Resumo: A lei 12.694/2012 conhecida como Lei do juiz sem rosto, que foi introduzida no ordenamento jurídico com o objetivo de trazer mais segurança à vida dos magistrados que julgam casos que envolvam organizações criminosas. Bem como dar maior proteção aos familiares dos juízes que se encontrem ameaçados no julgamento de casos assim, tais como a possibilidade de se formar um colegiado para proferir decisões, de modo que não seja revelado qual deles veio a definir seu desfecho. Objetiva ainda assegurar melhores condições de trabalho aos magistrados, permitindo outros artifícios voltados à segurança e exposição da figura pública. Tudo isso em contraste com os princípios vigentes no ordenamento jurídico, entre eles, o mais destacado é o princípio do juiz natural, ao qual o indivíduo se vê com a garantia de ser julgado por um juiz investido anteriormente no cargo, apto legalmente a exercê-lo. Caberá a análise da divergência trazida em debates pelos próprios operadores do direito se está ou não em confronto com a Constituição. Posto que, com a aplicação da lei do juiz sem rosto e a formação de um colegiado, a medida estará em conformidade com a Magna Carta e também com os princípios carreados ao tema. Tendo em vista que os juízes que formarão o grupo também serão devidamente investidos no cargo, de acordo com a lei.
Palavras-chave: Constitucionalidade, organizações criminosas, princípio do juiz natural, lei 12.694/2012.
Abstract: The Law 12,694 / 2012 known as faceless judge Act, which introduced in the legal system with the goal of bringing more security to the lives of judges who judge cases involving criminal organizations. As well as giving greater protection to the families of judges who are threatened in the trial of such cases, such as the ability to form a joint committee to render decisions, so that it is not revealed which one came to define its outcome. It also aims at ensuring better working conditions for judges, allowing other devices aimed at security and exposure of the public figure. All this in contrast with existing principles in the legal system, among them, the most prominent is the principle of natural justice, to which the individual finds himself with the guarantee of being heard by a judge previously invested in office, legally able to exercise it. Will analyze the divergence brought in debates by their own law enforcement officers whether or not in conflict with the Constitution. Since, with the application of faceless judge's law and the formation of a joint committee, the measure will be in accordance with the Constitution and with the principles adduced to the topic. Considering that the judges who form the group will be properly invested in office, according to the law.
Keywords: Constitutional, criminal organizations, principle of natural judge, law 12.694/2012.
Sumário: Introdução. 1 Princípios Inerentes à Jurisdição. 1.1 O que são os Princípios no Ordenamento Jurídico. 1.2 Princípio do Juiz Natural. 1.3 Princípio da Inafastabilidade ou Indeclinabilidade. 1.4 Princípio da Investidura. 1.5Princípio da Indelegabilidade. 1.6 Princípio da Aderência ao Território. 1.7 Princípio da Publicidade. 1.8 Princípio da Inércia. 1.9 Princípio da Verdade Real. 2. Lei 12.850/2013 – organizações criminosas. 2.1 O que são Organizações Criminosas. 2.2 Organizações Criminosas Internacionais. 2.3 Características das Organizações Criminosas. 2.4 A Revogação da Lei 9.034/1995 e a Lei 10.217/2001. 2.5 A Convenção de Palermo. 2.6 A Revogação do Artigo 2º da Lei 12.694/2012. 3. 3.1 Motivação e Histórico da Lei 12.694/2012. 3.2 A Figura do Juiz. 3.3 A Repercussão Acerca do Caso “Patrícia Acioli”. 3.4 Aspectos Processuais da Lei. 3.5 A Aplicação da Lei 12.694/2012. 3.6 Pontos Críticos e Posições Acerca da Lei 12.694/2012. 4. A constitucionalidade da Lei 12.694/2012. 4.1 Discussão Quanto ao Juiz Natural. 4.2 Imparcialidade. 4.3 Quantos aos Recursos. 4.4 Dos Julgados. Conclusão. Referências.
Introdução
Este trabalho tem como objetivo a discussão acerca da constitucionalidade da lei 12.694/2012[1], publicamente conhecida como lei Patrícia Acioli, ou lei do juiz sem rosto. O nome se dá diante da tentativa de proteger a integridade física de um juiz em processos em que julgue uma organização criminosa. Porém o que se observa, é que não existe no Brasil, a figura do juiz sem rosto propriamente dita, mas sim um juiz com rosto e a formação de um colegiado em primeiro grau de jurisdição.
Com o avanço da criminalidade, as chamadas organizações criminosas têm se destacado pelo número de envolvidos, pelo poder econômico com que atuam, pelas estratégias utilizadas para o disfarce, acarretando seu difícil combate[2]. A própria legislação encontra dificuldades para caracterizá-la e conceituá-la, sendo assunto de divergências e debates a serem tratados. Assim sendo, já houve definição considerada pela Convenção de Palermo, pela Lei 12.694/2012, que introduziu seu conceito no ordenamento vigente, até o surgimento da Lei 12.850/2013[3], que trata especificamente do crime organizado, seus requisitos, suas peculiaridades, bem como as respectivas consequências.
Diante de algo tão embaraçoso que é lidar com uma organização criminosa, tendo em vista o risco que oferecem à população e aos próprios operadores do direito, a lei do juiz sem rosto foi criada como uma tentativa de inovação à segurança conferida aos juízes, membros do Ministério Público e seus familiares. Pois também se encontram expostos e com a integridade física possivelmente comprometida. Principalmente os magistrados, por serem responsáveis por proferir decisões no curso do processo, decretar ou revogar prisões, prolatar sentenças, e muitos outros atos, acabam por estar muito mais expostos do que outros servidores da justiça. O que os deixa, muitas vezes na mira das organizações que se encontrem em juízo, em uma situação de extrema vulnerabilidade.
O tema abordado se justifica pela atual polêmica em torno da aplicação da lei. Recentemente discutida é uma lei que tem por objetivo dar maior proteção aos magistrados que julgam casos de organizações criminosas.
Apresentada na mídia como “Lei Patrícia Acioli”, que foi uma juíza assassinada no estado do Rio de Janeiro em decorrência de um processo de julgamento de policiais militares envolvidos em organizações criminosas. Ocorrido em 2011, o crime chocou o país, tendo a juíza sido vítima de uma emboscada e executada com 21 tiros[4].
O escopo da lei é o de proteger magistrados das ameaças sofridas em decorrência de casos complexos como os de organizações criminosas, onde envolvem muitos acusados, e um único juiz era exposto, o que o tornava vulnerável diante do caso. Com o advento da lei, um colegiado (grupo) de três juízes julgam o caso, diminuindo consideravelmente o risco antes sofrido.
Há divergência de opiniões no sentido de que muitos afirmam que assim não apenas um juiz, mas três serão expostos, e ainda acerca da constitucionalidade que envolve a aplicação da lei frente ao princípio do juiz natural, o que traz à tona muita discussão e apontamentos.
O presente texto objetiva expor a divergência de pensamentos que se contrapõem ao princípio do juiz natural, bem como no que diz respeito à aplicação da lei e a formação do colegiado a ser formado para julgar tais casos, demonstrando de forma clara os motivos que levaram à criação da lei, sua aprovação e vigência. Visa esclarecer sobre a debatida constitucionalidade da lei e ainda como seus objetivos conseguem ser alcançados para assegurar a vida e a proteção daqueles que se submetem aos riscos.
1. Princípios inerentes à jurisdição
1.1 O que são os Princípios no Ordenamento Jurídico
Sabe-se que o Direito está em constante mutação. O que faz dele um sistema aberto. Sempre posto a ser modificado, aprimorado e acrescentado. Não possui as características de um sistema fechado que nasce e vigora sempre do mesmo jeito. O fascínio do Direito é justamente a mudança, o adquirir e incorporar novos conhecimentos, novas técnicas a serem aplicadas de acordo com a sociedade de seu tempo. É uma ciência que evolui junto com a sociedade. O ser humano muda seus hábitos, comportamentos e princípios ao longo do tempo. E assim acontece com o Direito e seu desenvolvimento na história.
Por ser uma ciência com riqueza de perguntas a serem satisfeitas, acabam por surgir lacunas dentro do ordenamento. Há casos em que não se tem um molde de resposta adequada, a ser dada prontamente. Desta forma, é necessário que existam balizas no ordenamento, um norte para se seguir sem fugir da medida de justiça. Assim nascem os Princípios Gerais do Direito, servindo de alicerce para todo o ordenamento. Em cada área do Direito há princípios gerais e específicos, para suprir suas peculiaridades, sem se sobressair ao Direito como um todo. Para Gagliano e Pamplona “Os princípios gerais são postulados que procuram fundamentar todo o sistema jurídico, não tendo necessariamente uma correspondência positivada equivalente”. (GAGLIANO E PAMPLONA FILHO, 2011, p. 67[5]).
Do mesmo modo, o ordenamento jurídico precisa ter uma base antes de criar suas normas. E por isso são aplicados os princípios que tratam da jurisdição, que orientam um mínimo necessário, abaixo do qual não podem ser criadas normas e noções para que não extrapolem o direito de outrem. Logo, os princípios, além de orientar, têm ainda como principal função garantir ao indivíduo o direito. Seja a garantia de que seus direitos não serão violados, e se forem, terão acesso à Justiça. Seja a garantia de que o Estado deverá tratar seus jurisdicionados de forma igualitária e justa. Desta forma, acerca da própria Jurisdição, há princípios tanto norteadores, quanto garantistas. A respeito dos norteadores são aqueles que tomamos como base, como direção para atuar, os que nos dão limites para agir. Enquanto que os princípios garantistas objetivam proteger aquilo que já está positivado no ordenamento jurídico, estando atrelados a teoria desenvolvida por Luigi Ferrajoli[6]. Para que assim o Estado possa se valer do seu poder de império, sem ferir princípios anteriormente constitucionais, inerentes a cada indivíduo perante a sociedade.
1.2 Princípio do Juiz Natural
O Princípio do Juiz Natural é um dentre muitos no ordenamento, que regem a jurisdição. Previsto na Constituição Federal de 1988[7], nos incisos XXXVII e LIII, do artigo 5°, é de fundamental importância para a garantia de um processo formalmente justo. Historicamente entende-se que o Princípio do Juiz Natural teve origem na Constituição da França de 1.814, que trazia a garantia de o processo ser julgado por um juiz natural.
Sua evolução histórica está intimamente relacionada à evolução da Justiça Criminal Internacional, onde por um aspecto objetivo, o referido princípio apresenta a vedação aos Tribunais de Exceção. Logo após a Segunda Guerra Mundial foi criado o famoso Tribunal de Nuremberg, nome da cidade alemã que julgava especificamente os envolvidos com o nazismo durante a guerra. Com o advento do Princípio do Juiz Natural, solidificou-se a garantia de julgamento por órgãos imparciais e anteriormente investidos para tal. Diferentemente de um Tribunal de Exceção, foi criado o Tribunal Penal Internacional (TPI) em 2002, em Roma. Dotado de competência para julgar crimes de genocídio, guerra, crimes de agressão e contra a humanidade. Diferenciando-se exatamente desta forma, enquanto os tribunais de exceção eram criados pós fato, o Tribunal Penal Internacional foi criado para julgar crimes cometidos após seu estabelecimento.
Como demonstram Alexadrino e Paulo:
“Esse princípio assegura ao indivíduo a atuação imparcial do Poder Judiciário na apreciação das questões postas em juízo. Obsta que, por arbitrariedade ou casuísmo, seja estabelecido tribunal ou juízo excepcional (tribunais instituídos ad hoc, ou seja, para o julgamento de um caso específico, ex post facto, isto é, criados depois do caso que será julgado), ou que seja conferida competência não prevista constitucionalmente a quaisquer órgãos julgadores”. (Alexandrino; Paulo. 2010, p. 66.)[8]
No Brasil as Constituições Federais abarcaram o aduzido princípio desde 1824, excetuando-se a Constituição do período de ditadura militar, em 1937. Extraindo dessa forma a garantia da imparcialidade pelo órgão jurisdicional a prover justiça. Deste modo, entende (Ferreira Filho 1996, p.37. apud AMARAL 2006, p.2) que “o princípio do juiz natural redemocratizou a vida do país, na época, por ocasião da sua inserção no artigo 141, parágrafo 26, da Constituição Federal de 1946.”[9]
1.3 Princípio da Inafastabilidade ou Indeclinabilidade
Outro princípio igualmente importante é o da inafastabilidade de jurisdição ou indeclinabilidade, que encontra previsão também constitucional, em seu artigo 5º, inciso XXXV. No qual a Carta Magna garante o acesso ao poder judiciário por qualquer pessoa sempre que houver direito lesado ou ameaça de lesão a um direito. Nesse sentido, não pode o órgão julgador deixar de proferir decisão, independente de lacuna ou obscuridade presente na lei. Assim como o ordenamento veda o chamado “non liquet” que se traduz como “não líquido”, aquilo que não está claro[10]. Onde o juiz deixava de sentenciar quando alegava não haver condições suficientes para decidir. Hoje o magistrado tem o dever de julgar todas as ações que lhe são submetidas, ainda que faltem provas o bastante para formar sua convicção.
Tendo sido adotado no Brasil o sistema de jurisdição única, onde somente o poder judiciário poderá decidir o caso concreto, garantindo assim a tutela de direitos de forma positiva, consolidando a efetivação aos direitos fundamentais. O direito de ação é caracterizado como um direito público subjetivo de natureza autônoma, visto que objetiva dar solução a uma pretensão independentemente de demais fatores.
1.4 Princípio da Investidura
Também relacionado ao tema, encontramos o princípio da investidura, que é aquele que dispõe que a jurisdição somente será exercida por quem tenha sido anterior e legitimamente investido no cargo de juiz. Apenas o Estado detém desse monopólio, onde pessoas físicas são investidas em órgãos através do Estado.
No Brasil, o ingresso na Magistratura se dá pelo preenchimento de uma série de requisitos presentes na lei. Tais como a aprovação em concurso de provas e títulos, bacharelado no Curso de Direito, três anos de prática jurídica devidamente comprovada[11], dentre outros. Ou ainda o ingresso por meio do quinto constitucional, através da nomeação pelo chefe do poder executivo. Conforme previsão no artigo 94, da Constituição Federal de 1988[12], que dispõe que:
“Art. 94. Um quinto dos lugares dos Tribunais dos Estados e do Distrito Federal e territórios será composto de membros, do Ministério Público, com mais de dez anos de carreira, e de advogados de notório saber jurídico e reputação ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional, indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes.
Parágrafo Único. Recebidas as indicações, o tribunal formará lista tríplice, enviando-a ao Poder Executivo, que, nos vinte dias subsequentes, escolherá um de seus integrantes para nomeação.”
O Estado investe pessoas físicas como órgãos, para atender suas necessidades. E assim perdura até que ocorra aposentadoria, exoneração por opção do detentor do cargo, a perda do cargo por deliberação do tribunal vinculado, se não vitalício (estágio probatório de dois anos), ou por decisão judicial transitada em julgado, quando vitalício, conforme disposição constitucional.
Aquele que exerce a função jurisdicional sem que esteja regularmente investido no cargo, e em exercício pleno, comete o crime de usurpação de função pública, previsto no artigo 328, do Código Penal e tem seus atos declarados nulos, pois somente o juiz legalmente investido poderá desempenhar tal função.
1.5 Princípio da Indelegabilidade
O legislador constituinte tratou de fixar as competências e atribuições de cada um dos Poderes. Assim, o princípio da indelegabilidade decorre do princípio constitucional que expressa a vedação aos Poderes em delegar atribuições um ao outro. Logo, a Constituição é clara nas atribuições do Poder Judiciário, e não poderá a lei alterar o conteúdo das atribuições originárias.
Tendo em vista que o magistrado desempenha a função jurisdicional em nome do Estado, este não poderá delegar a jurisdição que lhe concerne, nem tampouco fazer juízo de conveniência e delegar funções. O Estado o investe, e o juiz fica adstrito ao que foi anteriormente atribuído, cabendo apenas seu exercício.
O Princípio da indelegabilidade não é absoluto. Pois por atribuição da própria Constituição, admite exceções. Tanto na Magna Carta, disposto no artigo 102, l, m, e no Código de Processo Civil, artigos 201 e 429, vemos que é possível a delegação nos casos de execução forçada pelo Supremo Tribunal Federal, e ainda nas cartas de ordem e precatórias, conforme disposição em regimentos internos dos respectivos tribunais. Neste sentido, “o juiz não pode delegar sua jurisdição a outro órgão, pois estaria, por via indireta, também atingindo o prévio juiz constitucional” (MIRABETE 2000 p.106)[13].
1.6 Princípio da Aderência ao Território
Igualmente importante dentro do ordenamento, há o princípio da aderência ao território, que tem por um de seus significados o de que a jurisdição será exercida espacialmente no território brasileiro, como limite físico. Configurando assim a soberania nacional. E apenas no Brasil os atos praticados terão validade. Da mesma forma, atos praticados fora do território geograficamente delimitado não terão validade. A menos que sigam requisitos e consigam ser homologados pelo ordenamento pátrio.
Em outra significação, o referido princípio dispõe acerca da limitação desses poderes dentro do território. Ou seja, a jurisdição pode se dar em âmbito nacional, quando exercida pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça. Em âmbito estadual, pelos Tribunais de Justiça dos Estados e Distrito Federal. A autoridade ainda se restringe pela distribuição em comarcas, pelas Justiças Estaduais e seções judiciárias, pela Justiça Federal. Caracterizando dessa forma, a divisão da jurisdição em parcelas do território.
1.7 Princípio da Inércia
O princípio da Inércia, conhecido também como princípio da iniciativa das partes, princípio da ação ou princípio da demanda, é regido pelos aforismos ne procedat judex ex officio que significa que o juiz não pode proceder de ofício o processo, por sua vontade. E Nemo judex sine actore que aduz que não há juiz sem autor. Pois é inércia do cidadão, e não do juiz em provocar o Estado.
Destarte é possível observar que o juiz não atuará sem que haja provocação das partes. Tão logo, ao Poder Judiciário cabe a prestação jurisdicional de forma desinteressada e imparcial, como fundamento de validade da jurisdição. No intuito de dirimir e pacificar conflitos entre os titulares de interesses, e se dará somente através da iniciativa destes. Pois não seria razoável que o órgão incumbido de dar solução pacífica ao problema atuasse de forma contrária, causando ainda mais conflito e fomentando discórdia entre as partes. Levando em consideração que não haveria a almejada imparcialidade, o que comprometeria a qualidade da prestação jurisdicional.
O referido princípio encontra-se positivado no segundo artigo do Código de Processo Civil, e dispõe que: “nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando provocado na forma da lei”. E será por meio da ação que o juiz será provocado, possibilitando dessa maneira o início do processo, bem como a prestação da medida de justiça a ser aplicada.
Cabe ressaltar que após iniciado o processo, outro princípio irá reger a jurisdição, qual seja, o princípio do impulso oficial, onde, uma vez provocada a jurisdição, é dever do magistrado dar andamento ao processo, como se observa no artigo 262, também do Código de Processo Civil.
O princípio da Inércia também comporta exceções. Como prevista na Lei de Falências; (Lei 11.101/2005, artigo 73, parágrafo único, c/c artigo 94, III, “f”), onde permite ao juiz convolar o processo de recuperação judicial em falência de forma espontânea. Ainda neste sentido, há exceção a respeito dos processos de Inventário, constante no artigo 989, do Código de Processo Civil, onde preleciona que “O juiz determinará, de ofício, que se inicie o inventário, se nenhuma das pessoas mencionadas nos artigos antecedentes o requerer no prazo legal.” Fora essas situações, o juiz só poderá movimentar o judiciário, quando as partes se manifestarem.
1.8 Princípio da Publicidade
Em seguimento à disposição constitucional, a Carta Magna dispõe que como regra, os processos havidos no Poder Judiciário deverão ser públicos. Ocorrendo restrição dessa publicidade quando a lei assim determinar necessário. Restringindo assim a presença às partes, advogados, em determinados atos processuais, quando em casos que envolvam o interesse público[14]. Conforme a previsão disposta no artigo 93, IX, da Constituição Federal.
Há disposição no Código de Processo Penal, no artigo 792, que disciplina hipóteses em que os atos da tramitação processual poderão afastar a publicidade, de acordo com os ensinamentos de TÁVORA e ALENCAR: “Assim o será se dela puder ocorrer escândalo, inconveniente grave (como ameaça à segurança dos participantes de audiência) ou perigo de perturbação da ordem”[15]. Devendo o juiz determinar essa restrição, configurando assim o chamado “segredo de justiça”[16], ainda nos ensinamentos de THEODORO JÚNIOR[17]:
“Nesses procedimentos sigilosos, como dispõe o parágrafo único do artigo 155, o direito dos autores de consultar os autos e de pedir certidões de seus atos é restrito às partes e seus procuradores. Ainda, conforme o mesmo preceito, os terceiros só poderão requerer certidão a respeito do dispositivo da sentença (nunca de sua fundamentação ou dos outros dados do processo) e do inventário e partilha resultante da separação dos cônjuges.”
Desta forma, o princípio da publicidade se faz importante para distintos ramos do direito, não só no tocante ao direito processual. A publicidade se traduz ainda na transparência dos atos praticados pelos agentes públicos, configurando assim um requisito para sua eficácia. “Nessa acepção, a publicidade não está ligada à validade do ato, mas à sua eficácia, isto é, enquanto não publicado, o ato não está apto a produzir efeitos”. (ALEXANDRINO E PAULO, 2012, p. 199[18]).
Assim, o princípio da publicidade demonstra a importância de sua aplicação tanto na administração pública, quanto em todas as esferas de poder. A publicidade se faz necessária em atos dos servidores, das partes, e daqueles detentores de mandatos eletivos, representantes do povo.
1.9 Princípio da Verdade Real
Outro princípio extremamente importante é o princípio da verdade real, ou verdade substancial. Historicamente esse princípio diferenciava a verdade entre verdade formal e verdade material. Onde a verdade formal era conhecida como aquela descrita nos autos, enquanto que a chamada verdade material era aquela condizente com a realidade dos fatos[19]. Era entendido que no processo civil predominava a verdade formal, onde, por tratar de direitos disponíveis, apenas as partes eram encarregadas do material probatório. E basicamente no processo penal, que por disciplinar direitos indisponíveis e discutir matérias urgentes se encontrava a verdade material. No primeiro, o juiz era uma figura passiva, que julgava a lide apenas com o aquilo que era apresentado, ainda que tivesse dúvida[20], e só em matéria criminal o magistrado detinha poderes para determinar por sua iniciativa a produção de provas.
Hoje esse conceito se encontra ultrapassado e não há mais a antiga dicotomia. Assim, “tem sido aceito que o magistrado possa, de ofício, determinar a produção de provas necessárias ao esclarecimento da verdade” (LIMA, 2014, p. 72)[21]. Consolidando assim a prerrogativa ao juiz para, de ofício, determinar a produção de provas, quantas forem necessárias a elucidar a veracidade dos fatos antes de julgar a lide, e ainda reforçando o entendimento para as partes se esforçarem para trazer à tona aquilo que condiz com o alegado nos autos, ou seja, o condizente com a realidade dos acontecimentos, não apenas o que foi outrora escrito.
Há muitos outros princípios que norteiam a atividade jurisdicional, porém, esses são de extrema importância e contrastam com a lei a ser analisada. Tendo em vista que acrescentar dois juízes escolhidos eletronicamente em um caso em que envolva grande risco para um magistrado que julga um processo em que haja organização criminosa, à primeira vista aparenta confrontar tais princípios, o que resulta na grande polêmica que cerca o tema. O assunto diverge opiniões tanto entre estudantes, legisladores e os próprios juízes, ao analisarem a constitucionalidade na aplicação da lei.
2. Lei 12.850/2013 – organizações criminosas
2.1 O que são Organizações Criminosas
O crime organizado está presente na sociedade há séculos e das mais variadas formas. Em diversas regiões distintas do mundo é possível notar a existência de grupos que atuavam de forma organizada, próxima do que temos hoje. No Brasil o conceito de organização criminosa se deu bastante tardio. Posto que a legislação primeiro se ocupou em prevenir e repreender antes de propriamente conceituar. Com o advento da Lei 9.034/1995 que trazia a utilização de meios operacionais para a repreensão e prevenção de ações praticadas por organizações criminosas. No entanto, “não definiu o crime organizado através de seus elementos essenciais, não arrolou as condutas que constituiriam a criminalidade organizada e nem procurou aglutinar essas orientações para delimitar a matéria. (SILVA 2014).”[22] Desta forma, o conceito de organização criminosa só nos foi dado com a entrada em vigor da Lei 12.694/2012 e posteriormente revogado pela Lei 12.850/2013, que também alterou o artigo 288, do Código Penal[23], no qual tratava do crime de formação de quadrilha ou bando. A confusão legislativa foi tamanha, que o Brasil chegou a se utilizar de conceito trazido pela chamada Convenção de Palermo, o que não era possível diante do princípio da legalidade, caracterizando oficialmente a Lei 12.694/2012 como a primeira a conceituar o termo, conforme aduz Luiz Flavio Gomes:
“O conceito dado pela Lei 12.694/12 visava a permitir o julgamento colegiado em primeira instância. Essa possibilidade (de julgamento colegiado em primeiro grau) continua. Mas, agora, o juiz tem que se valer do conceito de organização criminosa da Lei 12.850/13, pelo seguinte: é com esta nova lei que veio, pela primeira vez no Brasil, o conceito de "crime" organizado. O processo (julgado por juiz singular ou por juiz colegiado) existe para tornar realidade a persecução de um crime”.[24]
O que trouxe para o ordenamento um aparente conflito de normas. Pois não se sabia ao certo qual o conceito seria válido, tendo em vista que a diferença entre eles é bem pouca, e ainda hoje é tema de dúvida entre os operadores.
A Convenção de Palermo foi promulgada pelo Brasil no ano de 2004 e como em nossa própria legislação não havia um conceito legal, para nos utilizarmos, depreende-se que “nos casos concretos, empregávamos o conceito de organização criminosa da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, em 2000, a denominada Convenção de Palermo, reconhecida pelo Decreto brasileiro n. 5.015, de 2004” (DAMÁSIO 2013)[25], que trazia em seu segundo artigo o seguinte conceito de organização criminosa:
“grupo estruturado de três ou mais pessoas existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material.”[26]
Apenas em julho de 2012 o legislador introduziu genuinamente uma conceituação a respeito das organizações criminosas, com a edição da Lei 12.694/2012, artigo segundo, qual seja:
“considera-se organização criminosa a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional.”
Pouco mais de um ano depois, em agosto de 2013, surgiu a própria lei de organizações criminosas, de número 12.850/2013, que de forma similar preceituou em seu primeiro artigo, parágrafo primeiro, a saber:
“Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”.[27]
Apesar da semelhança dos textos, a troca de um ou outro termo diferencia bastante a interpretação do dispositivo. Acerca da vigência do conceito a ser seguido hoje, temos os ensinamentos de Luiz Flávio Gomes, que aduz:
“Desapareceu do ordenamento jurídico válido o conceito dado pela Lei 12.694/12. Concordamos com a tese de Cezar Roberto Bittencourt, Márcio Alberto Gomes da Silva, Sydney E. Dalabrida etc. A nova lei regulou a matéria (organização criminosa) de forma integral. Essa é uma das formas de revogação da lei anterior. Dois conceitos sobre a mesma essência só gera confusão. Também por esse motivo é melhor a interpretação do conceito único: o novo. Agregue-se um outro argumento, de política criminal: se o legislador, por razões de política criminal, optou na nova configuração legal pelo número mínimo de 4 pessoas, é preciso respeitar essa decisão política. E se ela integra o conceito de crime organizado, não como o juiz aplicar o conceito anterior da Lei 12.694/12, que foi construído sob a égide de outras escolhas de política criminal. A posterior derroga a anterior.”[28]
Desta maneira, está claro que o posicionamento a ser adotado ao considerar o significado de organização criminosa, é o de que adotamos o conceito trazido pela lei 12.850/2013 (tendo em vista que a Lei posterior revoga a anterior), e embora haja pouca diferenciação com os demais conceitos ora apresentados, esse é que se encontra em vigência em sua totalidade, apresentando como pena a reclusão de três a oito anos e multa, além daquelas correspondentes às demais infrações que venham a praticar (desde que atinjam penas máximas superiores a quatro anos, ou sejam de caráter transnacional), àqueles que promovem, constituem, financiam ou integram, pessoalmente ou por pessoa interposta, uma organização criminosa.
Diferentemente do tipo penal descrito no artigo 288, do Código Penal[29], que tipificava quadrilha ou bando como sendo a associação de mais de três pessoas em quadrilha ou bando com o fim específico de cometer crimes. Com a alteração trazida pela lei 12.850/2013 o tipo penal passou a ser chamado de associação criminosa, e sua nova redação dispõe que é necessária a associação de três ou mais pessoas para sua tipificação. Embora tenha sido mantida a mesma pena de reclusão, de um a três anos, alterou-se a causa de aumento de pena do parágrafo único, que hoje aumenta-se até a metade se a associação é armada ou havendo participação de menores.[30]
Portanto, não se confundem os institutos, posto que um se traduz em uma forma específica para o cometimento de crimes, com vários requisitos para sua configuração, como o número de agentes exigidos, a existência de hierarquia, e também de divisão de tarefas, o intuito de obter vantagem de alguma natureza. Enquanto que o outro é um tipo descrito de crime, não forma de cometê-lo, a própria associação em si já o consuma. É a tipificação penal em si. Não há requisitos para sua caracterização, nem ao menos exigências como no anterior, apenas a formação dos agentes com o fim de cometer qualquer crime.
2.2 Organizações Criminosas Internacionais
Definir como surgiram as organizações criminosas não é tarefa fácil. Porém estima-se que tenham se iniciado no século XVI, com o objetivo de conter os atos abusivos por parte de poderosos e por membros do Estado.[31]
Há organizações criminosas espalhadas por todo o mundo e das mais variadas formas. Predominantemente se dedicam ao tráfico internacional de drogas, de pessoas, de produtos falsificados, encobertos quase sempre pela lavagem de dinheiro.
Dentre as organizações criminosas internacionais mais expressivas e entre as mais antigas, temos as tríades chinesas, que têm forte envolvimento com fatores históricos. Tais como a guerra na Manchúria, a invasão no Império Ming, a Guerra do Ópio contra a Inglaterra[32]. E se dedicam às drogas ilícitas como a heroína (primeiramente ao ópio), prostituição, extorsão, dentre outros.
No Japão uma das mais famosas até hoje é a Yakuza. Especializada na prática de exploração de jogos de azar, trafico de drogas e armas, extorsão e lavagem de dinheiro[33]. Atuando em atividades tanto lícitas quanto ilícitas. Entre as legalizadas se destacam as casas noturnas, agências de teatros e eventos esportivos[34]. E as mais lucrativas e não legalizadas destacam-se os cassinos, prostíbulos, tráfico de várias formas e a lavagem de dinheiro.
Entre as mais conhecidas no mundo, temas de várias obras são as chamadas máfias italianas. Inicialmente visavam proteger as regiões feudais dos poderosos e dos monarcas, formavam sociedades secretas que defendiam as terras e faziam favores para o povo. E foi só após a segunda metade do século XX que deram início à prática de atividades ilegais que formaram diversos grupos criminosos, como os mais conhecidos e perigosos da Itália atualmente, a máfia conhecida como “Cosa nostra” e a chamada “Camorra”[35] que se espalham por várias regiões do país e contam com numerosos membros.
Nos Estados Unidos da América também teve origem o crime organizado no início do século XX, mais especificamente devido à proibição da comercialização do álcool, com a introdução da “Lei Seca”. As chamadas “gangues” surgiram do contrabando de bebidas em decorrência da corrupção com objetivo no comércio ilegal.[36] Essas gangues norte- americanas disputavam territórios para vendas, viviam cercadas de rivalidade com outras gangues e ficaram conhecidas principalmente pela violência na busca pelo poder. Com o desenvolvimento e o passar do tempo, outros crimes passaram a fazer parte dessas organizações. E assim como em nosso país, são organizações que cada dia mais ganham integrantes e novas formas de criminalidade.
Em um cenário de confronto e bastante polêmica hoje em dia, encontramos as organizações criminosas terroristas. Espalhadas principalmente no Oriente Médio e em alguns países do continente africano, estima-se que são essas as organizações que mais estão vitimando pessoas atualmente. De caráter ideológico na maioria das vezes, tais movimentos têm finalidades diversas, como a intimidação de Estados. “Seus objetivos são políticos, como a mudança de regime, de território, de atitude política de determinado Estado, a mantença de status quo de determinado grupo ou a intimidação à minorias (étnicas, sociais, regionais, econômicas, religiosas etc.).” (REIS 2013)[37]. Variam ainda entre a criação de Estados islâmicos, por parte dos movimentos islâmicos extremados,[38] a rejeição da influência do Ocidente e dos Estados Unidos em países predominantemente islâmicos. Cabe ressaltar ainda o recente caso de envolvimento em grupo terrorista um brasileiro, natural de Formosa, estado de Goiás, e dois marroquinos[39]. Detidos em dezembro de 2014 pela polícia búlgara, entre a Bulgária e a Turquia, acusados de pertencerem ao grupo terrorista Estado Islâmico.[40]
Na América do Sul e Central se destacam os cartéis do narcotráfico. Os principais países envolvidos são México, Panamá, Bolívia, Peru e Colômbia. Deste modo, são países produtores de coca, alguns cultivam a planta desde a época da colonização espanhola, quando se utilizavam de mão de obra indígena.[41] Hoje muitos desses países refinam a pasta base formada e comercializam ilegalmente a cocaína. Formando assim os cartéis mais poderosos do mundo.
No Brasil, a origem das organizações criminosas remontam à época do movimento nordestino conhecido como cangaço. Tendo em vista que também tinham hierarquia, formavam bandos, cometiam crimes de forma organizada, com divisão de tarefas, semelhante à atuação de uma organização criminosa moderna. Porém, os grupos que observamos com essas características hoje, são formados principalmente por detentos, geralmente líderes de quadrilhas, facções criminosas e traficantes que atuam de dentro dos presídios. São exemplos dessas organizações, o “Comando Vermelho”, “Terceiro Comando”, “Primeiro Comando da Capital (PCC)” dentre várias outras. As facções atuam de grandes penitenciárias, de segurança máxima ou não, e praticam crimes como roubo a bancos, tráfico de drogas, armas e animais silvestres, extorsão mediante sequestro e comandam rebeliões e resgate de presos[42], ocasionando em um dos maiores problemas sociais e de segurança pública do Brasil. Embora atue com uma estrutura semelhante, dispondo de alto poder aquisitivo, numerosos membros e contenha várias características similares a uma organização criminosa, o jogo do bicho, presente no país há décadas, não pode ser considerado uma organização criminosa, tendo em vista que mesmo com muitos dos traços presentes, o jogo do bicho é uma contravenção penal. Não devendo sua ilicitude ser amoldada com o tipo descrito.
2.3 Características das Organizações Criminosas
A visualização de uma Organização Criminosa, bem como seu julgamento e posteriormente sua possível punição é de difícil visualização na prática. Isso se deve às suas principais características. Tais organizações funcionam através de algum ilícito penal, o que lhes rende lucros sem precedentes. Desta forma uma das características principais desse instituto é o grande poderio econômico. Pois cotidianamente o capital gerado pelos crimes é facilmente lavado, dificultando aferir qual sua real origem, e assim seus integrantes possuem incomensuráveis receitas.
Outra característica marcante é o poder de intimidação e corrupção que detém. Refletindo que em muitos dos casos os envolvidos se encontram em altas esferas do poder. Dispõem ainda de alta capacitação para a prática de fraude, divisão territorial das atividades ilícitas e funcional das atividades, planejamento empresarial, uso de meios tecnológicos avançados, conexão estrutural ou funcional com o poder público[43], além da hierarquia estrutural e outros requisitos previstos para sua existência.
2.4 A Revogação da Lei 9.034/1995 e a Lei 10.217/2001
Em 3 de maio de 1995 foi promulgada a Lei 9.034/1995, que foi introduzida no ordenamento jurídico com o objetivo de tutelar as organizações criminosas, dispunha a respeito da “utilização de meios operacionais para a prevenção e repreensão de ações praticadas por organizações criminosas”. Porém o legislador foi omisso no mais importante aspecto: conceituar organização criminosa. A lei já foi recebida eivada de vícios, com falhas legislativas, contradições, equívocos, como por exemplo, equiparar uma organização criminosa com uma quadrilha ou bando. Enquanto aquele se ocupa de grandes crimes, como as diversas modalidades de tráfico, fraudes de grande potencial, este se ocupa de crimes como furtos, roubos, receptações. Embora lesionem o patrimônio e devam ser punidos, são em escalas bem distintas.
Não restou outra opção ao legislador, senão editar a Lei 10.217, de abril de 2001. Com o intuito de alterar o artigo primeiro da lei anterior, era esperado que as dúvidas decorrentes do texto trazido pela lei 9.034/1995 fossem então sanadas ou dirimidas, o que não ocorreu. Também não houve conceituação acerca das organizações criminosas, o legislador apenas diferenciou organização de associação, e postulou que não se confundiam os institutos da organização criminosa com a formação de quadrilha ou bando. E ao invés de esclarecer, a lei suscitou ainda mais dúvidas e contradições. Dessa forma o operador do direito teve de esperar por muito tempo pela lei que realmente definia organização criminosa com clareza e frente à ausência de conceituação legal, por vezes se utilizaram de conceito ratificado em Convenção.
2.5 A Convenção de Palermo
A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado, chamada de Convenção, Tratado ou Protocolo de Palermo foi elaborada pela Assembleia Geral da ONU em 15 de Novembro de 2000[44], entrou em vigor internacional no ano de 2003 e foi ratificado no Brasil por meio do Decreto nº 5.015 de 12 de Março de 2004[45]. É hoje o mecanismo legal internacional de combate ao crime organizado transnacional, conhecido como “Protocolo adicional à Convenção das Nações Unidas contra o crime organizado transnacional relativo à prevenção, repressão e punição do tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças”[46].
Foi através desse tratado, frente à omissão legislativa do nosso ordenamento, que buscou-se suprir a ausência de conceito de organização criminosa. Embora após sua promulgação tenha adquirido força jurídica, a utilização de seu conceito não era pacífica. Diversas correntes se posicionavam de forma contrária, o que causou grande impasse no ordenamento. Pois mesmo tendo havido julgados favoráveis à sua utilização, não foi o que prevaleceu. E essa lacuna só foi realmente suprida com a introdução da lei 12.694/2012, editada em conformidade com vários princípios legais. É importante notar que a lei de drogas (lei 11.343/06) também se utiliza do termo organização criminosa, e da mesma forma que as legislações anteriores à lei 12.694/2012, também não definiu seu conceito.
2.6 A Revogação do Artigo 2° da Lei 12.694/2012
O ordenamento jurídico brasileiro aguardou durante anos pelo conceito de organização criminosa em sua própria legislação. Tendo sido a lei 12.694/2012 a primeira a postular essa definição, foi nítido que o texto trazido por ela seria definitivamente utilizado. Porém em tão pouco tempo, a edição da lei 12.850/2013 acabou por revogá-lo tacitamente.
É importante tratar disso, pois à primeira vista parece apenas um detalhe. Porém é muito significativo quando se trata do número de agentes para caracterizar uma organização criminosa. O texto de ambos dispositivos são semelhantes, de fato, no entanto, o conceito carreado pela lei 12.694/2012 abrange três ou mais pessoas, definido em seu segundo artigo, conforme conceituação já apresentada. E extremamente relevante, observamos o parágrafo primeiro, do primeiro artigo da lei 12.850/2013, qual seja, a associação de quatro ou mais pessoas.
Portanto, em respeito ao princípio jurídico “Lex posterior derogat legi priori” que significa dizer que lei posterior derroga lei anterior, fica estabelecido que o conceito vigente, é sem sombra de dúvidas, o postulado na Lei de Organizações Criminosas, 12.850/2013, artigo 1º, §1º, necessitando de quatro ou mais pessoas para compor uma organização criminosa.
3 Lei 12.694/2012 – juiz sem rosto
3.1 Motivação e Histórico da Lei 12.694/2012
Para compreender a lei do juiz sem rosto, é necessário ter uma clara noção do que são organizações criminosas. Saber como se formam, como atuam, qual risco elas oferecem, bem como o potencial lesivo e a atual impunidade que cercam organizações criminosas. É importante conhecer a realidade cotidiana para entender a gravidade da situação vivida. Foi diante de tamanha preocupação que foi editada a lei 12.694/2012[47] de 24 de julho, conhecida publicamente como “lei do juiz sem rosto” ou “lei Patrícia Acioli”.
A lei tem como escopo possibilitar mais segurança aos magistrados que atuam em casos que envolvem organizações criminosas e que se encontrem por elas ameaçados de alguma forma. Oferece mecanismos para viabilizar a prestação jurisdicional por parte dos membros do Poder Judiciário, permite artifícios capazes de assegurar a integridade física e psíquica para exercerem o cargo livre de pressões, ameaças ou retaliações.
O legislador brasileiro, visando a garantia de condições dignas de trabalho aos magistrados em tais situações, seguiu exemplos de casos bem sucedidos ocorridos em outros países, como por exemplo, na legislação de países como o México, Colômbia, Peru, Nicarágua, Itália.[48], França, Bélgica e Suíça[49].
Embora seja chamada de “lei do juiz sem rosto”, a lei 12.694/2012 não cria propriamente a figura do juiz sem rosto, mas sim a figura do juízo colegiado. Posto que o juiz não ficará oculto no processo, como chega a acontecer em alguns países, mas fará parte de um colegiado com mais dois outros juízes dotados da mesma competência para atuar nas causas. Seguindo a posição de Andreucci[50]:
“Não se trata, portanto,como já ressaltado, no Brasil, da figura do juiz sem rosto, ou juiz anônimo, de vez que todas as decisões do colegiado serão devidamente assinadas por todos os integrantes do colegiado, como forma de dividir a responsabilidade pelo ato jurisdicional praticado. Buscou o legislador, ao fracionar a responsabilidade pelas decisões jurisdicionais envolvendo atos praticados por organizações criminosas, preservar os magistrados atuantes de qualquer tipo de ameaça, ostensiva ou velada, que pudesse, de alguma forma, trazer-lhes risco à vida ou à integridade corporal, própria e de seus familiares.”
Além da possibilidade da instauração do juízo colegiado, a lei trouxe inovações capazes de auxiliar o magistrado na condução do processo, como a possibilidade do confisco de bens ou valores, ainda que se encontrem localizados no exterior ou não se saiba sua localização, bem como a alienação antecipada dos bens quando sujeitos a deterioração, a adoção de medidas de segurança para os prédios da justiça, veículos com placas especiais, porte de arma de fogo para servidores que exerçam funções de confiança e medidas de proteção pessoal ao magistrado, membro do Ministério Público e suas respectivas famílias quando em situações de risco decorrentes do exercício de tais funções.
3.2 A Figura do Juiz
Dentre os sujeitos processuais envolvidos em uma relação processual de forma essencial, tem-se o juiz. Membro do Poder Judiciário, detentor da função jurisdicional e responsável por presidir o processo, é a autoridade judiciária. O juiz é um órgão dotado de muitas prerrogativas e numerosas funções necessárias àqueles que exercem o cargo.
Com previsão no artigo 5º, XXXV da Constituição Federal de 1988, está consagrado o princípio do impulso oficial e o da inafastabilidade de jurisdição, incumbindo ao detentor do cargo de dar regularidade ao processo, ao qual se nota que sem a figura do juiz não é possível o exercício da jurisdição propriamente dita.
O juiz é órgão jurisdicional monocrático, quando de primeiro grau, ou colegiado, quando em segundo grau de jurisdição. Seja para dirimir decisão imparcial de conflitos jurídicos concretos, seja para prolatar sentença ou apreciar questões incidentes, decretar prisões ou executar penas, muitas são as tarefas incumbidas exclusivamente aos juízes investidos e naturais das causas que lhes sejam apresentadas.
Cumpre ressaltar que o sujeito processual não é exatamente o juiz, mas sim o Estado-juiz em nome do qual ele irá atuar[51]. É por meio da substituição da vontade das partes que o juiz decide sobre as lides demandadas.
O Estado confere ao magistrado as prerrogativas de vitaliciedade, onde o juiz não perde o cargo, senão por sentença judicial transitada em julgado. A inamovibilidade, que é a estabilidade no local em que o exerce e ainda a irredutibilidade de subsídios, que é a garantia do pagamento pelos serviços prestados, postulados pelo artigo 95 e parágrafo único, da Constituição Federal[52]. As hipóteses que podem afastar o juiz de um processo podem se dar de forma voluntária pelas partes, mediante apresentação de incidentes de exceção, sendo elas as situações de impedimento ou suspeição, conforme disposição dos artigos 252 a 256, do Código de Processo Penal.[53]
3.3 A Repercussão Acerca do Caso “Patrícia Acioli”
Situações de risco no exercício do cargo de magistratura acontecem diariamente e em todo lugar. Por serem os responsáveis diretos de decretações de prisões, regressões de regimes, sentenças e outros atos, os juízes se colocam em situações de extrema vulnerabilidade. E como infelizmente a criminalidade é imensamente maior que as forças policiais no tocante a prevenção e contenção, políticas sociais, e todas as medidas existentes, o que sobressai são as fatalidades decorrentes do crime.
É ínfimo o número de casos de retaliações, emboscadas e atentados aos juízes que são divulgados nos veículos de comunicações. Só chegam ao conhecimento popular a ponta do iceberg. Apenas aqueles casos de grande repercussão é que dão uma noção do que cotidianamente acontece.
Foi assim que a referida lei ganhou aprovação. Alguns casos lastimáveis se destacaram nos noticiários, pressionando assim o Poder Legislativo a tomar providências o quanto antes. Um deles, de grande notoriedade no país, foi o caso que envolveu a juíza Patrícia Acioli, que investigava quadrilhas no estado do Rio de Janeiro. A magistrada foi vítima de uma emboscada que a matou com 21 tiros na frente de sua casa, em agosto de 2011, em Niterói (RJ).[54] Patrícia julgava casos que envolviam organizações criminosas, sofria ameaças freqüentes, deixava vários réus insatisfeitos com o exercício da justiça, o que lhe causou uma morte cruel.
Após as investigações sobre sua morte, onze policiais militares do Rio de Janeiro, que eram processados pela juíza, foram julgados e condenados pelo Tribunal do Júri de Niterói, culminando penas maiores que vinte anos aos envolvidos.[55]
O caso em questão chocou o país, e foi tão polêmico, que hoje existe inclusive um prêmio em prol da dignidade humana, criado em 2012 pela Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (AMAERJ). Intitulado Prêmio Juíza Patrícia Acioli de Direitos Humanos[56], homenageando sua luta e sua memória.
Com tamanha repercussão e a crescente preocupação com a situação dos magistrados brasileiros, o Congresso Nacional editou a Lei 12.694/2012, visando a segurança e proteção dos juízes que diariamente se encontram em posições semelhantes. Chegando a lei a ficar conhecida, devido ao terrível acontecimento que a precedeu, como “Lei Patrícia Acioli”.
3.4 Aspectos Processuais da Lei
Tendo surgido de um anteprojeto de lei através da Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE)[57], a Lei 12.694/2012 buscou trazer prerrogativas que podem assegurar o trabalho de um magistrado dotado de competência criminal ou de um membro do Ministério Público de forma realmente eficaz. O primeiro aspecto a ser observado, é que a lei confere a possibilidade da formação de um colegiado apenas quando se trata do primeiro grau de jurisdição. Ou seja, um juiz monocrático em primeira instância apenas, poderá suscitar que dois outros juízes se juntem a ele no processo ou procedimento criminal que verse sobre organização criminosa. Até porque nas instâncias superiores já é a regra a formação de colegiados ou turmas julgadoras.
De acordo com o artigo 1º, da lei 12.694/2012[58], poderá o juiz optar pela formação do órgão colegiado, para praticar um ato isolado, ou vários atos com o desenrolar do processo. Tais como decretar prisão ou medida assecuratória, conceder liberdade provisória ou revogar prisão, prolatar sentença, determinar progressão ou regressão de regime de cumprimento de pena, conceder liberdade condicional, transferir preso para estabelecimento prisional de segurança máxima ou incluir preso em regime disciplinar diferenciado.
Outra medida trazida pela lei em comento foi a autorização para utilizar meios que podem reforçar a segurança dos prédios da Justiça[59]. Entre essas medidas temos: controle de identificação de pessoas ao acessarem os prédios, principalmente aqueles que sediam varas criminais, ou as áreas relativas aos prédios.[60] A instalação de câmeras de monitoramento dos prédios, em especial também nas varas criminais e áreas adjacentes[61]. Permite ainda a instalação de aparelhos detectores de metal, inclusive nas salas de audiências criminais. Devendo todos que desejam ingressar nos prédios se submeterem a tal medida, mesmo que sejam detentores de cargo ou função pública. Com exceção de integrantes de missão policial, escolta de presos, agentes ou inspetores de segurança próprios[62], conforme consta no terceiro artigo da lei.
A partir da vigência da lei 12.694/2012, foram acrescidos o parágrafo primeiro e segundo no artigo 91, do Código Penal Brasileiro. Que dispõem acerca da perda de bens e valores correspondentes ao proveito de crime que esteja em lugar desconhecido ou quando se sabe que não está em território brasileiro.[63] Podendo ainda decretar tais medidas aos bens ou valores que o equivalem para a perda de bens ou valores que possam ser futuramente decretadas.[64]
Outra inovação trazida ao ordenamento foi a inclusão do artigo 144-A, do Código de Processo Penal. Que trata da alienação antecipada de bens. Onde confere poderes ao juiz para determinar a alienação antecipada com o intuito de preservar os valores correspondentes aos bens quando estiverem sujeitos a depreciação ou deterioração, e ainda quando for difícil sua manutenção sem haver prejuízos.[65] Em seus parágrafos, o legislador determinou que o leilão desses bens, será feito preferencialmente pela via eletrônica, onde os bens deverão ser leiloados pelo valor fixado quando feita a avaliação judicial ou valor maior. A menos que não consigam angariar o valor determinado, um novo leilão deverá ser realizado no prazo de dez dias. Onde só então poderão ser vendidos por valores não inferiores aos oitenta por cento previamente estipulados[66]. O arrecadado em sede de alienação pertencerá a depósito em conta vinculada ao juízo, até que seja prolatada decisão final do processo que lhe deu origem. Havendo absolvição os bens voltam ao poder do acusado, e em caso de condenação, haverá a conversão em renda para a União, Estado ou Distrito Federal[67]. O juiz irá determinar a conversão em moeda nacional quando se tratar de moeda estrangeira, títulos, valores mobiliários ou cheques de ordem de pagamento e posteriormente deverão ser depositados em conta judicial[68]. Quando se tratar de aeronaves, embarcações e veículos, o juiz deverá ordenar à autoridade de trânsito ou órgão competente para expedir certificado de licenciamento e registro em favor do arrematante[69].
A referida lei altera também o Código de Trânsito Brasileiro, tendo acrescentado o parágrafo sétimo do artigo 115, onde autoriza que os membros do Poder Judiciário e do Ministério Público que estejam em exercício de competência criminal a terem veículos com placas especiais de forma temporária. O escopo dessa alteração é o de não identificar usuários específicos, sendo necessária para sua instituição uma autorização específica e fundamentada dos respectivos órgãos corregedores e comunicação aos órgãos de trânsito. Havendo assim regulamentação dada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) e Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)[70].
Houve também alteração na lei 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento), dispondo a respeito do uso da arma de fogo por parte dos servidores. Acrescentou o inciso XI, no artigo 7º e introduziu o artigo 7-A, onde disciplinam que a Polícia Federal expedirá registro e autorização em nome da instituição, independente de taxa. Os servidores poderão delas se utilizar quando em serviço, sendo seu porte condicionado à comprovação do preenchimento dos requisitos exigidos na lei, e as condições de uso e armazenagem serão estabelecidas pelo respectivo órgão.
Como última disposição trazida pela lei 12.694/2012, temos a proteção pessoal a ser prestada a membro do Ministério Público, autoridades judiciais, bem como seus familiares, quando necessário. Será feita avaliação da necessidade diante da existência de risco, em decorrência do exercício da função, a ser realizada pela polícia judiciária, exceto em casos de urgência, onde será feita de imediato.
3.5 A Aplicação da Lei 12.694/2012
Algumas exigências são necessárias para que a lei seja corretamente aplicada. Dentre elas, é de extrema necessidade que o juiz criminal que esteja diante de um crime cometido por organização criminosa, e se veja na iminência de sofrer algum dano à sua integridade, deverá indicar os motivos e as circunstâncias que demonstrem tal risco em decisão devidamente fundamentada, levando ao conhecimento do respectivo órgão correicional.[71] Tal medida é necessária para que o ato seja válido, como os demais atos praticados pelo magistrado estejam em conformidade com o ordenamento jurídico, suas decisões devem ser transparentes, respeitando todos os princípios vigentes. O órgão correicional faz ainda um levantamento do que ocorre com os juízes que se vêem ameaçados, para dessa forma, buscar um maior controle dos casos e analisar medidas que sejam mais eficazes para a proteção de seus servidores, podendo também conter abusos ou arbitrariedades que possam ocorrer por parte do magistrado.
Para que as exigências legais sejam respeitadas, sem ferir princípios ou normas, o colegiado deverá ser formado pelo juiz que já preside o processo, que esteja formalmente investido no cargo, dotado de competência criminal e outros dois juízes, de mesma competência, que também a exerçam em primeiro grau de jurisdição, da mesma forma que o juiz singular esteja exercendo. Sendo escolhidos por meio de sorteio eletrônico[72], de modo a preservar a imparcialidade e os demais requisitos exigidos para o juiz natural da causa. A escolha feita pelo sorteio eletrônico pode se dar, mesmo que os escolhidos atuem em cidades diversas, havendo ainda a possibilidade de comunicação pela via eletrônica[73], como por exemplo, por meio de videoconferência. Nesse sentido, assevera Távora e Alencar:
“O objetivo geral da previsão legal é diluir a responsabilidade do juízo de primeiro grau, essencialmente singular (um único juiz), em três membros (dois magistrados de primeiro grau oficiando conjuntamente com o juiz natural do processo ou o que tenha a competência definida, por prevenção, mesmo antes da deflagração da ação penal). Tudo visando que a personificação da jurisdição em um único magistrado não seja de causar-lhe riscos, notadamente diante de fatos concretos que indiquem perigo a sua integridade física”. (TÁVORA e ALENCAR, 2013, p.269)[74].
As decisões proferidas pelo colegiado deverão ser fundamentadas e publicadas, sem exceções, por todos os três juízes integrantes. Não devendo ser feita nenhuma referência a eventual voto divergente, porém, identificando seus autores, de modo a permitir que qualquer um que se submeta ao poder judiciário tenha pleno conhecimento do processo bem como seus julgadores e suas posteriores decisões. Consagrando assim que nenhuma garantia seja violada, sejam elas em matéria de defesa, de recursos, ou quaisquer outras possibilidades de atuação.
O juiz que convoca o colegiado deverá ainda explicitar para qual ou quais atos está suscitando tal formação. Tendo em vista que de acordo com a própria lei[75], a competência dos outros dois juízes será limitada aos atos para o qual tenham sido chamados, se valendo de rol exemplificativo postulado em lei. Sendo atribuição dos tribunais, de acordo com as devidas competências que lhes são conferidas, editar normas que regulamentem a composição e o funcionamento do órgão colegiado[76]
3.6 Pontos Críticos e Posições Acerca da Lei 12.694/2012
Em um ordenamento jurídico de tamanha complexidade, não é estranho alegar que uma lei diverge opiniões entre favoráveis e desfavoráveis à sua vigência e aplicação. Com a lei 12.694/2012 não foi diferente. Muitos fazem apontamentos críticos à criação legislativa, porém, o mais importante é aferir se a lei cumpre o propósito para o qual tenha sido criada. O intuito principal é o de saber se as medidas são efetivas às melhorias de condições daqueles que a lei tenha se destinado. Uma vez que a formação do órgão composto é uma faculdade conferida àqueles que se sintam de alguma forma ameaçados, não sendo de nenhuma forma, obrigados a se utilizarem da formação composta. Assim, aqueles que preferirem atuar sozinhos, poderão o fazer livremente. E aqueles pressionados e coagidos terão uma possibilidade de dirimir a dificuldade enfrentada.
Um dos temas que geram controvérsia quando se trata da lei 12.694/2012 está disposto em seu §4º, do artigo 1º. Que se refere à possibilidade do sigilo nas reuniões do colegiado sempre que houver risco de que a publicidade resulte prejuízo à eficácia da decisão judicial[77]. Temos que para a Constituição Federal de 1988 as reuniões devem ser, em regra, públicas. Sendo sigilosas apenas quando necessária à defesa da intimidade ou por razões de interesse social. Desta forma resta demonstrada a necessidade de serem sigilosas quando juízes do colegiado se reúnem para decidir sobre algum ato relativo ao processo, pois caso contrário, não seria cumprido o objetivo da lei. Ainda nesse aspecto, a lei 12.694/2012 traz em seu bojo a determinação de que não deverá ser feita nenhuma menção a eventual voto divergente. De igual maneira se um juiz for notoriamente contrário aos interesses do réu e isso for explícito, não estaria em acordo com o propósito da lei, que é o de proteger o magistrado da exposição, e não o de aumentar essa exposição.
Extremamente importante ressaltar que essa decisão quando tomada pelo órgão colegiado deverá ser devidamente escrita, fundamentada, como todas as demais decisões tomadas por um juiz. Ainda que haja divergência entre os três, todos deverão assiná-la, mesmo que o voto de um deles seja vencido.[78] Nas decisões tomadas devem ser expostos todos os argumentos que o levaram a decidir de tal maneira, com inteiro teor da fundamentação. Afastando assim a possibilidade de violação da ampla defesa e do princípio da publicidade[79], nem tampouco impede o manejo de possíveis recursos. Diferentemente de muitos apontamentos, quando o acusado se achar em posição prejudicial devido à decisão proferida, estarão contidos na fundamentação todos os motivos e argumentos utilizados para a tomada da medida. Possibilitando sua impugnação em superiores instâncias. Tendo em vista inclusive, que não há necessidade de conhecimento a respeito de voto divergente, pois este não teria a menor influência no teor do recurso a ser interposto. Consagrando assim, o mínimo sacrifício da publicidade anteriormente exigida.[80]
Outro ponto relevante diz respeito à fundamentação feita pelo juiz no momento da instauração do órgão colegiado. Onde embora a lei exija provas do risco sofrido, a medida necessita razoabilidade. Pois alguns casos já são visivelmente ameaçadores, e não seria a melhor medida esperar que o juiz primeiro fosse ameaçado, ou definitivamente corresse risco para só então ter prerrogativa suficiente para instaurar o colegiado. Tendo em vista que a situação às vezes pode ser bem mais grave, onde nem ao menos resta tempo para ameaças, como exemplo, no julgamento de um grupo de extermínio, famoso por vitimar autoridades, não necessitaria aguardar para ter provas concretas do risco oferecido[81]. Devendo ainda o juiz ter acuidade com as expressões e termos utilizados quando se refere à organização criminosa, pois além de incitar a iminência de risco, expressões como “organização perigosa” ou outros termos negativos, pois o magistrado pode se afastar da imparcialidade quando já denomina a organização com termos pejorativos, configurando assim um pré-julgamento dos acusados.
Cumpre destacar também que a instauração do juízo colegiado poderá se dar em âmbito estadual ou federal, podendo inclusive seu cabimento no tribunal do júri. Excetuando-se nas decisões proferidas pelo corpo de jurados, quando proferem seu veredicto. Os juízes que fazem parte do colegiado poderão atuar em atos tanto instrutórios quanto decisórios, e em qualquer fase processual, seja ela antes de se iniciar o processo, em fase de inquérito, quanto no decorrer da ação, e até mesmo após a instrução processual, quando se tratar de execução da pena.
A respeito dos processos anteriores à vigência da lei 12.694/2012, tem-se interpretação de que também poderão se valer do teor da lei. Sabendo que a referida lei versa sobre o direito processual, acarretando assim em uma norma de eficácia imediata[82].
4 A constitucionalidade da lei 12.694/2012
4.1 Discussão Quanto ao Juiz Natural
Embora já tenha sido tratado de forma superficial o princípio do juiz natural, é de fundamental importância tratar de forma mais aprofundada o instituto do Juiz Natural. Sem o qual não seria possível o estabelecimento de um julgamento adequado e justo. É o juízo natural que garante a imparcialidade ao jurisdicionado, que terá seu direito em trâmite na exata medida de justiça.
O juiz natural é aquele apto para julgar as causas que lhe serão submetidas após todo o desenrolar da investidura. É quando ele ingressa ao ordenamento através do Estado, que lhe incorpora em órgão e assim, o incumbe de uma parcela jurisdicional de competência, ao qual deverá atuar dentro dos limites impostos legalmente. Seja essa competência conferida à justiça especializada ou comum, estadual ou federal, lotada em vara criminal ou cível, dentro de várias outras especialidades, o magistrado deverá trabalhar nos parâmetros que lhe caibam de acordo com a lei. Apenas as demandas dentro de sua esfera de competência é que serão por ele julgadas, após a determinação de tal parcela. Seguindo os ensinamentos de TÁVORA e ALENCAR[83]:
“Eis que a Constituição assegura que ninguém será processado ou julgado senão pela autoridade competente, razão pela qual o acusado teria direito a saber, previamente, qual órgão irá conduzir seu processo, bem como quem é o juiz competente previamente, sem surpresas;”
A previsão do juiz natural não é absoluta. Como a maioria dos institutos, comporta exceções. Tendo em vista que nem sempre o mesmo juiz que dá início ao processo, poderá julgá-lo até o fim. Há casos diversos em que um juiz acaba sendo substituído por outro, desde que dotado de mesma competência jurisdicional. Quando ocorre o incidente de suspeição, ou de impedimento, por exemplo, o julgador deve se afastar do caso proposto em virtude de lei. Quando há problemas com sua saúde ou quando vem a óbito o juiz também é automaticamente substituído por outro. Dessa forma, no caso de embargos declaratórios, qualquer outro juiz que suceder a condução do processo deverá sanar a obscuridade ocorrida, ou irá sentenciar, ou executar qualquer outro ato necessário ao processo, ainda que não tenha sido o juiz inicial da causa.
Um aspecto importante quando se fala em juiz natural, é a respeito da imparcialidade. Significa dizer que é imparcial o juiz que atua como terceiro desinteressado na causa. Livre de interesses, preferências ou pressões psicológicas, sem favorecer nem prejudicar nenhuma das partes. O juiz deve ser justo e tem o dever de julgar com base naquilo que lhe for apresentado, sendo igualitário com ambas as partes envolvidas.
4.2 Imparcialidade
A respeito da imparcialidade necessária em um processo justo, é oportuno frisar que o juiz não deve, em nenhuma hipótese, ser influenciado pelas vítimas envolvidas. Ainda que a parte seja uma pessoa de mesmo cargo público que o seu, o magistrado não pode em nenhum momento agir de forma parcial. Ainda que a vítima em um processo judicial seja um juiz ou juíza, isso não deverá ser diferido por parte do órgão julgador. A lei foi criada com o intuito específico de proteger juízes que julgam organizações criminosas, independentemente de essas organizações criminosas terem vitimado exclusivamente um magistrado. É cabal salientar que a lei não foi criada com base em a vítima ter sido juiz, mas qualquer pessoa, que o tenha sido em virtude de uma organização criminosa, que será consequentemente julgada por qualquer juiz criminal que disponha de competência para tal. Se do contrário fosse, se a lei manifestasse preferência aos casos em que as vítimas das organizações criminosas fossem magistrados, não haveria sequer um deles apto a julgá-la. Pois nenhum deles seria suficientemente imparcial para julgar um caso em que seria a suposta próxima vítima. Não haveria juízes suficientes para realizar a prestação jurisdicional.
Sendo assim, destaca-se que a finalidade da lei é a de proteger o juiz que participa do julgamento de uma organização criminosa que pode ou não ter vitimado qualquer pessoa, e a depender do risco oferecido por essa organização é que poderá ser necessária a aplicação da lei para garantir a integridade física e psíquica do órgão que irá julgá-la.
A grande importância da imparcialidade, que deve ser mantida, tem relação com o fato de que o juiz que se vê pressionado por uma das partes, no caso em questão pela parte acusada, que sabe que corre o risco de sofrer retaliações, ameaças, ou efetivamente as vivencia, deixa de ser imparcial, pois na apreensão que sofre, certamente irá influenciar seu julgamento.
Nas palavras de Cunha (2013, p. 76), “pelo princípio da materialização do fato, o Estado só pode incriminar condutas humanas voluntárias, isto é, fatos (e nunca condições internas ou existenciais), em outras palavras, está consagrado o Direito Penal do Fato”[84]. Logo, o nosso ordenamento jurídico contempla o direito penal do fato, e rechaça o direito penal do autor, que é aquele em que se consideram as características do indivíduo, bem como seu modo de vida, pensamentos e desejos[85] para aplicar a punição, e devido a tais condições, é vedado no Brasil.
Ainda para garantir a imparcialidade, o direito processual consagra os institutos de suspeição e impedimento, que são situações que ferem a imparcialidade exigida da pessoa do magistrado, e consequentemente o afastam do processo, previstos nos artigos 96 e 103 e 252 a 253, respectivamente, ambos do Código de Processo Penal[86]. Segundo Pacelli (2014, p. 298)[87] “a arguição de suspeição precederá a qualquer outra, salvo quando fundada em motivo superveniente”. Assim que reconhecida a suspeição ou impedimento, os autos passarão a um outro juiz, que atuará como substituto legal do processo[88]. Nos ensinamentos de Pacelli[89], vemos que:
“Tanto as causas que determinam a suspeição quanto aquelas que estabelecem casos de impedimento do juiz dizem respeito a fatos e circunstâncias, subjetivos ou objetivos, que, de alguma maneira, podem afetar a imparcialidade do julgador na apreciação do caso concreto. É o ocorre, por exemplo, na inimizade capital ou amizade íntima do juiz com algumas das partes (artigo 254, CPP), ou quando o juiz tiver funcionado como juiz de outra instância, pronunciando-se, de fato ou de direito, sobre a questão (artigo 252, III, CPP).”
Observando ainda que é dever do magistrado arguir tais exceções de ofício, e não ocorrendo, as partes deverão opor a ação de exceção na primeira oportunidade[90] a fim de conservar a imparcialidade e o devido processo legal.
4.3 Quanto aos Recursos
Um assunto bastante suscitado quando se trata da lei 12.694/2012 é a possibilidade do ajuizamento de recursos. Onde muitos acreditam que a instauração do juízo colegiado em primeiro grau seria capaz de atrapalhar de alguma forma algum recurso. Porém, o que se nota é que a lei do juiz sem rosto não tem o condão de obstar que nenhum recurso seja ajuizado
Ressalta-se que de forma contrária à instauração do juízo colegiado em primeira instância não há previsão de recurso cabível. No entanto, contra decisões manifestamente ilegais, o prejudicado deverá fazer uso dos remédios constitucionais, devendo impugná-las nas respectivas entrâncias superiores[91].
4.4 Dos Julgados
Cabe salientar o posicionamento dos Tribunais Superiores a respeito da aplicação da lei 12.694/2012, consolidando assim, sua constitucionalidade. Foi no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade (ADI 4.414) no estado de Alagoas, tendo sido ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil contra a Lei 6.806/2007[92], sob alegação de inconstitucionalidade integral. A referida lei instituiu vara especializada para processar e julgar crimes envolvendo organizações criminosas. O Supremo Tribunal Federal (STF) declarou apenas alguns artigos inconstitucionais, mantendo a vigência da lei em sua essência[93].
Resta saber que a Suprema Corte esclareceu que não há ofensa ao princípio do juiz natural em virtude da formação do denominado órgão colegiado de juízes atuando em primeira instância jurisdicional.[94] Conforme o disposto no artigo 4º da Lei 6.806/2007, que dispõe:
“Art. 4º. Os cinco juízes da 17º Vara Criminal da Capital, após deliberação prévia da maioria, decidirão em conjunto todos os atos judiciais de competência da Vara, e Parágrafo Único: Os atos processuais urgentes ou concomitantes à instrução prévia, quer os da instrução processual, poderão ser assinados por qualquer um dos juízes, e, os demais, por pelo menos três deles”[95];
Foi também declarado constitucional. Tendo sido noticiado pelo Informativo 667, de 21 a 25 de maio de 2012[96], postulando que é constitucional lei estadual dispondo sobre a instituição de órgão colegiado em primeiro grau de jurisdição, valendo-se assim de competência legislativa concorrente versando procedimento em matéria processual[97], quando da omissão da lei federal, previsto no artigo 24, XI, da Constituição Federal de 1988[98].
Ainda nas lições de TÁVORA E ALENCAR[99]:
“Na essência, a Lei nº 12.694/2012 guarda semelhança com a estadual já examinada pelo STF. No julgamento da ADI 4414 se vê que a Corte buscou suprimir toda interpretação que ofenda critérios objetivos, impessoais ou apriorísticos e assentou que não verificou afronta aos princípios do juiz natural, da vedação à criação de tribunais de exceção e da legalidade. Prestigiou-se, como se depreende, a técnica da interpretação conforme a Constituição.”
Ressalta-se ainda o teor da ADI 4414/AL, julgada em 24/05/2012, que teve por relator o Ministro Luiz Fux, ao qual aponta[100]:
“O Plenário iniciou julgamento de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, contra a Lei 6.806/2007, do Estado de Alagoas, que criara a 17º Vara Criminal da Capital, atribuindo-lhe competência exclusiva para processar e julgar delitos praticados por organizações criminosas dentro do território alagoano. A respeito do art. 1º da lei [“Fica criada a 17ª Vara Criminal da Capital, com competência exclusiva para processar e julgar os delitos envolvendo atividades de organizações criminosas (Crime Organizado) e jurisdição em todo território alagoano. Parágrafo único. As atividades jurisdicionais desempenhadas pela 17ª Vara Criminal da Capital compreendem aquelas que sejam anteriores ou concomitantes à instrução prévia, as da instrução processual e as de julgamento dos acusados por crime organizado”], decidiu-se, por maioria, dar-lhe interpretação conforme a Constituição, para excluir exegese que não se resuma ao disposto no art. 1º da Lei 9.034/95, com a redação dada pela Lei 10.217/2001 (“Esta Lei define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo”.
Não restando dúvidas quanto ao posicionamento da Suprema Corte. É possível observar a formação de julgamentos colegiados em outros órgãos do Poder Judiciário, sendo exemplos os julgamentos feitos pelas turmas recursais, pelo tribunal do júri, pelas juntas eleitorais, etc. Mais uma evidência de que a aduzida lei não fere o princípio do juiz natural, é a de que além de escolher os outros juízes que se juntarão à causa pela via eletrônica, por meio de sorteio, ou seja, por critério impessoal, é possível observar que o julgamento feito por três juízes com o intuito precípuo de proteger o juiz ameaçado e preservar a ordem social, se assemelha ao instituto do desaforamento, ocorrido no rito do júri[101]. O desaforamento é necessário quando há dúvidas quanto à imparcialidade do júri, por interesse de ordem pública, ou quando for necessário para a segurança pessoal do acusado, conforme o disposto no artigo 427, do Código de Processo Penal[102]. Quando ocorre um desses casos, o processo judicial é retirado do foro em que está e transferido a outro foro em local diverso, ocorrendo assim o deslocamento de competência.
Ainda a respeito da posição do Supremo Tribunal Federal sobre o julgado da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 4414, o Ministro Luiz Fux, relator do caso, dispôs no Informativo do STF[103], in verbis:
“Inicialmente, o Min. Luiz Fux, relator, discorreu sobre a preocupação mundial no sentido de prevenir e reprimir a criminalidade organizada. Estabeleceu premissa de que seria constitucional a criação, pelos estados-membros, de varas especializadas em razão da matéria, seja em âmbito cível ou penal. Destacou, nesse sentido, o art. 74 do CPP (“A competência pela natureza da infração será regulada pelas leis de organização judiciária, salvo a competência privativa do Tribunal do Júri”), o qual estaria em conformidade com o art. 125 da CF (“Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição”). Frisou impender a adequação às necessidades, carências e vicissitudes de cada região e mencionou jurisprudência da Corte a corroborar esse entendimento. Ressalvou que a liberdade estadual na criação de varas especializadas encontraria freios somente nas competências previstas constitucionalmente, que deveriam ser respeitadas por critérios definidos na lei local. Sublinhou a Recomendação 3/2006, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, a indicar a especialização de varas criminais para processar e julgar delitos praticados por organizações criminosas.
Considerou que o conceito de “crime organizado” seria intrinsecamente fluido e mutável, de acordo com as diversas culturas e meios sociais. Rememorou a Convenção de Palermo, incorporada ao ordenamento brasileiro desde 2004, cuja definição desse gênero de delito seria vaga e imprecisa (artigo 2, a, b e c). Ademais, enumerou as características desse gênero de crimes, reconhecidas pela doutrina e jurisprudência: a) pluralidade de agentes; b) estabilidade ou permanência; c) finalidade de lucro; d) divisão de trabalho; e) estrutura empresarial; f) hierarquia; g) disciplina; h) conexão com o Estado; i) corrupção; j) clientelismo; k) violência; l) relações de rede com outras organizações; m) flexibilidade e mobilidade dos agentes; n) mercado ilícito ou exploração ilícita de mercados lícitos; o) monopólio ou cartel; p) controle territorial; q) uso de meios tecnológicos sofisticados; r) transnacionalidade ou internacionalidade; s) embaraço do curso processual; e t) compartimentalização. Reputou não haver consenso a respeito das características essenciais dessa figura delitiva, bem como que a lei impugnada poderia ter escolhido qualquer critério para fixar a competência da vara criminal em razão da natureza do crime. Ressurtiu que o Enunciado 722 da Súmula do STF não se aplicaria ao caso, tendo em vista que a norma estadual não veicularia tipo penal incriminador, nem transbordaria de sua competência para tratar de organização judiciária. Além disso, não verificou afronta aos princípios do juiz natural, da vedação à criação de tribunais de exceção e da legalidade (CF, art. 5º, LIII, XXXVII, II e XXXIX, respectivamente”).
No tocante à utilização do termo de organizações criminosas, presente na Convenção de Palermo, e principalmente, lembrado pelo Ministro Cezar Peluso, que a Vara Especializada no estado de Alagoas, já havia sido instaurada de 2007, corroborando que o primeiro artigo da lei estadual deveria ser considerado constitucional, confirmando a competência da respectiva vara para processar e julgar crimes oriundos de organizações criminosas, também disposto no informativo publicado em 24/05/2012[104], a saber:
“O Min. Cezar Peluso apontou que, na medida em que a lei estadual definiria o que fosse organização criminosa em termos de tipificação, ela extrapolaria seus limites, visto que esse conceito, apesar da Convenção de Palermo, poderia ser estabelecido apenas por lei federal. A respeito, o Min. Celso de Mello pontuou que convenções internacionais não se qualificariam como fontes formais de direito penal, para o qual vigoraria o princípio da reserva legal. O Min. Dias Toffoli registrou a necessidade de compatibilizar a lei atacada com o texto constitucional, por meio de interpretação conforme a Constituição, considerada a existência de projeto de lei em trâmite no legislativo, a tipificar crime organizado. O relator lembrou, também, a funcionalidade do sistema inaugurado pela lei vergastada, já que a 17ª Vara existiria desde 2007. No ponto, o Min. Cezar Peluso dessumiu que o art. 1º deveria ser interpretado de forma que a vara especializada fosse competente para processar e julgar delitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas, nos termos da Lei 9.034/95, visto que “organização criminosa” não diria respeito a fatos, mas a autores de crime e a modo de execução. O Min. Ricardo Lewandowski aduziu existirem três figuras assemelhadas que a lei alagoana teria buscado compreender no seu art. 1º: a) quadrilha (CP, art. 288); b) associação criminosa (Lei 11.343/2006, art. 35); e c) associação (Lei 2.889/56, art. 2º). Vencido o Min. Marco Aurélio, que julgava inconstitucional o preceito. Asseverava que os tipos penais “organização criminosa” e “crime organizado” não estariam descritos no Código Penal e, por isso, o Supremo não poderia tomar de empréstimo o que contido na Convenção de Palermo, sob pena de colocar em segundo plano o princípio constitucional da reserva de lei. Afirmava que, ante a ausência da definição dos tipos mencionados, não poderia haver atividade judicante a ser desempenhada pela vara criada no tribunal de justiça. Após, deliberou-se suspender o julgamento.”
O que se nota é que tentativas de inovação do ordenamento jurídico, causam controvérsia, e parecem ser consequentemente taxadas como inconstitucionais apenas pelo fato de trazerem inovações para o sistema legislativo.
As doutrinas contrárias alegam que com a aplicação da lei 12.694/2012 não seria possível fiscalizar os atos proferidos pelo juiz, e que seria violado o princípio do livre convencimento motivado[105], pelo fato de que não há menção à existência de voto divergente, e que a decisão dos juízes atuando em colegiado não seriam passíveis de fiscalização.
Há alegações contrárias ainda ao instituto do juiz sem rosto, propriamente dito, porém no Brasil não há a figura do “juiz sem rosto”, apenas há a formação do juízo colegiado, com rosto, e com a assinatura de todos os magistrados que dele participam. Posições contrárias também alegam que haveria inconstitucionalidade em disposição acerca da publicidade dos atos praticados pelo colegiado, devido ao fato de a lei permitir que as reuniões voltadas às deliberações das decisões sejam sigilosas, ainda que no intuito de garantir os interesses sociais e preservar os magistrados que sejam contrários aos interesses do réu.
Para alguns operadores do direito, a lei seria inconstitucional por possibilitar a formação do colegiado de três juízes, segundo a alegação que dessa forma seria ferido o princípio do juiz natural, que apenas aquele juiz já investido poderia julgar a ação. Porém o que se observa é que os juízes terão a mesma competência que o próprio juiz da causa terá, de acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal ao julgar lei estadual dispondo nesse sentido.
Conclusão
Buscou-se analisar a constitucionalidade da Lei 12.694/2012, em consonância com o princípio do juiz natural, contido no cerne de toda a jurisdição. Um dos pilares de toda a prestação jurisdicional.
A lei em questão traz prerrogativas ao magistrado que se veja na iminência de sofrer danos à sua integridade tanto física, quanto psíquica. Oferece mecanismos capazes de auxiliar a tutela prestada, de maneira a proteger um bem jurídico extremamente importante para todo o ordenamento, qual seja, o bem da vida e consequentemente a dignidade da pessoa humana daquele que exerce o ilustre cargo.
Com o advento da Lei 12.694/2012, a legislação brasileira passou finalmente a ter um conceito legítimo acerca das organizações criminosas, suprindo uma lacuna que perdurou por muitos anos. Foi com a observação e com os variados danos sofridos que as organizações criminosas passaram a ser tuteladas de forma efetiva pelo legislador. Foi justamente com a percepção de que tais organizações se desenvolvem e se especializam diariamente, que surgiu tamanha necessidade de aprimorar o sistema jurídico existente.
Chegando assim ao entendimento de que a aduzida lei é constitucional, e não fere o princípio do juiz natural a ponto de interferir na aplicação justa do direito, pois visa garantir ainda a aplicação de outros princípios e direitos, possibilitando uma mitigação do princípio em situações que apresentem regras claras, onde necessitam da aplicação conjunta de outros institutos. Tendo em vista que a partir dos dispositivos trazidos pela lei, o juiz só irá se utilizar de formação colegiada se houver indícios de que corre algum risco de ter sua integridade violada, e deverá optar pela sua instauração quando for necessária a diluição da responsabilidade exigida no processo judicial que envolva organização criminosa. Sua decisão será fundamentada e os motivos que ensejam a instauração do colegiado serão expostos e analisados por órgão correicional, assim como medidas mais extremas serão analisadas pela polícia judiciária. Não ferindo dessa forma, nenhum princípio vigente no ordenamento.
O juízo colegiado será instaurado com o juiz natural da causa e outros dois juízes de competência igualmente criminal, atuando em primeira instância, a serem sorteados pela via eletrônica, assegurando assim a imparcialidade na escolha dos magistrados que irão compor a formação, estando em plena conformidade com o princípio do juiz natural. Outra garantia de que a lei 12.694/2012 não descumpre o ordenamento jurídico, é o de que as decisões proferidas pelo órgão colegiado serão devidamente publicadas e assinadas pelos três, corroborando assim o princípio da publicidade. E extremamente importante para toda a jurisdição, tal dispositivo garante a ampla defesa, pois o indivíduo jurisdicionado saberá exatamente os motivos que ensejaram a decisão através da respectiva fundamentação, possibilitando o manejo de eventuais recursos conforme a disposição prevista.
Analisando um outro aspecto, observa-se que a lei 12.694/2012 objetiva dirimir a coação sofrida por um único juiz, e quando o julgamento é feito por três juízes, é possível notar que ocorre a diluição dessa responsabilidade, pois a organização criminosa que apresentar risco terá o conhecimento de que a decisão foi tomada pelos juízes conjuntamente, sem que haja referência se houve divergência sobre o voto proferido, retirando assim a autoria exclusiva das decisões do processo.
O Supremo Tribunal Federal se posicionou de maneira favorável à aplicação da lei 12.694/2012 ao julgar constitucional a lei estadual que institui vara criminal com competência exclusiva para julgar crimes advindos de organizações criminosas. Partindo da premissa que independente de quem irá julgar, deverá fazê-lo de maneira imparcial, sem levar em consideração qualquer característica das vítimas ou acusados, mas sim pelos fatos que serão apresentados. E dessa forma, qualquer juiz que seja anteriormente investido poderá julgar os processos posteriores que lhe sejam submetidos, estando em acordo com o juízo natural, que veda tribunais de exceção criados para o fato, mas cria tribunais para fatos posteriores à sua instauração, ocorrendo por meio da investidura anterior no cargo ou vara e a respectiva competência jurisdicional, conforme foi observado no bojo da lei 12.694/2012, que além de assegurar condições dignas aos magistrados, foi editada para principalmente preservar a vida humana e assegurar a dignidade da pessoa humana.
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