Direito Processual Civil

A Aplicabilidade dos Princípios da Precaução e Prevenção e da Responsabilidade Objetiva do Estado nas Enchentes e Deslizamentos

Autor: ALVES, Lucas Pereira. Bacharelando em Direito pela Universidade de Gurupi – UnirG, Gurupi/TO.

Orientador: REZENDE, Paulo Izídio da Silva. Professor especialista em Direito pela Universidade de Gurupi – UnirG, Gurupi/TO.

Resumo: A presente pesquisa tem como objetivo discorrer sobre o direito constitucional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como dever do Poder Público de assim mantê-lo, sob o prisma da aplicabilidade dos princípios da precaução e prevenção de desastres ambientais. Consecutivamente, busca evidenciar a existência da responsabilidade civil objetiva do Estado nas catástrofes naturais, quando o mesmo tinha o dever de agir e não agiu ou agiu deficientemente de modo a deixar de concretizar os princípios constitucionais que tutelam o meio ambiente. Em observância às enchentes e deslizamentos ocorrentes, analisar a postura governamental para a minimização ou inibição dos mesmos e futuros danos que porventura a sociedade enfrentará. Nesta senda, metodologicamente construir um parâmetro de doutrina e legislação pátria, buscando concluir pelo ferimento, ou não, da norma constitucional, especificamente sobre o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Palavras-chave: 1. Meio ambiente ecologicamente equilibrado 2. Princípios da precaução e prevenção 3. Responsabilidade civil estatal 4. Desastres ambientais

 

Abstract: This research aims to discuss the constitutional right to an ecologically balanced environment as a duty of the Public Power to maintain it, under the prism of the applicability of the principles of precaution and prevention of environmental disasters. Consecutively, it seeks to show the existence of the State’s objective civil liability in natural disasters, when it had a duty to act and did not act or acted poorly in order to fail to materialize the constitutional principles that protect the environment. In compliance with the floods and landslides that have already occurred, analyze the governmental stance to minimize or inhibit the same and future damages that society may face. In this way, methodologically build a parameter of doctrine and national legislation, seeking to conclude by the injury, or not, of the constitutional norm, specifically on the right to an ecologically balanced environment.

Keywords: 1. Ecologically balanced environment 2. Principles of precaution and prevention 3. State civil liability 4. Environmental disasters

 

Sumário: Introdução; 1. Evolução do Direito ao Meio Ambiente na Legislação Brasileira; 2. O Direito Ambiental Contemporâneo no Brasil; 3. Desastres Ambientais: Enchentes e Deslizamentos; 4. Princípios da Precaução e Prevenção; 5. Responsabilidade Civil Objetiva Estatal; Considerações Finais; Referências Bibliográficas.

 

Introdução

A Constituição Federal de 1988, enquanto nossa Carta Magna de suprema relevância, preconiza a essencialidade do meio ambiente ecologicamente equilibrado, como direito e dever de todos de assim mantê-lo, a ser efetivado pela boa conduta coletiva e (ao que interesse na presente pesquisa) políticas de governo. Contudo, seja um valor constitucional notório na esfera legislativa pátria, o Estado tem sido falho em proporcionar a seguridade socioambiental em face das gravosas tempestades de chuvas que provocam desastres no ecossistema.

O direito ambiental, ramo científico e autônomo da matéria jurídica, tutela o meio ambiente. Tal proteção é encontrada no artigo 225 da Constituição Federal, que relaciona a sadia qualidade de vida à devida manutenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, devendo o Poder Público e a coletividade serem agentes ativos nessa missão.

Neste desafio, em observância ainda aos fatídicos desastres naturais provocados pelas fortes chuvas ocorrentes no Brasil (em especial na região Sudeste, onde se concentra a maioria dos deslizamentos), convêm ressaltar que a responsabilidade civil do Estado é objetiva, quando o mesmo tinha o dever de agir e não agiu ou agiu deficientemente de modo a deixar de concretizar os princípios da precaução e prevenção intrínsecos ao direito ambiental.

Considera-se relevante a realização da presente pesquisa posto a mesma buscar reforçar o conhecimento acerca da responsabilidade do Estado para a efetividade dos valores constitucionais. Para isso, foi desenvolvida uma revisão bibliográfica com os posicionamentos doutrinários mais pertinentes ao objetivo perseguido, justificando-se pela contribuição que os teóricos possuem à compreensão e efetividade legislativa.

O método utilizado pelo pesquisador para a realização deste estudo foi o exploratório e descritivo. Ensina Gil (2002) que o método exploratório tem por objetivo tornar o tema mais explícito, aprimorando o conhecimento acerca do mesmo. Em se tratando da pesquisa descritiva, tem-se por princípio a descrição real e atual das características de determinada população ou fenômeno (neste caso, as enchentes e deslizamentos), perseguindo o conhecimento da situação vivenciada pela sociedade e revelando uma associação fundamental à Ciência Social.

 

  1. Evolução do Direito ao Meio Ambiente na Legislação Brasileira

O direito ambiental nem sempre foi presente e atuante em nossa sociedade. Assim como em outros países, naturalmente o Brasil passou por um processo de amadurecimento sociocultural que resultou em criação de leis ambientais no objetivo de tutelar o meio ambiente.

Milaré (2015) na tratativa do estudo evolutivo da legislação brasileira em relação a tutela do meio ambiente, diz que o despertar social para o tema da proteção ao meio ambiente veio a acontecer no século XX, entrando em debate o desenvolvimento sustentável e a solidariedade intergeracional. No Brasil, tal despertar ocorreu com a instituição do Código Civil de 1916, momento em que surgiram os primeiros diplomas legais sobre o meio ambiente, a exemplo do Código Florestal (Decreto 23.793, de 23.01.1934) e Código das Águas (Decreto 24.643, de 10.07.1934). No entanto, o desenvolvimento legislativo em sua forma mais consistente e célere teve provimento somente após décadas. Nas palavras de Édis Milaré (2015):

 

“Dentro de um espírito contemporâneo, podemos afirmar, sem medo de errar, que somente a partir da década de 1980, é que a legislação sobre a matéria passou a desenvolver-se com maior consistência e celeridade. É que o conjunto das leis até então não se preocupava em proteger o meio ambiente de forma específica e global, dele cuidando de maneira diluída, e mesmo casual, e na exata medida em que pudesse atender sua exploração pelo homem.”

 

O autor ainda destaca quatro importantes marcos na evolução legislativa ambiental brasileira. O primeiro deles ocorreu em 1981, quando instituiu-se o Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA) através da lei nº 6.938/81. Conforme define o Ministério do Meio Ambiente, trata-se da estrutura adotada para a gestão ambiental no Brasil, e é formado pelos órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios responsáveis pela proteção, melhoria e recuperação da qualidade ambiental no Brasil.

O segundo marco ocorreu no ano de 1985 com a instituição da Lei nº 7.347/85, na qual disciplina, dentre outros interesses difusos e coletivos, a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente. Milaré (2015) afirma que com o advento dessa lei a agressão  ao meio ambiente começou a ser um possível caso de Justiça, fortalecendo as entidades estatais, paraestatais e, sobretudo, as associações civis para, juntamente com o Ministério Público, agirem de maneira repreensiva contra atos inconsequentes que lesam o ambiente.

O terceiro marco (considerado o mais importante) deu-se com a promulgação da Carta Magna em 1988, a atual Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Neste momento histórico do Brasil a matéria ambiental teve seu próprio capítulo constitucional (Capítulo VI – Do Meio Ambiente), fortalecendo a autonomia da disciplina ambiental dentro do direito e motivando importantes feitas, como a origem das Constituições Estaduais e Leis Orgânicas dos Municípios (consideradas como Constituições locais).

O último marco destacado por Milaré (2015), de serventia ímpar ao estudo evolutivo da legislação ambiental brasileira, ocorreu em 1998 com a edição da lei 9.605/98, conhecida como “Lei dos Crimes Ambientais”. Tal lei objetiva legalizar sanções penais e administrativas em resposta a condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, representando um significativo avanço na tutela do ambiente por também tipificar organicamente os crimes ecológicos.

 

  1. O Direito Ambiental Contemporâneo no Brasil

Nos dias atuais a disciplina ambiental tem ganhado cada vez mais espaço no meio social. Isso se dá em razão das progressivas mudanças climáticas e esgotamento dos recursos naturais que são essenciais à sobrevivência dos seres vivos.

A primeira manifestação conceitual de meio ambiente é propriamente aplicada nos dias atuais. Tal conceito veio com a Lei Federal nº 6.938 de 1981, na qual disciplina a Política Nacional do Meio Ambiente, em seu art. 3º, inciso I, dispondo que o meio ambiente é “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.

O conceito disposto na Lei nº 6.938 de 1981 foi reforçado sete anos depois, quando a Constituição Federal de 1988 recepcionou tal diploma, dispondo ao tema “Do Meio Ambiente” um capítulo próprio (capítulo VI).

 

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

 

Desde então, toda e qualquer matéria acerca do meio ambiente em território brasileiro é norteada pela disposição constitucional do meio ambiente, que de uma maneira regular afirmou o seu conceito e reforçou sua importância na sociedade, sendo amplamente usada na disciplina ambiental hoje em dia.

No art. 5º, do título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais” da Constituição Federal, em seu inciso LXXIII, o legislador explicitamente constitui o meio ambiente como um direito fundamental da pessoa humana, quando conscientemente trata o tema ambiental no referido título II. Também importa em demonstrar sua fundamentalidade, quando legitima qualquer cidadão a propor ação popular que vise a anular algum ato lesivo ao meio ambiente.

Defendendo esse preceito de tutela ambiental, são vigentes no Brasil mecanismos de defesa que permitem erradicar atos lesivos e punir aqueles que causaram algum dano ao patrimônio natural. Em outras palavras, a aplicabilidade dos princípios da prevenção e precaução e da responsabilidade civil ambiental.

 

  1. Desastres Ambientais: Enchentes e Deslizamentos

Importa muito à seara do direito ambiental o estudo da atualidade; ter o conhecimento dos fenômenos naturais e desnaturais do nosso planeta é indispensável aos devidos cuidados ao meio ambiente e sociedade, objetivo este que é o princípio do direito ambiental. Em outras palavras, é necessário compreender a atual situação política, sociocomportamental e da geodinâmica terrestre, sabendo que na falha ou imprevisibilidade de um desses fenômenos que compõem nossa sociedade pode acarretar consequências catastróficas aos seres vivos.

Carvalho (2017), fazendo uma precisa análise sobre desastres ambientais, pontua que o conceito de desastre, no âmbito ambiental, pode ser encontrado na própria legislação pátria, a exemplo do decreto nº 7.257 de 2010, em seu art. 2º, inciso II, dispondo que desastre é o “resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem sobre um ecossistema vulnerável, causando danos humanos, materiais ou ambientais e conseqüentes prejuízos econômicos e sociais”.

O autor ainda esclarece que os desastres ambientais possuem caráter exponencial quanto as suas consequências (danos de difícil dimensão), podendo ser decorrentes de fenômenos naturais ou humanos, ocorridos de forma imediata ou continuada.

Dentre tantos desastres ambientais existentes, dois em especial marcam o Brasil por sua habitualidade com o passar dos anos, especialmente na região Sudeste do Brasil. No primeiro trimestre do ano de 2020 enfrentamos casos severos de enchentes e deslizamentos provocados por fortes chuvas, ocasionado milhares de vítimas do Sudeste brasileiro, algumas sendo fatais.

A grande fluidez no volume das águas comumente é associada ao venerável poder da natureza, que supostamente intensifica sua ação de chuva de modo imprevisível. No entanto, é preciso ir além, notando que as principais causas de enchentes possuem a prejudicial interferência humana. Assim pontua o Instituto da Água Sustentável (2020):

 

“As principais causas estão relacionadas a impermeabilização do solo, construções irregulares, disposição de lixos em terrenos baldios ou em locais sem estrutura adequada. Com isso a água da chuva se acumula, pois não tem meios necessários para infiltrar e assim escoar com maior rapidez.

Além de problemas estruturais, há também problemas orçamentários municipais, já que essa verba geralmente é escassa (ou mal gerida) para promover eficientes políticas públicas para contenção de enchentes, que acabam levando tudo embora e causando grandes prejuízos.”

 

Outro desastre ambiental que de maneira equivocada associa-se tão somente pelas fortes chuvas é o deslizamento de terras. Ocorre que tais deslizamentos são mais comuns em terrenos que foram indevidamente interferidos pelo homem, conforme elucida Freitas (2020):

 

“Os motivos que desencadeiam esse processo estão ligados à forma de relevo, estrutura geológica do terreno, além das ações humanas que intensificam os deslizamentos: retirada da cobertura vegetal de áreas de relevo acidentado, habitação em locais impróprios, oferecendo condições propícias para o desenvolvimento desse fenômeno.

O deslizamento é um processo que pode ocorrer em qualquer lugar do mundo. No Brasil, as pessoas que vivem nos centros urbanos e que mais sofrem são as de baixo poder aquisitivo, pois as áreas de risco em que habitam são uma das únicas alternativas para essa classe residir, visto que são lugares de pequeno valor comercial.
Em todos os anos, durante os períodos de chuva, veiculam notícias de enchente e deslizamento em áreas marginalizadas, produzindo prejuízos e mortes em diversas metrópoles brasileiras.”

 

Portanto, temos por evidente que enchentes e deslizamentos são desastres ambientais, mas não tão “naturais”, como erroneamente é encarado na sociedade. As construções irregulares decorrentes do mau planejamento de cidades e o deficiente ativismo público são contribuintes fiéis das catástrofes que, infelizmente, ano após ano são vivenciadas no Brasil.

 

  1. Princípios da Precaução e Prevenção

Em havendo o conhecimento acerca da potencial lesividade ao meio ambiente pela ação natural das fortes chuvas, tem-se em ação a essencialidade da efetivação de dois princípios basilares à tutela do meio ambiente ecologicamente equilibrado: o da precaução e da prevenção. Ou seja, há uma intrínseca relação desses princípios com o bem de uso comum do povo, objeto da preservação e reparação do dano ambiental através da instituição de normas constitucionais.

Preliminarmente, em razão das incertezas doutrinárias a respeito da diferença entre os princípios da precaução e prevenção, é importante conceitua-los e, consecutivamente, salientar suas particularidades.

O princípio da precaução está fundamentalmente presente na garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado e, assim como outros, orienta a interpretação, aplicabilidade legislativa e políticas ambientais. Trata-se de uma indispensável intervenção estatal em face da falta de plena certeza científica dos riscos ambientais provenientes das atividades humanas.

Segundo Derani (1997) a precaução é o cuidado que está ligado aos conceitos de afastamento de perigo e segurança das gerações futuras, revelando a busca da existência humana também através da observação aos riscos futuros decorrentes de empreendimentos humanos, os quais a compreensão científica não alcançou.

Em se tratando do aspecto legal, é possível encontrar embasamento legislativo para o referido princípio, tanto de maneira expressa, quanto implícita. Seu fundamento está alocado na Carta Magna e em leis, como a Lei nº 6.938/1981 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente) e Lei nº 9.605/1998 (lei que criminaliza as condutas lesivas ao meio ambiente).

Temos como maior operante para a concretude do princípio da precaução a avaliação do impacto ambiental para obras e atividades interligadas ao meio ambiente, conforme se extrai do art. 225, parágrafo 1º, inciso IV.

Já a Lei nº 9.605/1998 de maneira mais direta dispõe sobre as medidas de precaução, quando em seu art. 54, § 3º, prevê “medidas de precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível”.

O princípio da prevenção também é outro princípio indispensável à garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Aqui, diferente do princípio da precaução, temos um risco ambiental cientificamente demonstrável, já agindo para evitar diretamente um dano e não um mero risco.

Neste sentido, Granziera (2015) diz que a prevenção juntamente à análise prévia dos impactos que um determinado empreendido possa causar ao meio ambiente podem assegurar o benefício econômico derivado do meio ambiente sem causar danos ao mesmo.

O princípio da prevenção aparece em um primeiro momento na Lei 6.938/81, que rege a Política Nacional do Meio Ambiente, especificamente em seu artigo 2º, no qual prevê que “a política nacional do meio ambiente tem por objetivo a preservação”. Ou seja, a “preservação” constante no texto é indicativa da existência do caráter preventivo como uma das finalidades deste Diploma.

Remetemo-nos novamente ao consagrado e basilar art. 225 da Constituição Federal. Resta iniludível a presença do princípio constitucional da prevenção quando se incumbe ao Poder Público e à coletividade o dever de proteger e preservar o meio ambiente as presentes e futuras gerações.

Portanto, em que pese os dois princípios apresentam uma semelhança ideológica, qual seja, a repreensão do dano ambiental, é importante ressaltar que ambas possuem acepções distintas. Conforme elucida Wedy (2014), a diferenciação dos dois princípios está no fato de que a precaução se trata de uma medida para evitar o mero risco. Já o princípio da prevenção é aplicado para evitar diretamente o dano.

O autor ainda acredita que “uma situação de aplicação do princípio da precaução estaria antes da situação de aplicação do princípio da prevenção em face do hipotético dano”.

Inclusive, há manifestação jurisprudencial que aponta o entendimento da existência de diferença dos dois princípios.

O Tribunal Regional da 1ª Região já instrumentaliza, separadamente, a precaução (quando houver dúvida sobre o potencial deletério de uma determinada ação sobre o ambiente, toma-se a decisão mais conservadora, evitando-se a ação) e a prevenção (pois uma vez que se possa prever que uma certa atividade possa ser danosa, ela deve ser evitada), ambas em relação ao art. 225, caput, da Constituição Federal. (TRF 1ª Região, AgI 200301000096950/DF, Relator Desembargador Federal Antônio de Souza Prudente, j. 6-12-2004).

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em Agravo de Instrumento que trata de Ação Civil Pública, faz a comunicação do disposto art. 225 da CF com os princípios da precaução e prevenção.

 

“EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – MEIO AMBIENTE – MEDIDA LIMINAR CONCEDIDA – PERICULUM IN MORA INVERSO – LOTEAMENTO – ÁREA VERDE – PRINCÍPIOS DA PREVENÇÃO E DA PRECAUÇÃO – RECURSO DESPROVIDO. – O art. 225 da Constituição, ao instituir os princípios da precaução e prevenção como vetores axiológicos de tratamento da matéria ambiental, impôs que, em caso de certeza do dano ambiental, este deve ser prevenido, enquanto em caso de dúvida ou incerteza, deve ser precavido. Se ausentes provas hábeis a infirmar as evidências de provável dano ambiental, a manutenção da liminar para suspender as intervenções no meio ambiente é medida impositiva. Quando a revogação da tutela antecipada puder acarretar o risco de dano inverso (periculum in mora inverso), deve-se exercer um cuidadoso juízo de proporcionalidade, porquanto há provimentos que eventualmente podem causar prejuízos maiores que aqueles que visam evitar. (TJ-MG – AI: 10000190667733001 MG, Relator: Versiani Penna, Data de Julgamento 28/11/2019, Data de Publicação: 04/10/2019)”

 

A concretização dos princípios ora em comento se dá fundamentalmente pela, além da injeção econômica, proatividade dos entes públicos em promoverem ações destinadas a coibir desastres.

Ocorre que os números orçamentários e execuções de obras que visam a prevenção de desastres mostram um verdadeiro descrédito à causa.

No ano de 2019, segundo dados disponibilizados pelo Ministério da Economia e Ministério do Desenvolvimento Regional, a verba destinada às ações de prevenção de desastres naturais foi de R$ 306,2 milhões, valor este que é bastante inferior aos anos anteriores. Desse valor, menos de um terço foi usado para o seu devido fim, cerca de R$ 99 milhões liquidados.

Da verba total que fora destinada às ações de prevenção de desastres naturais, a maior parcela foi prevista para obras contra cheias e inundações, no montante de R$ 167,4 milhões. No entanto, nada dessa verba foi liquidada. Ou seja, não houve execução do serviço outrora pretendido.

Não bastando que o orçamento de prevenção de desastres fosse o menor em comparação a década anterior, o gasto do governo federal com tais ações de tutela ao meio ambiente, em 2019, foi igualmente menor em comparação a década passada. Pensemos, então, na hipótese dessa verba ter sido “bem gasta”; será que vidas teriam sido poupadas onde se fez necessário a tutela pública?

Para o ano de 2020, a verba para combate a desastres é ainda menor: R$ 284 milhões, uma redução de 11% em comparação ao ano passado. É notório que o governo federal não tem a delicadeza necessária à presente causa, qual seja, tutela ao meio ambiente e, consecutivamente, às vidas humanas.

Ademais, é importante mencionar os 3 principais programas promovidos pelo Ministério da Integração Nacional, quais sejam, o programa 1027 – Prevenção e Preparação para Desastres; 1029 – Resposta aos Desastres e Reconstrução e 2040 – Gestão de Riscos e Resposta a Desastres.

Pela análise histórica destes programas federais conclui-se por uma infeliz verdade: o Brasil possui uma deficiência catastrófica em criar políticas públicas de prevenção e monitoramento de desastres. Pois, muito embora tais programas possuem características de promover a prevenção de desastres e reparação dos que porventura ocorrerem, existe um desbalanceamento muito intenso entre esses dois objetivos constitutivos.

Conforme pesquisa promovida pela CNM (Confederação Nacional dos Municípios) e exposta por Liberato (2016), em análise dos anos 2005 a 2014:

 

“a União gastou R$ 6 bilhões em ações de proteção e defesa civil; destes, o governo federal empregou R$ 147,7 milhões em ações de prevenção, que correspondem a apenas 2% do investimento total. O que impressiona é que 98% foram gastos em ações emergenciais de resposta e de reconstrução de cenários afetados, ou seja, R$ 5,9 bilhões, em detrimento à prevenção.”

 

Resta evidente a deficiência estatal em prevenir as catástrofes naturais, mas se vê obrigado a “abrir o bolso” quando depara-se a uma tragédia natural.

Nesta senda, torna-se destacável outro importante princípio inserido na tutela ambiental: o da responsabilidade civil objetiva.

 

  1. Responsabilidade Civil Objetiva Estatal

Haja vista a preservação do meio ambiente ser a base em que se assenta a política econômica e social, a ela está atrelada a responsabilidade civil do Estado nos danos porventura existentes.

Preliminarmente, é importante saber o que é dano ambiental. Nas palavras de Antunes (2005) “o dano ambiental é a ação ou omissão que prejudique as diversas condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica que permita, abriguem e rejam a vida, em quaisquer de suas formas.”

Então, temos por princípio que o Estado na condição de administrador de uma sociedade pode ser responsabilizado comissivamente ou omissivamente por algum acontecimento danoso ao meio ambiente. Ou seja, haverá incidência de responsabilidade civil estatal quando o mesmo tinha o dever de agir e não agiu ou agiu deficientemente de modo a deixar de concretizar a seguridade do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Indispensavelmente à aplicação da responsabilidade temos o nexo de causalidade, que revela a necessidade do efeito a uma causa. Rodrigues (2015) ensina que o nexo é a razão de uma causa e um efeito produzido, significando em uma ligação de subsistência.

A responsabilidade objetiva, muito embora seja desnecessária a existência de culpa, é diretamente aplicada ao Poder Público na existência do dano ambiental. Sendo as enchentes e deslizamentos objetos do presente estudo, Carvalho (2015) torna explícito a sujeição do Estado na conjuntura da responsabilização civil “quando demonstrada a existência configuradora de uma omissão estatal em relação a um dever de agir para prevenção das consequências que redundaram em danos à vida, a propriedade e ao meio ambiente”.

O posicionamento doutrinário acerca da temática corrobora com a legislação pátria, a qual faz menção ao caráter objetivo da responsabilidade civil. A exemplo, temos o art. 14, § 1º da Lei 9.638/81.

 

Art. 14 – Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual e municipal, o não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores:

  • 1º – Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.

 

Posteriormente, nossa Carta Magna também aborda tal aspecto em seu § 3º do art. 225, quando prevê que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.

O disposto no art. 37, § 6º da Constituição Federal traz, de maneira clara, a configuração da natureza objetiva à responsabilidade civil do Estado, pautada tanto no ato comissivo, quanto na omissão.

 

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

  • 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

 

Nota-se que ricamente a doutrina e legislação relacionam o dano e a responsabilidade, pois a existência de um significa tendenciosamente na existência da outra, havendo naturalmente o ente público sujeito de responsabilidades quanto aos desastres ambientais.

Em relação às enchestes e deslizamentos que anualmente são ocorrentes no Brasil, a conduta dos entes federativos que mais é relacionada à responsabilidade civil é a omissiva. Ou seja, o poder público deixa de realizar a precaução e prevenção de desastres naturais, seja por avançados estudos meteorológicos prévios a períodos chuvosos, plano de maior permeabilidade do solo para evitar enchentes, realizações de obras objetivando melhor escoamento da água, campanha de conscientização da população acerca dos cuidados com o meio ambiente, maior eficácia do programa habitacional e consecutiva retirada de pessoas que vivem em locais impróprios sem a devida estrutura para serem feitas moradias, dentre outras tantas medidas de segurança.

Não é raro encontrar precedentes na justiça de ações contra um ente público, pois, como já dito, os danos causados pelas fortes chuvas (porque assim permite o Estado) são recorrentes a cada ano. Em pauta dessas ações está a responsabilidade civil, que busca por devidamente atribuir à administração pública a consequência do dano.

 

“DIREITO CONSTITUCIONAL. APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DEMANDA QUE VERSA SOBRE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS PRETENDIDA POR VÍTIMA DA TRAGÉDIA DO MORRO DE BUMBA. MUNICÍPIO DE NITERÓI E GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS. RECURSO VOLUNTÁRIO DE APELAÇÃO CÍVEL INTERPOSTA PELA PARTE AUTORA. RECURSO ADESIVO DOS RÉUS. DEMANDA SUJEITA À REMESSA NECESSÁRIA. 1) O deslizamento no Morro do Bumba, em Niterói, em abril de 2010, é fato notório. A tragédia atingiu vários imóveis e causou o soterramento e a morte de várias pessoas. 2) A Comunidade foi construída sobre um “lixão”, instalado em 1971 e desativado na década de 1980. 3) Não obstante tenha sido causado por fortes chuvas, era fato previsível, uma vez que a municipalidade tinha ciência de que a comunidade fora construída sobre um aterro sanitário, não tendo adotado nenhuma medida para a remoção das famílias. 4) No caso, alega o Autor que residia no local com sua enteada e companheira, que foi soterrada e faleceu sob os escombros no dia 08/04/2010. Alega, ainda, que, na ocasião, havia no imóvel o valor de R$ 25.000,00, que foi acautelado pelo Estado. Todavia, desapareceu. 5) Patente a responsabilidade civil do Ente Público quando se omite e permite construções de moradias em área de risco, contrariando as diretrizes da política urbana, conforme dispõe o art. 234, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro. Inobservância do art. 303 da Lei Orgânica do Município de Niterói. 6) A Responsabilidade é objetiva em virtude da omissão específica da Administração Pública, decorrente da sua inércia administrativa ao tolerar a ocupação irregular de um terreno que era ocupado por um antigo lixão, conforme se vê nos relatórios da Secretaria Municipal da Segurança e Defesa Civil e da Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente. (016373-76.2015.8.19.0002-Apelacao/Remessa Necessaria -Des (a). WERSON FRANCO PEREIRA RÊGO – Julgamento: 12/07/2018 – VIGÉSIMA QUINTA CÂMARA CÍVEL)”

 

“APELAÇÃO – REEXAME NECESSÁRIO – AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO INADEQUADA – ENCHENTE. Pretensão da autora em ver indenizados danos materiais e morais decorrentes de enchente que assolou o condomínio, causando quedas de muro – Pedido de obrigação de realização de obras objetivando melhor escoamento de água e esgoto na região da edificação do condomínio requerente e pagamento de danos materiais e morais. Sentença de parcial procedência, para determinar a obrigação de realização de obras e pagamento dos danos materiais. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – Responsabilidade objetiva do Estado e a teoria do risco administrativo – O artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, só atribui responsabilidade objetiva à Administração pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causem a terceiros – Para a indenização de atos e fatos estranhos e não relacionados com a atividade administrativa, observa-se o princípio geral da culpa civil. PRESENÇA DOS REQUISITOS ENSEJADORES DA OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR – Existência de dano – Os prejuízos sofridos pelo autor foram comprovados pelas provas colhidas nestes autos – Ausência de estrutura de drenagem, o que acabou por agravar a enchente – Laudo pericial que bem apontou que a enchente se deu pela deficiência de sistema de drenagem da área e igualmente pela falta de manutenção das “bocas de lobo” – Dever de indenizar. DANO MATERIAL – Devida comprovação nos autos dos alegados danos materiais – Procedência que deve ser mantida. Sentença mantida. Recurso voluntário e reexame necessário não providos. (TJ-SP – APL: 10103882320168260506 SP 101038823.2016.8.26.0506, Relator: Leonel Costa, Data de Julgamento: 30/06/2020, 8ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 30/06/2020)”

 

Como bem extrai-se das jurisprudências supramencionadas, as quais reforçam o entendimento doutrinário acerca da instituição da responsabilidade civil objetiva aos entes federativos, é plenamente possível construir a ideia de que se um fenômeno corriqueiro da natureza (período de forte chuva que a cada ano se tem) é ainda capaz de trazer consequências catastróficas ao meio ambiente, especialmente às vidas humanas, logo, tem-se por responsável o poder público, o qual é detentor dos recursos necessários à administração da sociedade.

É possível, sim, que seja imputada essa responsabilidade, pois as políticas públicas devem atender aos que necessitam da segurança estatal. Os mais necessitados são os de baixa renda, sendo possível dizer que representa quase a totalidade das vítimas das situações trágicas que ocorrem nos períodos chuvosos.

Por conseguinte, é urgente a necessidade de criar-se uma atenção especial ao revigoramento das políticas públicas que atendam aos princípios da precaução e prevenção das enchentes e deslizamentos que assolam a população precária do Brasil, para, assim, a responsabilidade civil deixar de ser objeto nas lides judiciais.

 

Considerações Finais

Em sutil revisão bibliográfica desenvolvida, conclui-se que a indispensabilidade dos princípios da precaução e prevenção (separadamente já reconhecidos) integra o cenário tutelar do meio ambiente, de modo que em se tratando do dever de preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado as presentes e futuras gerações (conforme o preceito constitucional do art. 225), tamanho sendo sua importância, os referidos princípios assumem o protagonismo nas ações de efetivação deste ideal socioambiental.

É sabido que no Estado de Direito brasileiro o Poder Público, através da proatividade dos entes públicos (União, Estados, Municípios e DF), é quem tem a capacidade de execução de planos para a concretização de princípios. Em outras palavras, as políticas públicas são a primazia da confirmação da matéria legislada, que de nada valerá caso não for notada e objetivada em investimentos públicos.

Na existência de enchentes e deslizamentos no âmbito da relação da sociedade com o meio ambiente, por todo o exposto, é natural apontar o Estado (entes públicos) como um sujeito automático que integra o polo ativo da questão. Caberá a justiça definir a gravidade de sua responsabilidade civil, que poderá até ser considerada inimputável, mas que ainda será passível de análise. Isso porque o Poder Público consiste em um sujeito administrativo da sociedade.

A responsabilidade civil objetiva é um instituto fundamental à reparação dos danos ambientais. O debate de sua existência e aplicabilidade tem se tornado cada vez mais importante, haja vista que notoriamente a precaução e prevenção de danos socioambientais não integra privilegiadamente a pauta das políticas públicas como deveria integrar, continuando, assim, ano após ano, a ocorrência de casos de desastres ambientais provocados pelas chuvas, quais sejam, enchentes e deslizamentos.

Portanto, é real o ferimento da norma constitucional de tutela ao meio ambiente, que, apesar de ser injusta a generalidade, é plenamente possível dizer que o Estado, sendo uma espécie de tutor socioambiental, é o maior responsável pela deficiência protetiva do ecossistema, devendo haver um revigoramento de políticas públicas que atendam a essa necessidade tão importante para a sociedade.

 

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