A atuação do Banco Nacional do Desenvolvimento e a problemática dos incentivos na cinematografia brasileira

Resumo: A cultura constitui uma das riquezas de maior notabilidade no Brasil. Leis e mecanismos de incentivo foram criados ao longo dos anos para impulsionar o desenvolvimento desse dinâmico e estratégico setor, sobretudo no que concerne ao cinema, cuja trajetória denota as dificuldades enfrentadas para evoluir. O BNDES é um dos responsáveis pelo oferecimento de instrumentos de apoio financeiro ao audiovisual. Esses instrumentos, mediante pesquisa bibliográfica e ênfase no método dialético para compreensão da realidade, foram investigados no presente trabalho, o que proporcionou um esclarecimento de suas ações e da razão pela qual ainda hoje, carecemos de meios para fornecer às pessoas o devido acesso aos bens culturais.


Palavras-chave: BNDES; política cinematográfica brasileira; financiamento; leis.


Sumário: 1. Introdução. 2. Política Nacional Cinematográfica. 3. Atuação do BNDES. 3.1. Procult. 3.2. Funcines. 4. Leis de Incentivo Fiscal e Óbices ao Acesso Popular. 4.1. Concentração de Recursos. 5. Conclusão. Referencias bibliográficas.


1. Introdução


O cinema (abreviação de “cinematógrafo”, do francês cinématographe) chegou ao Brasil pouco após sua invenção no subterrâneo do Grand Café, em Paris, onde os irmãos Lumière realizaram a primeira exibição paga e pública de uma série de dez filmes, com duração de 40 a 50 segundos cada.


Assim, a primeira exibição registrada aqui data de 1896, no Rio de Janeiro. Um ano depois já existia no Rio uma sala fixa de cinema, o “Salão de Novidades Paris”, de Paschoal Segreto, tendo os primeiros filmes nacionais sido rodados entre os anos de 1897-1898.


Com relativo progresso na produção de energia elétrica (vide a inauguração da usina de Ribeirão das Lages), salas de exibição começaram então a se proliferar pelo país, amplificando a comercialização de filmes estrangeiros e fomentando o mercado nacional. Nestas salas eram apresentadas desde ficções das companhias francesas Pathé e Gaumont, passando pela italiana Cines e pela alemã Bioskop, até às películas provindas das americanas Edison, Vitagraph e Biograph.


Nos anos 20, as técnicas e aprimoramento tecnológico do cinema tiveram considerável impulso culminando no lançamento, em 1929, do primeiro filme sonoro brasileiro, a comédia “Acabaram-se os otários”, de Luiz de Barros.


Ainda assim, ao contrário do que aconteceu na Europa e nos Estados Unidos, o cinema brasileiro demorou para se desenvolver no século XX. Somente na década de 1930 que surgiram as primeiras empresas cinematográficas, produtoras de filmes do gênero chanchada, como a ilustre Cinédia. Em um ano foram produzidos cerca de 30 longas.


Posteriormente, em 1941, o rentável e famoso gênero da época é solidificado com a abertura do notável estúdio Atlântida, que surge com um ojetivo bastante definido: promover o desenvolvimento industrial do cinema brasileiro. O estúdio mantém uma postura consolidada. Voltado para o mercado com um esquema industrial auto-sustentável, obtinha grande receptividade do público.


Ainda que pretendesse, em certos aspectos, imitar o modelo hollywoodiano, as chanchadas transmitem enorme brasilidade ao colocar em relevo os problemas cotidianos da época. Conforme Eduardo de Figueiredo Caldas:


“Nos vinte primeiros anos do cinema falado, a produção paulista foi quase inexistente, enquanto que a carioca se consolidou e prosperou com as famosas chanchadas da Atlântida. Precárias comédias carnavalescas e recheadas com sucessos musicais do momento. Eram sucesso garantido de público. Baseando-se nisso, Zampari resolve criar uma companhia para produzir filmes de qualidade como os de Hollywood. A Vera Cruz era uma empresa moderna e ambiciosa, que dispunha do apoio da burguesia de São Paulo, a metrópole econômica do País. O surgimento da Vera Cruz reflete aspectos da história cultural do Brasil: a influência italiana, o papel de São Paulo na modernização da cultura, o surgimento e as dificuldades das indústrias culturais no país e as origens da produção audiovisual brasileira.”


 Construída em São Bernardo do Campo, a Companhia Vera Cruz dispunha de um aparato moderníssimo de equipamentos e profissionais, e o sucesso parecia inevitável. Mas, não foi bem isso que sucedeu. Durante os próximos anos, as coisas de complicariam muito e, nos fins de 1954, as atividades da empresa chegam ao fim.


Foi somente durante a década de 60, com a ajuda de movimentos culturais, políticos e sociais que se disseminavam pelo mundo, que o cinema voltou a ter forças no país. O movimento no cinema, no Brasil, ficou conhecido como “cinema novo”, uma espécie de arma do povo contra o governo.


Mediante discussões de problemas rurais e políticos, o Cinema Novo brasileiro assume papel de ingente importância, tornando o Brasil reconhecido como país de relevância no cenário cinematográfico mundial. Além disso, acaba por contribuir para trazer ao público problemas que eram mantidos longe da vista popular.


Em 1969 é criada a Empresa Brasileira de Filmes (EMBRAFILME)[1] para financiar, co-produzir e distribuir os filmes brasileiros. Há então uma produção diversificada que atinge o auge em meados dos anos 80, com a crise econômica que assolou o Brasil concomitantemente com uma queda eloquente de público, a EMBRAFILME, gradativamente, começa a declinar.


O Presidente Fernando Collor extinguiu, em 27 de abril de 1990, todos os organismos culturais de âmbito federal, mediante expedição do Decreto 99.226[2].


Fatidicamente, o cinema brasileiro vive sua “Idade das Trevas”, obtendo a inexpressiva marca de apenas três filmes lançados em 1992.


Porém, a Lei 8.313, de 23 de Dezembro de 1991, conhecida como Lei Rouanet, institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), baseado nos moldes internacionais, que visa promover a cultura através do investimento das empresas em projetos culturais de parte do seu imposto de renda devido (RODRIGUES, 2005).


Por sua vez, a Lei 8.685 de 20 de Julho de 1993 (Lei do Audiovisual), vem  para impulsionar a indústria do cinema e do auviovisual.


Nos últimos anos da década de 90, devido aos mecanismos desenvolvidos por estas duas leis, principalmente no tocante à isenção fiscal, o Cinema Brasileiro vivenciou o conhecido período da Retomada, tornando a Sétima Arte um pólo estratégico de desenvolvimento, alavancando o país tanto no que concerne à criação de empregos quanto na contribuição cultural à população.


A bem da verdade, a industrial cultural no Brasil gera, a cada milhão investido, cerca de 160 postos de trabalho, superando assim os números referentes às industrias automobilísticas e eletrônicas.


O presente artigo tem então, como escopo, investigar as ações políticas centradas no estímulo ao cinema, sobretudo no que concerne aos mecanismos disponibilizados pelo BNDES, visando esclarecer o quão vantajoso pode ser, tornar-se um povo que crê e entende sua própria excelência e magnitude.


2. Política nacional cinematográfica


“Continuo fechado com minhas posições de um cinema terceiro-mundista. Um cinema independente do ponto-de-vista econômico e artístico, que não deixe a criatividade estética desaparecer em nome de uma objetividade comercial e de um imediatismo político. ” (Glauber Rocha)


Audiovisual… este erudito âmbito passou por altos e baixos em sua evolução e efetiva inserção no mercado brasileiro. Desde às chanchadas, passando pela Cinédia, pela Atântida, pela Vera Cruz, pelo Cinema Novo, pela Embrafilme, por Collor (e sobrevivendo à tal ente), até chegar à Retomada, muitos fatos, para dizer o mínimo, se consubstanciaram.


A Lei 8.313, de 23 de dezembro de 1991, conhecida como Lei Rouanet, criou o PRONAC – Programa Nacional de Apoio à Cultura – propondo o investimento das empresas de parte do seu imposto de renda devido em projetos culturais (RODRIGUES, 2005). Basicamente, conforme o disposto no artigo 18, dessa Lei, a União Federal faculta às pessoas físicas ou jurídicas, a opção pela aplicação de parcelas do imposto sobre a renda a título de doações ou patrocínios a projetos culturais, sejam eles apresentados por pessoas físicas ou por pessoas jurídicas de natureza privada, ou então, através de doações efetuadas ao Fundo Nacional da Cultura (FNC), um fundo de natureza contábil com prazo indeterminado de duração (artigo 5.º da Lei Rouanet).


Em seguida, tivemos a promulgação da Lei 8.685 de 20 de Julho de 1993 (Lei do Audiovisual), a qual veio com o intuito de promoção especificamente da indústria do cinema e do auviovisual.


O período da Retomada, citado acima, ficou conhecido nos últimos anos da década de 90, devido mormente aos mecanismos criados por estas duas leis, principalmente no tocante à isenção fiscal, tornando a Sétima Arte um pólo estratégico ao progresso, impulsionando o país tanto na criação de empregos e na contribuição cultural à população. Afinal, a cultura tem papel decisivo na formação de cidadãos plenos na capacidade de lidar com a complexidade de decisões que a vida contemporânea vem trazendo, mediante seu bombardeamento porfioso de informações; sem ela, e seus inerentes valores sociais, a democracia ou o Estado de Direito perdem sua finalidade e substancial importância.


Com a Lei Rouanet, o governo atrelou fundos expressivos das estatais (conglomerado Petrobrás, Eletrobrás e Correios) na manutenção do cinema nacional, injetando, entre 2000 e 2003, 81% dos R$ 80 milhões aplicados em projetos acompanhados pela Ancine. Em termos realistas, o cinema é, ao mesmo tempo, uma indústria estatal “terceirizada” e um subproduto do petróleo; acessoriamente, carioca e paulista.


Veja, há uma concetração latente de investimentos na região Sudeste do país. Quando se associam a projetos culturais, as empresas buscam retorno de marketing e dão prioridade a artistas consagrados e ao público formado por brasileiros de maior poder aquisitivo, principalmente nas regiões Sudeste, e Sul.


Aliada à esse grave entrave, o acesso aos bens culturais é problema nítido e esquecido. Ora, de que adianta investir bilhões na produção de filmes, se a grande maioria da população não possui condições financeiras de assistir a exibições? Nas duas tabelas que se seguem, pode-se notar a redução de público nos cinemas nacionais, sobretudo quando se trata de filme produzido aqui:



Duas observações merecem ser feitas. A primeira é que, a bem da verdade, é mais viável para uma família de quatro pessoas que gastaria no mínimo R$ 50,00 para presenciar a mostra de determinada película, despender R$ 5,00 locando ou adquirindo do mesmo, cópia provinda de meios ilícitos.


Já a segunda, é que quanto menos acesso nossa população tiver, maior o descaso com que nossos filmes serão tratados: o cinema americano é o soberano. Mais uma das lógicas imperialistas cruéis.


A cultura em si, como verdadeira ferramenta de transformação social, gera projetos que visam o desenvolvimento, a difusão e a preservação do conhecimento obtido e acumulado pela humanidade. Os três são de extrema valia: desenvolvimento, DIFUSÃO e preservação.


Mas, para que a difusão de tudo o que for desenvolvido e preservado culturalmente ocorra de forma correta, temos que nos atentar para o fato de que o povo brasileiro carece, e muito, de meios para ter acesso à cultura.


Se nos esquecermos disso, estaremos fadados ao regresso e a estagnação das mentes pertencentes a uma diversidade tão rica quanto a nossa.


3. Atuação do BNDES


O Banco Nacional do Desenvolvimento – BNDES – fundado em 1952, é um órgão do Governo Federal que constitui um dos principais agentes financiadores da economia brasileira. Mas para entendermos melhor a organização do BNDES faz-se necessário o remonte de alguns processos intrínsecos a sua criação, como bem explicitado por Gilberto Oliveira da Silva Júnior:


“O seu surgimento foi parte de uma construção que visava a estruturação de um projeto de desenvolvimento para o Brasil a partir de algumas bases essenciais, tendo o “Programa de Reaparelhamento Econômico” lugar de destaque, com o BNDE na posição de gestor. Iniciou-se uma cooperação, com a entrada em funcionamento da Comissão Mista, entre Brasil e Estados Unidos (CMBEU), criada em dezembro de 1950. Esta Comissão era composta por técnicos de ambos os países e teria como objetivo o Estudo dos problemas básicos da economia brasileira, bem como a proposição de soluções para estes problemas. Os estudos preliminares da Comissão Mista estabeleciam que para conseguir o melhoramento da produtividade do Brasil com o reaparelhamento das funções mais diretamente ligadas ao Estado (portos, meios de transporte, energia elétrica e indústrias básicas) ou mesmo o incentivo da iniciativa privada, seria necessário cerca de 20 bilhões de cruzeiros, sendo que metade deste valor deveria ser gasto no exterior com importação de equipamentos e serviços especializados.”


Considerado hoje um dos protagonistas do progresso do cinema nacional, ele oferece um conjunto diversificado de instrumentos de apoio financeiro, com recursos não reembolsáveis, financiamentos e capital de risco.


A indústria do audiovisual apresenta um grande potencial de crescimento no Brasil, com impactos diretos tanto no aumento da geração de renda e emprego quanto na identidade e bem-estar social. Sendo assim, com um suporte à produção de obras cinematográficas, o BNDES iniciou em 1995, seu apoio efetivo ao setor audiovisual.


Desde então, o BNDES investiu, mediante editais de seleção pública anuais, cerca de R$ 133 milhões na realização de filmes, com recursos passíveis de incentivos fiscais previstos na Lei do Audiovisual (Lei 8.685/93).


3.1. Procult


Antes destinado exclusivamente à cadeia produtiva do audiovisual, o Procult vive desde 2009 uma nova fase, na qual passa a chamar-se Programa BNDES para o Desenvolvimento da Economia da Cultura – BNDES Procult, consolidando-se como principal instrumento do Banco de apoio ao setor cultural, cujos segmentos de atuação passam a ser não só o audiovisual como também o património cultural, editorial e livrarias, fonográfico e espetáculos ao vivo.


Seus objetivos gerais são: viabilizar o apoio ao desenvolvimento e fortalecimento da cadeia produtiva da economia cultural no País; preservar a memória cultural nacional tangível e intangível; estimular a diversidade cultural brasileira; promover a descentralização da oferta de bens culturais; promover a inclusão social por meio da arte e da cultura.


Levando em consideração a marca irreparável de desigualdade e minorias esquecidas deixadas por nossa história, com certeza este último objetivo enseja maior atenção e premência


O BNDES Procult fornece apoio financeiro através de três subprogramas. São eles:


I) BNDES Procult – Financiamento: esta modalidade tem como pressuposto oferecer crédito para os investimentos empresariais com sede e administração no Brasil, nos segmentos de audiovisual, jogos eletrônicos, editorial e livrarias, fonográfico e de espetáculos ao vivo. No que diz respeito ao audiovisual, busca-se, entre outros propósitos, implantar, modernizar, expandir e reformar salas de projeção de obras audiovisuais no Brasil, bem como distribuir, divulgar e comercializar as obras audiovisuais nacionais, de conteúdo audiovisual digital brasileiro para novas mídias, inclusuve jogos eletrônicos brasileiros, no País e no exterior (BNDES, 2009).


II) BNDES Procult – Renda Variável: destinando-se a investimentos em projetos e planos de negócios em todos os segmentos apoiados, o BNDES Procult – Renda Variável por atuar, ainda, em operações de reestruturação (financeira e societária) de empresas brasileiras sob controle de capital nacional. Os recursos financeiros podem ser alcoados aqui, na forma de: a) subscrição de valores mobiliários; b) participação em fundos de investimento; e, c) aquisição de certificados de investimentos audiovisuais. A letra c, corresponde, pois, a aquisição de cotas representativas de direitos de comercialização sobre obras audiovisuais cinematográficas brasileiras de produção independente, conforme previsto no art. 1° da Lei n° 8.685, de 20.07.1993 (Lei do Audiovisual).


III) BNDES Procult – Não Reembolsável: neste subprograma, busca-se financiar os investimentos relacionados ao patrimônio cultural e ao audiovisual, mais especificamente, aos projetos de coprodução internacional para TV, preservação do patrimônio histórico e arqueológico, seleção pública de projetos de preservação de acervos e, seleção pública de projetos cinematográficos. Os recursos não reembolsáveis do BNDES Procult – Não Reembolsável podem provir da renúncia fiscal definida pela Lei Rouanet, além do próprio dinheiro do BNDES, oriundos de seu Fundo Central.


3.2. Funcines


Os Funcines constituem fundos de participação exclusivamente voltados para o desenvolvimento da indústria cinematográfica e audiovisual brasileira, conforme regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários – CVM.


Garantindo a seus investidores, a possibilidade de dedução fiscal correspondente a 100% do valor investido até o limite de 3% do imposto de renda a pagar, se pessoa jurídica, ou 6%, de pessoa física, os Funcines deverão ter um comitê, composto por, no mínimo, três membros, para deliberar sobre os investimentos nos projetos que comporão a carteira do Funcine, com participação de um ou mais representantes do BNDES.


O BNDES visa participações minoritárias nos fundos em que investe. No caso dos Funcines, a participação do BNDES no patrimônio previsto será definida caso a caso, com base na análise do pleito. A subscrição e integralização das cotas dos fundos pelo BNDES deverá ser realizada concomitantemente com os demais cotistas. 


4. Leis de incentivo fiscal e óbices ao acesso popular


Constitui objetivo fundamental de nossa República Federativa, nos termos do art. 3° da CF/88, reduzir as desigualdades sociais e regionais. Mas de fundamental este objetivo não tem nada.


A criatividade do artista brasileiro é inesgotável, mas nossa rica diversidade cultural e o consumo da produção cultural do país esbarram na exclusão sociocultural. Atente-se para esses indecorosos dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística):


“Apenas 13% dos brasileiros vão ao cinema uma vez por ano; 92% nunca visitaram um museu; só 17% compram livros; 78% nunca assistiram a um espetáculo de dança; 90% dos municípios brasileiros não possuem pelo menos um desses equipamentos: salas de cinema, teatro, museu ou espaços culturais multiuso; 600 municípios brasileiros não possuem qualquer tipo de biblioteca (405 deles ficam no Nordeste e apenas 2 no Sudeste); 1,8% livro per capita/ano é a média de leitura do brasileiro (contra 2,4 na Colômbia e 7 na França); 25 reais é o preço médio do livro de leitura corrente no país; 56,7% da população ocupada na área de cultura não têm carteira assinada. (BAHÉ, on-line)’


A realidade é um suplício. Apenas por observar tais percentuais, pode-se dar por justificado o motivo desse trabalho: a política cultural brasileira vem se alicerçando em bases nocivas, o antagonismo entre a produção e o consumo deve ser notado de uma vez por todas para que seja sanada essa discrepância na partilha.


Como mudar esses números senão com uma política cultural que tenha no acesso uma meta fundamental?


Talvez o maior problema enfrentado para promover ações culturais seja o grande volume de dinheiro gasto em grandes espetáculos, para os quais poucos podem aceder, em oposição à imensa carência existente nas periferias e no interior onde a diversidade cultural acontece.


A cultura está por toda parte, sem restrições, e como disse Fernanda Montenegro, “nós temos é que buscar a cultura no povo, dando condições para que ela brote.”


Herdamos um modelo baseado principalmente na renúncia fiscal, que não se presta a política pública. Quando se associam a projetos culturais, as empresas buscam retorno de marketing e dão prioridade a artistas consagrados e ao público formado por brasileiros de maior poder aquisitivo, principalmente nas regiões Sul e Sudeste.


O caso é que, seguindo o padrão da desigualdade que assola nossa nação, 3% dos proponentes de projetos recebem 50% dos recursos. Vivemos em um apartheid cultural, e se nada for feito, esses “generosos” e “aprazíveis” números crescerão em ingentes proporções. Afinal, isso incomoda?


Para constituirmos uma cultura real é preciso preliminarmente realizar uma transformação de natureza política. Diferentes grupos e classes sociais precisam fazer um esforço intenso para romper com estados mentais, modos de ver e de agir, valores consagrados e organizações institucionalizadas que mantêm um colonialismo invisível dentro de uma situação de dependência de extrema visibilidade (MOTA, 1978).


O incentivo fiscal, também denominado mecenato[3], possibilita benefícios para investidores que apoiam projetos culturais mediante doação ou patrocínio.


Em 2 de julho de 1986, procurando incentivar a produção cultural no país, foi aprovada a Lei n° 7.505, conhecida por Lei Sarney, que oferecia benefícios fiscais na área do imposto de renda, proporcionando um abatimento da renda bruta ou dedução de despesa operacional aos contribuintes que efetivassem doações, patrocínios ou investimentos a favor de pessoa jurídica de natureza cultural cadastrada no Ministério da Cultura.


Para as pessoas físicas o abatimento em questão ocorreria da seguinte forma (Artigo 1° da Lei):


“§ 1º Observado o limite máximo de 10% (dez por cento) da renda bruta, a pessoa física poderá abater: I – até 100% (cem por cento) do valor da doação; II – até 80% (oitenta por cento) do valor do patrocínio; III – até 50% (cinqüenta por cento) do valor do investimento.


§ 2º O abatimento previsto no § 1º deste artigo não está sujeito ao limite de 50% (cinqüenta por cento) da renda bruta previsto na legislação do imposto de renda.”


Quanto as pessoas jurídicas, o procedimento seria basicamente o mesmo (Artigo 1°):


“§ 3º A pessoa jurídica poderá deduzir do imposto devido, valor equivalente à aplicação da alíquota cabível do imposto de renda, tendo como base de cálculo: I – até 100% (cem por cento) do valor das doações; II – até 80% (oitenta por cento) do valor do patrocínio;  III – até 50% (cinqüenta por cento) do valor do investimento.


§ 4º Na hipótese do parágrafo anterior, observado o limite máximo de 2% (dois por cento) do imposto devido, as deduções previstas não estão sujeitas a outros limites estabelecidos na legislação do imposto de renda.”


Observando o limite de 50% (cinqüenta por cento) de dedutibilidade do imposto devido, a pessoa jurídica que não se utilizasse, no decorrer de seu período-base, dos benefícios concedidos por esta lei, poderia optar pela dedução de até 5% (cinco por cento) do imposto devido para destinação ao Fundo de Promoção Cultural, gerido pelo Ministério da Cultura.


Foi com a Lei Sarney que tivemos a ligação entre setor privado e setor cultural, assunto que vem gerando discussões acirradas até hoje, por deixar na mão de empresas o financiamento de políticas culturais, transferindo parte da responsabilidade Estatal para a lógica do mercado.


No ano de 1991 a proposta de lei do então Ministro da Cultura, Sérgio Paulo Rouanet, é aprovada. Tal lei, conhecida por Lei Rouanet (Lei n° 8.313 de 23 de dezembro de 1991), possuía como um dos principais pontos o estabelecimento do Programa Nacional de Apoio a Cultura (PRONAC).


A Lei Rouanet acabou por se tornar ineficaz, não conseguindo romper com o lastro constituído pela Lei Sarney (dependência do setor privado e sistema de abatimento do imposto de renda), primeiramente porque os recursos provindos do FNC são bastante escassos para atender a uma demanda mínima para implementação das políticas públicas culturais no país, sobrecarregando o Mecenato. E em segundo lugar, porque embora o Mecenato permita que os projetos culturais sejam apoiados por meio da renúncia fiscal, as empresas não o concebem dessa forma, e acabam por apoiar somente projetos que lhe interessem, que lhe dêem retorno de imagem.


Veja, a empresa que se beneficia da Lei Rouanet não está interessada em novas experiências artísticas, promovidas por um novo Glauber Rocha[4], ou por inventores de linguagens. Afinal, não possui o desejo de que sua imagem seja vinculada a experiências culturais ainda não compreendidas pelo grande público.


Outras Leis de Incentivo foram sendo elaboradas nas três esferas públicas, merecendo destaque as seguintes:


a) Lei do Audiovisual (Lei Federal n° 8685/93) – Permite desconto fiscal para quem comprar cotas de filmes em produção. O limite de desconto sobre o imposto de renda é de 3% para pessoas jurídicas e de 5% para pessoas físicas;


b) Lei de Incentivo à Cultura (LINC – Lei Estadual n° 8819/94) – Cria o programa estadual de incentivo à cultura e institui o Conselho de Desenvolvimento Cultural, responsável pela análise de projetos;


c) Lei Mendonça (Lei Municipal n° 10923/04) – Permite que o contribuinte do IPRJ e ISS abata até 70% do valor do patrocínio desses impostos.


Como a utilização do mecanismo proposto pela Lei Rouanet não obteve o exato êxito em democratizar a contento o acesso à produção e à fruição cultural por parte da população brasileira, tramita hoje no Congresso uma proposta de reformulação – Projeto de Lei n. 6722/2010 – que entrou na pauta após o recesso parlamentar, em fevereiro de 2010.


A bem da verdade, a Lei Rouanet tornou-se a salvação da cultura nacional em tempos muito complicados e ajudou a desenvolver inúmeros empreendedores culturais. Todavia, por falta quem sabe de uma gestão hábil ou de vontade política, dois de seus mecanismos – FNC e Ficart – nunca funcionaram da forma como deveriam, transformando o Mecenato no único meio válido de financiamento à cultura, o que não justifica, nesta reforma proposta, decretar o fim de todos os benefícios já conquistados.


Amparado por campanha publicitária milionária e com alto grau de manipulação ideológica, o Projeto em questão não sana qualquer dos itens questionados e exigidos pela sociedade, como por exemplo, a garantia de uma distribuição eficaz dos recursos públicos para as mãos do que precisam.


Precisa-se de mudança sim. Há sete anos se espera por isso. Mas, lamentavelmente, não acredito que será com o Procultura – a “menina dos olhos” do Projeto – e seu “poder miraculoso” que conseguiremos. Somente com estudos e pesquisas precisas, obteremos tal sucesso, afinal, tem-se que alterar um quadro de anos de falimento.  O Brasil do século XXI exige um despertar para a importância da cultura, sendo que o próprio Papa João Paulo II disse que: “A cultura não deve sofrer nenhuma coerção por parte do poder, político ou econômico, mas ser ajudada por um e por outro em todas as formas de iniciativa pública e privada conforme o verdadeiro humanismo, a tradição e o espírito autêntico de cada povo.” Portanto, é na valorização da diversidade e no acesso a ela como direito de todos, que poderemos formar uma geração de cidadãos culturalmente ricos e plenos. Só assim fortaleceremos nossa jovem democracia.


4.1. Concentração de Recursos


A atividade audiovisual no Brasil se distribui de forma concentrada, estando diretamente relacionada com as políticas públicas estabelecidas para o setor.


Ora, a própria sede do BNDES – Rio de Janeiro – entrega a tendenciosa maneira pela qual os recursos são concedidos, o que definitivamente não ocorre por falta de demanda em outras regiões.


Conforme esclarece Gilberto Oliveira da Silva Júnior, o Estado brasileiro, na figura do BNDES, contribuiu significativamente na formação das regiões metropolitanas, tanto das nove primeiras (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Salvador, Recife, Fortaleza e Belém), quanto das que receberam este título nas décadas posteriores, como Santos, Campinas, Vitória, dentre outras. Ocorrendo, desde então, uma concentação de investimentos nessas regiões.



Teoricamente, a assistência e benefícios oferecidos tanto pelo Banco quanto pelas inúmeras leis de incetivo existentes, são excelentes. Entretanto, basta um olhar um pouco mais comedido sobre eles para perceber o quanto a cultura e, particularmente, o cinema, tornaram-se meros acessórios na corrida pelo lucro.


O que deveria funcionar como estimulante as atividades culturais culmina por colocar na mão das empresas, ou eventuais investidores, o poder de decidir o que deve ou não ser produzido, para que ele (ente particular) possa obter alguma vantagem. Esquece-se assim, tudo o que representa aquele jogo primoroso de imagens predispostas em uma grande tela. Esquece-se o quanto o povo precisa consumir cultura, precisa acreditar na cultura, precisa, pois, ter seu direito à uma educação de qualidade e à uma formação que respeite plenamente sua identidade cultural, reconhecido.


A esfera cultural tornou-se hoje uma das mais estratégicas e dinâmicas do país, posto que suas diversas atividades geram, por um lado, emprego e renda, e por outro, inclusão e bem-estar social. Então, não fará mal algum, destinar recursos para dar a população o acesso que lhes é direito. Os grandes e verdadeiros artistas, os grandes e verdadeiros filmes, não têm, pois, razão de ser, se não chegarem a visão de todos, sem distinção de classe ou região.


5. Conclusão


Os dezoito anos de uma das mais conhecidas leis de incentivo fiscal promulgadas até o presente momento – a Lei Rouanet – culminaram por provocar distorções na repartição dos auxílios destinados a promoção do setor cultural. Nessa toada, a diversidade brasileira clama por uma partilha equitativa em todas as áreas e segmentos, e, sobretudo, em todas as regiões, pois cada uma delas completa nosso panorama rico de expressões. Afinal, a demanda de acesso existe em todo lugar.


Apesar de ser nítido que a cultura reverteu-se em uma economia estratégica no mundo, que precisa tanto do investimento público quanto do privado, o Poder Público não pode se escusar do fato de que ainda possui o papel central nessa conjuntura.


A cultura deve ser compreendida dentro de um ambiente que a tome como parte indispensável da vida, referente não só ao grupo populacional que a legitima, mas de toda a coletividade. Só assim o nacional será valorizado. Só assim o nacional renascerá sempre que tentarem dizimá-lo.



Referências bibliográficas:

BERNARDO, João. Economia dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. Cortez, 1991.

BOBBIO, Noberto. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política. 10ª. ed. Sâo Paulo: Paz e Terra, 2003.

BNDES. BNDES reformula política para a economia da cultura e amplia para R$ 1 bilhão o apoio ao setor, 2009. Disponível em: <http://www.amigosdolivro.com.br/lermais_materias.php?cd_materias=7065>. Acesso em: 13 mar. 2010.

BNDES. Relatório de atividades. Rio de Janeiro, 1952 – 2002.

CALDAS, Eduardo de Figueiredo. Cinema no Brasil. Disponível em: <http://www.coladaweb.com/artes/cinema-no-brasil-parte-1>. Acesso em: 27 mar. 2010.

FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.

RODRIGUES, Márcio. Agência nacional do cinema. 73 f. Trabalho de Conclusão de Curso. Bacharel em Direito. Unesp – Franca/SP, 2005.

SILVA JÚNIOR, Gilberto Oliveira da. Regiões urbanas brasileiras e os investimentos desiguais do BNDES. Disponível em: <.http://egal2009.easyplanners.info/area05/5408_Oliveira_da_Silva_Junior_Gilberto.doc>. Acesso em: 17 mar. 2010.


Notas:

[1] A EMBRAFILME foi criada pelo Decreto 862 de 12 de Setembro de 1969.

[2] O Decreto em voga dispõe sobre a Dissolução de Entidades da Administração Publica Federal e dá Outras Providencias. “Art. 1°. Fica determinada a extinção das seguintes entidades: (…) VII. Distribuidora de Filmes S.A. (Embrafilme).”

[3] Deriva do nome de Caio Mecenas (68 a.C. – 8 a.C.), um influente conselheiro de Otávio Augusto, que formou um círculo de intelectuais e poetas, sustentando sua produção artística. Esse tipo de inventivo à arte tornou-se prática comum no período renascentista, que buscava inspiração na Antiguidade grega e romana, e vivenciava um momento de pujança económica com o surgimento da burguesia. (Fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre)

[4] Cineasta, ator e escritor brasileiro, nascido em Vitória da Conquista, no sudoeste da Bahia.

Informações Sobre o Autor

Talita Vanessa Penariol Natarelli

Bacharel em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Mestranda em Sociologia pela mesma Universidade.


Equipe Âmbito Jurídico

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