A atualidade de Francisco de Vitória e suas lições para o aprimoramento do Direito Internacional

Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar algumas dimensões sobre o Direito Internacional, sobretudo retomando análises a partir de alguns elementos que compõem sua legitimidade, aceitação e aplicação. A partir de Francisco de Vitória, tido como um de seus principais fundadores, retomamos alguns temas que reforçam os argumentos da construção e desenvolvimento do Direito Internacional muito a partir das próprias contradições evidenciadas em sua atuação. O aprendizado com os avanços e a institucionalidade do Direito Internacional, sem dúvida, ainda referenciam e fundamentam as relações internacionais no Estado contemporâneo.


Abstract: This article aims to present some aspects of international law, especially returning from analysis of some elements that make up its legitimacy, acceptance and implementation. From Francisco de Vitoria, considered one of its main founders, we return to certain themes that reinforce the arguments of the construction and development of international law from the very own contradictions evident in his performance. The learning with the advances of international law and institutions, no doubt, and still refer to underlie international relations in the contemporary state.


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Palavras-chaves: Francisco de Vitória. Direito Internacional. Aplicabilidade.  Estado Contemporâneo.


Keywords: Francisco de Vitoria. International Law. Applicability. Contemporary State.


Sumário: 1. Introdução. 2. Breves considerações sobre o percurso do direito internacional. 3. Francisco de vitória: pensamento internacionalista. 4. Análise crítica de algumas ideias de francisco de vitória. 5. Considerações finais. 6. Referências bibliográficas.


1. INTRODUÇÃO


A idéia de fundação do Direito Internacional, embora compreensível do ponto de vista de se fixar uma autonomia didática a um ramo do Direito, pode ser muito pretensiosa do ponto de vista histórico, filosófico e sociológico, tendo em vista o itinerário histórico de sua afirmação, as bases ético-políticas de seu conteúdo, aplicação e interpretação, bem como sua evidência nas relações que envolvem os Estados, haja vista o cenário das relações internacionais na atualidade.


Considerando a autonomia do Direito Internacional do ponto de vista legislativo, doutrinário e didático, já não mais convém discorrer sobre sua existência, dada toda sua institucionalização teórica, orgânica e sua efetividade, especialmente no que relaciona com sua aplicação obrigatória pelos Estados.


Portanto, melhor se aplica a expressão “exploradores do Direito Internacional”, tendo em vista as evidências evolutivas do Direito Internacional e não um marco inaugural, considerando que Francisco de Vitória e outros, com o destaque merecido, fizeram uma sistematização a partir da época e da ocasião em que atuaram e, obviamente, posto que no Direito Internacional a subordinação à trajetória é componente genuíno, para além de fundadores, sua fundamentação, ou seja, para a legitimação, aplicação e reconhecimento de seu caráter obrigatório no contexto das relações internacionais.


Importante, então, reconstruir o percurso histórico para situar os que se destacaram e influenciaram a construção, desenvolvimento e aprimoramento da teoria do Direito Internacional.


2. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O PERCURSO DO DIREITO INTERNACIONAL


Não há a pretensão de detalhar a evolução do Direito Internacional, posto que não se trata de uma criação recente e, como dito antes, não se trata de uma descoberta, mas uma construção que foi se aprofundando em função do desenvolvimento da sociedade internacional e também evoluindo e moldando conforme os acontecimentos, entraves e avanços vividos.


Roberto Luiz SILVA (2008)[1] ensina que desde a antiguidade há indícios de utilização de normas de Direito Internacional como o tratado internacional celebrado entre duas cidades da Mesopotâmia, por Eannatun, senhor da Cidade-Estado de Lagash, e os homens de Umma, celebrado em 3.100 a.C. e que versava sobre a guerra.


Temas como arbitragem e relações diplomáticas, mais especificamente sobre inviolabilidade de embaixadas já vinham se desenvolvendo nas Cidades-Estado da Grécia antiga. Embora não existisse lei comum ou sistematização de um Direito superior em tais Cidades-Estado, as chamadas anfictionias gregas já lançavam mão de mecanismos para evitar conflitos e guerras, já que constituíam ligas pacíficas de caráter religioso, cuja finalidade era evitar guerras e julgar as infrações à santidade dos templos.[2]


Em Roma, embora decorresse de guerras havia a lei de Roma (pax romana) aos Estados vencidos. Os estrangeiros podiam invocar o jus gentium, que era um ramo do direito interno e ainda havia o jus fetiale que regulava as relações entre as nações estrangeiras. Nessa época também já de firmavam os tratados internacionais de amicitia (amizade), hospitium (hospitalidade), foedus (aliança) e sponsio (acordos transitórios sobre situações de guerra).[3]


Mas, certamente como um marco regulatório mais centralizado e organizado, na Idade Média é que se vêem os primeiros esboços enquanto Direito Internacional, sobretudo em função do Feudalismo e da projeção com poder e prestígio dos quais gozavam os senhores feudais. Em função disso, muitos acordos, sobretudo relativos a proteção e segurança foram firmados entre os mesmos.


Esta época foi marcada pela forte influência da Igreja que influenciava em muitos dos tratados e, com a preocupação com homens e mulheres, atuavam no sentido de evitar guerras ou mesmo humanizá-las fazendo determinados feudos se comprometerem em não guerrear, distinguindo feudos beligerantes e não-beligerantes (Paz de Deus), proibindo ataques em determinados horários e datas (Trégua de Deus) e proibindo guerras na Nobreza, até que o Rei julgasse a questão (Quarentena do Rei).[4]


A idade moderna, mais especificamente a partir de 1492 com a expansão européia e o fim da supremacia do Papado, o Direito Internacional ganha novos contornos, inclusive como estudo autônomo. Nesse contexto os teólogos passam a exercer grande influência para inferir elementos de ordem ética relacionados à guerra e a dominação de outros povos que habitavam o “Novo Mundo”.


É neste período histórico que o Direito passava a ser mais internacional face aos intercâmbios políticos e econômicos advindos das relações das Cidades-Estados italianas (Império Romano-Germânico), da expansão Ibérica (Portugal e Espanha) para América e África, além de Moscou que se expandia rumo a Ásia do Centro e Norte.


Ë neste cenário de corrida pela hegemonia, dominação e expansão territorial e econômica que o Direito Internacional passa a se estruturar de forma mais centralizada em aspectos normativos, políticos e orgânicos ante aos inúmeros sujeitos que já atuam de forma sistemática na arena internacional.


Então, todo este percurso histórico, brevemente descrito, é que solidifica as relações entre os Estados passando a exigir melhor institucionalidade, que seja capaz de responder às exigências das novas e complexas relações entre os Estados.


Portanto, não se trata da fundação do Direito Internacional, já que existia mesmo de forma descentralizada, mas de sua melhor conformação face aos novos tempos e às novas formas de relação entre Estados e entre pessoas.


Diante de tal complexidade, é que se incluem os teólogos, muito embora a serviço dos governantes, é inegável que a sistematização do Direito Internacional, neste período, passa pelas contribuições, dentre outros, de Francisco de Vitória, no caso, para a Espanha.


Ainda, com a Revolução Francesa houve maior desenvolvimento do Direito Internacional, notadamente quanto às nacionalidade, mas, como marco fundamental na Idade Contemporânea foi a maior ocorrência de eventos internacionais que geraram inúmeros tratados e resultaram diversos documentos, institucionalizando ainda mais com a positivação do Direito Internacional.


Nos dias atuais, com a dinâmica das relações internacionais, a “Nova Ordem Internacional” aponta para tensões e desafios em todos os setores, com destaque para as questões de natureza econômica e comercial, o que determina o fluxo e a importância das relações envolvendo os Estados


Embora este percurso aponte uma série de idiossincrasias, avanços e retrocessos, há que se considerar o acúmulo obtido e, com o destaque dado para á Idade Moderna e aos teólogos, evidenciam-se alguns aspectos fundamentais na atuação de Francisco de Vitória em prol de melhor sistematização do Direito Internacional


3. FRANCISCO DE VITÓRIA: PENSAMENTO INTERNACIONALISTA.


Francisco de Vitória [5] (1483 -1546) nasceu em Vitória, capital da província de Álava, em Salamanca e teve uma formação muito sólida em uma das melhores universidades do mundo, a Universidade de Salamanca, sendo que também complementou seus estudos na Universidade de Paris.


Os professores da Universidade de Salamanca (os frades Hernando de Talavera, Juan Marchena, Diego Deza e Cardeal Mendoza) foram os principais apoiadores nas investidas de Cristóvão Colombo a partir e 1486 que resultaram nas investidas rumo à América. Não à toa, esta Universidade contribuiu com outras inúmeras realizações como consultas ao Papa Gregório XIII quanto à reforma do calendário da era cristã, que modificava o calendário Juliano (do Imperador Júlio César); também foi a primeira a ensinar o sistema heliocêntrico de Nicolau Copérnico; lençou a primiera gramática de uma língua européia (língua castelhana); ensinou o hebreu e o árabe que facilitou o estudo de obras mais avançadas sobre medicina e cirurgia.


Também, desde o século XVI a Universidade de Salamanca admite que mulheres estudem e também lecionem, o que não era comum em outras instituições.


Em certa medida, na vanguarda desde muito tempo, a Universidade de Salamanca se colocou como a maior referência em estudos de humanidade e teologia. Francisco de Vitória, teólogo dominicano espanhol, por alguns tido como um dos precursores do Direito Internacional, por outros como fundador, mas a despeito de disputas de paternidade, o marco fundamental na obra de Vitória diz respeito às bases principológicas de um processo permanente de consolidação do Direito Internacional.


Em um contexto de mudanças e transformações das monarquias européias em Estados modernos, Vitória lança um referencial essencial que avança do Jus Gentium, com o conteúdo do Direito Romano, para o Jus Inter Gentes que delineia o Direito do Estado, defendendo a aplicação universal do Direito Natural, que é o próprio Direito do Estado.


“[…] Em primeiro lugar, reconhece a soberania do Estado, logo, a sua liberdade; mas o Estado é limitado pelo Direito Natural que lhe é superior. Em segundo lugar, os Estados soberanos, tal como os indivíduos, precisam de viver em sociedade. A comunidade dos Estados soberanos ou comunidade internacional possui, pois, uma existência necessária; como a comunidade dos homens, também ela é uma comunidade jurídica. Por conseguinte, é igualmente necessária a exist6encia do direito internacional destinado a reger a comunidade. [6]


Aqui reside uma conclusão fundamental de Alain PELLET (2004) que sintetizam características fundamentais que qualificam Francisco de Vitória como principal expoente que inclusive teve sua obra na orientação na “Escola do direito natural e das gentes” (Grotius) e no “Positivismo” (Vattel) que a seguir foram tendências nas quais se desenvolveram algumas concepções do Direito Internacional.


Outra base principiológica fundamental em Vitória e essencial para o Direito Internacional são os estudos feitos com uma concepção profunda no sentido moral das relações, desenvolvendo temas éticos e sociais, misturando-os, superando as diferenças entre moral e política. No centro dos princípios defendidos por Vitória está a compreensão da humanidade como comunidade universal.


Para ele, há um direito universal dos povos, superior à nação e ao Estado, e estes povos são sujeitos de direito internacional posto ser oriundo de usos universais entre as pessoas e que tem como objetivo a paz e a concórdia. Parte da idéia de que a sociedade internacional é “orgânica e solidária”, levando a crer na concepção de que os Estados têm soberania limitada.


É nessa perspectiva que à Vitória a atribuída a tese de uma comunidade de Estados soberanos e iguais, regida por um direito das gentes válido em tempos de paz e de guerra.


Sobre o tema guerra, a par das investidas do rei Carlos V, para quem as guerras eram justas, caso os índios se recusassem a aceitar o domínio e a soberania dos espanhóis, causando grande incômodo nos governantes, mas lançando bases que até hoje são fundamentais na ordem internacional, Vitória alterou o conceito de guerra justa ou injusta para guerra defensiva ou ofensiva, querendo regular melhor as relações em que um Estado se defendia de ataque ou agressão ilícita e aquelas em que um Estado tinha intenções de dominação para explorar outros Estados com interesses escusos, sobretudo a busca de hegemonia a preço de uso ilegal da força.


Além destas contribuições de ordem teológica e política, Vitória explorou muitos temas que lançaram bases fundamentais de ordem jurídica como as liberdades dos mares, a guerra justa, ou a justa agressão, além das intervenções humanitárias, visando defender os direitos humanos. Disso se verifica hoje todo o sistema internacional que é composto por órgãos e organismos administrativos e judiciais como a Corte Internacional de Justiça, o Tribunal Penal Internacional e demais órgãos globais e regionais.


Portanto, é evidente que as idéias internacionalistas de Francisco de Vitória alteraram todo o contexto até então vigente, com a ressalva de que ainda não haviam Estados modernos, com relações estreitas com outros Estados soberanos. Daí um destaque fundamental de Vitória quanto a inauguração de uma abordagem aplicada às relações entre Estados, o que conduziu a construção inicial de relações interestatais, embora avançando para inserção de novos sujeitos internacionais, mas ainda com maior relevância e repercussão nas ações dos Estados.


4. ANÁLISE CRÍTICA DE ALGUMAS IDEIAS DE FRANCISCO DE VITÓRIA.


É inquestionável a importância de Francisco de Vitória, sobretudo para o Direito Internacional, embora sua vida e sua atuação requeiram algumas ponderações e contextualizações históricas e teóricas a fim de permitir reflexões que possam contribuir para a sociedade atual.


Como disposto acima, os temas principais que envolvem a teoria de Francisco de Vitória dizem respeito às relações em uma sociedade de nações, com a formação de uma comunidade internacional, os temas relativos ao Direito Natural e suas conexões com o Direito Positivo, além dos enfrentamentos sobre Direito das Gentes, ainda as questões relativas ao direito à guerra (justa) e a soberania (relativa) dos Estados. Certamente, muitos temas desdobram disso e são evidenciados nos registros de Vitória, como as relações comerciais, a religião, dentre outros, mas nos ateremos a uma discussão mais específica ao temas mais fundamentais ao Direito Internacional.


Ainda que se tenha em Vitória como referência na introdução de guerra justa, um estudo mais apurado dá outra fundamentação para isso.


Na época do reinado do Imperador Carlos V, este não estabelecia limites para uma atuação primeira para a conquista do Novo Mundo, mas pela via de guerra, quer seja justa ou injusta. O que fez Vitória foi tentar estabelecer um mínimo moral através das consultas que lhe pedia o Rei, como também nos seus ensinamentos e registros (escritos). Já que a atuação seria pela guerra, pelo menos que fosse baseada em alguns limites e parâmetros mais próximos da igualdade e no reconhecimento dos outros. Alinhado com a concepção do Direito Natural quis Vitória firmar as bases de relações, em certa medida, civilizadas tendo no cristianismo um referencial para orientar as relações, sobretudo evitando guerras, ou pelo menos a violência.


O período histórico que viveu e atuou Vitória remonta a um período de rupturas no cenário mundial em vários aspectos. Uma perspectiva vista a partir do século XVI é o surgimento da república universal das gentes, perspectiva esta que surge como substituição do modelo medieval pautado pelo poder do Papa e do Imperador.


Cançado Trindade (2002) afirma que Francisco de Vitória trouxe a noção de prevalência do Estado de Direito, ao sustentar que o ordenamento jurídico obriga os governados como os governantes e, nesta perspectiva, “a comunidade internacional (totus orbis) prima sobre o arbítrio de cada Estado individual”[7].


Constatamos a fundamentação para justificar as relações e o tratamento recíproco entre espanhóis e índios, além da justificativa das “guerras justas”, caso houvesse óbice, por exemplo, pelos chefes indígenas ao tentar impedir as negociações entre índios e espanhóis.


Mas, embora tenha na melhor consideração de Francisco de Vitória como defensor dos índios contra seus agressores, no caso os europeus, o que efetivamente pode se avaliar é que a fundamentação dada pelo autor é da imposição de um modelo europeu. Ou seja, o que se deu efetivamente foram as bases da colonização, posto que os índios, também por Vitória, eram tidos como bárbaros, inclusos em uma categoria pouco melhor que os animais selvagens; que não teriam capacidade de se autogovernarem.


Mas, evidentemente, as bases dessa reciprocidade pleiteada, inclusive a ser garantida até mesmo pela força, não se dá em bases equânimes ou justas posto que não havia por parte dos índios a capacidade de negociação, sobretudo por suas características sociais e culturais. Não havia Estado ou povo livre e igual e com poder equivalente em uma arena de relações, mas uma perspectiva unilateral e direcionada.


Assim, o desdobramento visto foi mesmo a dominação e espoliação dos índios de suas terras. Mas, ao contrário do que possa parecer, esta seria uma etapa fundamental na normatização das relações entre Estados, com também para o progresso e desenvolvimento da humanidade.


Justificava-se, portanto, os elementos fundamentais para se impor relações que eram interessantes somente para os europeus que, neste sentido, passaram a legitimar as garantias das relações comerciais, sobretudo, negociando o ouro com os índios, além das intervenções missionárias para evangelizá-los, ainda a persuasão ou coação com a possibilidade de guerra, em caso de resistência.


“A lógica que movia Vitória ao fazer esta afirmação fundamenta-se em três elementos: a) o fato de que as sociedades humanas teriam relações pacíficas de troca estaria em conformidade com o Direito natural – nenhum soberano poderia, então, impedir os seus súditos de fazerem comércio com os estrangeiros que desembarcam no seu território; b) assim como não poderiam se opor às relações de troca econômica, os príncipes não cristãos também não poderiam proibir aos missionários de evangelizar os seus súditos; c) como conseqüência lógica dos dois primeiros, o terceiro elementos do pensamento de Vitória é a doutrina da guerra justa (bellum iiustum). [8]


Corrobora isso o fato de também representar o aprofundamento das relações, especialmente comerciais, a ruptura com os esquemas medievais até então vigentes com os feudos e outras relações privadas. Vitória afirma que a “sociedade aberta” seria a tônica para as novas e modernas relações em uma sociedade internacional, seguindo postulados do Direito Natural, base em que se fundamentava o comércio internacional.


Em que pese a constatação também evidente de que Vitória expôs sua idéia de um Direito das Gentes calcado no universalismo e pluralismo, conformando uma comunidade universal do gênero humano, esta comunidade seria a organização dos povos em Estados, e este seria o ponto de igualdade; não considerando, assim, os índios, que ainda teriam que ser alinhados neste contexto comum.


Como proposto pela escolástica, atendendo à encomenda da Igreja e do Imperador, Vitória desenvolve um discurso que legitima a formação das nações modernas, mas pautadas no universalismo católico e no alinhamento da dominação, a pretexto da expansão das relações internacionais e do desenvolvimento dos Estados.


Para Ferrajoli (2002), este discurso de Vitória foi desenvolvido com uma “exigência eminentemente prática: a de oferecer um fundamento jurídico à conquista do novo mundo, logo após o seu descobrimento”. [9]


De acordo com o mesmo autor, daí se erigiu os pilares do direito internacional moderno, notadamente para fins de direção e dominação do novo mundo.


 “As idéias basilares dessa imponente construção são essencialmente três: a) a configuração da ordem mundial como sociedade natural de Estados soberanos; b) a teorização de uma série de direitos naturais dos povos e dos Estados; c) a reformulação da doutrina cristã da “guerra justa”, redefinida como sanção jurídica às iniuriae (ofensas) sofridas.[10]


De todo modo, é inegável que uma conclusão que faz soar desta concepção a justificativa para a colonização européia da América, sem diminuir a importância de Francisco de Vitória para o Direito Internacional e para as Relações Internacionais. Contudo, mesmo com os avanços proporcionados para uma sociedade internacional ou uma república universal das gentes, este modelo proposto por Vitória não avançou devido ao surgimento dos estados nacionais absolutistas do século XVII.


Ainda de acordo com Ferrajoli (2002), o insucesso do modelo vitoriano se deveu às suas próprias contradições. Por um lado, pelo antagonismo evidente entre o sistema internacional formado por estados igualmente soberanos sujeitos ao direito das gentes, no plano externo, e ao estado de Direito, no plano interno, com o conceito de soberania, então vigente, caracterizada pelo caráter absoluto. Daí as limitações ao desenvolvimento do relativismo proposto quanto à soberania, mais tarde conseguido pelos avanços das relações entre os países.


De outro lado, o princípio da igualdade entre os povos não refletia a disparidade vista entre os países. É inegável que alguns países tinham condições, sobretudo econômicas e tecnológicas que os diferenciavam dos demais e isso definia a hegemonia e as possibilidades de ampliação de seus domínios.


Outro importante aspecto que merece melhor exploração na teoria de Francisco de Vitória diz respeito do Direito Natural.[11]


 Vitória defende que além dos seres humanos, também as nações se unem pelo Direito Natural, o que repercute nas questões da soberania, posto que implicará limitações no exercício do poder e criará uma subordinação jurídica a uma sociedade internacional.


Embora tenha se colocado como uma discussão mais à frente do tempo em que viveu Vitória, nessa ocasião surgem as bases da discussão envolvendo o conceito de Direito Natural e Direito das Gentes. Mais tarde Hugo Grotius apresenta uma releitura de Francisco de Vitória com o diferencial de caracterizar o Direito das Gentes com autonomia em relação à religião (teologia), à moral e também em relação do Direito Natural. Seria o Direito das Gentes aquele fruto dos consensos entre os Estados.


Seguindo os ensinamentos de São Tomás de Aquino, que apenas reconhece o Direito Natural e o Direito Positivo, Vitória defende que o Direito das Gentes pertence ao Direito Positivo, pois não sendo um bem em si mesmo e não tem em si eqüidade por natureza, resulta de algo sancionado pelo acordo entre os homens.


Daí a conclusão de que o Direito das Gentes tem sua origem nos acordos entre os povos. Retomando São Tomás de Aquino, temos que o Direito das Gentes se origina tanto no Direito Natural, dado tudo que é comum aos seres humanos, assim como no Direito Positivo, fruto dos acordos e convênios firmados entre os homens.


Mas, Francisco de Vitória não nega as instituições do Direito das Gentes, embora também não o trate como ramo a parte do Direito Natural e do Direito Positivo, mas sim como decorrência de um ou de outro. Além disso, o Direito das Gentes é importante para conservação do Direito Natural já que pretende evitar conflitos entre os homens e também entre as nações, o que aponta para relações de reciprocidade para que não haja desigualdade e injustiça.


Em um debate mais atual, sobretudo quando ainda persiste uma discussão, mais avançada convém concordar, quanto ao reconhecimento e aceitação do Direito Internacional, Vitória já trazia o entendimento de que o conjunto de todas as nações se equivaleria a um Estado, para fazer valer o entendimento de que seria um único Estado e teria poderes para criar leis, que deveriam ser obedecidas por todos e não poderiam ser recusadas por nenhum Estado. Ou seja, em uma análise aprofundada, não se poderia firmar o Direito Internacional em adesões ou permissões, mas todas as leis internacionais seriam obrigatoriamente aplicadas e obedecidas, independente de aceitação por parte dos Estados, sobretudo pelo aspecto vigente de criação pela natureza humana (Direito Natural)


“XXXVI. Internacional law has not only the force of a pact and agreement among men, but also the force of a law; for the world as a whole, being in a way one single State, has the power to creat laws are just and fitting for all persons, as are the rules of international law…It is not permissible for one country to refuse to be bound by international law, the latter having been established by the authority of the whole world.” [12]


Obviamente, não é o que constatamos atualmente, tendo em vista que os tratados e pactos, na maioria das vezes, só apresentam efetividade quando aceitos e recepcionados pelos Estados, não seguindo esta ordem natural defendida por Vitória.


Certo é que não podemos negar toda conjuntura que envolvia a atuação de Vitória, com os interesses da Igreja e dos monarcas e, obviamente, repercutiu nas suas idéias, mas também é inegável que ele superou e deu uma perspectiva mais humana, inclusive nas ações marcadas pela violência da conquista de povos pelos europeus. As instituições fundamentais do Direito Internacional devem a Vitória a articulação de limites de atuação ante aos homens e aos Estados, além de organizar eventuais guerras, nos limites humanos mínimos e justificáveis, rompendo com a barbárie vigente na Idade Média.


As contradições eventualmente levantadas na teoria vitoriana certamente se dão na ordem da discussão comparativa, em contextos diferentes e desiguais na medida em que desde Vitória, muitos avanços foram operados e o contexto já não é o mesmo dos séculos XV e XVI.


4. Considerações finais


Das idéias de Vitória, como essencial e de repercussão ainda hoje nas instituições nacionais e internacionais, temos que o destaque e a luta pela igualdade dos povos, integrando isso ao gênero humano, é fundamental. Em que pese o contexto de aparente contradição na relação envolvendo os índios e os espanhóis, sobretudo pelo estabelecimento de relações comerciais; relações estas não iguais pelas diferenças culturais e sociais, é inegável que Vitória ao menos lançou as bases para um mínimo ético nas relações.


Também, outro sentido para o desenvolvimento da escolástica e a exploração da legitimidade que os teólogos gozavam, não foi por acaso, mas porque era preciso conter as guerras e os inúmeros conflitos ocorrentes na época. Assim, além de estabelecer bases teóricas a partir dos ensinamentos, também teve Vitória uma atuação fundamental orientando os reis em consultas quando acionados.


Em certa medida, também na questão religiosa, embora com difícil imparcialidade, o cenário da época e as relações de força que a Igreja representava levou a forte atuação para implementar o catolicismo com os índios. É claro que de modo mais forçoso, ou persuasivo, para que fosse um direito garantido aos estrangeiros que os chefes dos índios não poderiam impedir.


Alinhado a isso, a questão da soberania desponta, desde esta época, como uma instituição que deveria ser relativizada, para o bem das relações internacionais, especialmente, econômicas. Nesse contexto desenvolveram-se as questões do comércio nos mares e a ampliação das relações que foram intensificadas entre os Estados, aprimorando inclusive para outras vias e meios comerciais, mas tendo no comércio marítimo, as bases para as relações comerciais internacionais.


Uma lição a destacar diz respeito ao tratamento dado por Vitória quanto aos governantes, e seu poder, quando estes fossem não cristãos. Vitória não somente reconhece o poder dos mesmos, por justificativa que o poder dos pagãos e não cristãos, assim como o poder dos cristãos, são legítimos pela vontade criadora de Deus que assim fez a natureza humana. Portanto, são os governantes constituídos pela vontade divina que quer que existam as sociedades, e estas devem se organizar para se administrarem e dirigirem ao bem comum de todos.


Daí resulta entendimento de que o Direito Natural é anterior e orientador do Direito Positivo, e, desse modo, reconhece que o Direito Natural difere do direito religioso, levando a firmar a aceitação a outras religiões, embora devam todos (de outras religiões) permitir que possam os cristãos se apresentarem e buscar a conversão dos não cristãos. De fato, importante é o reconhecimento e a distinção da religião e do Direito Natural, que compreende e supera aquela.


Ainda perduram algumas idiossincrasias entre os Estados, que se estruturam nas relações internacionais, ainda pela desigualdade e pela não eqüidade, tendo nas relações a prevalência dos Estados mais fortes, tanto economicamente como também na questão armamentista. Basta uma breve análise nas relações que envolvem. Por exemplo, as Nações Unidas para que se vislumbre tal desigualdade. As relações de força e poder não obedecem a uma lógica de igualdade ou eqüidade. As relações nestes espaços são, sobretudo, relações políticas pautadas pela representação histórica e simbólica de determinado Estado, necessariamente, orientada por sua economia, por seu poder armamentista (guerra) e por sua capacidade política de domínio nas relações internacionais.


Então, temos que o adjetivo de ser Vitória o fundador do Direito Internacional não lhe cai mal, embora seja mais adequado tratar o Direito Internacional uma temática necessariamente caracterizada pela historicidade e ordenada conforme a dinâmica social. Sem dúvida, o período em que atuou Francisco de Vitória foi determinante para o estágio atual do Direito Internacional hoje, mas, é inelutável que algumas de suas idéias não foram observadas de modo a garantir melhor cenário, como também, pelo contexto de sua atuação vinculado ao Papado e as Monarcas, em certa medida, também lançou bases tendenciosas para estas instituições.


A partir de Vitória, o que se verifica, são aprimoramentos inevitáveis ao Direito Internacional e às relações internacionais, de modo geral, avançando conforme as construções históricas operadas.


 


6. Referências bibliográficas

FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

HEREDIA, Vicente Beltrán de. Francisco de Vitoria. Barcelona, Madrid, Buenos Aires, Rio de Janeiro: Labor, 1939.

HERNANDEZ, Ramon. Francisco de Vitória: vida y pensamiento internacionalista. Madrid: Biblioteca de autores cristianos, 1995.

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 5´ edição, 2011.

PELLET, Alain; et al. Direito Internacional Público. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2004. 2ª ed..

SERRA, Antonio Truyol y, The Principles of Political and International Law in the Work of Francisco de Vitoria, tr. José Maria Gimeno. Madrid, 1946.

SILVA, Roberto Luiz. Direito Internacional Público. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.

TRINDADE, A. A. Cançado, A personalidade e capacidade jurídicas do indivíduo como sujeito do direito internacional. In: Os novos conceitos do novo direito internacional: cidadania, democracia e direitos humanos. Danielle Annoni (Org.). RJ: América Jurídica, 2002.

VITÓRIA, Francisco de. Os índios e o direito da guerra: de indis et de jure belli relectiones. Rio Grande do Sul: Unijuí, 2006.

____________________. “Releituras” sobre os títulos legítimos pelos quais os Índios podiam ser sujeitos ao poder dos espanhóis. In: SUESS, Paulo (Coord.) A Conquista Espiritual da América Espanhola. Petrópolis: Vozes, 1992.


Notas:



[1] SILVA, Roberto Luiz. Direito Internacional Público. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 49.

[2] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 5´ edição, 2011, p. 52.

[3] SILVA, Roberto Luiz. Direito Internacional Público. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 49.

[4] Idem.

[5] Dentre outros, Francisco de Vitória escreveu Relectiones theologicae, Relectiones De Indis e De jure belli Hispanorum in Barbados, Sobre El Poder Civil, dentre muitos outros.

[6] PELLET, Alain; et al. Direito Internacional Público. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2004. 2ª ed., p. 56.

[7] TRINDADE, A. A. Cançado, A personalidade e capacidade jurídicas do indivíduo como sujeito do direito internacional. In: Os novos conceitos do novo direito internacional: cidadania, democracia e direitos humanos. Danielle Annoni (Org.). RJ: América Jurídica, 2002, p 2.

[8] VITÓRIA, Francisco de. Os índios e o direito da guerra: de indis et de jure belli relectiones. Rio Grande do Sul: Unijuí, 2006, pg. 8.

[9] FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pg. 6.

[10] Idem.

[11] A teoria do direito natural abrange uma grande parte da filosofia de Tomás de Aquino, Francisco Suárez, Richard Hooker, Thomas Hobbes, Hugo Grotius, Samuel von Pufendorf, John Locke e Jean-Jacques Rousseau, e exerceu uma influência profunda no movimento do racionalismo jurídico do século XVIII, quando surge a noção dos direitos fundamentais, e no desenvolvimento da common law inglesa.

[12] “O direito internacional não tem apenas a força de um pacto e um acordo entre os homens, mas também a força de uma lei, pois o mundo como um todo, sendo de certa forma um único Estado, tem o poder de criar leis que sejam justas e adequadas para todas as pessoas, como são as regras do direito internacional … Não é admissível que um país se recuse a ficar vinculado pelo direito internacional, sendo este estabelecido pela autoridade de todo o mundo.” [tradução nossa]. (SERRA, Antonio Truyol, The Principles of Political and International Law in the Work of Francisco de Vitoria tr. José Maria Gimeno. Madrid, 1946, pg. 55).

Informações Sobre o Autor

Braulio de Magalhães Santos

Advogado, Assessor Jurídico – Procuradoria Geral do Município de Belo Horizonte, Especialista em Direitos Humanos, Conselheiro do Movimento Nacional de Direitos Humanos, Mestre em Ciências Sociais – Gestão de Cidades, Doutorado em Direito Público – Internacional (em curso) – PUC-MG


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Equipe Âmbito Jurídico

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