Escrevi, há bem pouco tempo, um texto que relatou o fracasso da “lei seca” em São Paulo. Dei-lhe o título “Um brinde à ineficácia”. Como deixei bem claro, essa foi uma notícia triste, uma vez que são vidas humanas que estão em jogo, e “torcer para que a lei desse errado” seria, no mínimo, uma demonstração de falta de bom senso. Assim sendo, fico realmente feliz em saber e divulgar a boa notícia trazida pelo Ministério da Saúde. Desde a entrada em vigor da lei, as internações no SUS caíram de 105.904 para 81.359 (23%), o número de mortes desceu de 3.519 para 2.723 (22, 5%) e, nas estradas federais, as mortes foram reduzidas em 2%, tendo sido 9.103 motoristas embriagados “presos”. Tudo isso considerando o segundo semestre de 2008, porém, desta vez, em âmbito nacional.
Mas felicidade tem fim, e ela acaba aqui mesmo. Vai dar lugar à mesmíssima preocupação externada em meu texto anterior: o perigo de uma lei impensada.
O que pouco é divulgado é que o número de acidentes subiu 7% nas estradas federais. Como saber, então, se esse aumento não está relacionado ao álcool? Crescendo 7%, e supondo-se que estejam eles relacionados à embriaguez, ocorrendo ou não internações e mortes, a estatística que mostra o “sucesso” da lei seria falsa! Isso porque “morrer” ou “ser internado” já seriam meras consequências da irresponsabilidade anterior, da desobediência à lei! Porém, há diversos outros fatores que não poderiam ser desconsiderados, como o aumento da frota de veículos, o aumento da circulação e o incremento na fiscalização.
Assim, levando-se em conta estudos criminológicos que atestam, empiricamente, ser grande parte das condutas criminosas desconsiderada oficial ou formalmente, não devo adentrar – de novo – em questões estatísticas, pois, o que diminuiu agora pode aumentar depois e vice-versa, como foi o caso da cidade de Campinas/SP, lugar onde não se constatou diminuição no número de acidentes. Além disso, é sabido que estatísticas de acidentes não definem a diminuição do número de motoristas embriagados, funcionando apenas como indicador.
O foco deve continuar sendo, portanto, o da nova técnica (?) legislativa adotada para a criminalização do “dirigir embriagado”.
Por uma questão de razoabilidade e proporcionalidade – em todos os seus sentidos – defendo sempre a aplicação mais racional do Direito Penal, “para além de uma filosofia do castigo” (Paulo Queiroz). Assim, podendo-se ou não se achar uma periculosidade, suficientemente criminalizável, ao bem jurídico protegido, o certo é que uma presunção absoluta desse perigo não traz solução racional alguma. Sendo assim, perde o cidadão e não ganha em nada o Estado.
Imagine uma pessoa com o nível de álcool acima do penalmente permitido. Imagine que essa pessoa esteja dirigindo seu veículo para sua casa a 60km/h, sem qualquer prova concreta de que seja um perigo em potencial naquele contexto. Agora, no entanto, imagine outro indivíduo que, ao sair tarde do trabalho, não estando embriagado, passa um sinal vermelho em via urbana para poder alcançar o início do primeiro tempo do jogo de futebol de seu time. Imagine que ele tenha feito isso cinco vezes durante o trajeto. Agora, responda: qual dos dois sujeitos foi um verdadeiro perigo para o bem jurídico? Aí está o problema da presunção dos crimes de perigo abstrato.
Antes de se chegar ao critério do “quantum lesivo ao bem jurídico” para se ter uma intervenção penal legítima, deve-se verificar a necessidade de tal intervenção, daí ver-se a dificuldade de simetria constitucional dos crimes assim classificados.
Além disso, questiono se, havendo uma conduta cuja sanção é uma pena privativa de liberdade de três anos, podemos comemorar um “sucesso” de 23%? Isso me lembra o complexo de inferioridade do qual sofre o povo brasileiro. Lembro-me, não provando nada com isso, mas com o único intuito de ser claro, do período dos jogos olímpicos que ocorrem de quatro em quatro anos. Qualquer classificação de um brasileiro para uma decisão é assim comemorada: “somos prata!”. É Brasil, o “segundo lugar” já está de muito bom tamanho.
Falo isso porque divulgar uma redução de 23% do problema significa comemorar uma derrota grotesca para a impunidade e para o descrédito social nas instituições penais, como bem demonstrou uma reportagem de Caco Barcelos na mesma semana da divulgação do Ministério da Saúde (houve até quem chamou a lei de “modinha”). Comemorar uma derrota de 77% é admitir categoricamente a nossa inferioridade, como povo que aceita facilmente a derrota, ou se satisfaz com muito pouco. O triste é que o Governo é nosso!
Mas há esperanças! Prometeu o Ministério da Saúde distribuir mais 10.000 bafômetros pelo país. O que é o bafômetro? Um meio de prova. O que é o estado de inocência? É a situação natural do homem que faz com que o Estado – dentre outras questões – tenha que provar a sua “não inocência”, implicando isso na não obrigatoriedade do indivíduo em produzir prova contra si mesmo, ou seja, uma garantia do cidadão frente aos abusos estatais. Do que vão adiantar dez mil ou dez milhões de bafômetros se estamos num Estado que tem esses princípios como base de nosso Processo Penal? Nada mais que dar uma sensação (simbólica) de segurança aos pequenos brasileiros, à inferioridade brasileira.
Poderá, com isso, se verificar a não aplicabilidade do crime em questão, tornando-se ele letra morta, mais um defunto no cemitério jurídico-penal brasileiro. Paralelamente, aumenta-se a sensação coletiva de impunidade. Daí a razão de se falar em “um brinde à ineficácia”, “ineficácia” da redação da lei.
E muitos poderiam perguntar-me: não seria isso uma mera questão de aplicabilidade ou fiscalização prática, ou seja, não seria “a solução” começar efetivamente a aplicar a pena privativa de liberdade? Eu retrucaria com outra pergunta: por que não se aplicam efetivamente multas, apreensões de veículos e suspensão do direito de dirigir? Deve-se lembrar da questão do cinto de segurança. Já há, ao menos de uma forma geral, uma conscientização no sentido das pessoas saberem que devem usar o cinto para o seu próprio bem. Isso não foi, a meu ver, a razão do uso do cinto no início da vigência da respectiva lei, mas sim o medo de ser pego e receber uma multa por não se usar o cinto. Um exemplo de verdadeiro sucesso de uma lei que literalmente funcionou, mas funcionou somente porque foi aplicada.
Penso que o “sucesso” de 23% de redução de internação e mortes tenha ocorrido não porque se modificou o preceito primário do tipo. Isso, sem dúvida, tem sua relevância intimidante. Mas, o principal motivo da redução é o aumento da fiscalização e aplicação concreta da lei existente, o que não ocorreu em Campinas, por exemplo. Não é a nova lei que está pegando, mas sim é a polícia – com a ajuda da imprensa – que começou a pegar.
Em São Paulo, por exemplo, o número de aplicação de multas cresceu 50, 5% e o número de “prisão” aumentou 17, 3%. A palavra “prisão” é posta em aspas sempre, já que não há aí condenação, mas apenas flagrante, não sendo interessante fazer-se uma propaganda enganosa ao se dizer que houve prisões como se elas fossem por condenação.
Não obstante, percebe-se o lado positivo na tentativa do Poder Executivo de ver as leis aplicadas. O problema está no meio utilizado: não é a mudança do tipo penal a maneira legítima para se melhorar a situação, mas sim a aplicação daquilo que é proporcional ao caso, de forma constante e insistente! Mas e o suposto caso do político do Paraná? Para o responsável daquele acidente adiantou alguma coisa “ser proporcional”? Primeiro, deve-se respeitar seu estado de inocência. E, segundo, desobedientes às leis sempre existiram e sempre irão existir! O que se deve fazer é apenas tentar reduzir esse número. Entretanto, tal deve ser feito sem se “atropelar” limites de responsabilização jurídico-penais e garantias do cidadão, sob pena de estarmos usando a violência legal como primeiro meio de solução de conflitos. E isso é muito mais perigoso que qualquer motorista irresponsável.
Em nome da tentativa de solucionar o problema ou de qualquer outra boa vontade, não tiremos a “vida” de uma pessoa que sequer fez um mal, deixando-a presa por três anos e levando-a a uma morte social inegável, com seus efeitos secundários empíricos já mais que conhecidos e vivenciados. Se, contudo, deve ser questionada a função de proteção de bens jurídicos de efetivas e concretas lesões ou perigos de lesão, é uma questão que mereceria um estudo jus-filosófico mais apurado. Parece-me que uma mudança na Constituição seria um caminho inevitável, ou não?
O que não se pode admitir é a aplicação “cega” do Direito Penal. É você, leitor civilizado e obediente ao Direito, que poderá um dia, por qualquer bagatela, ser taxado de criminoso. Admitir isso significa aceitar um Estado punitivo, um Estado de polícia, um Estado enganador e, o pior, a nossa inferioridade. Lembre-se, o Governo é seu, então, além de dirigir, governe com responsabilidade.
Advogado criminalista e Professor de Direito Penal em São Paulo. Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
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