Resumo: Desde o Período Imperial, o Estado buscou inibir a prática da condescendência criminosa, naquela época tipificada como uma forma de prevaricação. No atual Código Penal Brasileiro, o art. 320 encarregou de punir a conduta delitiva praticada pelo funcionário público que, por comiseração, deixava de responsabilizar e punir subordinado, quando do cometimento de uma infração, ou, em via alternativa, comunicasse a infração ao responsável pela apuração e aplicação de sanção correspondente. Não há como dissociar a conduta em mote como uma espécie de prevaricação privilegiada, pois a principal justificativa da conduta delitiva é o sentimento de compaixão do autor, bem como a omissão no que se refere à responsabilização de subalternos. Logo, o tipo penal visa evitar, com o dispositivo em apreço, a dissimulação e ocultação das faltas praticadas pelos funcionários. Em que pese o nobre sentimento que o leva a condescender, o funcionário público não pode deixar de ser responsabilizado criminalmente por esse fato, uma vez que a Administração Pública busca, por meio das normas disciplinares, o regular desenvolvimento da atividade administrativa. Assim, é de suma importância o estudo do referido tipo penal, visando sua efetividade e, por via de consequência, a manutenção do interesse público quanto à moralidade administrativa.
Palavras-chave: Condescendência. Criminosa. Moralidade. Administrativa.
Abstract: From the Imperial Period, the State sought to inhibit the practice of criminal indulgence, then typified as a form of wrongdoing. In the current Brazilian Penal Code, art. 320 instructed to punish criminal conduct committed by public officials who, by commiseration, left to blame and punish subordinate, when the commission of an offense, or in the alternative pathway, communicate the violation to the person responsible for investigating and applying corresponding penalty. There is no way to separate the conduct mote as a kind of prevarication privileged as the main justification of criminal conduct is the author's sense of compassion as well as the omission with regard to the accountability of subordinates. Therefore, the type criminal seeks to avoid, with the device in question, dissimulation and concealment of fouls committed by employees. Despite the noble sentiment that leads to indulge, the public official can not be held criminally responsible for this fact, since the Public Administration seeks, through the disciplinary rules, regulate the development of administrative activity. Thus, it is of paramount importance that the study of criminal type, for their effectiveness and, by consequence, the maintenance of the public interest as to administrative morality.
Keywords: Condescension. Criminal. Morality. Administrative.
Sumário: Introdução. 1. Sujeitos do Delito. 2. Delimitação da Conduta Delitiva. 3. Providências da Autoridade em Face do Agente Infrator. 4. Elemento Subjetivo do Tipo e sua Consumação. Conclusão. Referências.
Introdução
A condescendência criminosa está prevista no Código Penal Brasileiro, mais especificamente no art. 320, que prevê como conduta delitiva “deixar o funcionário, por indulgência, de responsabilizar subordinado que cometeu infração no exercício do cargo ou, quando lhe falte competência, não levar o fato ao conhecimento da autoridade competente”. A sanção penal prevista é a detenção, de quinze dias a um mês, alternativamente com multa.
Numa análise preliminar, nota-se que o tipo penal em tela é uma espécie de prevaricação privilegiada, pois a principal justificativa da conduta delitiva é o sentimento de comiseração do autor, bem como a omissão no que se refere à responsabilização de subalternos.
Não é sem motivo, que o dispositivo penal em mote tem por finalidade a manutenção da moralidade e regularidade administrativa. Por sua vez, Julio Fabbrini Mirabete (2011, p. 298) aduz que, “estando os funcionários públicos sujeitos às normas e princípios que disciplinam o exercício de suas respectivas funções, exigi-se que os superiores promovam a responsabilidade daqueles que as infringirem. Tenta-se evitar, com o dispositivo em apreço, a dissimulação e ocultação das faltas praticadas pelos funcionários.”
Em que pese o nobre sentimento que o leva a condescender, o funcionário público não pode deixar de ser responsabilizado criminalmente por esse fato, uma vez que a Administração Pública busca, por meio das normas disciplinares, previstas em seus estatutos, o regular desenvolvimento da atividade administrativa, de forma que, se todo funcionário de categoria superior se arvorasse no direito de responsabilizar ou não seu subordinado pelas faltas praticadas, tal conduta traria sérios transtornos ao desempenho da função pública, uma vez que serviria de estímulo para que todos os funcionários subordinados desrespeitassem a disciplina da Administração Pública. Tutela-se, assim, o regular desenvolvimento da atividade administrativa (CAPEZ, 2012, p. 525).
O Código Criminal do Império disciplinava essa infração penal como espécie de prevaricação (art. 129, § 4º), caminho também seguido pelo Código Penal de 1890 (art. 207, § 6º).
1. Sujeitos do Delito
Sujeito ativo do delito somente pode ser funcionário público, e que possui posição hierarquicamente superior à do infrator, sendo possível, em tese, a participação de não-funcionário, mediante induzimento ou instigação. Para o Direito Penal, considera-se funcionário público, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública. Além disso, equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública.
O sujeito passivo é sempre o Estado, ou seja, União, Estados, Municípios, autarquias, entidades paraestatais, bem como qualquer entidade de direito público enquanto titular e responsável pela Administração Pública.
2. Delimitação da Conduta Delitiva
São duas as condutas delitivas previstas, ou seja, deixar de responsabilizar subordinado que cometeu infração no exercício do cargo, e ainda, não levar o fato ao conhecimento da autoridade competente, quando lhe falta competência. Ambas as condutas são omissivas próprias e têm como pressuposto a prática de infração penal ou administrativa pelo funcionário no desempenho de suas funções (BITENCOURT, 2012, p. 149).
Deixar de responsabilizar significa não apurar o fato cometido pelo subordinado que cometeu a infração ou não lhe aplicar a sanção adequada, dentro da esfera de sua competência. Na segunda hipótese, o funcionário, não sendo competente para efetuar a responsabilidade do subordinado pela falta cometida, não dá notícia à autoridade competente (JESUS, 2012, p. 224).
Além disso, é necessário que o funcionário subordinado pratique uma infração, penal ou administrativa, no exercício de seu cargo. Não basta a condição de subordinado, nem a prática da infração, esta deve guardar nexo de causalidade com o exercício do cargo que ocupa. Condutas praticadas pelo subordinado fora do exercício do cargo, ainda que configurem faltas disciplinares, não são alcançadas pelo tipo penal, na ótica de Ney Moura Teles (2004, p. 423).
Além disso, é elemento do tipo a espécie de infração praticada pelo subalterno, seja ela mero ilícito administrativo seja crime funcional. Nos dois casos deve existir conexão entre os fatos e o exercício do cargo. Por isso, ficam fora do âmbito do tipo penal, mesmo as faltas disciplinares que importam demissão de cargo, como a de procedimento irregular ou incontinência pública ou escandalosa, vício de jogos proibidos e embriaguez, que não se relacionam ao exercício do cargo (MIRABETE, 2011, p. 299).
Valiosa é a lição de Guilherme de Souza Nucci (2008, p. 321), vejamos: “Em que pese o tipo fazer referência à “falta de competência” do funcionário para punir outro que cometeu infração, é preciso destacar que o objetivo não é instituir a delação obrigatória no seio da Administração Pública. Em verdade, quando o funcionário tiver por atribuição a punição de subalternos pela prática de infrações funcionais, cabe-lhe, não sendo o competente para punir, acionar outro, que tenha tal atribuição. No mínimo, exige-se que seja superior hierárquico da pessoa que cometeu a infração. Em suma, somente é agente competente para punir outro ou, pelo menos, que seja superior hierárquico, com o dever de comunicar a falta a quem de direito.”
Deve-se entender que, referindo-se a lei apenas ao exercício do cargo, está excluída a responsabilidade penal quando a falta do subalterno ocorrer apenas na função pública. Aquele tem sentido próprio, diverso do emprestado à função, como se pode notar do artigo 327 do Código Penal Brasileiro. Exige-se, pois, a modificação do dispositivo para harmonizá-lo com o artigo citado (MIRABETE, 2011, p. 299).
Cezar Roberto Bitencourt (2012, p. 149) faz uma crítica a esta modalidade delitiva quando assevera: “Inevitável chegar à derradeira conclusão: a criminalização desse tipo de conduta é uma demasia, ante a existência de outros mecanismos de controle formalizado, particularmente o Direito Administrativo, que podem ocupar-se melhor desse tipo de relacionamento omissivo na esfera da Administração Pública. Em verdade, na prática, tal previsão dificilmente ganha aplicação, não que tais fatos não aconteçam, ao contrário, ocorrem, mas, normalmente, o chefe do chefe, isto é, a “autoridade competente” que toma conhecimento da omissão do funcionário faltoso também adota indulgência semelhante, omitindo-se, igualmente. Apenas por exceção poder-se-á chegar à punição, e, nesse caso, normalmente, a motivação não é mais nobre que a indulgência punida, pelo contrário, é movida por sentimentos negativos, vingança, perseguição etc. Convenhamos, falando sério e sem meias palavras, somente motivações do gênero animarão colegas de trabalho a buscar a criminalização de uma ação indulgente sem maiores consequências.”
A omissão deve ser dolosa, portanto, consciente o agente de que o subalterno praticou infração, penal ou administrativa, no exercício do cargo, agindo com vontade livre de omitir-se. Se agir por interesse ou sentimento pessoal, o crime será o de prevaricação. Se para obter vantagem indevida, a pedido de alguém, poderá realizar o tipo de corrupção passiva (TELES, 2004, p. 423).
Por fim, é importante a distinção do crime previsto no art. 9º, III, da Lei n.º 1.079/50, que se trata de crimes de responsabilidade, pois o mesmo aduz que “são crimes de responsabilidade contra a probidade na administração: não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição”.
3. Providências da Autoridade em Face do Agente Infrator
A autoridade que tiver ciência de irregularidade no serviço público é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante sindicância ou processo administrativo disciplinar, assegurada ao acusado ampla defesa. A omissão da autoridade competente pode ensejar a tipificação do crime de condescendência criminosa. Vejamos a jurisprudência: “ADMINISTRATIVO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. INSTAURAÇÃO CONTRA EX-SERVIDOR. POSSIBILIDADE. APURAÇÃO DE IRREGULARIDADES PRATICADAS QUANDO DO EXERCÍCIO DAS FUNÇÕES PÚBLICAS. OBRIGATORIEDADE DA APURAÇÃO PELA AUTORIDADE PÚBLICA. 1. De acordo com o regramento legal, ao qual a Administração Pública está jungida em face da obediência ao Princípio da Legalidade, a responsabilidade civil-administrativa do servidor público federal, resultante de sua atuação no exercício do cargo, deve ser obrigatoriamente apurada pelo respectivo Ente Público, por meio da instauração de sindicância ou do processo administrativo disciplinar, nos termos do art. 143 da Lei n.º 8.112/90; sob pena de a autoridade competente incorrer no crime de condescendência criminosa, capitulado no art. 320 do Código Penal. Precedentes.”[1]
As denúncias sobre irregularidades serão objeto de apuração, desde que contenham a identificação e o endereço do denunciante e seja formulada por escrito, confirmada a autenticidade. Quando o fato narrado não configurar evidente infração disciplinar ou ilícito penal, a denúncia será arquivada, por falta de objeto.
Sempre que o ilícito praticado pelo servidor ensejar a imposição de penalidade de suspensão por mais de 30 (trinta) dias, de demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade, ou destituição de cargo em comissão, será obrigatória a instauração de processo disciplinar.
Como medida cautelar e a fim de que o servidor não venha a influir na apuração da irregularidade, a autoridade instauradora do processo disciplinar poderá determinar o afastamento do agente infrator do exercício do cargo, pelo prazo de até 60 (sessenta) dias, sem prejuízo da remuneração. O afastamento poderá ser prorrogado por igual prazo, findo o qual cessarão os seus efeitos, ainda que não concluído o processo.
Vale ressaltar que o processo disciplinar é o instrumento destinado a apurar responsabilidade de servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido.
4. Elemento Subjetivo do Tipo e sua Consumação
O primeiro elemento subjetivo da figura típica é o dolo, ou seja, a vontade livre e consciente dirigida às condutas omissivas. O segundo está na expressão “por indulgência”. O funcionário deixa de agir por tolerância, brandura etc.
É necessário que o sujeito ativo tenha ciência da falta cometida pelo subalterno. Se, por alguma razão, não a tiver, mesmo que fruto de negligência, a omissão é atípica, não se podendo falar em crime, ante a ausência de previsão da modalidade culposa (BITENCOURT, 2012, p. 150).
Consuma-se o crime com a omissão, quando o sujeito ativo, ao tomar conhecimento do fato e de sua autoria, não promove de imediato a responsabilidade do infrator ou não comunica o fato à autoridade competente, se não tiver atribuições para fazê-lo. A omissão estará caracterizada quando decorrer prazo juridicamente relevante, levando-se em conta as circunstâncias do fato e as providências necessárias para a apuração da responsabilidade (MIRABETE, 2011, p. 300).
Por outro lado, conforme lição de Hungria (1959, p. 381), o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis, a autoridade que tiver ciência de irregularidades no serviço público deve promover-lhe a apuração imediata em processo administrativo. Assim, pode-se concluir, ter-se-á o crime como consumado desde que, tendo conhecimento da infração cometida pelo subalterno, o superior hierárquico deixa de providenciar imediatamente na apuração de sua responsabilidade, salvo a existência de força maior justificada. Tratando-se de crime omissivo próprio, a tentativa é inadmissível.
Conclusão
O legislador constituinte elencou como um dos princípios da Administração Pública a moralidade administrativa, impondo ao agente público uma conduta ética, visando atingir a finalidade última do Estado, ou seja, alcançar a consecução do bem comum, não importando a esfera de poder.
Uma gestão pública pautada na moralidade administrativa é direito de todo cidadão, pois não se admite um poder legítimo que vislumbre interesses diversos do bem comum, principalmente no que tange à condução da máquina pública pelos seus agentes, eleitos democraticamente pelos titulares do poder ou providos por concurso público, num Estado de Direito.
A tipificação penal do crime de condescendência criminosa, prevista no Código Penal, vem endossar as premissas acima, punindo de forma eficaz e contundente todo aquele que descuida da moralidade administrativa, mesmo que seja por ato de comiseração.
A punição de agentes públicos que realizam atos contrários à Administração Pública, sujeitos a uma apuração por um processo administrativo disciplinar, é o mínimo que se espera para a manutenção de uma moralidade administrativa.
No entanto, a tipificação penal e sua delimitação no Código Penal não bastam para a incolumidade da moralidade administrativa, devendo ser aplicadas medidas preventivas que visam impedir a ocorrência do crime, sempre tendo em meta o bem comum.
Possui Graduação em de Direito pela Universidade Presidente Antônio Carlos (2000), Licenciatura em Filosofia pela Claretiano (2014), Pós-Graduação em Direito Público pela Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (2001), Pós-Graduação em Direito Administrativo pela Universidade Gama Filho (2010), Pós-Graduação em Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (2011), Pós-Graduação em Filosofia pela Universidade Gama Filho (2011), Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Estácio de Sá (2014), Pós-Graduado em Gestão Pública pela Universidade Cândido Mendes (2014), Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (2014), Pós-Graduado em Direito Educacional pela Claretiano (2016), Mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (2005), Doutorando em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Atualmente é Professor Universitário da Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (FADIVALE) nos cursos de Graduação e Pós-Graduação e na Fundação Educacional Nordeste Mineiro (FENORD) no curso de Graduação em Direito; Coordenador do Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (FADIVALE). Associado ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI); e Assessor de Juiz – Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais – Comarca de Governador Valadares
Especialista em Direito Civil e Processual Civil pelo Centro Universitário Newton Paiva. Mestrando em Gestão Integrada do Território pela Universidade Vale do Rio Doce – UNIVALE. Coordenador Geral do IESI/FENORD da Fundação Educacional Nordeste Mineiro.
Professora Universitária do Curso de Direito do Instituto de Ensino Superior Integrado – IESI, mantido pela Fundação Educacional Nordeste Mineiro – FENORD. Mestranda em Gestão Integrada do Território pela Universidade Vale do Rio Doce – UNIVALE
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