Resumo. Este artigo busca discutir o conceito de superendividado estabelecido pelo Projeto de Lei 3515/2015 e sua inadequação para a proteção legal necessária.
Palavras-Chave: superendividamento. Projeto de Lei.
Abstract. This paper aims to discuss the concept of consumer´s over-indebtedness established by Bill nº 3515/2015 and its unsuitability for legal protection.
Key Words: over-indebtedness. Bill.
Sumário. Introdução. 1 Noções gerais. 2 A ampliação do sujeito. Conclusões.
Introdução
O presente artigo pretende abrir uma discussão acerca do conceito proposto para o superendividado, tendo em vista a previsão contida no § 1º do art. 54-A a ser eventualmente inserido no Código de Defesa do Consumidor (CDC), através do Projeto de Lei nº 3.515/2015, tendo em vista nosso particular entendimento de que ele não enseja uma adequada proteção aos superendividados, pela limitação estabelecida em seu texto.
1 Noções gerais
O Projeto de Lei nº 3.515/2015, resultante da conversão do Projeto de Lei original de nº 283/2012, que altera a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), e o art. 96 da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), visa a aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento, através do § 1º do art. 54-A:
§ 1º Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor, pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação
Tal redação, a nosso ver, não propicia a adequada proteção àqueles que estejam em situação de incapacidade econômica de solver suas dívidas, sem comprometer o mínimo existencial e, consequentemente, afligindo o princípio da dignidade da pessoa humana, pelo que passamos a explicar nosso posicionamento.
O ponto fulcral na proteção ao superendividado está claramente associado aos fundamentos constitucionais de garantia da dignidade da pessoa humana e seus desdobramentos com a solidariedade social e o patrimônio mínimo existencial, como forma de assegurar o equilíbrio entre o desenvolvimento da livre inciativa econômica e os valores sociais previstos na Carta Magna de 1988.
Em sendo assim, ao nosso ver, é necessário que a proteção contra o superendividado busque contemplar todas as situações em que a dignidade da pessoa humana encontre-se violada, excetuando aquelas hipóteses, em que valores de igual natureza se façam presentes, e que, por um juízo de ponderação, seja priorizada uma outra situação jurídica para evitar o desvirtuamento do instituto.
Na definição assentada por Cláudia Lima Marques, o superendividamento representa “a impossibilidade de o devedor pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o Fisco, oriundas de delitos e de alimentos)”[1], conceito ainda mantido pela doutrinadora gaúcha nas obras mais recentes.[2]
Levando-se em consideração que o citado § 1º do art. 54-A praticamente repete a lição da doutrinadora gaúcha, avulta a preocupação de ratificar nosso posicionamento, como uma modesta contribuição na discussão do tema.
Em nossa concepção, o superendividamento corresponderia à situação fática caracterizada pela impossibilidade estrutural e contínua de o devedor pessoa física, consumidor e de boa-fé, pagar as dívidas atuais e futuras, derivadas de relações de consumo e as cíveis de natureza existencial.
Esta proposta de conceituação deriva do fato de que a noção consolidada sobre o superendividamento envolve dois aspectos; o primeiro deles, é o subjetivo, relacionado a quem pode ser alvo da proteção legal e o segundo, é o objetivo, que diz respeito à natureza da dívida que pode ser computada no cálculo geral dos débitos que serão considerados para aferir a existência de situação estrutural de incapacidade econômica do superendividado e que poderão ser negociadas com os credores, dentro da sistemática proposta pelo Projeto de Lei nº 3515/2015, nos artigos 104-A, 104-B e 104-C, usando como parâmetro a solução adotada de repactuação das dívidas através de um plano de pagamento, como tem sido feito na França e em Portugal.[3]
Assim, como a proposta do presente artigo limita-se apenas à abordagem sobre o aspecto subjetivo relacionado ao superendividamento, necessário se faz o esclarecimento acerca do tema no tópico seguinte.
2 A ampliação do sujeito
A análise acerca do aspecto subjetivo do superendividamento envolve três variantes: i) a existência ou não de boa-fé do devedor; ii) seu grau de participação para a constituição da situação, e iii) quem pode ser protegido pelo tratamento legal vigente em cada sistema jurídico.
No que concerne ao primeiro aspecto, concordamos que apenas o superendividado de boa-fé pode ser protegido, uma vez que aquele que contrai dívidas com a expectativa de futura isenção de responsabilidade quanto ao seu pagamento não pode ser beneficiado com sua postura dolosa, posto que afrontaria a justa ideia de que ninguém pode se beneficiar de sua própria torpeza.
De fato, não se pode pretender a exclusão de responsabilidade pelo pagamento das dívidas para o indivíduo que deliberadamente as contrai na esperança de ser contemplado com alguma brecha ou mecanismo legal que o exima do pagamento de suas obrigações, ou que as reduza, em detrimento dos interesses do credor, em postura que afronta a boa-fé, e que não pode ser justificada, notadamente em decorrência do fortalecimento das posturas éticas que têm sido aplicadas não só no direito contratual, mas nos mais diversos ramos do Direito.
Chancelar a postura de má-fé do devedor que tem a intenção cabal de não honrar seus compromissos, muito mais que uma violação ética, de cunho moral, ou jurídica, em decorrência da violação aos interesses do credor, poderia ensejar uma crise de maiores proporções diante da instabilidade e insegurança a que seriam levados os contratantes, diante da possibilidade deste fato ensejar uma equivocada percepção social que os contratos poderiam ser simplesmente descumpridos, sem qualquer reprimenda estatal acerca de tal conduta.
Num quadro de insegurança e fragilidade, haveria uma provável ocorrência de reflexos oriundos de uma postura de desconfiança entre os contratantes, a exemplo da eventual retração do crédito, ou da elevação das taxas de juros para sua concessão, a necessidade de reforço através de garantias reais ou fidejussórias nas relações contratuais e da própria elevação dos valores dos bens e serviços como forma prévia de se resguardar de eventuais prejuízos futuros, alcançando indiscriminadamente tanto o bom pagador quanto o inadimplente, notadamente aquele de má-fé.
Passando para a abordagem sobre o segundo aspecto, a doutrina assevera que existem dois tipos de superendividamento de acordo com o grau de participação do indivíduo na deflagração do problema: o passivo e o ativo; entendimento este defendido também pela doutrina portuguesa, a exemplo de Maria Manuel Leitão Marques e Catarina Frade:
“O sobreendividamento, também designado por falência ou insolvência dos particulares, diz respeito aos casos em que o devedor está impossibilitado, de forma duradoura ou estrutural, de proceder ao pagamento de uma ou mais dívidas. Uma parte da doutrina considera ainda como sobreendividamento as situações em que o devedor, apesar de continuar a cumprir os seus ompromissos financeiros, o faz com sérias dificuldades. Fala-se de sobreendividamento activo quando o devedor contribui activamente para se colocar em situação de impossibilidade de pagamento, por exemplo, não planeando os compromissos assumidos. Designa-se por sobreendividamento passivo os casos em que essa impossibilidade de cumprimento resulta da ocorrência de circunstâncias imprevistas como o divórcio, o desemprego, a morte ou uma doença (os chamados “acidentes de vida”), que determinam um aumento de despesas excepcional ou uma quebra no rendimento habitual do devedor.”[4]
Conclui-se, portanto, que o superendividamento passivo pode ser caracterizado por aquele que não decorre de conduta culposa ou dolosa do devedor, porque sua causa deriva de fatores alheios à vontade do endividado, notadamente em decorrência de situações de força maior ou caso fortuito, a exemplo da perda de rendimento pelo desemprego, redução salarial, ou de despesas assumidas por problemas de saúde ou até mesmo em situações em que haja conduta do devedor, sem atrelamento a uma atividade econômica, mas que repercuta em seu patrimônio, como o nascimento de filhos, o fim da união estável ou a ocorrência do divórcio, bem como qualquer outra circunstância que enseje a impossibilidade de quitação de suas dívidas.
Como os atos que originaram o desequilíbrio econômico do devedor decorrem de eventos alheios à sua vontade, haverá uma presunção relativa de boa-fé do superendividado.
Em contrapartida, o superendividamento ativo é aquele provocado por posturas derivadas da vontade do devedor, tanto na utilização do crédito, quanto nas demais transações patrimoniais, impossibilitando a quitação de suas dívidas, em decorrências do descompasso entre seu orçamento e patrimônio e o volume das obrigações atuais e futuras assumidas.
Há de se ressaltar que o fato de o superendividamento ser ativo não significa necessariamente que exista um atrelamento à postura de má-fé, posto que o devedor pode ter apenas mal avaliado as escolhas efetuadas, ter sido confiante acerca da sua possibilidade de solver as dívidas contraídas, ser inexperiente na avaliação dos riscos envolvidos, não ter exata noção dos impactos econômicos de uma contratação, ou simplesmente ter firmado um contrato com cláusulas abusivas que ensejaram seu endividamento extremado.
Geraldo de Faria Martins da Costa registra que a jurisprudência francesa analisa a questão da má-fé nos casos de superendividamento ativo pontualmente, tentando aferir se houve intenção ou conduta culposa que gerou tal situação para conceder o beneplácito legislativo, tendo em vista que a postura de boa-fé do devedor é requisito essencial para o deferimento das benesses legais.
Não se impede, por conseguinte, que o endividamento ativo seja empecilho para a recusa ao procedimento previsto naquele país, até porque a dívida pode ter sido fruto de conduta de fornecimento de crédito sem a devida observância do fornecedor aos deveres gerais de conduta, notadamente os relacionados ao aconselhamento e à informação adequada sobre os riscos do contrato[5].
E, de fato, a questão é analisada com acuidade, pois a ausência de boa-fé impede que o devedor seja beneficiado pela legislação francesa, motivo que gera a anotação feita por Gilles Paisant, acerca dos três princípios relacionados à boa-fé: i) que a boa-fé é presumida; ii) que a determinação da existência da má-fé é uma questão fática, e, por conseguinte, não pode ser considerada em abstrato; iii) que a ausência de boa-fé se aprecia levando-se em consideração o conjunto de elementos existentes no momento em que se analisa a admissibilidade da demanda e não em relação a fatos passados.[6]
Em seguida, o doutrinador francês ressalta que a participação do devedor na geração do problema não faz presumir a má-fé, uma vez que, não sendo ela presumida, a má-fé deverá ser demonstrada pelos credores,
“En cambio, la condena de una persona por hechos que no se relacionan a su situación de sobreendeudamiento no puede caracterizar la ausencia de buena fe obstaculizando la admisibilidad de la demanda. Igualmente, la simple acumulación de las deudas o de los créditos no basta para constituir la ausencia de buena fe, aun cuando el deudor no puede proporcionar explicaciones ai respecto. Por otra parte, si la gestión "inconsecuente" de su patrimonio fue asimilada a un comportamiento contrario a la buena fe, no es el caso para la gestión calificada de "imprudente"… ¡ Muy tenue parece la frontera entre estas dos situaciones”![7]
Tal perspectiva nos parece mais adequada porque estabelece o centro da atenção na postura de boa-fé, tornando-se irrelevante que o superendividamento tenha sido causado por fato gerado pelo consumidor ou que ele tenha sido tragado por fatos da vida que o levaram àquele estado.
Chegando ao terceiro referencial no tocante à análise subjetiva do superendividamento, aqui reside nossa divergência quanto ao que tem sido afirmado pela doutrina e pelo texto legal citado, posto que defendemos a inclusão no campo dos legitimados a receber a proteção legal, não somente o consumidor, mas, também, o devedor de relação jurídica existencial, fazendo com que a somatória de suas dívidas desta natureza possa ser incluída no cômputo geral para efeito de parcelamento ou redução dos débitos.
A sustentação dessa proposta está calcada na ideia da proteção à dignidade da pessoa humana, uma vez que não nos parece razoável defender que não se proteja aquele que, diante de situação essencial à sua sobrevivência, tenha assumido dívidas e fique superendividado, ao passo em que se estende a proteção ao devedor consumidor que, até mesmo, tenha contraído compromissos sem critérios de essencialidade estrita, embora motivado por todo o conjunto de fatores que o leve a contratar, possa ser amparado por um tratamento mais privilegiado.
Ora, se a dignidade da pessoa humana foi alçada a princípio fundante da república brasileira, consoante a expressa dicção do art. 1º, III, da norma maior, não se pode fazer tábula rasa do preceito constitucional, entendendo-o como mera norma programática, sem qualquer poder cogente capaz de modificar todo o status quo até então vigente, uma vez que se propôs a ser um marco de transformação hermenêutica na estrutura jurídica pátria, modificando essencialmente a forma de pensar e aplicar os institutos jurídicos existentes.
Agir desta forma seria desprezar o intuito constitucional de se adequar às necessidades imperiosas do ser humano, entendendo-o como destinatário central da proteção do ordenamento jurídico, em que se resgatam as noções kantianas sobre o tema,[8] e deixar de acompanhar a tendência constitucional do compromisso assumido pelos Estados de Direito no estabelecimento de garantias efetivas contra a coisificação do ser humano e o desrespeito das condições essenciais de sua sobrevivência digna.
Ora, se há interesse na concretização dos valores constitucionais, imprescindível se faz a interpretação que seja adequada a assentar na prática os projetos desejados pelo legislador, com o fito de se alcançar a eficácia constitucional pretendida, seguindo a ideia preconizada pelo constitucionalista J. J. Gomes Canotilho, no que diz respeito ao alcance da “eficácia ótima da lei fundamental”:
“Na solução dos problemas jurídico-constitucionais deve dar-se prevalência aos pontos de vista que, tendo em conta os pressupostos da constituição (normativa), contribuem para uma eficácia ótima da lei fundamental. Consequentemente, deve dar-se primazia às soluções hermenêuticas que, compreendendo a historicidade das estruturas constitucionais, possibilitam a ‘atualização’ normativa, garantindo, do mesmo pé, a sua eficácia e permanência”. [9]
Ora, se o objetivo da Carta Magna de 1988 é assegurar a dignidade da pessoa humana, tem-se como irrazoável a interpretação que priva de proteção o superendividado de uma dívida de natureza existencial, excetuadas as decorrentes de indenização por ato ilícito, pelo caráter reparatório desta verba, e a de alimentos, pela proteção que se deve dar ao alimentante, notadamente pelo fato de que a prisão civil só alcança as três últimas parcelas e já vem sendo delineado o entendimento que veda a possibilidade da reiteração da prisão pela mesma dívida.[10]
Externamos nossa preocupação com a eventual aprovação do mencionado Projeto de Lei 3.515/2015, sem que haja qualquer modificação do seu teor, no que concerne a previsão existente no §1º do art. 54-A, estabelecendo que o superendividado deve ser um consumidor, posto que isso poderá dificultar a extensão da proteção a outras categorias, diante da literalidade do dispositivo em comento.
Entendemos, todavia, que o referido artigo não tem o condão de vedar a proteção que se deve ter ao superendividado, utilizando-se o recurso da interpretação conforme os valores constitucionais vigentes, que buscam a preservação da dignidade da pessoa humana, como apresentado anteriormente.
Ademais, a defesa da proposição de ampliar a incidência da proteção contra o superendividamento ao devedor de obrigação cível de natureza existencial encontra lastro numa interpretação mais peculiar sobre o chamado diálogo das fontes.
A expressão cunhada pelo doutrinador Erik Jayme e trazida ao nosso direito por Cláudia Lima Marques, defende a “aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas convergentes”[11], havendo o diálogo, em virtude da “aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementariamente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção voluntária das partes sobre a fonte prevalente […] ou mesmo permitindo uma opção por uma das leis em conflito abstrato.”[12]
Ainda que a aplicação da teoria do diálogo das fontes seja aprioristicamente vocacionada ao consumidor, assegurando-lhe uma proteção ampliada através do emprego de normas de diferentes diplomas normativos, em virtude do reconhecimento de sua vulnerabilidade, e até mesmo pela própria previsão expressa do art. 7º do CDC,[13] não há vedação para sua incidência nas relações cíveis, uma vez que o diálogo pode ser de “influências recíprocas sistemáticas, como no caso de uma possível redefinição do campo de aplicação de uma lei”[14], fazendo com que haja uma “influência do sistema especial no geral e do geral no especial, um diálogo de double sens (diálogo de coordenação e adaptação sistemática)”[15], como explicitamente mencionado por Cláudia Lima Marques.
E no preciso exemplo dado acerca da possível redefinição do campo de aplicação de uma lei se enquadraria a situação do superendividado não consumidor, desde que a natureza da dívida seja de aspecto existencial.
Bem verdade que, pela condição de consumidor de todas as pessoas físicas e até mesmo as jurídicas, seja pouco provável que o status de superendividado decorra tão somente da dívida oriunda de uma relação contratual existencial, porque provavelmente preferirá ele, entre a dívida decorrente, por exemplo, de um contrato de locação residencial, e outras de menor urgência ou relevância, buscar a quitação daquela para assegurar sua moradia, deixando acumular as que poderá postergar, dando preferência buscar a quitação daquela que for mais prejudicial para a concretização do seu projeto de vida. Contudo, essa pequena possibilidade, no plano prático, de o superendividamento decorrer apenas de uma dívida de natureza existencial, não afasta, ao nosso entender, a proteção eventualmente conferida ao superendividamento decorrente de dívida de consumo.
Assim sendo, tem-se que o mais provável é que a dívida de natureza essencial será apenas mais uma a ser somada às demais obrigações constituídas de relações de consumo, englobando o todo a ser objeto da renegociação a ser implementada.
Não se pode deixar de atentar ao fato de que a não inclusão da dívida de relação existencial no bojo das obrigações passíveis de alcance pelo superendividamento ensejará uma grande probabilidade de impossibilitar o pagamento das demais, justamente pela sua essencialidade. Logo, a inclusão deste tipo de dívida junto com as demais tornaria mais clara a real possibilidade de o devedor reprogramar a quitação de suas obrigações, sem frustrar o plano de pagamento pela necessidade de aportar parcela de seus recursos para preservar sua sobrevivência.
A utilização paralela da normatização protetiva do CDC às relações existenciais, embora não transportável sem algum esforço para outras relações, em virtude do campo de atuação delineados entre as figuras do consumidor e do fornecedor, previstos, respectivamente, nos artigos 2º e 3º daquele diploma normativo, pode ser defendida de forma indireta, através da reflexão dos institutos nele existentes, como técnica de aproximação nos pontos em que forem coincidentes, especialmente no que concerne à vulnerabilidade.
Embora não seja uma das tarefas mais fáceis, a aceitação da sistemática consumerista nas relações de outra natureza, a exemplo das cíveis, repita-se, em virtude do sujeito alvo de proteção daquela norma especial, nada impede que suas normas alcancem outros destinatários, como sói acontecer no caso do consumidor por equiparação (bystander), ainda que, na maior parte das vezes, justificada tal situação pela presença de uma relação de consumo subjacente, pautando-se agora na ideia de máxima proteção às situações existenciais.
Como a existência da relação de consumo base não é condição sine qua non para a proteção ao consumidor, a teor do que estabelecem os artigos 17 e 29 do CDC, é possível conceber a proteção contra o superendividamento para aqueles que não seriam consumidores.
Nesse sentido cabe o esclarecimento de Sérgio Cavalieri Filho acerca da aplicabilidade do art. 29 do Código de Defesa do Consumidor:
O art. 29, finalmente, equipara a consumidores todas as pessoas expostas às práticas comerciais e contratuais. Juntamente com o supramencionado artigo 17, apresenta.se como regra excepcionadora da abrangência original do Código de Defesa do Consumidor, objetivando alargar a incidência da legislação consumerista para além dos estritos limites da relação de consumo, originada da restrita aplicação dos conceitos de consumidor e fornecedor, estampadas no caput do art. 2º e no caput do art. 3º, respectivamente.[16]
A possibilidade de extensão de responsabilidade é igualmente abordada por James Marins, que enfatiza o caráter abrangente do artigo 29 do CDC, notadamente, pela observação de ausência de antinomia nas relações travadas:
[…] considerado o ditame do art. 29 à luz da interpretação lógica e gramatical, é forçoso reconhecer-se que a extensão pretendida, ao equiparar a consumidores todas as pessoas, determináveis ou não, está disciplinando relações jurídicas de toda ordem, mesmo que não sejam relações de consumo, e consumidor não se trate. Se a norma não estabelece limitações ou discrimens à equiparação, não cabe ao intérprete fazê-lo, especialmente se não existe qualquer antinomia normativa a ser expurgada, não existindo também qualquer conflito com o sistema seja se considerado o microssistema das relações de consumo ou nosso sistema jurídico como um todo.[17]
Fato é que se deve atentar para a atual realidade social, que, a despeito de apresentar indivíduos com alvos de proteção distintos (consumidor, idoso, criança e adolescentes, portadores de deficiências, etc.), exigir, num primeiro momento, a necessidade de um pensar específico nessas diferenças; ao mesmo tempo, propicia a reflexão acerca dos pontos de convergência para que se possa propugnar mecanismos de efetividade dos seus direitos através da proteção estatal.
A multiplicidade de sujeitos que devem ser protegidos pelo ordenamento jurídico é um reflexo da complexidade das novas relações sociais, o que, por certo, trouxe desafios aos valores relacionados a uma pretensa segurança e estabilidade concebidas pelo jurista de tempos passados, exigindo uma nova hermenêutica acerca dos institutos jurídicos, como observou Antonio Junqueira de Azevedo:
“No campo do Direito, a consideração da ‘realidade como é’ parece ao jurista pressuposto básico para a muito procurada segurança jurídica; a simples dúvida sobre a aptidão de o pensamento refletir a realidade incomoda. Paralelamente, outra característica dos tempos pós-modernos, a hipercomplexidade, que, no mundo jurídico, se revela na multiplicidade de fontes do Direito, quer materiais – porque, hoje, são vários os grupos sociais, justapostos uns aos outros, todos dentro da mesma sociedade, mas sem valores compartilhados (shared values), e cada um querendo uma norma ou lei especial para si -, quer formais – com um sem-número de leis, decretos, resoluções, códigos deontológicos, avisos, etc. etc. – quebram a permanente tendência à unidade do mundo do Direito”[18]
A necessidade de repensar os institutos jurídicos tradicionais, adequando-os às situações fáticas que se transformam e demandam uma nova interpretação é consequência natural do papel do Direito como regulamentador da sociedade. Assim, ocorreu, por exemplo, quando da fragmentação das estruturas clássicas em decorrência de evolução social que ensejou a mudança do perfil do Código Civil como “Constituição do direito privado”[19], notadamente como reflexo das demandas de um mundo cada vez mais complexo, e que gerou a produção das mais diversas normas, designadas de microssistemas jurídicos[20], tentando contemplar uma nova realidade de interesses não necessariamente idênticos, mas também não obrigatoriamente colidentes, retirando a unidade do ordenamento do Código Civil e a transferindo para a Constituição Federal, como elemento aglutinador dessa nova realidade transformada que não mais cabia nos paradigmas dos velhos institutos e na formatação hermética do Código Civil.
Esse diálogo de complementariedade pode ser visto na própria formatação legislativa que se sucedeu com a ressignificação do Código Civil, através dos diversos estatutos que foram publicados em nosso ordenamento, os quais, gradualmente, reconheceram a imprescindibilidade de comunicação entre as diversas áreas do direito, produzindo códigos de conteúdos distintos, onde convivem em harmonia estrutural, normas de direito material, processual, administrativo e até penal, como se pode notar da leitura do Estatuto da Criança e do Adolescente e do CDC.
Para superação do óbice à complementariedade por conta da previsão normativa do CDC, seria possível suscitar também, ao menos de forma excepcional, o argumento exposto na classificação do contrato como existencial, nos moldes apresentados por Antonio Junqueira de Azevedo, ao propor uma nova forma de classificação contratual, pautada na essencialidade e na sobrevivência.
“Os contratos existenciais têm basicamente como uma das partes, ou ambas, as pessoas naturais; estas estão visando a subsistência. Por equiparação, podemos incluir nesse tipo de contrato, as pessoas jurídicas sem fins lucrativos. Ora, as pessoas naturais não são 'descartáveis' e os juízes têm que atender às suas necessidades fundamentais; é preciso respeitar o direito à vida, à integridade física, à saúde, à habitação etc. de forma que as cláusulas contratuais que prejudiquem esses bens podem ser desconsideradas.”[21]
Através do referencial da essencialidade do objeto do contrato é possível sopesar interesses mais relevantes e estabelecer sua proteção de forma mais adequada, priorizando valores constitucionais a exemplo da dignidade da pessoa humana e da solidariedade.
Ao fazer a explicação acerca dos contratos existenciais, Antonio Junqueira de Azevedo, efetuou sua contraposição aos contratos de lucro, que seriam aqueles levados a efeito entre empresas ou profissionais, e que, por conseguinte, a interferência judicial neste tipo de contrato seria prejudicial, a justificar a maior incidência da pacta sunt servanda, enquanto nos contratos existenciais, as cláusulas que prejudicassem o direito à vida, habitação, saúde, etc., poderiam ser objeto de análise pelo juiz porque deveriam ser observadas as necessidades fundamentais da pessoa física.[22]
Quando da atualização do volume de Contratos de Orlando Gomes, Antonio Junqueira de Azevedo também retoma a explicação informando que os contratos existenciais seriam os firmados entre pessoas não empresárias, ou entre um empresário e um não empresário, desde que não haja intuito de lucro, abarcando “todos os contratos de consumo, bem como os contratos de trabalho, locação residencial, compra da casa própria e, de uma maneira geral, os que dizem respeito à subsistência da pessoa humana”.[23]
Assim, percebe-se que a doutrina já contempla a possibilidade de modificação do paradigma contratual, concebendo a existência de outros referenciais para a classificação dos contratos, que repercutiria na interpretação e na aplicação dos demais institutos existentes, a exemplo da revisão contratual.
Conclusões.
A possibilidade de ampliação do conceito de superendividado para outras pessoas físicas que não apenas o consumidor, possibilita uma proteção a um número maior de pessoas, posto que o superendividamento pode ser deflagrado por diversas razões, e sua limitação apenas ao consumidor, não seria apta a evitar este problema que tem assolado as sociedades capitalistas atuais.
Assim, necessária a releitura do referido dispositivo para que sua interpretação esteja em consonância com o princípio da dignidade humana.
Doutorando na linha de pesquisa de Direito das relações sociais na contemporaneidade pela UFBA. Mestre em Direito Privado pela UFBA. Professor de Direito Civil e Prática jurídica da Faculdade Baiana de Direito. Advogado
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