Resumo: A crise do Welfare State ou Estado do Bem-Estar possibilitou não apenas uma ampliação da atuação do Terceiro Setor, bem como obrigou à profissionalização das Organizações da sociedade Civil e à regulamentação dessa atividade. No Brasil não foi diferente. As Organizações Não Governamentais passaram a desempenhar um papel mais relevante na sociedade, muitas das vezes com efetiva contribuição nas políticas públicas, motivo pelo qual se fez necessário a regulamentação do Terceiro Setor, através do seu marco regulatório.
Palavras-chave: Estado do Bem-Estar. Estado neoliberal. Terceiro Setor.
Abstract: The Welfare State crisis not just amplified the Third Sector actions as well as forced the Civil Society Organizations professionalism and furthermore the law control on its activities. In Brazil couldn't happen different. The Non-governmental organization became an important character in Brazilian’s scene and in a most times have been brought effective contributions to the public polices, reason why was necessary the Third Sector regulation by a specific law.
Keywords: Welfare State. Neoliberal State. Third Sector.
Sumário: Introdução. 1 O Welfare State e sua crise. 2 A crise do Welfare State. 3 O crescimento da atuação do Terceiro Setor no Brasil a partir da implantação do Estado gerencial. 4 Da regulação do Terceiro Setor. O marco regulatório das organizações da sociedade civil – Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014. 5 Conclusão.
Introdução
O presente artigo tem como objetivo demostrar de que modo o declínio do Welfare State influenciou na maior participação das organizações da sociedade civil na prestação de serviços sociais, exigindo, por um lado, o aperfeiçoamento dessas entidades, e, por outro lado, a própria regulação estatal com vistas a um adequado preenchimento das lacunas produzidas pelo Estado neoliberal, em especial, nas Políticas públicas do Brasil.
1 O Welfare State e sua crise
Nos primeiros anos após a Segunda Guerra Mundial (anos 1950), houve um exponencial crescimento da economia da maioria dos países capitalistas e nessa mesma época os governos desses países expandiram seus programas sociais, visando o bem-estar de seus cidadãos. Segundo Draibe e Henrique (1987), ocorreu uma bem-sucedida parceria entre a política social e a política econômica, sustentada por um consenso acerca do estímulo econômico conjugado com a segurança e justiça sociais.
De acordo com Gomes (2006), Welfare State é definido como: “A definição de welfare state pode ser compreendida como um conjunto de serviços e benefícios sociais de alcance universal promovidos pelo Estado com a finalidade de garantir uma certa "harmonia" entre o avanço das forças de mercado e uma relativa estabilidade social, suprindo a sociedade de benefícios sociais que significam segurança aos indivíduos para manterem um mínimo de base material e níveis de padrão de vida, que possam enfrentar os efeitos deletérios de uma estrutura de produção capitalista desenvolvida e excludente.”
Como dito, o Estado do Bem-Estar nasce a partir da crise do Estado Liberal, Pereira (1998, p. 48) acentua: “A grande crise dos anos 30 originou-se no mal funcionamento do mercado. Conforme Keynes tão bem verificou, o mercado livre levou economias capitalistas à insuficiência crônica da demanda agregada. Em consequência entrou também em crise o Estado Liberal, dando lugar à emergência do Estado Social-Burocrático: social por que assume o papel de garantir os direitos sociais e o pleno-emprego; burocrático porque o faz através da contratação direta de burocratas. Reconhecia-se, assim, o papel complementar do Estado no plano econômico e social. Foi assim que surgiram o Estado do Bem-Estar nos países desenvolvidos e o Estado Desenvolvimentista e Protecionista nos países em desenvolvimento. ”
A instituição do Welfare State, portanto, encontrou forte apelo nas severas crises que o Estado não intervencionista terminou por provocar, haja vista a total ausência estatal.
2 A crise do Welfare State
Importa dizer que o Estado incorporou um papel assistencialista, mas que lhe impunha um severo ônus de assumir a mantença de um status de bem-estar do cidadão em paralelo a uma economia de mercado. Essa situação não conseguiria se firmar por muito tempo, conforme constatou Streeck (2015, p. 20), afirma que “[…] a falta de crescimento econômico ameaçou a perenidade do modo de pacificação das relações sociais que pusera fim aos conflitos do pós-guerra.”
Assim, no final da década de 1960 e início da década seguinte, a figura do Estado provedor passou a ser questionado, haja vista que sozinho não conseguia manter as políticas sociais, tampouco, ante a força do modelo capitalista, mantinha uma economia socialmente equilibrada. O resultado foi o descolamento progressivo do equilíbrio entre os sistemas social e econômico em razão de uma primazia deste último.
O festejado modelo do Welfare State ou Estado do Bem-Estar não se sustentou em face de uma economia com acelerado crescimento inflacionário, elevados índices de desemprego, alto endividamento privado e público. Essa equação tornou-se insustentável.
A crise econômica mundial dos anos 80 obrigou o Estado a recuar no seu papel assistencialista. “A performance de baixo crescimento com aceleração inflacionária e desequilíbrios financeiros dos Estados parece ter gerado um conflito entre política econômica e política social” (DRAIBE, 1993, p. 2), a “tempestade perfeita”, portanto, levou o propagado Welfare State à derrocada.
Pereira (1998, p. 53), discorre sobre os motivos que levaram o Estado do Bem-Estar à derrocada: “Em parte em consequência da incapacidade de reconhecer os fatos novos que ocorriam no plano tecnológico, em parte devido à visão equivocada do papel do Estado como demiurgo social, e em parte, finalmente, por que as distorções de qualquer sistema de administração estatal são inevitáveis à medida que transcorre o tempo, o fato é que, a partir dos anos 70 e principalmente nos anos 80, a economia mundial enfrenta uma nova grande crise. No primeiro mundo as taxas de crescimento reduzem-se para metade em relação ao que foram os primeiros 20 anos após a Segunda Guerra Mundial, enquanto as taxas de desemprego aumentam, principalmente na Europa, e o milagre japonês que sobrevivera nos anos 80, afinal soçobra nos anos 90. Na América Latina e no Leste Europeu, que recusam a finalizar o ajustamento fiscal nos anos 70, a crise se desencadeia nos anos 80 com muito mais violência.”
Assim, coube ao Estado delimitar melhor seu papel enquanto agente regulador da economia versus seu limite de atuação no âmbito das políticas sociais, promovendo o estímulo para que o primeiro setor contribua com tais políticas.
Duarte (2013, p. 64), resume as transições dos modelos de Estado: “Com o estudo da evolução do Estado verificamos que houve a passagem do Estado Imperioso, concentrado no soberano, para um Estado Liberal, totalmente ausente na sociedade. Em seguida, tentando reduzir as desigualdades sociais, o Estado tornou-se social, mas as diversas obrigações assumidas demonstraram sua incapacidade de resolver todos os problemas sociais. Para se reorganizar o Estado tomou uma postura neoliberal, reduzindo investimentos sociais e mantendo uma estrutura mínima de funcionamento.”
Por outro lado, a partir da segunda metade do século XX, novas instituições e interlocutores passaram a interagir nos âmbitos público e privado, iniciando uma nova governança mundial: “[…] além de corporações transnacionais e organizações da sociedade civil terem expandido o seu escopo e meios de atuação, elas passam a formar, dentre a multiplicidade de modalidades de alianças resultantes de alianças resultantes da governança global constituída na segunda metade do século XX, formas de governança privada […].” (PAGOTTO et al., 2016, p. 36)
Acontece que, após o Estado ter ofertado aos cidadãos políticas sociais, ainda que de caráter meramente assistencialista, o recuo estatal dessa função não reduziu a pressão da sociedade para a desigualdade social e o acesso aos serviços e bens essenciais.
As transformações por que passou a ordem econômica e social no mundo implicaram em um novo olhar sobre o papel das empresas, bem como a expectativa da sociedade em relação a elas, em especial no tocante à responsabilidade social. “A dimensão de seu poderio econômico é tamanha […] que a sociedade civil e os governos passaram a demandar das empresas maior responsabilidade, transparência, accountability por meio de regulação e autorregulação” (PAGOTTO et al., 2016, p. 37).
Dessa forma, apareceu um novo modelo em substituição ao Estado do Bem-Estar, surgiu a figura do Estado neoliberal ou Estado Mínimo, que, segundo Fernandes (2009), “[…] tinha como principais características a retomada da postura de não intervenção econômica e a redução das responsabilidades do Estado na esfera social”. Importa dizer que as Políticas Sociais teriam de ser reduzidas.
O Estado vem se transformando e Kissler e Heidemann (2006), assim traduzem essas transformações: “- de um Estado de serviço, produtor do bem público, em um Estado que serve de garantia à produção do bem público;
– de um Estado ativo, provedor solitário do bem público, em um Estado ativador, que aciona e coordena outros atores a produzir com ele;
– de um Estado dirigente ou gestor de um Estado cooperativo, que produz o bem público em conjunto com outros atores.”
No Brasil não foi diferente, em especial a partir do encerramento do ciclo dos governos totalitários e, quando, a reboque de condições político sociais contaminadas por visões e desejos represados, surge a Constituição Federal de 1988.
A Constituição de 1988 trouxe três conjuntos de mudanças relevantes; o fortalecimento do controle externo da administração pública e a potencialização do Ministério Público; descentralização política, administrativa e financeira, com abertura para maior participação cidadã e consequente incremento e aprimoramento de políticas públicas e; a reforma do serviço público por meio da profissionalização da burocracia, com a adoção da meritocracia, através da obrigatoriedade do concurso público, busca pela melhoria dos quadros da alta burocracia, com a criação, em 1986, da Escola Nacional de Administração Pública-ENAP.
Em meados da década de 1990, o Governo Fernando Henrique Cardoso sinaliza de modo claro para a sociedade a necessidade de remodelagem da Administração Pública, através da criação do Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE), e propondo uma profunda reforma estrutural.
Dentre as principais transformações introduzidas por essa política se destacam o aperfeiçoamento do civil service reform (reforma do serviço público) através da substituição da administração pública burocrática pela gerencial, reorganização administrativa do governo, com o aperfeiçoamento das chamadas carreiras de Estado, valorização do concurso público e busca da meritocracia.
O então Ministro Luís Carlos Bresser Pereira, estudioso dos modelos implantados nos Estados Unidos e no Reino Unido, trouxe para o Brasil o ideário desse novo modelo, denominado Administração Pública Gerencial. De Paula (2005, p. 38) discorre sobre o tema: “No Brasil, esse movimento ganhou foça nos anos 1990 com o debate da reforma gerencial do Estado e o desenvolvimento da administração pública gerencial. A crise do nacional desenvolvimentismo e as críticas ao patrimonialismo e autoritarismo do Estado brasileiro estimularam a emergência de um consenso político de caráter liberal que, segundo nossa análise, se baseou na articulação das seguintes estratégias: a estratégia de desenvolvimento dependente e associado; as estratégias neoliberais de estabilização econômica; e as estratégias administrativas dominantes no cenário das reformas orientadas para o mercado.”
Assim, ao mesmo tempo em que o Brasil recém consagra um Estado Democrático de Direito, com dispositivos de caráter eminentemente societal, estabelecendo uma gama de direitos sociais e inserindo a assistência social no Texto Constitucional, estabelece-se uma reforma administrativa, que logo ganhou o apelido de “neoliberal”, embora, inegavelmente, constituísse uma mudança paradigmática na história do País.
A propósito da estigmatização levada a termo por parte significativa dos atores políticos, por certo que minou a dimensão da reforma administrativa proposta pelo MARE. A análise histórica aponta para dificuldades e resistências impeditivas à várias medidas necessárias, o que mais tarde prejudicou o alcance de sua proposta original. “Não se pode esquecer, ainda, da oposição petista à reforma, movida pelo peso do corporativismo dentro do partido e por uma estratégia de tachar qualquer reforma da era FHC como “neoliberal” (ABRUCIO, 2007, p. 67).
O Ministro Bresser-Pereira demonstrava ter consciência da importância da reforma como mecanismo de atualizar o chamado Welfare State ao cenário internacional, oportunidade em que: “O surgimento do Estado do Bem-Estar para garantir os direitos sociais, e o papel cada vez maior que o Estado assumiu ao promover o crescimento econômico e a competitividade internacional, tornaram evidente o caráter do Estado como res publica. E implicaram um aumento considerável da cobiça de indivíduos e de grupos desejosos de submeter o Estado a seus interesses especiais. A privatização da carga fiscal (forma principal da res publica) passava a ser o principal objetivo dos rent-seekers.
À medida que a proteção aos direitos públicos passava a ser dominante em todo o mundo, foi-se tornando cada vez mais claro que era preciso refundar a república; que a reforma do Estado ganhava uma nova prioridade; que a democracia e a administração pública burocrática — as duas instituições criadas para proteger o patrimônio público — tinham de mudar: a democracia devia ser aprimorada para se tornar mais participativa ou mais direta; e a administração pública burocrática devia ser substituída por uma administração pública gerencial.” (PEREIRA, 1998, p. 9).
As atividades estatais, portanto, foram divididas em dois tipos: as exclusivas do Estado e as não exclusivas do Estado. Sendo a primeira a de legislar, regular e fiscalizar, fomentar e formular políticas públicas; e, a segunda, se constitui nos serviços de caráter competitivo e as auxiliares ou de apoio (DE PAULA, 2006).
Assim, esse novo modelo proposto pelo Ministro Bresser-Pereira abriu espaço para participação de Organizações Sociais (OS) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSIP), embrião de uma nova cultura de abertura do serviço público, o que culminou mais tarde na regulamentação das atividades exercidas em parceria com a sociedade civil.
3 O crescimento da atuação do Terceiro Setor no Brasil a partir da implantação do Estado gerencial
A partir desse novo modelo de Estado, houve uma transformação na forma de atuação das instituições do Terceiro Setor, pois, além de a sociedade pressionar o ambiente corporativo a adotar ações que denotassem responsabilidade social, essa mesma sociedade passou a organizar-se em busca de exigir melhoria da qualidade de vida das pessoas.
Pereira (1997, p. 63) afirma: “[…] Ora, em uma situação em que o mercado é claramente incapaz de realizar uma série de tarefas, mas que o Estado também não se demonstra suficientemente flexível e eficiente para realiza-las, abre-se espaço para as organizações públicas não-estatais.”
E o mesmo PEREIRA (1997, p. 97) assevera que a atuação do terceiro setor tem sido crescente: “Nesta segunda metade do século vinte o crescimento das organizações públicas não-estatais tem sido explosivo. Às vezes essas organizações se confundem com uma quarta forma de propriedade relevante no capitalismo contemporâneo – a propriedade corporativa, que caracteriza os sindicatos, associações de classe e clubes. É o caso das associações de bairro, por exemplo, que realizam ao mesmo tempo serviços comunitários.”
Pierre Rosanvallon, citado por Draibe (1993, p. 16) ao discorrer sobre a redução da demanda estatal no campo social, evidencia o crescente movimento da estruturação da sociedade civil: “Do mesmo modo que sublinha a necessidade de se reconhecer um direito de substituibilidade do estatal pelo social no domínio de certos serviços coletivos (o exemplo que dá é o das creches), o que significa que o Estado reconheça, sob forma de dedução fiscal, os serviços coletivos levados a cabo por grupos sociais. Autosserviços e serviços públicos pontuais de iniciativa local, ao multiplicarem-se, reduzem a demanda do Estado.”
Importa dizer que gradativamente a sociedade civil passou a assumir o vácuo deixado pelo Estado a partir da derrocada do Welfare State. Pereira (1997) assevera que a organização da sociedade civil possibilitou maior eficiência na realização de serviços sociais: “Este crescimento decorre da maior adequação – e portanto maior eficiência – desse tipo de instituição para a realização dos serviços sociais. Serviços que não são naturalmente monopolistas, podendo se beneficiar da competição pelo apoio da sociedade e do Estado. Serviços que, como atendem diretamente a população, podem ser efetivamente controlados pelos cidadãos através de mecanismos de controle social.”
Mas não foi e não é tão simples assim. O Estado não se viu livre de suas tarefas precípuas para com os cidadãos em proporcionar-lhes bem-estar e segurança.
Um Estado Democrático de Direito, com uma Constituição Federal moderna como o brasileiro, evidencia uma busca pelo equilíbrio entre um modelo keynesiano e o Estado do Bem-Estar, haja vista inúmeros dispositivos que denotam tratar-se de um Estado baseado no capitalismo, mas que consagra, ao mesmo tempo, os direitos sociais.
No Brasil pós-ditadura, a Constituição Federal de 1988 traz em seu art. 6º os chamados Direitos Sociais e, ao longo do Texto Constitucional, há uma séria de dispositivos em que o Estado está obrigado a servir ao povo brasileiro: educação, saúde, segurança, previdência etc. Por outro lado, a mesma Carta Magna prevê que o País é capitalista e que possui uma política não intervencionista, mas regulatória da economia.
A Reforma do Estado havida nos anos 1990 evidenciou a delimitação do Estado, seja em relação à economia, seja em relação às políticas sociais.
Essa dicotomia, porém, não trouxe o equilíbrio esperado, como demonstra Gomes (2006): “Apesar de a Constituição rezar pela garantia de um modelo de seguridade social aos cidadãos, incorporando todos os trabalhadores (informais, marginalizados, da Zona Rural etc.) ao sistema de proteção social, as condições deterioradas do financiamento do setor público inviabilizaram a ampliação dos gastos sociais e execução de políticas públicas. Outros fatores corroboraram para o fracasso do novo sistema. Os principais foram: a forte centralização dos novos recursos no Tesouro Nacional e o atraso em seus repasses; cortes expressivos nos valores reais; e a falta de indexação das despesas públicas referentes aos gastos correntes e de investimentos previstos no Orçamento Geral da União (Dain e Soares, 1998:49).
Outro grande fator, responsável pelo retrocesso no processo de construção de um sistema mais amplo de seguridade social no Brasil, foi o drástico movimento de desmonte do aparelho estatal federal realizado pelo governo Collor de Mello. As principais vítimas desse processo foram as áreas de assistência social e os programas públicos de universalização dos direitos sociais explícitos na Carta Magna. Para se ter uma noção, o gasto com o conjunto dos benefícios assistenciais, dirigidos aos mais pobres, reduziu-se em cerca de 50% (Dain e Soares, 1998:60). É muito importante reforçar que esse movimento não foi isolado, mas fazia parte de um processo maior de reestruturação produtiva do capitalismo que já vinha ocorrendo gradualmente na década de 1980, notadamente na Inglaterra e EUA.”
Tais fatores contribuíram para que o terceiro setor se organizasse, notadamente, a partir de um novo conceito mercadológico de que as empresas precisam agir de forma sócio ambientalmente correta. Pagotto et al. (2016, p. 37) aponta: “Assim, a noção de responsabilidade empresarial culminou na atribuição de novas funções e papéis às grandes corporações no universo da regulação global e da produção de bens comuns, para muito além da maximização de lucro ao acionista.”
Esse espaço vem sendo preenchido pelas organizações da sociedade civil que deixaram de ser meras instituições de beneficência e filantrópicas, para se tornarem institutos com gestão modelar, governança e profissionais especializados no assunto, inclusive com apoio direto de grandes corporações privadas.
Em 2010, foi publicada a Norma Internacional ISO 26000 – Diretrizes sobre Responsabilidade Social. A versão em português da norma foi lançada no Brasil no mesmo ano, sendo a ABNT NBR ISO 26000, que assim conceitua a responsabilidade social: “A responsabilidade social se expressa pelo desejo e pelo propósito das organizações em incorporarem considerações socioambientais em seus processos decisórios e a responsabilizar-se pelos impactos de suas decisões e atividades na sociedade e no meio ambiente. Isso implica um comportamento ético e transparente que contribua para o desenvolvimento sustentável, que esteja em conformidade com as leis aplicáveis e seja consistente com as normas internacionais de comportamento. Também implica que a responsabilidade social esteja integrada em toda a organização, seja praticada em suas relações e leve em conta os interesses das partes interessadas. ”
Mais do que uma vontade de ajudar ou de praticar de atos de caridade, a responsabilidade social corporativa tornou-se uma obrigação. Em 2014, o volume total investido pelos investidores sociais brasileiros chegou a 3,9 bilhões de reais (DEGENSZAJN; ROLNIK, 2016).
4 Da regulação do Terceiro Setor. O marco regulatório das organizações da sociedade civil – Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014
Ao longo dos anos, e mais ainda decorrente do forte incentivo advindo da reforma gerencial, a relação jurídica decorrente da participação da sociedade civil permaneceu necessitando de aperfeiçoamento, especialmente para a obtenção da chamada segurança jurídica, ante a uma cultura razoavelmente nova na sociedade.
Assim, muito embora a reforma da administração pública seja da metade da década de 90, a reforma foi demasiadamente lenta, e, por certo, produziu inúmeros embaraços para a sociedade civil, inclusive trazendo riscos à relação entre o Poder Público e o Terceiro Setor.
Ante a ausência de regulamentação específica para repasse de verbas públicas, aplicava-se regras gerais da administração pública, ou ainda a Lei de Licitações e Contratos nº 8.666/93, ao qual o legislador dedicou a figura do convênio assim prevista no “Art. 116. Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, aos convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração”.
Outrossim, ao longo do tempo, restou evidenciada a pouca adequação do modelo contido na Lei nº 8.666/93, com o amplo espectro do Terceiro Setor, especialmente por que o instituto jurídico do convênio recai sobre premissas burocráticas excessivamente rígidas, além de um complexo processo de prestação de contas. Por definição, o Termo de Convênio: “Não constitui modalidade de contrato. Trata-se de uma avença ou ajuste entre entidades de direito público de natureza e nível diversos ou entidades públicas ou privadas para a realização de objetivos de interesse comum, mediante mútua colaboração.
Distingue-se do contrato, pois, nestes, os interesses das partes são divergentes, enquanto no convênio os interesses são convergentes.” (CUNHA JÚNIOR, 2007, p. 483)
Nesse sentido, embora com muitas normas esparsas, apenas em 2014, com o advento da Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014, denominado Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, o país passou a dotar um regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação; define diretrizes para a política de fomento, de colaboração e de cooperação com organizações da sociedade civil[1].
O novo marco reclassificou a natureza das relações jurídicas até então aplicadas genericamente a todos os partícipes privados, afastando a incidência da regra do art. 116, da Lei de Licitações e Contratos nº 8.666/93 para todos os casos de parcerias entre as entidades privadas sem fins lucrativos e o poder público. Agora, esses instrumentos serão aplicáveis apenas em relações firmadas entre instituições públicas.
Os acordos entre o Estado e o as Organizações da Sociedade Civil encontram-se então classificados por Termos de Colaboração, Termo de Fomento e Acordos de Cooperação. Assim a definição do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, Lei nº 13.019/2014: “Art. 1o Esta Lei institui normas gerais para as parcerias entre a administração pública e organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação.”
Em linhas gerais, os três instrumentos se distinguem. Tanto o Termo de Colaboração como o Termo de Fomento envolve a transferência de recursos financeiros, a diferença reside na autoria do objeto ou escopo da avença. Enquanto no Termo de Colaboração é a própria Administração Pública que define o objeto ao qual o parceiro adere, no Termo de Fomento as ações são propostas pelas organizações da sociedade civil.
Finalmente, no Acordo de Cooperação, a parceria é estabelecida pela administração pública com organizações da sociedade civil para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco que, entretanto, não envolvam a transferência de recursos financeiros.
Outras tantas questões referentes ao Terceiro Setor permaneceram tuteladas pela legislação esparsa ou simplesmente não foram tratadas, ensejando crítica a esse respeito, e mantendo, nesse particular, as históricas fragilidades em matéria tributária, trabalhista, dentre outras.
No entanto, é importante destacar que houve inegável avanço no procedimento de seleção das organizações da sociedade civil, por meio da instituição do processo próprio denominado de “chamamento público”, disciplinado nos arts. 23 a 32, da Lei nº 13.019/2014.
Vale dizer que o tema relativo ao processo de escolhas das instituições parceiras vem merecendo especial atenção das Cortes de Contas, que, por vezes, revela malversação de recursos públicos, nem sempre por incompetência apenas da organização da sociedade civil (fruto de uma má escolha governamental), mas, também, corrupção propriamente dita.
A Lei nº 13.019/2014 demonstra uma preocupação do legislador com o acesso democrático da sociedade civil ao Estado, regulando e melhor filtrando o acesso destes ao Poder Público, numa perspectiva de interesses convergentes, com evidente ganho social, muito distante da relação contratual clássica, onde o parceiro privado visa o lucro.
Decorrente dessa perspectiva, percebe-se a busca por tornar o processo de prestação de contas mais simples, e, consequentemente, mais acessível a inúmeras instituições, embora o artigo 63 ainda dependa de regulamentação.
Há ainda divergência quanto ao alcance da nova legislação ante a seu pretenso caráter nacional, e a competência constitucional dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, o que abriria margem para mitigação de dispositivos insertos na norma, sob pena de invasão de competência.
A instituição do novo arcabouço aponta não apenas para aperfeiçoamento dos mecanismos de compliance pelo poder público, mas, também, eleva o padrão exigido para o parceiro da sociedade civil organizada, obrigando uma profissionalização de seus recursos humanos, visando evitar problemas na continuidade de sua existência.
A recente norma veio em hora boa, na medida em que a crise fiscal aponta para a necessidade de retornar a soluções mais eficazes, sendo inegável o papel que, há muito tempo, as organizações da sociedade civil vêm exercendo.
Resta evidenciado o reconhecimento da relevância do Terceiro Setor como complementar às atividades do Estado, corroborado pelo Marco Legal que, finalmente, traz norma própria e adequada às organizações da sociedade civil.
5 Conclusão
Ao longo do presente artigo, fez-se um histórico da evolução estatal, seja no que concerne ao seu papel de agente fomentador do desenvolvimento econômico, como também na condição de viabilizador, direto ou indireto, da concretização de direitos sociais.
É certo que o ente estatal, partindo de uma premissa de concentração do poder político, sempre foi visualizado, ao longo da história, como o principal gestor do meio social e, ao mesmo tempo, responsável por impulsionar o desenvolvimento, em todas as suas vertentes, da respectiva sociedade, por ele representada.
Tal feição foi, por longos anos, evidenciada através de estados absolutistas, totalitários, intervencionistas ou, simplesmente, reguladores e estimuladores da atividade econômico-produtiva.
Após a Segunda Grande Guerra Mundial, oportunidade em que se tornaram evidentes os desgastes econômicos enfrentados pelas principais nações, sobretudo as europeias, surge a necessidade de transformação do modelo estatal, deixando ele de ser um mero centralizador de poder político e, ao mesmo tempo, impulsionador, ativo ou passivo, da atividade econômica, passando, a partir de então, a ocupar-se em proporcionar o bem-estar dos administrados, no sentido de se responsabilizar pela concreção dos direitos fundamentais, notadamente aqueles de cunho social.
Surge, dessa forma, o intitulado Welfare State ou Estado do Bem-Estar social, derivado não apenas de uma progressiva derrocada do capitalismo de mercado, cada vez mais relacionado à centralização do poder político, mas, principalmente, decorrente de reiterados movimentos sociais internos, objetivando o atendimento dos seus direitos constitucionalmente assegurados.
Ocorre que o Estado do Bem-Estar social, em que pese a necessidade do seu advento e por mais que tenha atendido aos anseios coletivos, não encontrou, no decorrer dos anos, condições objetivas de se consolidar como modelo único, porquanto a grande maioria dos estados não foi capaz de exercer, de forma simultânea, competências políticas, administrativas, econômicas e, ainda, implementar políticas sociais.
Em verdade, a gama de atribuições imputadas ao ente estatal impediu que este continuasse, de forma isolada, o atendimento dos anseios sociais. Não se quer dizer, todavia, que o estado, diante do acúmulo de funções, deixou à margem a sua nova tendência de promoção e efetivação dos direitos sociais. Doravante, deixa de ser o único ator responsável pela promoção do bem-estar social, vindo a dividir tal atribuição com o setor privado e demais setores da sociedade civil.
Especificamente no cenário nacional, a partir dos anos 1990, com a perspectiva de implementação do modelo gerencial de estado, a concepção de Welfare State se torna mitigada, tendo em vista que o ente político estatal se desincumbe de promoção isolada do bem-estar social, passando a dividir tal tarefa com entidades empresariais, além de outras integrantes do Terceiro Setor, as quais, em decorrência de estratégias de gestão ou de consciência socioambiental, assumem a implementação e gestão de políticas sociais, obviamente com a chancela e supervisão do poder público.
Denota-se, portanto, a importância das entidades privadas e do terceiro setor no remodelamento do Estado do Bem-Estar social, na medida em que passam a funcionar como parceiros do ente público, na consecução de objetivos sociais, os quais, em momento anterior, eram de responsabilidade, unicamente, do Estado.
Para tanto, mostra-se imperiosa a existência de transparência e identidade de objetivos, entre o Estado e as entidades privadas incumbidas da promoção social, de modo a proporcionar relações mais probas e eficazes, sobretudo na aplicação dos recursos públicos, direcionados a tal finalidade.
Clara está a importância das ações do Terceiro Setor, mormente no Estado brasileiro que não consegue atender às demandas sociais, sempre crescentes, culminando no Marco Legal, que se torna o principal instrumento, em que pese algumas críticas, a evidenciar o forte papel que exerce o Terceiro Setor “pós-Welfare State”.
Bacharel em Direito, Advogado, Especialista em Políticas e Estratégias pela UNEB e Mestrando em Direito, Governança e Políticas Públicas da Universidade Salvador – UNIFACS
Bacharel em Direito, Advogado, Especialista em Gestão Governamental e Gestão Prisional e Mestrando em Direito, Governança e Políticas Públicas da Universidade Salvador – UNIFACS.
Bacharel em Direito, Advogado e professor universitário, Especialista em Direito Público pela UCSal e Mestrando em Direito, Governança e Políticas Públicas da Universidade Salvador – UNIFACS
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