Diário de Justiça Eletrônico.

 

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. 19 . ed. Sao paulo: Atlas, 2019. v. ISBN 978-85-97-01973-5 (v.1)

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