A argüição de descumprimento de preceito fundamental e a manipulação dos efeitos de sua decisão

1. Introdução

A Constituição Federal é a norma fundamental, ou seja, é nela que buscamos fundamento de validade das normas existentes no ordenamento jurídico[1][1], ocupando o último escalão da pirâmide de Kelsen. Todas as situações jurídicas devem com ela guardar relação de compatibilidade, sob pena de nulidade[2][2].

Na verdade, como bem assentado por José Afonso da Silva[3][3], “todas as normas que integram a ordenação jurídica nacional só serão válidas se se conformarem com as normas da Constituição Federal”.

No sistema constitucional pátrio está presente a característica da rigidez da Constituição[4][4], sobressaindo-se o princípio da supremacia das normas constitucionais, que na representação idealizada por Pinto Ferreira[5][5] é “como uma pedra angular, em que assenta o edifício do moderno direito político”.

Com o escopo de assegurar essa supremacia constitucional, há previsão na própria Carta Fundamental de toda uma “mecânica voltada a policiar a ordem jurídica” [6][6], tanto no que concerne ao controle da constitucionalidade propriamente dito, como no tocante à tarefa específica de dar efetividade às normas constitucionais.

Quanto à inconstitucionalidade, podemos dizer que consiste na incompatibilidade do conteúdo de determinado ato normativo ou comportamento[7][7], ou do seu processo de elaboração[8][8] com a Constituição Federal.

Regina Macedo Nery Ferrari salienta que “inconstitucional pode ser a ação ou omissão que ofende, no todo ou em parte a Constituição”[9][9]. É dizer, há também inconstitucionalidade quando ocorre a omissão do Poder Público que deixa de regulamentar dispositivo constitucional. “A incompatibilidade entre a conduta positiva exigida pela constituição e a conduta negativa do Poder Público omisso, configura-se na chamada inconstitucionalidade por omissão[10][10].

De antemão, já salientamos que a inconstitucionalidade não se confunde com o descumprimento de preceito fundamental. “O conceito de ‘descumprimento’ ultrapassa o âmbito da mera inconstitucionalidade, podendo açabancar até mesmo fatos do mundo concreto contrários à ‘realidade’ constitucional (realidade normativa, mundo do dever ser)”[11][11].

Pode-se dizer que o descumprimento não se trata especificamente de uma inconstitucionalidade, tampouco de uma contrariedade à Constituição, mas de violação a determinados preceitos, os fundamentais. É dizer, trata-se de uma incompatibilidade com parâmetro mais restrito que a inconstitucionalidade, de âmbito menor.

Em ambas hipóteses há incompatibilidade com a Constituição Federal, e urge ser expurgada do ordenamento jurídico. Com esta finalidade, sanando o vício de inconstitucionalidade e aplicando a sanção de nulidade existe o controle de constitucionalidade, que no ordenamento pátrio é misto ou híbrido[12][12], por existirem dois métodos ou sistemas para o exercício do controle repressivo de constitucionalidade[13][13]: o concentrado (ou reservado[14][14], ou via de ação, ou abstrato, ou direto); e o difuso (ou aberto, ou via de exceção ou defesa, ou descentralizado[15][15]).

O controle difuso tem como característica a potencialidade de ser encetado por qualquer juiz ou tribunal, diante de um determinado caso concreto[16][16], que decidirá sobre a compatibilidade de determinado ato com a Constituição Federal, como questão prévia, imprescindível ao julgamento da lide[17][17]. Neste a declaração de inconstitucionalidade não constitui objeto principal da ação, configurando-se como questão prejudicial, ou seja, “questão de direito substantivo de que depende a decisão final a tomar no processo”[18][18] e que fará parte da motivação do decisium, em julgamento incidenter tantum.

A decisão judicial, prolatada em processo no qual foi encetado esse controle, fará coisa julgada entre as partes e com relação restrita ao caso concreto apresentado em juízo, não vinculando outras decisões. Declarado inconstitucional, o ato normativo somente poderá ter suspensa sua execução caso a inconstitucionalidade seja definitivamente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, e após a edição de resolução do Senado, nos termos do artigo 52, X, da Constituição Federal.

No controle concentrado de constitucionalidade, diferentemente, procura-se obter a declaração de inconstitucionalidade de um ato normativo em tese ou omissão[19][19], independentemente da existência de uma lide.  Já nessa via de controle, o próprio pedido da ação intentada será a inconstitucionalidade do ato, que deverá ser declarada no dispositivo da decisão, em julgamento principaliter.

No controle direto temos: a ação declaratória de constitucionalidade, a ação direta de inconstitucionalidade por ação e omissão, a ação direta interventiva e a argüição de descumprimento de preceito fundamental.

2. Argüição de descumprimento de preceito fundamental

Acima já adiantamos nosso entendimento que a Argüição de descumprimento de preceito fundamental constitui mais uma das formas de controle concentrado de constitucionalidade[20][20], prevista no artigo 102, § 1º, da Constituição Federal [21][21], produto da atividade do Poder Constituinte Originário.

Já se disse[22][22] que “com a arguição, tem-se a complementação do sistema pátrio de controle da constitucionalidade, com uma medida extremamente aberta à correção dos atos estatais[23][23] violadores da Constituição”.

Com efeito, a arguição vem somar-se aos mecanismos assecuratórios do princípio da supremacia constitucional, com a particularidade de tutelar com especificidade a supremacia dos preceitos fundamentais da Carta Magna.

Elival da Silva Ramos[24][24] não esposa esse entendimento.  Após tecer críticas ao Legislador Constituinte devido a parcimônia na previsão do novel instituto, consigna:

“(…)não nos parece aceitável extrair-se de um dispositivo com um conteúdo significativo tão fluído, como é o caso do § 1º do art. 102, a interpretação de que ali se permitiu ao Legislador Infraconstitucional a instituição de um instrumento a mais voltado ao controle da constitucionalidade de leis ou atos normativos diante da Constituição Federal, controle esse, conforme gizado pelo Pretório Excelso, de natureza extraordinária, a exigir expressa manifestação de vontade do Constituinte.”

Em que pese esse posicionamento, pensamos que a arguição de descumprimento de preceito fundamental se insere no rol dos institutos voltados ao controle concentrado da constitucionalidade[25][25], mormente porque dotado da característica específica, como já adiantamos, de tutela dos preceitos constitucionais fundamentais.

Como ressalta André Ramos Tavares[26][26]:

“Não obstante admitir-se a possibilidade de que mais de uma ação preste-se ao mesmo objetivo, a verdade é que, com a introdução da argüição, para ela desviam-se todos os descumprimentos de preceitos fundamentais da Constituição” .

2.1 O § 1º do artigo 102 da Constituição

O Pretório Excelso entendeu que a previsão constitucional não era auto-aplicável[27][27], sendo imprescindível a lei regulamentadora para o exercício do direito de propor a argüição.

Como se constata no próprio texto constitucional, a apreciação da arguição do descumprimento de preceito fundamental será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal “na forma da lei”.

Estamos diante, portanto, de uma “norma constitucional de eficácia limitada ou reduzida, definidora de princípio institutivo”, na respeitada classificação de José Afonso da Silva, em Aplicabilidade das normas constitucionais, como leciona Walter Claudius Rothenburg [28][28].

A regulamentação da argüição de descumprimento de preceito fundamental somente veio em 03 de dezembro de 1999, pela Lei no 9.882[29][29].

Desse ponto em diante, procuraremos enfatizar as inconstitucionalidades advindas do regramento infraconstitucional dispensado ao instrumento em testilha.

2.2 Legitimação Ativa

Os legitimados ativos para propor a argüição estão elencados no artigo 2º, inciso I da Lei nº. 9.882/99 e são os mesmos da ação direta de inconstitucionalidade[30][30]: Presidente da República, Mesa do Senado Federal, Mesa da Câmara dos Deputados, Mesa de Assembléia Legislativa, Governador de Estado, Procurador-Geral da República, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso Nacional, confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

Foi vetado o inciso II, que versava sobre a legitimidade de “qualquer pessoa lesada ou ameaçada por ato do Poder Público” propor a argüição, com fundamento de se conceder um acesso irrestrito, direto, e individual ao Supremo Tribunal Federal, que é incompatível com o controle concentrado de constitucionalidade, e ensejaria uma elevação excessiva do número de feitos a serem apreciados pela Corte Suprema. Tal veto foi alvo de severas críticas da doutrina de Zeno Veloso[31][31] e Maria Garcia[32][32].

2.3 Objeto

Logo no artigo 1º da Lei está exposto o objeto da argüição, que se resume em “evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público” (caput) e “quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição” (inciso I do parágrafo único).

A respeito desse artigo 1º, inúmeras inovações podem ser apontadas.   Contudo, a priori é cogente ao menos tentar delinear a idéia do que seja preceito fundamental.

2.4 “Preceito fundamental decorrente desta Constituição”[33][33]

Nos soa oportuno trazer à colação as ensinanças de Daniel Sarmento, que tecendo comentários sobre a definição do que sejam os preceitos fundamentais, acaba por elogiar, nesse aspecto, o texto legal, dizendo que:

“Ao valer-se de um conceito jurídico indeterminado, a lei conferiu uma maleabilidade maior à jurisprudência, que poderá acomodar com mais facilidade mudanças no mundo dos fatos, bem como a interpretação evolutiva da Constituição”[34][34].

Sem embargo do corretismo dessas colocações, parece-nos ser possível ao menos aproximar-nos de um mínimo conceitual do que seja preceito fundamental, nem que seja com o escopo de evitar-se restrições incabíveis ao conteúdo do termo, ou mesmo elastérios inconcebíveis diante da própria finalidade do instituto[35][35].

É o caso, já de início, de não se restringir a idéia de preceito ao que costumamos denominar princípios.

Não é errado afirmar que o conteúdo possível a ser dado aos preceitos suplanta aquele próprio dos princípios.  Os segundos incluem-se nos primeiros, que abarcam também as regras.

Mas todas as regras e princípios constitucionais se acham inseridas no conceito de preceitos fundamentais?  Por óbvio não.

É exatamente o caráter da fundamentalidade do preceito que determinará sua inclusão nas hipóteses de abrangência de proteção por meio da arguição.

André Ramos Tavares[36][36] pondera que “Há de se considerar fundamental o preceito quando o mesmo apresentar-se como imprescindível, basilar ou inafastável”.

Nesta esteira, Alexandre de Moraes[37][37] escreve que:

“Os preceitos fundamentais englobam os direitos e garantias fundamentais da Constituição, bem como os fundamentos e objetivos fundamentais da República, de forma a consagrar maior efetividade às previsões constitucionais”.

Carlos Velloso conclui que “preceito fundamental é expressão que abrange mais do que princípios fundamentais (C.F., arts. 1º a 4º)”[38][38].

Walter Claudius Rothenburg[39][39] concorda com a enumeração de André Ramos Tavares: cláusulas pétreas (art. 60, parágrafo 4º), princípios sensíveis, princípios fundamentais traduzidos em fundamentos (art. 1º, CF), objetivos (art. 3º) e princípios retores das relações internacionais (art. 4º, CF). No mesmo sentido é a lição de Elival da Silva Ramos [40][40] e Gilmar Ferreira Mendes [41][41].

Por fim, resta dizer que a expressão “decorrente” utilizada pelo Poder Constituinte Originário tem razão de ser, na medida em que leva em conta que preceitos fundamentais existem por decorrência direta e indireta do Texto Constitucional.

Os princípios, por exemplo, apresentam-se ora expressos na Carta Magna, ora implícitos no seu texto. Mas sempre, para que sejam considerados constitucionais, devem da própria Constituição decorrer.   E com os preceitos fundamentais o mesmo se dá.

2.5 Atos do Poder Público

Limitando o conteúdo e alcance da previsão constitucional, a Lei regulamentadora da argüição de descumprimento de preceito fundamental restringiu o cabimento desse instrumento para os casos de lesão ou possibilidade de lesão de preceitos fundamentais advinda de ato do Poder Público.

Interpretação conforme a Constituição desse caput do artigo 1º da Lei nº. 9.882 apresenta-se para Walter Claudius Rothenburg como verdadeira necessidade “para admitir a argüição também na eventualidade de o preceito fundamental ser violado por ato de particular em condições de equiparação a ato do Poder Público”[42][42].

Daniel Sarmento[43][43] recomenda também que a expressão ‘ato do Poder Público’ “deve ser compreendida em seu sentido mais lato”,  alcançando, também, “os atos de particulares que agem investidos de autoridade pública, como os praticados por empresas concessionárias e permissionárias de serviço público”[44][44].

A verdade é que inúmeros e variados atos não normativos estão agora suscetíveis de ser objeto da argüição, que por não ter havido especificação da natureza do ato lesivo, estende-se também aos atos omissivos[45][45].

O de relevo a ficar registrado nesse trabalho é que, diferentemente da previsão constitucional a respeito da ação direta de inconstitucionalidade, não apenas a lei ou o ato normativo federal e estadual se acham abarcados na possibilidade de terem sua conformação com as normas constitucionais apreciada por meio da argüição, mas também os atos do Poder Público, bem como a lei ou o ato normativo municipal.

Esta derradeira hipótese, a da lei ou ato normativo municipal, é outra inovação de elevado quilate na sistemática do controle de constitucionalidade.

2.5.1 Controle da constitucionalidade dos atos normativos municipais

Embora a previsão “ato do Poder Público” seja ampla, sem limitações evidentes, o inciso I, do parágrafo único, do artigo 1º, da Lei nº. 9.882/99, prevê expressamente a potencialidade de impugnação por argüição dos atos normativos municipais.

Gilmar Ferreira Mendes afirma que “ao permitir que não apenas o direito federal, mas também o direito estadual e municipal possam ser objeto de pedido de declaração de constitucionalidade”[46][46], a argüição de descumprimento de preceito fundamental veio mesmo a completar o quadro das “ações declaratórias”.

E acrescentamos, ainda, que por duas razões essa conclusão acima se robustece.

Não só a legislação municipal, mas também as normas do Distrito Federal, encontram-se agora albergadas nesse controle na sua integralidade.   Se antes o Supremo Tribunal Federal afirmava que os atos normativos distritais apenas quando decorressem do exercício de competência legislativa própria dos Estados se submeteriam ao controle abstrato, agora também, por meio da argüição, aquelas editadas no exercício da competência legislativa de natureza típica dos Municípios se incluem[47][47].

Embora estejamos exaltando essa ampliação no objeto do controle concentrado da constitucionalidade, há quem sustente tratar-se de verdadeira inconstitucionalidade.

É o raciocínio de Alexandre de Moraes, que enxerga violação do desígnio do constituinte originário de restringir o controle abstrato às normas federais e estaduais, consoante redação do art. 102, inciso I, alínea a, da CF; e também por ter havido extensão da competência do Supremo Tribunal Federal por meio de lei[48][48].

Contrariamente, não vislumbramos qualquer violação da Constituição, neste particular.

Primeiro porque, neste aspecto, não há razão alguma para se lançar mão de analogia entre a argüição e a ação direta de inconstitucionalidade.  Apenas nessa última existe limitação constitucional às normas federais e estaduais.  Não nos parece que o escopo da Constituição, com a previsão restritiva das hipóteses de cabimento da ação direta de inconstitucionalidade, pretendeu restringir o cabimento de todos os demais mecanismos de controle abstrato da constitucionalidade.

Segundo porque o § 1º do artigo 102 da Constituição Federal não faz qualquer ressalva, sendo que em sua parcimoniosa redação[49][49], dá ensejo até, como já assinalamos alhures, ao cabimento da argüição em casos de lesão ou ameaça de lesão aos preceitos fundamentais por meio de ato de particular.  Ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus.

Por fim, pensamos que a Lei nº. 9.882/99 não operou uma extensão na competência do Supremo Tribunal Federal, tendo apenas regulamentado o instituto constitucional, em cumprimento da determinação do próprio Texto Fundamental.  A competência do STF para julgamento da argüição é expressa e a única restrição que nos parece real é a concernente a existência[50][50] de descumprimento de preceito fundamental.

Nem mesmo restrição às normas pré-constitucionais existe. E a hipótese de análise dos atos normativos federais, estaduais, municipais e distritais por meio da argüição inclui, ainda, os anteriores à Constituição[51][51].

Como cediço, reiterada jurisprudência do Pretório Excelso impede a utilização de ação declaratória de inconstitucionalidade contra ato normativo precedente à Constituição, sob o fundamento de que se trata de simples revogação[52][52].

Agora, com a previsão expressa dessa possibilidade, ao menos por meio da argüição o direito anterior poderá ser objeto do controle abstrato da constitucionalidade.

É uma “solução que vem colmatar uma lacuna importante no sistema constitucional brasileiro, permitindo que controvérsias relevantes afetas ao direito pré-constitucional sejam solvidas pelo Supremo Tribunal Federal, com eficácia geral e efeito vinculante”[53][53].

Aqui, ainda, urge consignar a previsão de verdadeira condição de procedibilidade da argüição fundada no art. 1º, parágrafo único, inciso I da Lei nº. 9.882/99.

É a necessidade de ser relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre os atos normativos elencados naquele dispositivo.

2.6 Modalidades

André Ramos Tavares entende que existem duas modalidades de argüição: a  “autônoma” e a argüição “incidental”.

“A argüição autônoma está presente no caput do art. 1o da Lei da Argüição. Sua previsão dá-se nos seguintes termos: ‘A argüição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público’. A apresentação desta modalidade, pois, ocorre direta e originariamente perante a Corte Suprema, sem qualquer outro processo judicial anterior” [54][54].

Acrescenta o mencionado autor que:

“Ao lado da denominada argüição autônoma há de se falar de uma segunda modalidade, a argüição incidental[55][55], paralela à um processo qualquer já instaurado e que surge em função deste”.

Juliano Taveira Bernardes[56][56] trata a argüição como instituto bivalente, ora revestindo-se de caráter processual autônomo, funcionando como verdadeira ação sumária (argüição autônoma), ora equivalendo-se a um incidente processual de inconstitucionalidade (argüição incidental). No mesmo sentido é o entendimento de Gustavo Binenbojm [57][57].

2.7 Subsidiariedade da argüição

Há vedação expressa da possibilidade de se propor a argüição de descumprimento de preceito fundamental quando existir qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade[58][58]. Trata-se do princípio da subsidiariedade. Institutos similares no direito estrangeiro: “a Verfassungsbeshwerde alemã e o recurso de amparo espanhol, têm, igualmente, caráter de subsidiariedade; só podem ser interpostos após terem sido esgotadas, regularmente, as vias judiciais”[59][59].

Gilmar Ferreira Mendes entende que “a simples existência de ações ou de outros recursos processuais – vias processuais ordinárias – não poderá servir de óbice à formulação da argüição de descumprimento. Ao contrário, tal como explicado, a multiplicação de processos e decisões sobre um dado tema constitucional reclama, a mais das vezes, a utilização de um instrumento de feição concentrada, que permita a solução definitiva e abrangente da controvérsia”[60][60].

Zeno Veloso trata a argüição como “remédio excepcional, último, extremo”[61][61], defendendo que considerando-se que nosso sistema de controle de constitucionalidade é amplo, complexo, e abrangente e sendo a argüição uma ação supletiva, subsidiária, “não há como deixar de concluir que sua utilização será possível em casos muito raros e limitados”[62][62].

Alexandre de Moraes alerta para o fato de que a argüição “não substitui as demais previsões constitucionais que tenham semelhante finalidade, tais como habeas corpus, habeas data; mandado de segurança individual e coletivo; mandado de injunção; ação popular; ações diretas de inconstitucionalidade genérica; interventiva e por omissão e ação declaratória de constitucionalidade”[63][63].

O Ministro Carlos Velloso[64][64] afirma sobre o princípio da subsidiariedade:

“Praticamente, sempre existirá, no controle concentrado ou difuso, a possibilidade de utilização de ação ou recurso a fim de sanar lesão a preceito constitucional fundamental. Então, se o Supremo Tribunal Federal der interpretação literal, rigorosa, ao § 1º do art. 4º da Lei 9.882/99, a argüição será, tal qual está ocorrendo com o mandado de injunção, posta de lado. De outro lado, o Supremo Tribunal Federal, na construção da doutrina dessa argüição, deverá proceder com cautela, sob pena de consagrar, por exemplo, a ação direta de inconstitucionalidade de ato normativo municipal em face da Constituição Federal, inclusive dos atos anteriores a esta. E isto o constituinte não quis, nem seria suportável pelo Supremo Tribunal, dado que temos mais de cinco mil municípios.

Dominado o processo da argüição de descumprimento de preceito fundamental pelo princípio da subsidiariedade, não será ela admitida quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a argüição n. 03, Relator o Ministro Sydney Sanches, reconheceu a aplicabilidade do princípio. Há os que sustentam que esse outro meio eficaz deverá ser buscado no controle concentrado, apenas. Vale dizer, com a ação direta de inconstitucionalidade, inclusive a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e a ação declaratória de constitucionalidade. Esse parece ser o entendimento de Gilmar Ferreira Mendes, que leciona: ‘Assim, tendo em vista o caráter acentuadamente objetivo da argüição de descumprimento, o juízo de subsidiariedade há de ter em vista, especialmente, os demais processos objetivos já consolidados no sistema constitucional’. E mais adiante observa que, ‘assim, tendo em vista o perfil objetivo da argüição de descumprimento, com legitimação diversa, dificilmente poder-se-á vislumbrar uma autêntica relação de subsidiariedade entre o novel instituto e as formas ordinárias ou convencionais de controle de constitucionalidade do sistema difuso, expressas, fundamentalmente, no uso do recurso extraordinário.

O Supremo Tribunal Federal, entretanto, no julgamento da argüição n. 03, Relator o Ministro Sydney Sanches, decidiu no sentido de que outro meio eficaz de sanar a lesividade poderia ser buscado no controle difuso, vale dizer, em qualquer ação ou recurso, inclusive o recurso extraordinário, ou em quaisquer meios judiciais eficazes para se sanar a lesividade.”

E conclui o Ministro do Pretório Excelso:

“A questão, ao que penso, não está solucionada em definitivo e o Supremo Tribunal Federal certamente voltará ao tema, devendo considerar, repito as palavras ditas anteriormente, que, praticamente, sempre existirá, no controle difuso, ações e recursos que poderiam ser utilizados a fim de sanar a lesividade. Para que serviria, então, a argüição de descumprimento de preceito fundamental?”. [65][65]

Entendemos que a argüição não pode ser utilizada como sucedâneo dos remédios constitucionais, sejam os de controle de constitucionalidade, sejam os que asseguram as liberdades.

Contudo, deve o princípio da subsidiariedade ser aplicado com cautela, evitando-se a eliminação das possibilidades de propositura da argüição, sob pena de inconstitucionalidade, por violação ao artigo 102, § 1º, da Constituição Federal.

2.8 Procedimento

O procedimento da argüição apresenta semelhanças com o da ação declaratória e da ação direta de inconstitucionalidade. A petição inicial deverá conter[66][66]: a indicação do preceito fundamental que se considera violado; a indicação do ato do Poder Público questionado; prova da violação do preceito; o pedido e suas especificações; e, se for o caso, a comprovação da existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental que se considera violado. A inicial será indeferida liminarmente[67][67], pelo relator, quando não for o caso de argüição, faltar algum dos requisitos prescritos na Lei ou for inepta, cabendo agravo[68][68], desta decisão, no prazo de cinco dias.

É possível a concessão de liminar[69][69], por decisão tomada pela maioria absoluta dos membros do Pretório Excelso. Excepcionalmente, cabe ao relator conceder a liminar, ad referendum do Pleno, em caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave, ou, outrossim, em período de recesso. A liminar poderá consistir na determinação de que juízes e tribunais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental, salvo se decorrentes de coisa julgada[70][70]. Entendemos que tal dispositivo possibilita a propositura da argüição de descumprimento de preceito fundamental para impugnar a coisa julgada, como ato do Poder Público, desde que, logicamente, ocorra descumprimento de preceito fundamental.

Após a apreciação do pedido de liminar, o relator poderá ouvir os órgãos ou autoridades responsáveis pela prática do ato questionado[71][71], bem como o Advogado Geral da União, e o Procurador Geral da República[72][72], no prazo de dez dias.

Decorrido o prazo para o envio das informações, o relator lançará relatório, com cópia a todos os ministros, e pedirá dia para julgamento[73][73]. O quorum para a instalação da sessão de julgamento é de dois terços dos ministros[74][74].

Com o julgamento da ação, as autoridades ou órgãos responsáveis pela prática dos atos questionados deverão ser comunicados, fixando-se as condições e o modo obrigatórios de interpretação e aplicação do preceito fundamental[75][75].

3. Efeitos da decisão proferida na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental

A decisão na argüição de descumprimento de preceito fundamental poderá ter, segundo a nova previsão legal, efeitos erga omnes, efeito vinculante, efeito ex tunc ou ex nunc, e efeito repristinatório. Abordaremos cada um deles, discorrendo acerca da conformidade com as normas constitucionais.

A Lei n. 9.882/99, em seu artigo 10, parágrafo 3º, prevê a eficácia contra todos e o efeito vinculante da decisão prolatada na argüição[76][76].

Mas poderia o legislador validamente prever o efeito vinculante da decisão proferida na argüição de descumprimento de preceito fundamental[77][77] sem violação ao Texto Supremo ?

Sem embargo de respeitáveis opiniões em sentido contrário, há irremissível inconstitucionalidade por violação ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, do juiz natural, das normas que prevêem a possibilidade de controle de constitucionalidade de leis e atos normativos incidentalmente, e do princípio da separação de poderes.

Maria Helena Diniz leciona que no Brasil “o juiz não tem o poder de legislar”[78][78], assim o Supremo Tribunal Federal ao proferir decisões vinculantes estará “usurpando funções do Poder Legislativo e retirando dos juízes a liberdade de apreciação do caso sub judice e o uso do livre-convencimento.  Os magistrados perderiam a independência para decidir, tão necessária para garantir os direitos dos jurisdicionados, como diz Rui Barbosa, pois passariam a cumprir normas ditadas pelos Tribunais Superiores”, e conclui que admitir o efeito vinculante significa “comprometer os princípios da independência dos três poderes, do duplo grau de jurisdição, do devido processo legal, da inafastabilidade do controle jurisdicional, da ampla defesa etc.”[79][79]

Há violação ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional[80][80] porque “embora o particular possa dirigir ao Judiciário pretensão de reparação de ofensa a direito seu, na prática isto não ocorre, porque o Judiciário só pode aplicar ao caso concreto o que restou decidido pelo STF” [81][81]. A possibilidade de adoção da tese suscitada pelo particular é nenhuma, já que há o efeito vinculante da decisão do Pretório Excelso, restando abolida por via oblíqua ou indireta o próprio direito de ação .

O princípio do juiz natural[82][82] foi violado, eis que foi subtraída da competência dos juízes e Tribunais o exercício do controle difuso de constitucionalidade das leis e atos normativos, cuja compatibilidade já foi apreciada pelo Pretório Excelso em sede de controle concentrado de constitucionalidade. Mister se faz ressaltar que há violação ao princípio do juiz natural, pois a própria Constituição prevê a competência dos julgadores exercerem o controle difuso de constitucionalidade, sem qualquer restrição feita pelo poder constituinte originário.

A independência dos magistrados restou violada com a previsão do efeito vinculante da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Todos os juízes e Tribunais estarão compelidos, em face do citado efeito, “a emprestar, com automaticidade imprópria ao ofício judicante, ou seja, sem a realização de um julgamento livre e, portanto, norteado pela prova dos autos e convencimento formado, solução idêntica às lides”[83][83].

Apresentam-se como inconstitucionais os citados dispositivos legais, por violação à independência judicial, que encontra previsão implícita na Constituição Federal.

As previsões legais acima citadas são incompatíveis com os artigos 97 e 102, III, a, b e c, da Constituição Federal, que estabelecem o poder de qualquer juiz ou tribunal de deixar de aplicar a lei inconstitucional. Declarada a inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, não há possibilidade de apreciação quanto a constitucionalidade ou não de determinada lei ou ato normativo. Em síntese, o efeito vinculante no controle concentrado praticamente elimina a potencialidade de controle difuso de constitucionalidade da norma apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, caracterizando-se como manifestamente inconstitucional[84][84].

Somente o poder constituinte originário é que poderia prever o efeito vinculante no controle concentrado, já que há incompatibilidade com as cláusulas pétreas, inclusive com a garantia do controle concentrado de constitucionalidade, verdadeira garantia individual.

A separação de poderes, como é cediço, constitui cláusula pétrea[85][85],  fazendo parte do núcleo imodificável, intangível da Constituição Federal. A finalidade da previsão da separação de poderes foi evitar o arbítrio e garantir a liberdade do cidadão[86][86], com a previsão da reciprocidade de controle, exercitado inclusive pelos juízes e Tribunais.

Não se pode admitir que as decisões do Supremo Tribunal Federal proferidas em ação direta, ação declaratória e na argüição de descumprimento de preceito fundamental, vinculem todos os poderes e órgãos públicos, nos termos da legislação vigente. Impende lembrar que tais decisões são irrecorríveis e não são passíveis de ação rescisória, são eternas. Característica que nem a lei  possui.

A previsão legal do efeito vinculante viola o princípio da separação de poderes, já que impossibilita qualquer controle, mesmo o interno, pelo próprio Tribunal Constitucional[87][87] que não terá possibilidade de rever seu entendimento já externado em qualquer das ações acima citadas. Ademais, nem o legislativo, nem o executivo poderão editar, no futuro, lei ou ato normativo com  fundamentos ou motivos determinantes idênticos ou semelhantes ao ato que foi anteriormente declarado inconstitucional em sede de controle concentrado de constitucionalidade, afigurando-se tal restrição como inconstitucional por violação ao princípio da separação de poderes, já que tal limitação somente poderia ser imposta pelo poder constituinte originário. Tampouco os juízes ou Tribunais poderão decidir contrariamente ao que foi decidido pelo Pretório Excelso nas ações acima.

Entendemos que as previsões legais em estudo são manifestamente inconstitucionais. Sem embargo de respeitáveis opiniões, de juristas de escol, em sentido contrário.

Gilmar Ferreira Mendes entende que é compatível com a Constituição a previsão legal do efeito vinculante:

“Em verdade, o efeito vinculante decorre do particular papel político-institucional desempenhado pela Corte ou pelo Tribunal Constitucional, que deve zelar pela observância estrita da Constituição nos processos especiais concebidos para solver determinadas e específicas controvérsias constitucionais”[88][88].

O professor Zeno Veloso salienta que as decisões do Supremo Tribunal Federal, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, “adquiriram status de fontes do direito”[89][89]. “A norma cuja inconstitucionalidade foi declarada não pode ser mais aplicada. Nem se pode questionar a validade da que teve reconhecida sua constitucionalidade”[90][90].

Entendemos que o efeito vinculante restringe demasiadamente a liberdade do operador do direito ao eliminar a possibilidade de interpretação da norma jurídica.

Vale lembrar, por derradeiro, que existem os efeitos repristinatórios na declaração de inconstitucionalidade. A declaração de inconstitucionalidade “torna aplicável a legislação anterior, que havia sido revogada pela norma impugnada.

Os efeitos repristinatórios decorrem automaticamente da declaração de inconstitucionalidade proferida pelo STF, independentemente de previsão no acórdão”[91][91].

3.1 A manipulação dos efeitos da decisão proferida na argüição

A Lei 9.882/99[92][92], de forma semelhante à Lei 9.868/99, traz novidade em relação aos efeitos do controle de constitucionalidade, ao criar o que se denominou de “manipulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade”[93][93], possibilitando que o Supremo Tribunal Federal limite os efeitos da declaração de inconstitucionalidade .

Alexandre de Moraes ressalta que, antes da edição destas leis, Paulo Bonavides já defendia a necessidade de abrandamento dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade no controle direto, nos termos da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão[94][94].

Zeno Veloso afirma que, há muito, já insinuava que se deveria conferir ao Supremo Tribunal Federal o poder de determinar os efeitos, a extensão de declaração de inconstitucionalidade, inclusive, estatuindo a reentrada em vigor, ou não, da norma que a lei inconstitucional havia revogado[95][95].

A lei da argüição concedeu permissão para que o Supremo Tribunal Federal manipule os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, “seja em relação a sua amplitude, seja em relação a seus efeitos temporais, desde que  presentes dois requisitos”[96][96]: formal e material[97][97]. Aquele diz respeito ao quorum de dois terços para a decisão que manipulará os efeitos. Este constitui a presença de razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social.

Verifica-se que somente em casos excepcionais, extraordinários, por razões de segurança jurídica ou em caso de excepcional interesse social, o Supremo Tribunal Federal, mediante decisão da maioria qualificada, poderá “estabelecer limites aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, proferindo a inconstitucionalidade com eficácia ex nunc ou pro futuro, especialmente naqueles casos em que a declaração de nulidade se mostra inadequada (v.g., lesão positiva ao princípio da isonomia) ou nas hipóteses em que a lacuna resultante da declaração de nulidade possa dar ensejo ao surgimento de uma situação ainda mais afastada da vontade constitucional”[98][98].

A regra continua sendo a da eficácia ex tunc da declaração de inconstitucionalidade, logicamente, caso se admita a compatibilidade da inovação legislativa com a Constituição Federal.

Na exceção[99][99], presentes os requisitos materiais e formais acima, admite-se que o Supremo Tribunal Federal limite a amplitude dos efeitos: afastando a nulidade de alguns atos do poder público com fulcro na lei inconstitucional, ou afastando a incidência da decisão que reconhece a inconstitucionalidade em relação a algumas situações (restringindo os efeitos erga omnes), ou eliminando (parcial ou totalmente) os efeitos repristinatórios da decisão [100][100].

Entendemos que a possibilidade do Pretório Excelso decidir sobre os efeitos da decisão que declara a inconstitucionalidade[101][101] pode ser dividida quanto aos efeitos temporais, em: a) ex nunc, ou seja, não retroativos. Surtindo efeitos a partir do trânsito em julgado; b) porvir, ou seja, futuramente, posteriormente à prolação da decisão de inconstitucionalidade. A qualquer momento futuro, fixado a critério do Supremo Tribunal Federal; e c) retroativamente, em período fixado entre data posterior ao dia que tem início a vigência e anterior à declaração de inconstitucionalidade[102][102].

A regra geral continua sendo do efeito ex tunc, ou seja, entre a data do início da vigência e a declaração de inconstitucionalidade.

Alexandre de Moraes entende que há uma restrição lógica à fixação do momento inicial para a incidência dos efeitos, que não fica inteiramente ao alvitre do guardião da Constituição.

“Assim, se o STF entender pela aplicação dessa hipótese excepcional, deverá escolher como termo inicial da produção dos efeitos qualquer momento entre a edição da norma e a publicação oficial da decisão. Dessa forma, não poderá o STF estipular como termo inicial para produção dos efeitos da decisão, data posterior à publicação da decisão no Diário Oficial, uma vez que a norma inconstitucional não mais pertence ao ordenamento jurídico, não podendo permanecer produzindo efeitos”[103][103].

A norma em estudo possibilita, outrossim, a restrição do efeito erga omnes[104][104] e do efeito repristinatório[105][105], já que na redação dos artigos[106][106] não há limitação expressa, pelo contrário, ambas dispõem de forma ampla: “retringir os efeitos daquela declaração”.

Não se pode olvidar que a restrição ao efeito erga omnes (para todos), bem como aos outros efeitos, devem compatibilizar-se com o princípio da isonomia, sob pena de irremissível inconstitucionalidade, impondo-se o fiel cumprimento da Constituição por seu guardião.  

3.2 Análise da compatibilidade da manipulação dos efeitos da decisão na argüição com a Constituição Federal

Questão que deve ser tratada é a compatibilidade ou não do dispositivo da Lei 9.882/99, que versa sobre a manipulação dos efeitos da decisão prolatada na argüição com a Constituição Federal.

Quanto ao efeito retroativo ou ex tunc da declaração de inconstitucionalidade, seja via ação direta seja ação declaratória, dissemos que, embora não conste expressamente na Lei Maior, predomina o entendimento que consagra a nulidade do ato inconstitucional, retroagindo a sua declaração (efeito ex tunc), já que tais atos não possuem aptidão para surtir efeitos jurídicos válidos. Tal tese encontra, segundo a doutrina e a jurisprudência do Pretório Excelso, fundamento no princípio que consagra a supremacia da Constituição.

Convém repetir as palavras de Gilmar Ferreira Mendes:

“O princípio da nulidade da lei inconstitucional tem hierarquia constitucional”[107][107]. Concluindo que foi preservada “a orientação que considera nula ipso jure e ex tunc a lei inconstitucional” [108][108].

Ressalte-se que recentemente o citado autor mudou de entendimento, concluindo que a “lei inconstitucinal não seria, portanto, nula ipso iure, mas apenas anulável” [109][109].

Discordamos do novel entendimento do citado autor.

É inconstitucional o artigo 11 da Lei 9.882/99 por violar o princípio constitucional da nulidade da lei inconstitucional, o princípio da supremacia da Constituição,  os artigos 97 e 102, III, a, b e c, da Constituição Federal, a separação de poderes [110][110],  e o princípio da segurança jurídica [111][111].

Não se pode olvidar que “não se dá conteúdo à Constituição a partir das leis. A fórmula a adotar-se para a explicitação dos conceitos opera sempre ‘de cima para baixo’, o que serve para dar segurança em suas definições”[112][112], procedendo-se a interpretação da lei a partir da Constituição, já que esta constitui fundamento de validade daquela.

A incompatibilidade vertical do artigo em estudo[113][113] com o princípio constitucional da nulidade é manifesta . Não se pode admitir que a lei restrinja o princípio constitucional da nulidade, viabilizando, desta forma, a possibilidade de que um ato inconstitucional produza efeitos.

O princípio da supremacia da Constituição foi violado pelo artigo 11 da Lei 9.882/99, considerando-se que a exceção ao princípio constitucional da nulidade não poderia ter sido prevista em lei, já que esta não altera a Constituição, pelo contrário, deve com ela guardar relação de compatibilidade.

É defeso à  lei alterar um princípio constitucional [114][114], possibilitando, até que por louváveis razões[115][115], que o ato inconstitucional produza efeitos.

Não se pode olvidar, que “uma Constituição possui supremacia incondicional em relação a todo ordenamento jurídico e força normativa inquestionável, devendo suas previsões servir de princípios informadores obrigatórios na atuação do poder público, no âmbito de todos os Poderes de Estado”[116][116].

Há, outrossim, desconformidade das normas em estudo com os artigos 97 e 102, III, a, b e c, da Constituição Federal, que estabelecem o poder de qualquer juiz ou tribunal deixar de aplicar a lei inconstitucional, que prevêem a possibilidade da decisão do Supremo Tribunal Federal adiar a sanção de nulidade, que terá efeito vinculante[117][117], e, estarão, os demais órgãos do Judiciário, impossibilitados de decidir em sentido contrário.

A separação dos poderes[118][118], ao nosso sentir, também restou violada, pois permite-se que o Supremo Tribunal Federal, com uma margem de discricionariedade muita ampla, legisle, ao determinar que os efeitos da nulidade da lei inconstitucional somente ocorram no futuro, caracterizando-se como verdadeira revogação futura da validade das normas vigentes.

Zeno Veloso leciona que, caso seja aplicada a norma em estudo, não havendo retroatividade do pronunciamento, os efeitos da inconstitucionalidade  se    “assemelham aos da revogação da norma” [119][119].

A margem de liberdade conferida ao Pretório Excelso para deliberar sobre a retroatividade ou não dos efeitos de sua decisão foi tão ampla que inviabiliza a possibilidade de previsão se os efeitos serão aplicados retroativamente ou não, o que prejudica a certeza do direito e estabilidade das relações jurídicas, infringindo o princípio da segurança jurídica[120][120].

O efeito repristinatório também não pode ser adiado, impondo-se sua aplicação, pois, declarada a nulidade da lei revogadora, ele é automático, já que é mera conseqüência desta.

Ressaltamos a existência de respeitáveis opiniões em sentido contrário, acerca da possibilidade de aplicação do efeito ex nunc.

Ives Gandra da Silva Martins já externou seu entendimento:

“No Brasil, uma vez declarada, via controle concentrado, a inconstitucionalidade, esse reconhecimento atinge a norma desde sua origem e, por força do princípio da segurança jurídica, a decisão tem efeito vinculante e erga omnes. Porém, diante da impossibilidade material de reconduzir as situações definitivamente constituídas, sob a égide da norma inválida, à situação pretérita, eliminando todos os efeitos do ato legislativo inválido, pode o tribunal reconhecer à decisão de mérito, eficácia ex nunc”[121][121].

Gilmar Ferreira Mendes defende a constitucionalidade dos dispositivos que consagram a possibilidade do Supremo Tribunal Federal afastar o princípio da nulidade [122][122].

Conclusões

A Constituição Federal é a norma fundamental. Todos os atos normativos devem com ela guardar relação de compatibilidade, sob pena de nulidade.

A inconstitucionalidade consiste na incompatibilidade do conteúdo de determinado ato normativo (material) ou  do seu processo de elaboração (formal) com a Constituição Federal.

O sistema de controle jurisdicional de constitucionalidade é misto ou híbrido, por existirem dois métodos ou sistemas para o seu exercício: o concentrado (ou reservado, ou via de ação, ou abstrato, ou direto); e o difuso (ou aberto, ou via de exceção ou defesa, ou descentralizado).

A doutrina menciona que há uma tendência para o método de jurisdição concentrada, sem prejuízo da jurisdição difusa, mediante o exercício de ação direta de inconstitucionalidade, da ação declaratória de constitucionalidade, e da argüição de descumprimento de preceito fundamental.

São preceitos fundamentais: as cláusulas pétreas (art. 60, § 4º), os princípios sensíveis, os princípios fundamentais traduzidos em fundamentos (art. 1º), os objetivos (art. 3º) e os princípios retores das relações internacionais (art. 4º).

Existem duas modalidades de argüição: a autônoma e a incidental, embas de competência do Pretório Excelso.

O princípio da subsidiariedade deve ser aplicado com cautela, evitando-se a eliminação das possibilidades de proposituras da argüição, sob pena de inconstitucionalidade, por violação ao artigo 102, § 1º, da Constituição Federal.

Os efeitos da decisão proferida na argüição podem ser, segundo a nova previsão legal, erga omnes, vinculante,  ex tunc ou  ex nunc e repristinatório.

A Lei 9.882/99 prevê a  possibilidade de restrição de alguns efeitos da decisão proferida na argüição de descumprimento de preceito fundamental. Os efeitos desta decisão são inegavelmente matéria constitucional. O Supremo Tribunal Federal[123][123]

reconheceu hierarquia constitucional ao postulado da nulidade da lei incompatível com a Constituição. Afigura-se como inconstitucional a possibilidade de restrição e manipulação dos efeitos da decisão, previsto na citada lei por violação à diversas normas constitucionais, dentre elas o princípio constitucional da nulidade da lei inconstitucional, o princípio da supremacia da Constituição,  os artigos 97 e 102, III, a, b e c, da Lei Maior, a separação de poderes [124][124],  e o princípio da segurança jurídica.

Há, outrossim, irremissível inconstitucionalidade do artigo 11 da Lei 9.882/99, por violação ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, do juiz natural, das normas que prevêem a possibilidade de controle de constitucionalidade de leis e atos normativos de forma incidente,  e do princípio da separação de poderes.

A lei que prevê a argüição visa assegurar valores constitucionais, mas infelizmente viola vários deles.

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Informações Sobre o Autor

 

Rodrigo Pieroni Fernandes

 

Procurador do Estado de São Paulo
Mestrando em Direito do Estado pela PUC-SP

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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