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A criança e o dizer verdadeiro

A justiça representada pelo Poder Judiciário é uma instituição que tem a obrigação com a verdade e onde historicamente há uma dominação da verdade, que permite a formulação de juízos e valores entre o verdadeiro e o falso, o certo e o errado, o normal e o anormal. Assim, constitui e produz saberes, enunciados e formações discursivas sobre o indivíduo e o espaço que ele ocupa na sociedade, ou que lhe é permitido ocupar.

Se o Estatuto da Criança e do Adolescente entrou em vigor com o objetivo de modificar a situação sócio-jurídica da infância e da juventude brasileiras e dentro desta proposta se deu a inserção da psicologia em um novo campo de trabalho, como participar desta mudança sem sujeitar a criança? E é nos estudos do psicólogo e filósofo francês Michel Foucault que se encontra uma reflexão motivadora: “Na minha opinião nem tudo é ruim, mas tudo é perigoso, o que não significa o mesmo que ruim. Se tudo é perigoso, então temos sempre algo a fazer. Portanto, minha posição não conduz a apatia, mas ao hiperativismo pessimista” (FOUCAULT apud ESCOBAR, 1983, p. 259).

A psicologia no contexto judiciário é solicitada a revelar as virtualidades dos indivíduos, onde a prova material não alcança, estabelecendo assim, relações entre o homem e a verdade que devem ser interrogadas. As complexas demandas diárias exigem respostas sobre a criança e suas subjetividades, gerando novos tipos de saber sobre a infância, a qual tem seus direitos estabelecidos e impostos pela lei. Mas que saber? Como é constituído? É um modo de objetivação da criança em saber? Esta é uma crítica necessária quando se trabalha no Poder Judiciário, onde as relações de poder estão às claras e a conduta do outro é analisada pelo interdito e pela lei. Como bem definiu Foucault: “trabalhar é conseguir pensar algo que não seja o que se pensava antes” e assim, reinterrogar as evidências e o saber de vigilância[1]. Esse deve ser o papel da psicologia judiciária, a qual se integra no campo do direito, sugerindo transformações nas formas e procedimentos jurídicos e denunciando os dispositivos e as tecnologias disciplinares sobre a criança e os adultos envolvidos nos litígios.

Com a função de contextualizar e subsidiar situações que auxiliem o juiz durante o processo judicial e na sentença final, a psicologia é chamada a participar dos procedimentos jurídicos que buscam a produção da verdade relacionada à infância e à juventude brasileiras. Não se pode dissociar a verdade do estudo dos processos de sua produção, como por exemplo, o inquérito e o exame, sendo a verdade não um objeto, mas uma forma, uma regra de procedimento (EWALD,2000).

A dificuldade da atuação da psicologia no contexto judiciário se manifesta concretamente nos processos referentes a vitimização sexual infantil, onde a criança é ao mesmo tempo testemunha e vítima da prática ilícita. O valor do testemunho da criança é habitualmente questionado pelo juiz de direito, pelo promotor de justiça e/ou pelo advogado do réu, que ao solicitarem o laudo pericial referente à veracidade de suas declarações, algumas vezes através da formulação de quesitos, revelam suas tendências em descrer da criança. Sabe-se que a criança é sugestionável e suscetível as diferentes intervenções, principalmente em uma situação de vitimização sexual, onde experienciou a sujeição ao agressor e o sentimento de culpa gerado pelos valores morais atribuídos à sexualidade.

Nos casos de abuso sexual infantil, nem sempre há vivência de uma violência aberta, mas a submissão a um ritual meticuloso de poder por uma figura de autoridade. Ao ingressar no mundo dos interrogatórios a criança se vê forçada a uma narração de si mesma frente a outras figuras de autoridade e a prática confessional.

“Não é somente porque aquele que ouve tem o poder de perdoar, de consolar e de dirigir que é necessário confessar. É que o trabalho da verdade a ser produzida, caso se deva validá-lo cientificamente, deve passar por esta relação. A verdade não está unicamente no sujeito, que a revelaria pronta e acabada ao confessa-la. Ela se constitui em dupla tarefa: presente, porém incompleta e cega em relação a si própria, naquele que fala, só podendo completar-se naquele que a recolhe”(FOUCAULT,1988, p.65).

No cotidiano das práticas judiciárias, quando se fala em busca ou pesquisa da verdade, seja nos processos, nas audiências ou nos discursos, é como se o sujeito em si trouxesse com ele enigmas pessoais a serem decifrados, como se o contexto judiciário e a sociedade fossem neutros na produção da verdade. Neste aspecto são importantes as reflexões sobre as práticas e os procedimentos jurídicos que levem a novos caminhos de ação e de conduta profissional. A atuação da psicologia no judiciário não deve mostrar-se inerte diante do jogo da verdade constituída pelas normas de direito, mas deve sim, deslocar-se das regras de tal jogo, as quais geram certas formas de subjetividade, de domínios e de saber sustentadores das relações de poder.

A infância é problematizada através de diferentes práticas institucionais, categorizada e estudada como um objeto de conhecimento, explorada por diversos tipos de saber. Quando a criança é vitimizada sexualmente e por isto inserida no universo dos interrogatórios, cria mecanismos para adaptar-se à situação e por este motivo muitas vezes causa confusão ao desmentir a queixa que havia feito anteriormente, reforçando possíveis preconceitos e resistências em relação à veracidade de suas declarações e, neste caso é o laudo psicológico que a qualifica no processo onde é ao mesmo tempo testemunha e vítima.

Comumente a infância é definida de fora e em sua historicidade, porém o âmbito forense oferece a vivência de situações reais da sociedade atual e sua relação com a infância. “As práticas judiciárias – a maneira pela qual, entre os homens se arbitra os danos e responsabilidades, o modo pelo qual, na história do ocidente, se concebeu e se definiu a maneira como os homens poderiam ser julgados em função dos erros que haviam cometido (…) me parecem uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relações entre o homem e a verdade que merecem ser estudas”(FOUCAULT,2001,p,11). Portanto, as relações da criança com as práticas judiciárias atuais determinam fatos e acontecimentos, descrevendo como a sociedade reage diante deles. Foucault revela a realidade histórica e cultural das práticas judiciárias de onde nasceram os modelos de verdade que circulam ainda hoje em nossa sociedade.

O secular discurso sobre o sexo ou a sexualidade traz consigo interditos e proibições que quase sempre estão ligados à moral ou às classificações científicas fundamentadas como verdadeiras. A sexualidade, tema destinado aos adultos  e ocultado das crianças, ao ingressar no contexto judiciário é transcrito  detalhadamente, exigindo o “dizer verdadeiro” da criança quando vítima de abuso sexual de um adulto.

A vontade de verdade do Poder Judiciário e suas práticas ultrapassam os cuidados e os direitos da infância, observando, anotando, questionando, relatando, provocando  na criança culpa e insegurança.

“A função do ‘dizer verdadeiro’ não tem  que tomar a forma da lei, e seria em vão acreditar que ela conviva com plenos direitos, nos jogos espontâneos da comunicação. A tarefa do dizer verdadeiro é um trabalho infinito: respeitá-la em sua complexidade é uma obrigação da qual nenhum poder pode se furtar. Ficando sujeito a impor o silêncio da servidão”(FOUCAULT apud ESCOBAR, 1984,P.85).

O Poder Judiciário baseia sua crença no material, no incontestável, assim, o medo de falar da criança e as dificuldades dos adultos em ouvi-la, interferem negativamente nas formas jurídicas da produção da verdade, já que diante da suspeita da veracidade do testemunho da criança, a tendência é fechar os olhos e classificar suas declarações como fantasia infantil. Com isto, muitas vezes pode ocorrer a revitimização da criança, que além de abalada emocionalmente por ser desacreditada, vê-se obrigada a convier com o agressor nos casos de violência sexual intrafamiliar.

Os danos produzidos na criança que é vitima de abuso sexual podem ser atribuídos tanto às circunstâncias em que ocorreu o atentado quanto ao contexto de intervenção impositiva feita pela família e/ou profissionais a que foi submetida após a revelação.

As crianças pouco participam das decisões concernentes a sua vida, pois ainda são vistas como seres incapazes pela lei, sendo delegado aos pais ou adultos responsáveis o poder das decisões. Porém, esta situação vem se modificando há algumas décadas, mediante a evidência de alguns fatores críticos, dentre eles a percepção de que a família não é o porto seguro que se imaginava, sendo capaz de cometer uma série de violências contra suas crianças.

A representação social da infância está evidenciada no processo social e judicial em que a criança é inscrita quando rompe o silêncio e traz à tona fatos difíceis de serem ouvidos. Por força de crenças e teorias a palavra da criança é desvalorizada tanto pela família como pelos agentes judiciais no momento do acolhimento da denúncia e o que já era difícil, torna-se insuportável para ela, podendo levá-la a desmentir o que havia dito anteriormente.

A criança tem direito à participação nos assuntos relativos a sua vida. A tendência em desconsiderar tal fato, dificulta ainda mais a maneira como os profissionais se preparam para ouvi-la. Aceitar que a criança possui percepção e opinião sobre as pessoas e os acontecimentos de sua vida é o primeiro passo para compreender sua problemática.

 

Referência Bibliográfica:
AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane,N. A. Crianças Vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. São Paulo: Editora Iglu.1989.
DREYFUS, Herbert; RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Rio de Janeiro: Forense, 1995.
ESCOBAR,Carlos Henrique. Michel Foucault(1926-1984).O Dossier. Últimas entrevistas. Rio de Janeiro: Taurus Editora. 1984.
EWALD, François. Foucault. A Norma e o Direito. Lisboa: Veja. 2000.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Edições Graal.1988.
__________________. Ètica, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária.2004.
__________________. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau. 1999.
__________________. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola. 2003.
GABEL, Marceline (org.).Criança Vítimas de Abuso Sexual.São Paulo:Summus. 1992.
Nota:
[1] O saber de vigilância é aquele “organizado em torno de uma norma pelo controle dos indivíduos ao longo de sua existência. Esta é a base do poder, a forma de saber-poder que vai dar lugar às grandes ciências de observação como no caso do inquérito, mas ao que chamamos de ciências humanas: Psiquiatria, Psicologia, sociologia, etc.(Foucault,2001)

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Consuelo Biacchi Eloy

 

Psicóloga Judiciária da Comarca de Ourinhos, mestranda em psicologia na Unesp/Assis e professora de psicologia jurídica do curso de direito das FIO

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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