Resumo: Esta monografia apresenta as discussões doutrinárias formuladas acerca da existência da personalidade jurídica da pessoa humana no Direito Internacional Público levando em conta os avanços do referido ramo jurídico e o surgimento de novos conceitos e entendimentos decorrentes deste processo. Há também uma analogia entre o Direito Civil pátrio e o Direito Internacional no intuito de estabelecer limites à personalidade exemplificando direitos e obrigações do indivíduo perante a sociedade internacional.[1]
Palavras-chave: Direito Internacional Público; Direitos Humanos; personalidade jurídica; capacidade jurídica; pessoa humana;
Résumé: Cette monographie présente les discussions doctrinaires formulées sur l'existence de la personnalité juridique de la personne humaine dans le Droit International Public en prenant en compte les avances de la branche juridique référée et l'émergence de nouveaux concepts et compréhensions ds à ce processus. Il y a aussi une analogie entre le Droit Civil national et le Droit International dans le but d'établir des limites à la personnalité en exemplifiant les droits et les obligations de l'individu par rapport à la société internationale.
Mots-clés: Droit International Public; Droits Humains; personnalité juridique; capacité juridique; personne humaine;
Sumário: Introdução. 1. Sujeitos do direito internacional e discussões acerca de suas personalidades jurídicas. 1.1. Conceitos e princípios. 1.2 A estrutura da sociedade internacional. 1.3 Relação entre direito interno e Direito Internacional Público. 1.4 Jus Cogens.1.5 A Soberania e as normas imperativas de Direito Internacional.1.6 Sujeitos de Direito Internacional. 2. A pessoa humana como sujeito de direito internacional. 2.1 Considerações acerca da existência da personalidade jurídica internacional do indivíduo. 2.2 Os tratados de Direitos Humanos e o Direito nacional. 2.3 Os sistemas regionais de proteção aos Direitos Humanos. 2.4 Os Tribunais internacionais e o indivíduo. 3. Relação entre a capacidade e a personalidade jurídicas no âmbito da sociedade internacional.3.1 A personalidade e a capacidade jurídicas no Direito Civil pátrio. 3.2 Analogia entre o Direito Civil e o Direito Internacional. 3.3 Requisitos para a existência da personalidade jurídica internacional do indivíduo. 3.4 O indivíduo como titular de direitos e obrigações na sociedade internacional. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Segundo o jurista alemão Rudolf von Ihering exercer um direito é lutar contra a injustiça e corroborar o ordenamento jurídico. Este acreditava que, se os indivíduos abrissem mão de seus direitos, o Direito concreto perderia sua plenitude. Ainda hoje, o pensamento retromencionado é atual, visto que os atentados contra direitos ainda existem e, provavelmente, sempre existirão. Como meras faculdades, os indivíduos têm a opção de defendê-los ou abandoná-los, pensando sempre nos ônus e bônus que acumularão com a escolha. (IHERING, 2006)
Não obstante possuírem direitos individualizados, as pessoas também possuem direitos comuns, relativos a todos os seres que possuem a condição humana: os direitos da pessoa humana ou direitos humanos, simplesmente. Dentre eles, podem ser citados o direito à vida, à liberdade, à educação, à saúde etc.
Uma vertente destes direitos constitui a dos denominados direitos políticos, os quais constituem um conjunto de normas constitucionalmente fixadas, referentes à participação popular no processo político. Dizem respeito, em outras palavras, à intervenção do cidadão na vida pública de determinado país.
Baseado em todos os ideais democráticos, estes direitos reforçam o fato de que os Governos nacionais apenas representam a vontade do “povo”, devendo zelar por seu bem-estar, e isso é irrefutável, como instrui Eric Hobsbawm. (HOBSBAWN, 2007)
Levando em conta o exposto acima, faz-se necessário ampliar o alcance dos direitos políticos, fazendo com que cheguem até o domínio internacional, constituindo, com isso, uma Democracia Participativa Internacional, onde a pessoa humana teria sua legitimidade de atuação ampliada, agindo conjuntamente com os Governos nacionais.
O presente trabalho tem como objetivo a análise da pessoa humana, como ente das relações internacionais, ressaltando sua personalidade e consequente capacidade jurídicas, através de premissas enraizadas na sociedade internacional e situações práticas, demonstrando, assim, que, a despeito de algumas correntes doutrinárias, esta pode figurar em relações jurídicas no âmbito internacional, sendo titular de direitos e podendo ser responsabilizada em caso de não cumprimento de deveres.
Com o intuito de se alcançar os objetivos propostos, alguns princípios de Direito Internacional devem ser abordados, como o caso da soberania dos Estados, passando pela propria estruturação da sociedade internacional, ate o momento em que estas normas adentram na esfera das estruturas internas e normativas dos elementos que lhe compoem, para com isso se verificar o possivel conflito que pode haver entre as normas imperativas do direito internacional – jus cogens – e o principio da soberania dos Estados.
Diante deste quadro adentra-se na identificação dos elementos envolvidos nas relações internacionais e os agentes geradores de normas, alem de determinar os direitos e deveres que competem a cada um nesta relação juridica internacional, tanto no que se refere aos polos ativos como passivos.
No segundo capitulo, depois de haver se demonstrado os sujeitos que interagem na relação internacional, será analisado o caso especifico da pessoa humana como elemento desta relação, expondo-se tanto os seus direitos como deveres, oriundos da norma internacional.
No ultimo capitulo, será verificada a relação entre capacidade e personalidade juridica no âmbito da sociedade internacional, analisando-se os limites da personalidade juridica dos elementos humanos na relação internacional.
1. SUJEITOS DO DIREITO INTERNACIONAL E DISCUSSÕES ACERCA DE SUAS PERSONALIDADES JURÍDICAS
1.1. Conceitos e princípios
O Direito Internacional é o ramo da ciência jurídica que rege a sociedade internacional e a conduta de seus atores. Com a aceleração do processo de globalização[2], os laços internacionais vêm se estreitando e a sociedade internacional adquire mais coesão. Essa interação entre os seus agentes necessita da esfera normativa disciplinadora de condutas denominada Direito Internacional. Esta é composta por duas ramificações, as quais visam a pacificar as relações entre os Estados: o Direito Internacional Público e o Direito Internacional Privado. A primeira trata de estudar as relações jurídicas entre os Estados, dentro de uma sociedade internacional, além de seus respectivos elementos, enquanto que a segunda visa a solucionar colisões entre leis discrepantes e autônomas, em razão de algum fato gerado através de ligações espaciais.
Tal divisão do Direito é norteada por princípios gerais de direito, segundo dicção do artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça. Estes princípios são aqueles consagrados nos sistemas jurídicos dos Estados, ainda que não sejam aceitos de forma unânime. Como exemplo, podem ser citados os princípios da boa-fé, do respeito à coisa julgada, do direito adquirido e do pacta sunt servanda. Sobre o tema, aduz Valerio Mazzuoli:
“Tais princípios – apesar de dificilmente identificáveis a priori, e não obstante as vivas controvérsias que sobre eles ainda recaem – são fontes autônomas do Direito Internacional e têm um papel fundamental em toda a sua evolução. Dentro dessa categoria também se incluem, como já dissemos atrás, algumas regras universais de justiça diretamente derivadas do direito natural.”[3]
Além dos princípios, como nos outros ramos do Direito, faz-se mister identificar quais são os agentes envolvidos na elaboração de normas internacionais e a quem estas atribuem direitos e deveres, isto é, quem figura, nas relações de Direito Internacional, nos pólos ativo e passivo, respectivamente.
Inicialmente, os únicos sujeitos de Direito Internacional eram os Estados Soberanos, também chamados de sujeitos de Direito Internacional clássicos, ou originários, os quais ainda mantêm uma posição absolutamente dominante nas escalas de valor e importância daqueles que atuam no Direito Internacional Público. Tal importância funda-se no fato de o mundo estar atualmente organizado com base na coexistência entre Estados.[4]
De acordo com José Afonso da Silva, "o Estado é formado por quatro elementos essenciais: um poder soberano de um povo situado num território com certas finalidades.”[5]
Soberania, por sua vez, era considerada a autoridade estatal que não pode ser limitada por nenhum outro poder, tendo como prerrogativa o fato de que o Estado representa o povo. O conceito em tela foi primeiro estudado por Jean Bodin, no século XVI e este a conceituou da seguinte maneira: “La Souveraineté est la Puissance absolue et perpétuelle d’une République.”[6]
Com o passar do tempo, os estudiosos do princípio da Soberania começaram a admitir limitações a ele, haja vista que, se isto não acontecesse, a Soberania seria um poder tirânico e não, representativo da vontade de seus nacionais. Sobre esse tema, Raul José de Galaad aduz:
“A esse propósito é interessante observar que alguns estudiosos, entre eles DUGUIT, identificam o conceito de soberania com poder supremo, e depois o refutam devido a existência de flagrantes limites ao seu exercício. CHEVALLIER, observa que Bodin, pensador que formulou o conceito de soberania no século XVI, considera a soberania a força de coesão, de união da comunidade política, sem a qual esta se desfaria. "Ela cristaliza o intercâmbio de 'comando e obediência', imposto pela natureza das coisas a todo grupo social que quer viver. É o 'poder absoluto e perpétuo de uma República'. Como constata CHEVALLIER, a autoridade preferida por Bodin não é tirânica, pois, mantém a primazia das leis da natureza, reflexo da razão divina. 'Mas, quanto às leis divinas e naturais, todos os príncipes da terra lhes estão sujeitos, e não está em seu poder transgredi-las, se não quiserem tornar-se culpados de lesa-majestade divina'.”[7]
Além das teorias retro mencionadas, é válido pôr em relevo a Teoria da Autolimitação de Jellinek, a qual coloca o Estado na posição de se autolimitar e se auto-obrigar juridicamente. Tal teoria admite a submissão do Estado Soberano às leis de seu Direito Interno e, por analogia, do Direito Internacional, levando em conta os interesses de seu povo e da sociedade internacional.
A corrente jurídica em epígrafe acredita que a soberania:
“é uma vontade que encontra em si própria um caráter exclusivo de não ser acionada senão por si mesma, uma vontade, portanto, que se autodetermina, estabelecendo, ela própria, a amplitude de sua ação. Tal vontade soberana não pode ser, jamais, comprometida por quaisquer deveres diante de outras vontades. Se tem direito, não tem obrigações. Se as tivesse, estaria subordinada a outra vontade e deixaria de ser soberana. […] A soberania significa, assim, um poder ilimitado e ilimitável, que tenderia ao absolutismo, já que ninguém o poderia limitar, nem mesmo ele próprio”.[8]
Considerando a teoria supracitada, modernamente, as limitações à Soberania são as normas de Direito Cogente, isto é, o conjunto de normas imperativas de Direito Internacional, como os Direitos Humanos, por exemplo. Estas apenas serão incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais mediante aprovação dos próprios Estados.
1.2 A estrutura da sociedade internacional
Assim como no âmbito nacional, onde a interação entre os indivíduos constitui a formação de uma sociedade, no âmbito internacional, a relação entre os Estados também deu início à formação de uma sociedade internacional. O termo sociedade compreende as relações recíprocas entre os indivíduos e, no caso internacional, ocorre fenômeno idêntico, a partir da formação das primeiras coletividades organizadas.
A sociedade internacional, tal como é conhecida, teve seu período embrionário em meados do século XIV, com a formação dos Estados europeus, o fortalecimento do controle estatal sobre todas as áreas da convivência humana e o aumento das relações entre eles. Por ser composta de forma majoritária de Estados-Nação, a sociedade internacional tem como principais características o fato de ser horizontal, descentralizada e igualitária, ou seja, a vontade de um Estado não pode predominar sobre a de outro, pois não há existência de hierarquia (todos os Estados são soberanos e estão no mesmo patamar). Além disso, os três poderes (as funções estatais básicas) não estão concentrados em órgãos especializados para tal fim, os quais seriam responsáveis pela regência da referida sociedade, como se dá dentro de um Estado. Sobre o tema, Hee Moon Jo afirma:
“No caso da sociedade internacional, as relações mais ativas são as atividades dos Estados, que são numericamente poucas (aproximadamente 200), e que se consideram soberanas e iguais. Por isso, o DI é um sistema legal horizontal, faltando-lhe uma autoridade suprema, a centralização da força militar e a diferenciação das três funções básicas do Estado (Legislativo, Judiciário e Executivo), geralmente concentradas em órgãos centralizados.
De fato, a Assembléia Geral da ONU não é o órgão legislador mundial; a CIJ tem uma jurisdição muito limitada pelos Estados, necessitando do seu consentimento, e o Conselho de Segurança da ONU exerce muito limitadamente a função de policiamento. A atual sociedade internacional é composta principalmente pelos Estados, e estes participam diretamente do processo legislativo internacional, realizando-se, assim, as vontades dos Estados na formação das normas internacionais”.[9]
Ainda acerca das características da sociedade internacional, a igualitariedade entre os Estados resta representada pela obrigação moral que todos têm de ajuda mútua. Todos os Estados devem prestar auxílio a outros que, porventura, se encontrem em dificuldade, como, por exemplo, no caso de um desastre natural que tenha assolado seu território. Outra situação é a de tentativa de apaziguamento de animosidade, por parte de um Estado, em relação aos seus vizinhos.
Sobre a descentralização, não se pode olvidar que, segundo as Convenções de Viena de 1969 e de 1986, há ainda a presença de outros sujeitos que podem figurar em relações jurídicas perante a sociedade internacional, como as Organizações Intergovernamentais, as quais são livres para firmar tratados com Estados ou entre si, e o próprio indivíduo. Obrigatoriamente, para atuar, em Direito Internacional, os sujeitos devem ser titulares de direitos e deveres perante a ordem internacional, caracterizando-se, dessa forma, uma relação jurídica. Tal relação jurídica provém de uma norma internacional, a qual só será válida se gerar efetivamente tais prerrogativas e deveres.
Tendo em vista que, além da população nacional, existem outros povos de outras nações que habitam o planeta, os interesses de todos devem ser levados em consideração e respeitados igualmente, em observância aos Princípios da Soberania e da não-ingerência nos assuntos internos dos Estados. Dessa forma, para que sejam evitados abusos, foram criados os mecanismos normativos internacionais: os tratados, convenções, acordos etc. Tais normas internacionais geram a igualdade formal entre as partes, não podendo ser alegado seu descumprimento em razão de norma jurídica interna.
Os tratados internacionais são assinados e incorporados em conformidade com as normas nacionais, de forma que não entrem em colisão. Após a assinatura e ratificação das normas, os acordos devem ser cumpridos sob a égide do brocardo latino pacta sunt servanda, ou seja, os Estados devem cumprir com o que foi acordado. Vê-se então que, após a celebração da norma internacional, os Estados-partes estão adstritos a ela, não podendo se eximir de cumpri-la. Sobre o estudo da teoria dos tratados, de acordo com Valerio Mazzuoli:
“Ao estudo da teoria dos tratados dá-se o nome de Direito dos Tratados que, em linhas gerais, regula: a) a forma como negociam as partes; b) quais os órgãos encarregados de tal negociação; c) qual o gênero dos textos internacionais produzidos; d) a forma de assegurar a autenticidade do texto; e) como as partes manifestam o seu consentimento em obrigar-se pelo acordo; f) a forma de entrada em vigor do compromisso firmado; g) quais os efeitos que tal compromisso produz sobre os pactuantes ou sobre terceiros; e h) a forma de duração, alteração e extinção dos atos internacionais”.[10]
É válido frisar que a sociedade internacional, quando regida pelos tratados internacionais, é protegida pela segurança jurídica conferida por eles, levando em consideração que a vontade dos Estados é limitada e consubstanciada nestes instrumentos, através de obrigações sinalagmáticas. Em virtude dos fatores citados, os tratados representam a melhor forma de manutenção da harmonia entre os Estados ou, ao menos, a possibilidade de existência pacífica entre eles, garantindo, assim, a perpetuação da sociedade internacional
1.3 Relação entre direito interno e Direito Internacional Público
A relação entre Direito interno e Direito Internacional Público é diferente em cada país. Dependendo de sua política externa e de suas bases constitucionais, cada Estado adota a forma de interação que mais lhe convém. Para isso, existem duas teorias predominantes: a teoria dualista e a teoria monista.
Para a teoria dualista, as normas de Direito Interno e as normas de Direito Internacional Público pertencem a duas ordens jurídicas distintas, sendo que nenhuma delas interfere na outra. Sobre o tema, Valerio Mazzuoli, in verbis:
“Assim, segundo esta doutrina, quando um Estado assume um compromisso exterior o está aprovando tão-somente como fonte do Direito Internacional, sem qualquer impacto ou repercussão no seu cenário normativo interno. Para que isso ocorra, ou seja, para que um compromisso internacionalmente assumido passe a ter valor jurídico no âmbito do Direito interno desse Estado, é necessário que o Direito Internacional seja transformado em norma de Direito interno, o que se dá pelo processo conhecido como adoção ou transformação. O primado normativo para os dualistas, então, é da lei interna de cada Estado e não o Direito Internacional”.[11]
Além da teoria dualista, existe a teoria monista, a qual foi concebida por Kelsen. Os que a defendem acreditam que Direito interno e Direito Internacional Público representam uma única ordem jurídica. No entanto, há duas correntes referentes a essa teoria: a internacionalista e a nacionalista.
No caso do monismo internacionalista, há prevalência das normas de Direito Internacional Público, o que é sustentado pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, em seu artigo 27, o qual aduz que um Estado-parte na convenção "não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado".
Já o monismo nacionalista, defende a supremacia da soberania estatal, ou seja, cada Estado deve eleger as normas de Direito Internacional Público que deverão compor seu ordenamento jurídico interno, considerando que as normas adotadas não podem contrariar aquelas de Direito interno. Segundo Valerio Mazzuoli:
“Os monistas defensores do predomínio interno, dão, assim, especial atenção à soberania de cada Estado, levando em consideração o princípio da supremacia da Constituição, onde devem ser encontradas as regras relativas ao exato grau hierárquico atribuído às normas internacionais escritas e costumeiras. Trata-se, como se vê, da doutrina da delegação, que apregoa obrigatoriedade do Direito Internacional como decorrência das regras de Direito interno.”[12]
Cada Nação possui peculiaridades no que tange a incorporação de normas internacionais ao Direito interno. No Brasil, não existe norma constitucional que disponha sobre o reconhecimento do Direito Internacional, salvo em relação às normas que versem sobre Direitos Humanos, segundo o que reza o art. 5º, §3º, da Constituição Federal, alterado pela Emenda Constitucional nº. 45, de dezembro de 2004, também conhecida como “reforma do judiciário”: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Sendo assim, as normas internacionais que atingirem os requisitos estabelecidos pelo artigo em epígrafe, serão incorporadas não somente ao ordenamento jurídico brasileiro, mas à sua Lei Maior.
Pelo exemplo acima, nota-se a limitação da Soberania estatal, a qual possui duas fases: a primeira é anterior à assinatura e ratificação dos acordos internacionais e a segunda, posterior à incorporação das normas internacionais na esfera jurídica nacional.
Na primeira fase, que será classificada de “soberania a priori aos tratados”, a independência externa é posta em relevo em todos os momentos e não é limitada em nenhuma hipótese, porque ainda não há vinculação a nenhuma norma de Direito Internacional.
Após a apreciação e incorporação do tratado que dispõe sobre normas imperativas de Direito Internacional no ordenamento jurídico nacional, o Estado torna-se apenas autônomo, em relação ao acordado, ou seja, transforma-se num jurisdicionado no âmbito internacional em relação a todas as matérias a que deu aquiescência em acordos internacionais de jus cogens.
1.4 Jus Cogens
As normas imperativas de Direito Internacional, cujo conjunto é chamado jus cogens, são conceituadas pelo art. 53, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, como: “uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional Geral da mesma natureza”.
O termo jus cogens provém do latim e significa "direito obrigatório". Seu conceito é amplo e extremamente vago, pois tem suas raízes fundadas nos princípios e costumes internacionais e visa a estabelecer um "mínimo ético", norteador das condutas dos Estados, garantindo, dessa forma, a convivência pacífica e harmoniosa entre estes e a subsistência da sociedade internacional. Dentre as normas imperativas de Direito Internacional podem ser citadas: a coexistência pacífica, Princípio da Autodeterminação dos povos, o Princípio da Igualdade soberana dos Estados, Princípio da Independência dos Estados, o Princípio da não-ingerência nos assuntos internos dos Estados e o Princípio do Respeito Universal e Efetivo aos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais. Acerca do tema em comento, afirma Luna Freitas:
“Constitui-se em norma maior que tem como essência a impossibilidade de violação, como por exemplo, qualquer prática que envolva genocídio, escravidão ou ameaça à integridade territorial de outro Estado vai de encontro ao jus cogens.”[13]
Estas normas obrigatórias representam a concretização de uma lenta e árdua evolução da mentalidade coletiva em relação aos anseios da sociedade vista como um todo, primeiro nacionalmente e depois universalmente. Este processo tem o seu marco inicial em 1215, na Inglaterra, com a assinatura da Magna Carta, garantindo, por exemplo, o direito à inocência e à liberdade de circulação. Após este documento, o estudo e busca do bem-estar e justiça dentro das sociedades foram intensificados, sucedendo-se eventos como a Revolução Francesa que remonta ao ano de 1789 e que traz com ela a Declaração dos Direito do Homem e do Cidadão. Ademais, mais tarde, permitiram a estruturação do arquétipo mais importante da sociedade internacional: a Organização das Nações Unidas (ONU), que permite a confecção de um arcabouço para uma sociedade internacional mais justa e coesa.
Por conta deste longo processo de calcificação das referidas normas na consciência coletiva, afirma-se que os fundamentos do Direito Cogente estão intimamente ligados ao Direito Natural. O Direito Natural é composto de princípios enraizados profundamente na sociedade internacional. Acerca da relação entre o Jus Cogens e o Direito Natural, Luna Freitas, in verbis:
“A Doutrina do Direito Natural tem como característica o surgimento espontâneo de direitos, os quais têm na essência o que é universal e comum a todos, sendo que para o Direito Internacional, destaca-se o importante papel de Hugo Grócio, o qual visualizou esse ramo do direito como de coordenação e não de subordinação, no qual o Estado concerta somente aquilo que lhe aprouver, contudo essa vontade tem como limite as regras e princípios do Direito Natural. (…)
Cumpre salientar que, segundo a ótica de Hee Moon Jo, essas normas imperativas não estão ligadas ao Direito Natural por entender serem as mesmas um conceito em evolução, sendo que o conteúdo substancial do jus cogens vai evoluir constantemente conforme a evolução da sociedade internacional”[14].
De acordo com Hee Moon Jo, no entanto, vê-se que as normas de Jus Cogens evoluirão pautadas nos anseios da sociedade como um todo, enquanto que as de Direito Natural são estáticas, imutáveis. Apesar da discussão, o Direito Natural não exclui a integralidade das normas de Direito Cogente e este último abarca todos os princípios de Direito Natural, pelo fato de ser mais amplo, por evoluir constantemente, segundo os anseios da sociedade global.
Com o objetivo de corroborar a existência destas normas imperativas de Direito Internacional e conceder-lhes maior eficácia, a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, em seu artigo 53, aduz o seguinte:
“É nulo um tratado que, no momento de sua conclusão, conflite com uma norma imperativa de Direito Internacional geral. Para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza”.[15]
Apesar de a "comunidade internacional como um todo" não aceitar as referidas normas, devido à relativização cultural, dada sua importância, os Estados, para que conservem uma boa imagem perante a sociedade internacional devem incorporá-las ao máximo em seus direitos pátrios, considerando que são "compelidos moralmente" a tal, tendo em vista que o principal fator que a rege é a política internacional.
1.5 A Soberania e as normas imperativas de Direito Internacional
Os Direitos Humanos, as normas em prol do Meio Ambiente, o respeito ao princípio da soberania dos Estados e da autodeterminação dos povos, como exemplos de normas imperativas de Direito Internacional, receberam significativo resguardo com o artigo 53 da Convenção de Viena de 1969, que prevê a nulidade dos tratados que forem de encontro a princípios e direitos como estes.
Como outro exemplo da limitação da Soberania estatal brasileira, pode ser citado o Decreto nº. 678, de 6 de novembro de 1992, o Pacto São José da Costa Rica, que, mediante ratificação expressa do Estado-membro, submete-se ao poder da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Esta, em caso de abuso estatal incidindo sobre cidadãos, pode editar recomendações, consideradas títulos de execução extrajudiciais, desde que o cidadão ou grupo de cidadãos obedeça a 2 critérios pré-estabelecidos para acessá-la: ausência de litispendência internacional e esgotamento de todos os meios jurídicos internos cabíveis.
Na situação retromencionada, a Soberania estatal está “vinculada” a um órgão maior, mas este mesmo órgão só pode interferir observando todas as cláusulas do acordo. Esta seria a “soberania a posteriori aos tratados”. Portanto, conceitualmente, se a soberania estatal não admitia limitação, esta se encontra vinculada ao Direito Internacional e às normas que fazem parte de seu bojo. É válido frisar que o Estado não é literalmente obrigado a cumprir as regras de Direito Internacional às quais se submeteu, mas é compelido moralmente a tal.
Este conceito vem se adequando aos novos anseios sociais e às novas formas de organização em planos nacionais e internacionais, devido à globalização e ao advento do Direito Internacional. Hodiernamente, este último encontra-se em fase de solidificação e difusão, o que faz com que mais Estados se vinculem, de alguma forma, a algum tipo de acordo internacional, submetendo-se a leis e órgãos internacionais e podendo sofrer intervenção externa por parte do órgão ao qual se vincularam, desde que todo o processo esteja descrito nos termos do acordo. Assim, conforme Hans Kelsen, observa-se in verbis:
“O conflito de normas do Direito Internacional e normas de um Direito estadual não é de forma alguma um conflito de normas, que tal situação pode ser descrita em proposições jurídicas que de modo algum se contradizem logicamente.”[16]
Com a proposição em comento, verifica-se que a composição entre Direito Internacional e Direito interno é possível mediante a integração de suas normas e da hermenêutica apropriada, de modo a se complementarem, sem acarretar consequências gravosas para a sociedade internacional ou para o patrimônio nacional. Este processo torna-se estritamente necessário, particularmente, em relação à proteção dos direitos difusos e das normas de Direito Internacional geral, tendo em vista que, por sua natureza, quando não observadas em determinado Estado podem afetar outros, distantes, ou não, como é o caso, por exemplo das normas internacionais que visam a proteger o Meio Ambiente ecologicamente equilibrado.
1.6 Sujeitos de Direito Internacional
Apesar da natureza do Direito Internacional Público, além dos Estados, existem outros sujeitos que podem atuar na Ordem Internacional. Tais sujeitos foram assim considerados, tendo em vista a influência que exercem nas relações jurídicas internacionais, não podendo ser desconsiderados formalmente pela sociedade internacional. Estes possuem as mais diversas naturezas e, no que tange a capacidade de figurar em relações internacionais de alguns deles, ainda há muitas discussões doutrinárias. Os referidos sujeitos podem ser classificados como: os Estados, os quais já foram contemplados anteriormente, as coletividades interestatais, as coletividades não-estatais e os indivíduos.
Primeiramente, podem ser citadas as Organizações Internacionais ou Organizações Intergovernamentais, também chamadas de coletividades interestatais. Estas entidades tiveram sua existência reconhecida formalmente pela Convenção de Viena de 1986, a qual permitiu sua atuação perante a Ordem internacional, podendo estas firmar tratados entre si ou com Estados. Tal norma formalizou, assim, sua personalidade jurídica internacional.´
A definição, no entanto, dada pela Convenção em relação a elas é dotada de extrema vagueza. É valido, então, ressaltar a definição de Valerio Mazzuoli:
“Assim, para os fins do Direito Internacional Público, pode-se conceituar "organização internacional" como sendo uma associação voluntária de Estados, criada por um convênio constitutivo e com finalidades pré-determinadas, regida pelas normas do Direito Internacional, dotada de personalidade jurídica distinta da dos seus membros, que se realiza em organismo próprio, dotado de autonomia e especificidade, possuindo ordenamento jurídico interno e órgãos auxiliares, por meio dos quais realiza o propósito comum dos seus membros, mediante os poderes próprios que lhes são atribuídos por estes.”[17]
Por serem compostas por Estados, as Organizações Internacionais transformam-se em verdadeiros meios de composição das vontades destes, impedindo ou amenizando divergências. Vê-se, então, que as Organizações Internacionais são extremamente importantes para a manutenção da Ordem Internacional e, como exemplos, podem ser citados, a nível mundial, a Organização das Nações Unidas (ONU) e, a nível regional, a Organização dos Estados Americanos (OEA).
Outro sujeito que deve ser lembrado é a Santa Sé e o Estado da Cidade do Vaticano. Para muitos doutrinadores, sua personalidade jurídica internacional é inexistente, pelo fato de que um dos requisitos para a consideração deste como Estado não é comum a de outros Estados: sua finalidade. A finalidade deste Estado é religiosa, o que teoricamente o impediria de atuar perante a Ordem Internacional. Apesar deste entendimento, a doutrina moderna a considera sujeito de Direito Internacional, classificando-o como Estado suis generis, detentor de personalidade jurídica mitigada.
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha, organização não-governamental, que tem como objetivo proporcionar proteção e assistência à vítimas da guerra e da violência armada, também tem sua personalidade jurídica como centro de discussões doutrinárias. A discussão surge pelo fato de não ser governamental, o que teoricamente impediria sua atuação perante a sociedade internacional. A doutrina moderna entende, apesar disso, que, pelo fato de países como a Suíça possuírem tratados firmados com este, ele é dotado de personalidade jurídica limitada e, portanto, compõe o rol dos sujeitos de Direito Internacional Público, o que lhe confere a prerrogativa de figurar em relações jurídicas internacionais, como cooperador para a manutenção da paz e segurança internacionais, prestando auxílio àqueles que encontram-se necessitados, em decorrência de conflitos armados de qualquer natureza.
Outros sujeitos que não podem ser olvidados são as coletividades não-estatais, representadas pelos beligerantes, insurgentes e os movimentos de libertação nacional.
A primeira acontece quando, em determinado Estado, uma parcela da população pretende seu desmembramento, a mudança do governo ou do regime vigente, através de um movimento armado e politicamente organizado, o que pode acarretar guerras civis. Podem ser citadas como exemplo, as forças sandinistas na Nicarágua. É válido frisar que seu reconhecimento e de seus respectivos direitos, pela ordem internacional, se dá de forma temporária, isto é, enquanto durar o conflito.
Os insurgentes possuem as mesmas características dos beligerantes, mas em menor proporção. Normalmente, os beligerantes possuem o controle de determinada parte do território nacional, enquanto que os insurgentes não tem tanto poder para isso. Ademais, a atuação dos insurgentes é de, certa forma, tão incipiente que não chega a deflagrar guerras civis. Em relação ao seu reconhecimento pela sociedade internacional, esta ainda depende de um reconhecimento formal do Estado da qual fazem parte.
Os movimentos de libertação nacional remontam ao período de descolonização da África, Ásia e Oceania, os quais reivindicavam a desvinculação das referidas colônias em relação às respectivas metrópoles, através de ações armadas. Modernamente, só existe um sujeito desse tipo em atuação: a Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Sobre a referida organização, in verbis:
“Cita-se como exemplo de movimento de libertação nacional de grande expressão internacional a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), que ao longo do tempo tem celebrado tratados internacionais, de diversas índoles, com diversos países, em especial os relativos às forças armadas, celebrados com o Líbano e a Jordânia. A OLP mantém escritórios e representações inclusive perante as Nações Unidas (em Nova York, Viena e Genebra), a UNESCO e a FAO. A Assembléia-Geral da ONU a reconheceu inclusive como representante do povo palestino perante quaisquer órgãos da organização ou outros organismos internacionais ligados às Nações Unidas (na qualidade de observadores), com direito de voz (não de voto) em quaisquer sessões onde se deliberem questões relativas a essa região do Oriente Médio”.[18]
Pelo que foi supracitado, percebe-se que a personalidade jurídica dos grupos em epígrafe é amplamente reconhecida pela ordem internacional, considerando a influência que exercem sobre os Estados em relação aos quais demandam direitos e deveres determinados e consequentemente sobre a sociedade internacional como um todo.
Além destes, é válido frisar a existência de sujeitos não-formais do Direito Internacional, que são aqueles que, mesmo não participando formalmente do Direito Internacional, exercem influência, positiva ou negativa, no que tange a ação e tomada de posição em assuntos de interesse global.
Sobre os sujeitos não-formais de Direito Internacional, de acordo com a teoria de Wolfgang Friedmann, o qual é interpretado por Roger Pinto[19], as empresas multinacionais, que são aquelas cujo capital provém de diversos países, ou transnacionais, que são aquelas que possuem representações ou filiais em diversos países, mesmo que seu capital provenha de apenas um país, têm personalidade jurídica mitigada, porque interagem livremente com os países, até, por vezes pressionando-os e contribuindo para o seu desenvolvimento econômico e estrutural, de forma aparente ou real, em algumas áreas, isto é, mesmo sem soberania, agem como países, manifestando seus interesses através dos mesmos e portanto, gerando influência na Ordem Jurídica internacional. No entanto, estas não podem ser equiparadas às Organizações Intergovernamentais por terem como finalidade exclusiva o lucro, não contribuindo de forma alguma para a manutenção da sociedade, paz e segurança internacionais.
Além destas, é incluída nesta espécie a mídia global, a qual influencia a tomada de decisões na ordem internacional, além de ser responsável pelas denúncias de abusos cometidos pelos Estados, no sentido de desrespeitarem tratados internacionais ou normas imperativas de Direito Internacional geral, podendo mesmo difundir a nível global quais os possíveis efeitos destes, gerando opinião pública e garantindo o efetivo direito à informação, tão cultuado hodiernamente.
Além dos sujeitos retromecionados, o indivíduo também foi reconhecido tal, através de tratados e convenções que lhes conferem direitos e deveres, permitindo-lhes figurar em relações jurídicas e mesmo agir em nome próprio perante a sociedade internacional, o que será tratado em capítulo específico.
Com o advento do reconhecimento formal de outros sujeitos, o Direito Internacional garantiu maior segurança jurídica a estes e maior democratização de seus instrumentos, impedindo o monopólio estatal sobre seus mecanismos. Estes novos sujeitos de Direito Internacional comprovam também a teoria da flexibilização da soberania, já que, para atuar no Direito Internacional, o sujeito não precisa mais impreterivelmente ser um Estado soberano.
2. A PESSOA HUMANA COMO SUJEITO DE DIREITO INTERNACIONAL
2.1 Considerações acerca da existência da personalidade jurídica internacional do indivíduo
O termo pessoa provém do latim persona e se refere ao ser humano. No universo jurídico, no entanto, este termo pode se referir tanto a este último (pessoa natural) quanto às criações jurídicas personalizadas (pessoas jurídicas). Para dirimir dúvidas, em matéria de Direito Internacional e Direitos Humanos, convencionou-se chamar o indivíduo de pessoa humana, o que não deve ser considerado pleonástico, pois cria distinção entre o indivíduo, pessoas jurídicas de Direito Público (Estados) e as pessoas jurídicas de Direito Privado (Empresas, por exemplo).
Para que um sujeito de determinado ramo do Direito possa assim ser chamado, este necessita ser dotado de personalidade, que é o conjunto de poderes para figurar em relações jurídicas. A existência da personalidade jurídica internacional da pessoa humana é uma das mais contestadas. Apesar dos grandes avanços em relação à ampliação de sua atuação, alguns autores, como José Francisco Rezek, não sustentam a idéia de que indivíduos possam atuar como sujeitos de Direito Internacional. Sobre a personalidade jurídica de tais agentes, ele aduz o seguinte:
“É preciso lembrar, porém, que os indivíduos – diversamente dos Estados e das organizações – não se envolvem, a título próprio, na produção do acervo normativo internacional, nem guardam qualquer relação direta e imediata com esse corpo de normas. Muitos são os textos votados à proteção do indivíduo. Entretanto, a flora e a fauna também constituem objeto de proteção por normas de direitos das gentes, sem que lhes tenha pretendido, por isso, atribuir personalidade jurídica”.[20]
Apesar da lição acima, parte dos doutrinadores acredita que, com o fim da Segunda Guerra Mundial e com a conseqüente preocupação em relação à paz mundial, os Direitos Humanos, garantidos por normas internacionais, deram aos indivíduos as condições para assegurar todos os seus direitos, no plano internacional, através de instrumentos processuais. Logo, a pessoa humana, como os Estados, pode figurar ativamente (por exemplo, peticionando para tribunais internacionais ou recebendo proteção diplomática do seu Estado) ou passivamente (sendo internacionalmente responsabilizada por atos cometidos contra o Direito Internacional, cujo precedente foi aberto pelo Tribunal Internacional de Nuremberg). (MAZZUOLI, 2006, p. 169)
Houve também a criação do conceito de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Sua principal base jurídica está na Carta das Nações Unidas de 1945, a qual lembra, em seu artigo 55, “o respeito universal e efetivo dos Direitos Humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, de sexo, de língua ou de religião“. No entanto, apesar de sua importância, foi a Declaração Universal do Direitos Humanos de 1948 que atribuiu efetivamente aos indivíduos direitos civis e políticos (artigos 3 a 21), direitos econômicos, sociais e culturais (artigos 22 a 27) e responsabilidades individuais e coletivas (artigos 28 a 30).
Ademais, diversas normas foram instituídas em nível regional, para contribuir com a proteção dos Direitos Humanos, como: a Convenção Européia de Direitos Humanos (1950), a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) e a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (1981).
Antônio Augusto Cançado Trindade ainda corrobora a idéia da grandeza e da inclusão dos indivíduos nas relações da sociedade internacional, por conta da proclamação dos Direitos Humanos, após 1945:
“With regard to human rights protection, eighteen years after the adoption of the 1948 Universal Declaration, the International Bill of Human Rights was completed with the adoption of the two U.N. Covenants, on Civil and Political (and [first] Optional Protocol), and on Economic, Social and Cultural Rights (1966), respectively. The normative corpus of international human rights law is today a vast one, comprising a multiplicity of treaties and instruments, at both global and regional levels, with varying ambits of application and covering the protection of human rights of various kinds and in distinct domains of human activity”. (TRINDADE, 2002, p. 935)[21]
Com a instituição de direitos e deveres relativos aos seres humanos, no plano internacional, houve a necessidade de que estes pudessem fazer valer os primeiros e receber sanções em caso de transgressão dos segundos. Sobre o tema, Celso Mello afirma:
“O homem, relegado a um segundo plano no século passado, adquire, em virtude do denominado processo de democratização do DI, uma nova posição. Os direitos do homem se internacionalizaram. As organizações internacionais, especialmente as de aspecto social, visam satisfazer as suas necessidades. Jean Touscoz afirma que não se deve falar em indivíduo para não reforçar o individualismo, mas sim em pessoa que ele liga a filosofia personalista”.[22]
A filosofia personalista, citada acima, defendida por Emmanuel Mounier, defende a idéia de que o ser humano e sua respectiva liberdade é um valor espiritual superior. De acordo com o filósofo em questão: "Nous appelons personnaliste toute doctrine, toute civilisation affirmant le primat de la personne humaine sur les nécessités matérielles et sur les appareils collectifs qui soutiennent son développement".[23]
Pode-se depreender, então, que, com base nos entendimentos da filosofia personalista, a sociedade internacional deve prever que a pessoa humana seja sujeito de direitos e obrigações em qualquer ordem jurídica, considerando que esta as cria e as alimenta, não podendo ser excluída totalmente de nenhuma sociedade, nem mesmo da internacional, sendo respeitada sua limitação na forma de atuação nos mais diversos casos.
2.2 Os tratados de Direitos Humanos e o Direito nacional
No que tange a proteção de direitos, foi necessário que os tratados previssem ao indivíduo formas de acesso aos Organismos Internacionais. Sobre o assunto, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos aduz o seguinte:
“En ratifiant les traités internationaux des droits de l’homme, les gouvernements s’engagent à prendre des mesures nationales et à adopter des lois compatibles avec les obligations découlant des traités. Lorsque les procédures légales nationales ne permettent pas remédier aux violations des droits de l’homme, il existe des mécanismes et procédures de plaintes individuelles ou de communications aux niveaux régional et international, qui permettent de garantir le respect, la protection et l’instauration des normes internationales des droits de l’homme au niveau local.”[24]
Este acesso, de cunho processual, confirma o fato de que a pessoa humana pode fazer parte de uma relação de Direito Internacional, no pólo ativo, e contribuir para a consecução de suas normas e preceitos.
Um exemplo materializado da influência da atuação humana no Direito Internacional é o caso “Maria da Penha”, que, no Brasil, deu origem à Lei nº. 11.340, de 07 de agosto de 2006. Mais conhecido como “Lei Maria da Penha”, este instrumento normativo cria mecanismos que visam a coibir e prevenir a violência doméstica contra a mulher.
Maria da Penha Maia foi agredida pelo marido por 6 anos e, após “esgotar” todos os recursos jurídicos internos para punir o marido, decidiu peticionar junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Como o Estado brasileiro continuou inerte em relação à violência doméstica contra a mulher, a Corte Interamericana de Direitos Humanos editou recomendação ao país, solicitando que este tomasse providências contra a violência doméstica.
Outro exemplo de mecanismos similares é aquele que foi instituído em 1970, pelo Conselho Econômico e Social da ONU (ECOSOC), através da Resolução 1503. O Procedimento 1503, como é conhecido, prevê a criação de um Grupo de Trabalho da Sub-Comissão para a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos, integrante da Comissão de Direitos Humanos, que está legitimada a receber reclamações e queixas, chamadas de "comunicações", mediante os respectivos meios probatórios e, sendo o caso, enviar tais reclamações à Comissão de Direitos Humanos da ONU, o qual deveria tomar as medidas cabíveis.
É válido frisar que o Procedimento 1503 não abarca casos individuais, mas apenas graves violações coletivas a Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais. A Resolução dispõe o seguinte:
“The Economic and Social Council,
Noting resolutions 7(XXVI) and 17(XXV) of the Commission on Human Rights and resolution 2 (XXI) of the Sub-Commission on Prevention of Discrimination and Protection of Minorities,
1. Authorizes the Sub-Commission on Prevention of Discrimination and Protection of Minorities to appoint a Working Group consisting of not more than five of its members, with due regard to geographical distribution, to meet once a year in private meetings for a period not exceeding ten days immediately before the sessions of the Sub-Commission to consider all communications, including replies of Governments thereon, received by the Secretary-General under Council resolution 728F (XXVIII) of 30 July 1959 with a view to bringing to the attention of the Sub-Commission those communications, together with replies of Governments, if any, which appear to reveal a consistent pattern of gross and reliably attested violations of human rights and fundamental freedoms within the terms of reference of the Sub-Commission;”
A Resolução aduz ainda que, para o recebimento das "comunicações", não deve haver litispendência internacional e o indivíduo, ou grupo de indivíduos, deve exaurir os meios jurídicos internos cabíveis antes de dar início ao referido procedimento.
Se ficar comprovado o padrão consistente de grave violação aos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais, a Comissão de Direitos Humanos fica autorizada a editar recomendações aos países em questão para que possam sanar as violações em questão.
Os Estados que se encontram sob a "jurisdição" do referido órgão são aqueles que assinaram o Protocolo de 1966 sobre Direitos econômicos, sociais e culturais, o qual dispõe o seguinte:
“Artigo 2º – 1. Cada Estado-parte no presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas.
2. Os Estados-partes no presente Pacto comprometem-se a garantir que os direitos nele enunciados se exercerão sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação.
3. Os países em desenvolvimento, levando devidamente em consideração os direitos humanos e a situação econômica nacional, poderão determinar em que medida garantirão os direitos econômicos reconhecidos no presente Pacto àqueles que não sejam seus nacionais”.
Ou seja, a partir do artigo em comento, percebe-se que não há um plano específico a ser seguido pelos países signatários, mas apenas recomendações sobre o que deve ser feito. Logo, o referido Protocolo é dotado de grande abstração, o que pode dificultar sua aplicação. A função do ECOSOC e do Procedimento 1503 é essencialmente a de conferir praticidade a esta norma, garantindo-lhe eficácia.
Podem ainda ser citados os casos de concessão da proteção diplomática. Esta ocorre quando um nacional, em solo estrangeiro, sofre arbitrariedades cometidas por autoridade do local onde se encontra e demanda então ao Estado do qual é nacional que tome a causa como sua, ocorrendo uma espécie de representação. A outorga da proteção diplomática é denominada "endosso". Normalmente, esse processo ocorre quando há tratados ou convenções entre os países envolvidos.
Para que ocorra o endosso, é necessário que o requerente seja considerado nacional do país do qual requereu a proteção, segundo rezam suas normas internas. No Brasil, para que ocorra tal procedimento, deve ser observado o disposto no artigo 12 da Constituição Federal, que dispõe o seguinte:
“Art. 12. São brasileiros:
I – natos:
a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país;
b) os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil;
c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira;
II – naturalizados:
a) os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, exigidas aos originários de países de língua portuguesa apenas residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral;
b) os estrangeiros de qualquer nacionalidade, residentes na República Federativa do Brasil há mais de quinze anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira.”
Além de ser nacional do país concedente da referida proteção, o requerente deve ter esgotado todos os meios internos do país que cometeu a arbitrariedade, com o intuito de saná-la. Apenas mediante estes dois requisitos, aferidos cumulativamente, poderá ser concedida a proteção diplomática.
Tratando-se de Direitos Humanos, os quais fazem parte do bojo das normas imperativas de Direito Internacional (jus cogens), os Estados são “compelidos moralmente” a incorporar os acordos que versem sobre essa matéria, desde que estes não firam de qualquer forma, como foi supracitado, o princípio da soberania ou acarretem conseqüências gravosas para o patrimônio nacional. Sobre a importância da celebração dos instrumentos de proteção aos Direitos Humanos, Fábio Konder Comparato afirma:
“Sem dúvida, o reconhecimento oficial de direitos humanos, pela autoridade política competente, dá muito mais segurança às relações sociais. Ele exerce, também, uma função pedagógica no seio da comunidade, no sentido de fazer prevalecer os grandes valores éticos, os quais, sem esse reconhecimento oficial, tardariam a se impor na vida coletiva.”[25]
Logo, a defesa dos Direitos Humanos na ordem jurídica pátria deve ser entendida como necessária, para a melhoria das relações sociais e maior segurança das relações de cunho jurídico. O Estado, quando os reconhece e se abstém de violá-los não está fazendo nada mais do que seu dever, tendo em vista que este ente representa os anseios de uma coletividade, de um povo, o qual delega a este o seu poder, o qual sempre deverá ser utilizado no intuito de garantir o interesse público. Deste entendimento provém o conceito de que o Estado possui um poder-dever, ou seja, o poder que este possui deve ser utilizado para satisfazer as necessidades de todos aqueles que fazem parte de seu povo, o qual é o real detentor do poder em comento.
2.3 Os sistemas regionais de proteção aos Direitos Humanos
No âmbito internacional, existem dois sistemas autônomos, com procedimentos e características próprias para a consecução da proteção aos Direitos Humanos: o sistema global e os regionais.
Não obstante possuírem características próprias, os sistemas em comento convivem harmonicamente e complementam suas funções, haja vista seus objetivos serem os mesmos.
O Brasil, em termos regionais, está vinculado ao Sistema Interamericano de Proteção e Promoção dos Direitos Humanos, regido pela Organização dos Estados Americanos (OEA), a qual é composta de duas instituições que atuam conjuntamente e que possuem atribuições distintas: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Com sede em Washington, o primeiro órgão tem o dever de promover a observância e a defesa dos direitos humanos. É composto de 7 membros dos países-membros da OEA, os quais sejam considerados autoridades morais e que possuam massiva atuação na proteção dos direitos humanos.
Esta instituição recebe as comunicações e petições das pessoas humanas (individualmente ou em grupo) nacionais dos países-membros que tenham sofrido violação de direitos humanos elencados na Convenção ou na Declaração Americana de Direitos Humanos, por parte do Estado signatário. Dessa forma, após a verificação da presença de 3 requisitos, a petição ou comunicação poderá ser enviada à Corte Interamericana de Direitos Humanos para apreciação.
Os requisitos para o referido envio são: os meios jurídicos internos para a solução do problema devem ter sido esgotados; deve ser observado o prazo de 6 meses para a apresentação da petição, a contar da notificação da decisão definitiva; e a matéria em questão não pode ser objeto de outro procedimento internacional, ou seja, é vedada a litispendência.
Cumpre ressaltar que, se a legislação nacional não previr meio competente para o processamento e julgamento da matéria, a petição pode ser apresentada de imediato, pois não há forma de preencher todos os requisitos em tela.
O segundo órgão, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, com sede em São José, é responsável pela interpretação e aplicação da Convenção e da Declaração Americana de Direitos Humanos. É formada por 7 juízes nacionais dos países-membros, os quais devem ter conduta ilibada a notável saber jurídico na área em questão.
É válido frisar que a competência deste Tribunal deve ser reconhecida pelo Estado violador para que possa atuar. Dessa forma, a Corte processa e julga as petições e prolata sentenças, as quais são motivadas, definitivas e inapeláveis, sendo executáveis no respectivo Estado, através do processo de execução de sentenças vigente.
Há, todavia, característica interessante relativa ao processo. O indivíduo ou grupo de indivíduos não atuam perante a Corte e têm como representante a própria Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O indivíduo atua apenas como assistente, fato este que não descaracteriza sua personalidade jurídica.
2.4 Os Tribunais internacionais e o indivíduo
Apesar de descentralizada, não possuindo uma Lei Maior e os três poderes, a sociedade internacional instituiu Cortes de Justiça internacionais, as quais possuem jurisdição transnacional e poder para processar e julgar indivíduos.
A existência de tais Tribunais aponta para outro sustentáculo da personalidade jurídica do indivíduo que é constituído pelo fato de este poder ser responsabilizado judicialmente por crimes cometidos contra a sociedade internacional, ou seja, este pode atuar numa relação de Direito Internacional no pólo passivo.
Nesse sentido, pode ser lembrado, por exemplo o caso do ex-ditador chileno Augusto Pinochet Ugarte, o qual, a pedido da justiça espanhola, foi detido em Londres, acusado de tortura, morte e desaparecimento forçado de 94 pessoas, dentre as quais cidadãos espanhóis.
Tal prisão tem fundamento jurídico na Convenção da ONU contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, nos termos do art. 5º, "c" que reza que a jurisdição para o julgamento dos crimes em questão será definida pela nacionalidade das vítimas.
À época, foi discutida a desconsideração da Soberania chilena no caso em tela, pelo fato de haver sido editada uma Lei de Anistia, pela qual Augusto Pinochet não poderia ser julgado ou preso. No entanto, de acordo com o princípio do pacta sunt servanda, se o Estado chileno assinou tal acordo internacional, este deveria cumpri-lo, considerando o fato de que os tratados internacionais de Direitos Humanos são supralegais. Em relação à discussão, Flávia Piovesan explica:
“A resposta está absolutamente relacionada com a concepção contemporânea de direitos humanos. Ao afirmar a universalidade desses direitos, em 1948, a Declaração Universal implicou: a) revisão do conceito de soberania absoluta do Estado, que passa a sofrer relativização em prol da observância dos direitos humanos, na medida em que estes passam a constituir tema de legítimo interesse da comunidade internacional; b) cristalização do indivíduo como sujeito de direito internacional. (…)
Não há que falar em afronta à soberania chilena. O Estado chileno, no livre exercício de sua soberania, ratificou a convenção. A própria constituição chilena (art.5º) expressamente estabelece que o exercício da soberania reconhece como limite o respeito aos direitos humanos, sendo dever dos órgãos estatais respeitá-los”.[26]
O mais conhecido Tribunal Internacional é a Corte Internacional de Justiça, sediada em Haia, e que é um dos 6 órgãos componentes da Organização das Nações Unidas. Esta Corte tem legitimidade para julgar causas referentes a litígios entre Estados, como por exemplo a recente celeuma entre Brasil e Honduras, em relação à sucessão presidencial neste último. Além disso, a CIJ pode ser consultada por Estados ou Organizações Intergovernamentais, como forma de solução pacífica de conflitos internacionais.
Outros exemplos podem ser citados através da criação dos antigos Tribunais Penais Internacionais, os quais serviam para julgar crimes de guerra em conflitos específicos.
Os Tribunais Penais Internacionais eram tribunais ad hoc, ou seja, Tribunais de exceção, haja vista que a punição de crimes devia ser estipulada pelo país de origem do indivíduo. Tais Tribunais eram criados em consonância com o Capítulo VII, da Carta das Nações Unidas, e como exemplos podem ser citados o Tribunal de Haia (1993) e o Tribunal de Arusha (1994), os quais puniram crimes como genocídio, violação das leis e costumes de guerra, além de violações graves às Convenções de Genebra de 1949.
De forma concreta, o Tribunal de Haia processou e julgou o ex-presidente da extinta Iugoslávia, Slobodan Milosevic, o qual respondia por crimes contra a humanidade, crimes de guerra e genocídio. Tais acusações remontam ao conflito de independência da Bósnia, o qual se deu entre 1992 e 1995, e pelas suas intervenções na província de Kosovo, em 1998, com o intuito de aniquilar o Exército de Libertação do Kosovo, em razão de este último ter atacado alvos sérvios. Pressionado pela ONU e tendo o seu território bombardeado pela OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), o ex-presidente foi compelido a recolher suas tropas, mas o conflito acarretou a morte de cerca de 18.000 pessoas, além da fuga de 1 milhão de albaneses para países próximos.
Além do caso acima descrito, pode ser citado o do julgamento do ex-presidente ruandês General Augustin Bizimungu, que foi preso em 12 de abril de 2002, na Angola e foi transferido para a cidade de Arusha, na Tanzânia, onde foi instituído o Tribunal Penal Internacional para Crimes de Guerra em Ruanda, criado pelo Conselho de Segurança da ONU.
O general foi acusado pelo genocídio de 800 mil a 1 milhão de pessoas da etnia tutsi em Ruanda, num período de 3 meses, no ano de 1994. O conflito tem bases históricas e se deve à rivalidade entre as duas etnias que residem naquele país: os tutsis e hutus.
No referido caso, até o momento não há sentença, mas o ex-presidente e mais alguns integrantes de seu governo à época ainda estão sendo julgados por esta Corte Internacional.
Para dar fim à criação de diversos Tribunais Penais Internacionais, foi adotado o Estatuto de Roma de 1998, o qual permitiu a criação do Tribunal Penal Internacional, sediado também em Haia, e que é autônomo, permanente e universal, isto é sua jurisdição abrange inclusive países que não ratificaram sua existência. A competência desta Corte refere-se a crimes de abrangência internacional, como genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e agressão.
Cada tribunal tem onze juízes, eleitos pela Assembléia Geral das Nações Unidas com base numa lista apresentada pelo Conselho de Segurança; um funcionário responsável pela administração, nomeado pelo Secretário Geral das Nações da Unidas; e um mesmo Procurador Público, designado pelo Conselho de Segurança, sob proposta do Secretário Geral da Organização das Nações Unidas.
Logo, percebe-se que a pessoa humana é titular de direitos perante a sociedade internacional e também é passível de ser responsabilizada por atos atentatórios contra a ordem internacional e os Direitos Humanos. Tais fatores indicam que a personalidade jurídica da pessoa humana existe.
Tudo o que foi exposto acima confirma que o indivíduo tem personalidade jurídica internacional e que atua e contribui para a produção normativa deste ramo do Direito. Tal evolução da atuação da pessoa humana é também um grande avanço para a proteção efetiva dos Direitos Humanos, haja vista que seus detentores podem protegê-los através de mecanismos, não somente nacionais, mas também internacionais.
3. A RELAÇÃO ENTRE A CAPACIDADE E A PERSONALIDADE JURÍDICAS NO ÂMBITO DA SOCIEDADE INTERNACIONAL
3.1 A personalidade e a capacidade jurídicas no Direito Civil pátrio
Como ciência, o Direito é uno e extremamente amplo, o que torna seu estudo de forma panorâmica uma tarefa quase impossível. Para que seu estudo possa ser desenvolvido mais facilmente, são criados ramos, como o Direito Civil, o Direito Penal, o Direito Trabalhista, o Direito Administrativo e o Direito Internacional. E, apesar de cada um deles possuir conceitos e princípios específicos, muitos destes são comuns e porquanto, compartilhados e utilizados nas mais diferentes ramificações jurídicas.
Os termos personalidade e capacidade jurídicas, por exemplo, são tema de análise do Direito Civil, mas são utilizados em todas as divisões do Direito, inclusive em Direito Internacional. Frise-se que os conceitos de personalidade e capacidade jurídicas do Direito Civil podem ser utilizados analogamente em Direito Internacional, sempre considerando que os âmbitos são diferentes e que sofrerão restrições em relação às normas internacionais.
Sobre esse tema, no Direito Civil, a personalidade é o conjunto de poderes conferidos ao ser humano para figurar nas relações jurídicas, sendo que todos os seres humanos a possuem, a partir do nascimento com vida (apesar de que os direitos do nascituro são resguardados desde o ventre da progenitora). Já a capacidade é um de seus elementos, é o seu limite. Quando a capacidade do indivíduo é plena, esta conjuga a capacidade de direito e de fato, ou de exercício, o que lhe permite exercer direitos e contrair obrigações; se é limitada, ele possui a capacidade de direito, como qualquer outro indivíduo, mas a capacidade de exercício de alguns ou todos os atos da vida civil está diminuída, abrandada.[27]
3.2 Analogia entre o Direito Civil e o Direito Internacional
Analogamente, no Direito Internacional, todos os sujeitos possuem personalidade jurídica, como os Estados, as Organizações Internacionais e os indivíduos, haja vista que, como foi retro citado, fazem parte de relações jurídicas em âmbito internacional. No entanto, a capacidade da maioria destes entes do Direito das Gentes não é plena e por isso, não podem exercer todos os atos da vida internacional.
Os únicos sujeitos de Direito Internacional que possuem capacidade jurídica plena são os Estados e as Organizações Internacionais, os quais podem negociar e assinar acordos internacionais de toda sorte, além de poderem exercer todos os direitos que lhes foram conferidos perante a sociedade internacional e poderem ser responsabilizados por atos que desrespeitem os termos dos tratados ou os princípios regentes destas relações, como é o caso do pacta sunt servanda.
A pessoa humana, como já foi visto, possui personalidade jurídica internacional e, por conta disto, pode figurar em relações jurídicas. Contudo, ela não possui capacidade jurídica plena e portanto, não pode praticar todos os atos da vida internacional, como, por exemplo, negociar acordos e tratados internacionais em nome próprio.
Apesar de não poder exercer muitos direitos perante a sociedade internacional e só poder ser responsabilizada por esta em casos de cometimento de crimes internacionais, a pessoa humana tem um papel de vital importância na edição de recomendações aos países dos quais é nacional, por parte das Cortes Internacionais que se lhe permitem o acesso, e conseqüentemente na criação de normas que adéquam estes Estados aos princípios e normas vigentes. Sua atuação é imprescindível, porque atua como um fiscal dos atos praticados por seu próprio Estado e, em caso de irregularidade, dando início ao processo legiferante no âmbito internacional. Exemplo recente do retro mencionado é o caso da lei brasileira "Maria da Penha". Sobre este tema:
“A capacidade jurídica de agir pressupõe a personalidade, e não o contrário. A capacidade é um desdobramento da personalidade, que, por sua vez, se desdobra em capacidade processual de agir e esta, em direito de postular instâncias internacionais na forma que for determinada pelos criadores de tais instâncias. Assim, a verificação de que normas de Direito Internacional declaram direitos subjetivos individuais basta para, em conceitos de realidade jurídica, excluir as deduções dos que negam a personalidade internacional do Homem, baseados em argumentos rotineiros de processualística.” (BOSON apud HUSEK, 1998, p. 183)[28]
3.3 Requisitos para a existência da personalidade jurídica internacional do indivíduo
Os requisitos para que sejam atestadas a personalidade jurídica e conseqüente capacidade jurídica da pessoa humana, como sujeito de direitos, são então: a titularidade de direitos e obrigações, além do exercício destes direitos e possibilidade de responsabilização pelo desrespeito a estes deveres. Há, no entanto, um terceiro requisito; in verbis:
“El ser un sujeto en un sistema de derecho, o el ser una persona jurídica según las reglas de ese sistema, implica tres elementos esenciales: 1) Un sujeto tiene deberes, y por consiguiente incurre en responsabilidad por cualquier conducta distinta de la prescrita por el sistema. 2) Un sujeto tiene capacidad para reclamar el beneficio de sus derechos. Esto es algo más que ser simplemente el beneficiario de un derecho, pues un número considerable de reglas puede satisfacer los intereses de grupos de indivíduos que no tienen derecho de reclamar los beneficios concedidos por dichas normas particulares. 3) Un sujeto posee la capacidad para establecer relaciones contractuales, o de cualquier otra índole legal, con otras personas jurídicas reconocidas por el sistema de derecho en cuestión” [29]
A capacidade de estabelecer relações jurídicas, negociando e assinando tratados e acordos internacionais, com países e organizações internacionais seria, então, imprescindível para que a pessoa humana pudesse ter capacidade jurídica plena no âmbito internacional. Sobre este último requisito, é realmente impossível afirmar que algum dia isto vá se tornar realidade, tendo em vista a natureza do Direito das Gentes.
3.4 O indivíduo como titular de direitos e obrigações na sociedade internacional
Pode-se aduzir, contudo, que, no Direito Internacional, a pessoa humana possui uma Incapacidade Relativa, pois é incapaz, relativamente aos atos supra citados. Tal comparação com o Direito Civil torna possível estabelecer uma classificação sobre o tema, o qual já gerou discussões doutrinárias atrozes.
Como no Direito Civil, a pessoa humana precisaria da autorização de outrem para praticar os atos que normalmente não poderia, validamente. Sobre esta afirmação:
“A incapacidade relativa, ao contrário da incapacidade absoluta, não afeta a aptidão para o gozo de direitos, uma vez que o exercício será sempre possível com a assistência de outrem. Entende a lei, tanto a antiga como a atual, que, nesses casos, a deficiência é menor do que aquela que atinge os absolutamente incapazes; procura a lei proteger apenas a feitura de certos atos; restringe o âmbito de atuação dos relativamente capazes; exige a assistência de outra pessoa ou determina certa maneira pela qual alguns atos devam ser praticados.
Na maioria dos casos de incapacidade relativa, os atos dependem de autorização de outrem para que sejam tidos como válidos. Sem essa autorização, a vontade dos relativamente capazes é incompleta.”[30]
O sujeito de Direito Internacional que autoriza o exercício destes atos que contêm restrições ao exercício da pessoa humana é o próprio Estado da qual esta é nacional. Esta autorização será expressa através da ratificação de cláusulas em acordos internacionais que permitam, em seus termos, a atuação da pessoa humana nacional dos países signatários.
Frise-se que, apesar de aparentemente conflitiva, a relação entre a Soberania estatal e os Direitos Humanos é interdependente, pois sem o elemento humano não existe Estado e, sem Estado, os Direitos Humanos não podem ser resguardados. Também por conta desse pressuposto, a plena personalidade jurídica do indivíduo faz-se importante. Sobre o tema, afirma Hans Kelsen:
“Assim como a teoria do Direito privado pressupõe originariamente que a personalidade jurídica do indivíduo precede lógica e cronologicamente o Direito objetivo, isto é, a ordem jurídica, assim também a teoria do Estado pressupõe que o Estado, enquanto unidade coletiva que aparece como sujeito de uma vontade e de uma atuação, é independente do Direito e até preexistente ao mesmo. Mas o Estado cumpre a sua missão histórica – ensina-se – criando o Direito, o “seu” Direito, a ordem jurídica objetiva, para depois se submeter ele próprio a ela, quer dizer: para se obrigar e se atribuir direitos através do seu próprio Direito. Assim o Estado é, como entidade metajurídica, como uma espécie de poderoso macro-ánthropos ou organismo social, pressuposto do Direito e, ao mesmo tempo, sujeito jurídico que pressupõe o Direito porque lhe está submetido, é por ele obrigado e dele recebe direitos. […]”[31]
O Estado, no Direito interno, é o criador das normas que regem as relações jurídicas e as condutas dos indivíduos. A partir de sua geração, este também se submete a elas, devendo-lhes obediência e respeito, como qualquer outro ente social. O "império" normativo deve representar a vontade das pessoas humanas, cujo poder delegou à estrutura estatal.
Em Direito Internacional, a situação não é distinta, tendo em vista que, a partir da celebração de tratados, os Estados se submetem ao descrito no instrumento. Estes são, ao mesmo tempo, criadores e objeto das normas internacionais, gerando direitos e obrigações a todos os signatários e àqueles a quem seus efeitos possam se estender, garantindo a validade do referido instrumento normativo.
Para que a vontade da pessoa humana seja expressa de forma correta nas normais internacionais, mecanismos que garantam a consecução de seus direitos, como os que já existem, devem ser mantidos e novos devem ser criados, sempre com o intuito de ampliar seu poder para proteger seus direitos, denunciar violações estatais e influenciar a produção normativa internacional.
Um bom exemplo de possibilidade de expressão da pessoa humana perante a sociedade internacional é a autorização outorgada para acessar Cortes Internacionais, como é o caso da Corte Interamericana de Direitos Humanos, à qual a pessoa humana terá acesso desde que o Estado da qual é nacional seja signatária do Pacto San José da Costa Rica e que este tenha ratificado a cláusula que se lhe permite o acesso. Observa-se in verbis:
“Artigo 44 – Qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não-governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados-membros da Organização, pode apresentar à Comissão petições que contenham denúncias ou queixas de violação desta Convenção por um Estado-parte.
Artigo 45 – 1. Todo Estado-parte pode, no momento do depósito do seu instrumento de ratificação desta Convenção, ou de adesão a ela, ou em qualquer momento posterior, declarar que reconhece a competência da Comissão para receber e examinar as comunicações em que um Estado-parte alegue haver outro Estado-parte incorrido em violações dos direitos humanos estabelecidos nesta Convenção.
2. As comunicações feitas em virtude deste artigo só podem ser admitidas e examinadas se forem apresentadas por um Estado-parte que haja feito uma declaração pela qual reconheça a referida competência da Comissão. A Comissão não admitirá nenhuma comunicação contra um Estado-parte que não haja feito tal declaração.(…)”
Verifica-se desta forma que a autorização estatal para a prática deste ato é imprescindível. Sem ela, a pessoa humana, ou grupo de pessoas, não estão legitimados a protocolizar petição junto à Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, a qual será analisada posteriormente pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Como já foi mencionado, este acesso a órgãos internacionais por parte da pessoa humana não configura uma prerrogativa para editar tratados, negociá-los, ou assiná-los. Nesse caso, o exercício desses atos, levando em conta o interesse da pessoa humana, seria efetuado pelos Estados, os quais são legitimados para defender os interesses de seus nacionais. Tal situação seria uma espécie de representação internacional, tal qual ocorre com os relativamente capazes do Direito Civil.
Chega-se portanto à conclusão de que a discussão acerca da existência da personalidade jurídica da pessoa humana em Direito Internacional é imprópria e estéril, tendo em vista que se desenvolve em torno do atributo jurídico errôneo. A discussão em questão deveria se fazer acerca da amplitude de sua capacidade jurídica.
CONCLUSÃO
Assim sendo, conclui-se que, com o passar do tempo e com os avanços da sistemática jurídica internacional, os sujeitos do Direito Internacional se diversificaram e possuem as mais diversas naturezas, como demonstrado. O aludido ramo jurídico deixou de ser meramente estatal, apesar de os Estados e as Organizações compostas por estes ainda serem os sujeitos mais representativos. Hodiernamente, o Direito das Gentes permite a atuação de outros sujeitos, a qual é de suma importância para a consecução dos objetivos propostos pela sociedade internacional como um todo, tendo em vista que estas evidenciam os reais anseios das populações nacionais.
A intensificação da atuação da pessoa humana no Direito Internacional constitui o seu maior avanço, tendo em vista que o Direito é feito por esta e para ela, sendo inconcebível sua exclusão total, pois os Estados nada mais são que legitimados para a consecução de sua vontade. Estes são os detentores do poder-dever de suprir todas as necessidades públicas, consubstanciando sua vontade, inclusive no plano internacional.
Por fim, chega-se à conclusão de que a pessoa humana, na sociedade internacional, é legítimo sujeito de direitos e obrigações, observadas as limitações impostas pelas peculiaridades deste ramo jurídico, podendo ser punidas por descumprimento dos deveres que lhe são impostos pelas normas jurídicas internacionais, fiscalizando a atuação dos Estados das quais são nacionais e fazendo com que estes sejam punidos em caso de descumprimento dos compromissos assumidos em âmbito global ou regional, defendendo, portanto, seus interesses, direitos e garantias.
Advogado especialista em Direito internacional público e mestre em Direito internacional e europeu
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