A desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária e a função social da propriedade na Constituição Federal de 1988: a dimensão ambiental

Resumo: Este trabalho é sobre a relação entre o direito ambiental e o direito agrário.  Apresar de parecerem temas de universos distintos, ambos versam sobre o mesmo objeto: a terra. Logo, detêm intrínseca relação. No presente estudo, pretende-se defender que o descumprimento da dimensão ambiental da função social da propriedade, por si só, autoriza o manejo da ação de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, ainda que a o imóvel rural seja produtivo sob o ponto de vista econômico.

Palavras-chave: Propriedade. Função social. Dimensão ambiental. Desapropriação-sanção.

Sumário: Introdução. 1 – A Evolução do Conceito de Propriedade. 2 – A Teoria dos Conceitos Fundamentais de Hohfeld e as Diversas Facetas do Direito de Propriedade. 3 – A Propriedade e o Meio Ambiente. O descumprimento da dimensão ambiental da função social da propriedade, por si só, autoriza a Desapropriação Sanção. Conclusão. Referências.

Introdução

No presente estudo, pretendeu-se abordar um tema atual que envolve o Direito Agrário e o Direito Ambiental. Almejou-se elaborar estudo defendendo que o descumprimento da dimensão ambiental da função social da propriedade, por si só, autoriza a Desapropriação Sanção, ainda que o imóvel seja produtivo sob o ponto de vista meramente econômico.

O tema acima referido é um assunto novo e pouco conhecido na doutrina e carente de discussão na academia. Porém, possui repercussão prática de inegável valor.

Assim, espera-se que a presente dissertação possa trazer significativa contribuição não só para as teorias do Direito Ambiental e Agrário, mas também para a prática dos tribunais, pois buscou-se neste estudo apresentar uma interpretação da Constituição mais condizente com o valores e princípios que estão na base da comunidade política que ela institui.

Além de trazer conceitos novos e certa familiaridade ao tema, intentou-se no transcurso deste estudo demonstrar o quanto pode ser produtivo para o Estado e para a sociedade conjugar os conhecimentos de Teoria Geral do Direito, Direito Constitucional, Direito Agrário e Direito Ambiental em uma só aplicação. Interdisciplinariedade, além de evitar equívocos no trato da coisa pública, pode garantir uma visão mais holística dos problemas e, quem sabe, garantir uma melhor interpretação da compreensão da propriedade, do meio ambiente e do próprio cidadão.

1 – A Evolução do Conceito de Propriedade.

Para efeito deste trabalho, não se pretende retroagir ao conceito de propriedade adotado pelas civilizações antigas. Não se pretende retornar ao conceito de propriedade adotado pelo Código de Hamurabi ou pelo Direito Romano. Nestas reflexões, é suficiente afirmar que o conceito de propriedade sofreu profunda alteração no século passado.

Com efeito, a propriedade privada tradicional, concebida nas revoluções liberais burguesas do século XVIII, perdeu muito do seu significado como elemento destinado a assegurar a subsistência individual e o poder de autodeterminação como fator básico da ordem social.

Gilmar Ferreira Mendes (2009, p. 467), na esteira de Konrad Hesse, observa que a base de subsistência e do poder de autodeterminação do homem moderno não é mais a propriedade privada, em sentido tradicional, mas o próprio trabalho e o sistema previdenciário e assistencial instituído e gerido pelo Estado.

 Essa evolução fez com que o conceito constitucional de direito de propriedade se desvinculasse, pouco a pouco, do conteúdo eminentemente civilístico de que era dotado.

Ainda sob o império da Constituição de Waimar, passou-se a admitir que a garantia do direito de propriedade deveria abranger não só a propriedade sobre bens móveis ou imóveis, mas também os demais valores patrimoniais, incluídas aqui as diversas situações de índole patrimonial, decorrentes de relações de direito privado ou não (MENDES, 2009, p. 467).

Essa mudança de concepção acerca da função da propriedade foi fundamental para o abandono da ideia da necessária identificação entre o conceito civilístico e o conceito constitucional de propriedade.

E foi nesse contexto que se cunhou o conceito de função social da propriedade. O professor Inocêncio Mártires Coelho (2009, p. 1.407) faz a seguinte observação a respeito do princípio da função social da propriedade:

“Para se ter uma ideia da importância que esse princípio assumiu no mundo contemporâneo, basta se ter presente o que diz o art. 14.2 da Constituição da Alemanha – “a propriedade obriga” -, um postulado que configura sem sombra de dúvida, a mais radical contraposição ao dogma individualista que reputava sagrado o direito de propriedade e assegurava ao seu titular, em termos absoluto, o poder de usar, gozar e dispor dos seus bens – jus utendi, fruendi et abutendi – , sem nenhuma preocupação de caráter social.” 

A Constituição de Weimar foi a primeira constituição de nosso tempo a conter um bloco normativo especificamente destinado a regular a atividade econômica, no que veio a ser imitada por diversas constituições que se lhe seguiram, como a nossa Constituição de 1934.

Em nosso país, o princípio da função social da propriedade adquiriu status constitucional com a já mencionada Constituição de 1934, cujo art. 113, item 17, na linha de nossa tradição jurídica, continuou a assegurar o direito de propriedade, porém com a ressalva de que, doravante, ele não poderia ser exercido contra o interesse social ou coletivo.

A partir de então, o valor função social da propriedade incorporou-se de vez à nossa experiência constitucional, salvo a Constituição outorgada de 1937, que foi silente a esse respeito. Em nossa Constituição de 1988, esse princípio figura em pelo menos quatro dispositivos, a saber: art. 5º, XXII; art. 170, III; art. 182, § 2º e no caput do art. 186.

O professor Inocêncio Mártires Coelho (2009, p. 1.408) nos fala de uma tensão, de um aparente conflito entre o núcleo essencial do direito de propriedade e a submissão do seu exercício ao interesse social, ao afirmar que:

“Posta a questão nesses termos, evidencia-se desde logo ou prima facie uma tensão, para não dizer um conflito – porque de conflito efetivamente não se trata -, entre o núcleo essencial do direito de propriedade e a submissão do seu exercício ao interesse social, um e outro dotados de igual proteção constitucional, porque inseridos – no art. 5º, XXII e XXIII, da Constituição de 1988 – entre os direitos e garantias fundamentais”.

Segundo COELHO (2009, p. 1.409), não tendo a Constituição de 1988 estabelecido nenhuma hierarquia entre os valores consubstanciados no direito de propriedade e na sua função social, resta ao intérprete/aplicador resolver seus eventuais “conflitos” à luz do caso concreto, mediante judiciosa ponderação, optando, afinal, por aquele cuja prevalência, nas circunstâncias, conduzir a uma decisão correta e justa, e assim, realizar a justiça em sentido material como referente fundamental da ideia de direito.

2 – A Teoria dos Conceitos Fundamentais de Hohfeld e as Diversas Facetas do Direito de Propriedade.

Hohfeld elaborou a sua Teoria dos Conceitos Fundamentais tendo como principal objetivo gerar maior certeza na interpretação jurídica do dia-a-dia dos profissionais do Direito.  O problema principal identificado por ele é o fato de as questões jurídicas complexas serem tratadas de forma muito simplória (FERREIRA, 2007, p. 35).

Hohfeld observou que, além dos problemas e equívocos oriundos da linguagem, outro obstáculo que surge para o entendimento claro, a correta utilização e a solução dos problemas jurídicos pelos operadores do Direito é o fato de a maioria destes reduzir as relações jurídicas a duas meras categorias, quais sejam, direitos contrapostos a deveres jurídicos (direitos versus deveres). Consideram que estas duas categorias seriam suficientes até mesmo para a análise das relações jurídicas mais complexas, entendimento claramente equivocado (FERREIRA, 2007, p. 37)

Hohfeld então vê como única solução do problema a criação de um esquema que contraponha e correlacione as várias relações jurídicas fundamentais sob o viés de apenas dois indivíduos (relação bipartite), exemplificando subsequentemente o escopo individual de atuação de cada relação e sua aplicação a casos concretos. Assim, com a criação de mais três categorias de relações jurídicas e com a análise das relações jurídicas de forma singular, o autor resolve o problema da conceituação dos vocábulos, dando maior precisão a qualquer análise (FERREIRA, 2007, p. 37).

 Assim, no esquema de Hohfeld, Direito (pretensão – Claim) seria correlato de Dever e oposto de Ausência de Pretensão; Privilégio (Liberty) seria correlato de Ausência de Pretensão e oposto de Dever; Poder (Powers) seria correlato de Sujeição e oposto de Incompetência; e Imunidade (Immunities) seria correlato de Incompetência e oposto de Sujeição.

Os “direitos Hohfeldianos” não operam individualmente, mas em conjunto. Por exemplo: o direito à livre manifestação do pensamento (discurso) mostra-se, no esquema de Hohfeld, uma conjugação de pretensões, liberdades e imunidades. Os direitos a pretensões consistem em deveres alheios de não censurar ou interferir no exercício individual do direito à manifestação de pensamento; liberdades incluem a liberdade de se expressar de modos diferentes (ou não se expressar, tão-só); e imunidades protegem contra a alteração desses direitos a pretensões e liberdades (HAREL, 2003, p. 07-08).

A teoria de direitos de Hohfeld pressupõe que direitos tem facetas diferentes e que uma teoria sobre direitos necessita apenas enfatizar certos aspectos destes, sem pretender oferecer uma caracterização unitária apta a servir igualmente o jurista da Roma antiga e o ativista político do século XXI (HAREL, 2003, p. 04).

Um exemplo de direito em sentido amplo que incorpora todas as relações do esquema hohfediano seria o direito de propriedade. O direito de propriedade segundo Hohfeld é um congregado de relações e possui todas as relações dos conceitos fundamentais do Direito. 

Por exemplo: Direito (pretensão) correlato a dever – se alguém invadir uma propriedade o dono da propriedade pode acionar a justiça para expulsar o invasor, pois tem essa pretensão, esse direito, enquanto que o invasor tinha o dever de permanecer fora da propriedade alheia; privilégio correlato a ausência de pretensão – quando o dono de uma propriedade adentra em suas próprias terras não há nada que um terceiro possa fazer para expulsá-lo ou impedi-lo de fazer e isto o proprietário tem o privilégio (liberdade) de adentrar em sua propriedade e o terceiro tem um não – direito, ou seja, a ausência de pretensão e não há nada que possa fazer para expulsar ou impedir o proprietário de exercer seu privilégio; poder correlato a sujeição – o proprietário tem o poder de alienar sua propriedade e quanto a isso todas as outras partes terão que se sujeitar a tal transferência de direitos; imunidade correlata a incompetência –  se um terceiro tentar vender as terras de um proprietário está imune a tal ato, pois o terceiro não tinha poder para tal, ou seja, era incompetente para a realização do negócio jurídico. Por sua vez, os conceitos opostos podem ser deduzidos a partir dos conceitos correlatos acima mencionados (FERREIRA, 2007, p. 54).

A teoria de Hohfeld abriu espaço para se romper com a concepção clássica de que um direito existe se e somente se um dever está especificado, e mais particularmente, um sujeito constrangido a esse dever. Essa concepção foi refutada por autores contemporâneos que arguem que direitos são logicamente anteriores a deveres, e mais especificamente, direitos proporcionam a base para a imposição de deveres. Como consequência, um direito pode ser afirmado sem que se especifiquem quem são os constrangidos a deveres, e até mesmo sem que se esclareça a natureza dos deveres cujo adimplemento será necessário para se honrar, bastando afirmar que certos deveres, até então não especificados, precisam ser impostos, caso se queria honrar um direito (HAREL, 2003, p. 17).

Por exemplo, ao estabelecer que uma criança tem o direito à educação, aquele que o faz não precisa se comprometer em identificar se é o Estado ou a família que assumirá o correspondente dever; nem se comprometerá em dizer se este direito será adimplido mediante o ensino de línguas, ou estudos bíblicos. Assim, direitos devem ser descritos como bases para deveres, preferencialmente, a serem colocados em par com deveres. Essa perspectiva explica “o aspecto dinâmico dos direitos”, ou seja, seu inerente potencial para criar novos deveres e novos sujeitos passivos. Ela também explica a inerente habilidade de os direitos manterem sua identidade ainda quando os deveres e respectivos sujeitos passivos são alterados para acomodar novas circunstâncias (HAREL, 2003, p. 17).

É nesse contexto que se inserem os direitos fundamentais, os quais, por serem pautas axiológicas, são por natureza conceitos abertos, indeterminados e plurissignificativos e estão sempre exigindo complementação por parte do operador do direito para poderem ser concretizados.

O direito de propriedade, como vimos acima, possui diversas facetas. A partir dele diversas posições jurídicas podem ser deduzidas e uma dessas posições é a que o condiciona ao cumprimento da função social da propriedade, que se desdobra na subfunção econômica (produtividade), subfunção ambiental, função trabalhista e subfunção bem-estar (art. 186, CF/88).

É por não ter em conta essas facetas do direito de propriedade, que muitos operadores do direito, açodadamente, identificam antinomia entre a norma contida no art. 185, II, e a norma contida no art. 186, ambos da constituição Federal.

No próximo Capítulo, iremos nos ater mais pormenorizadamente a essa questão, ao analisarmos a função social da propriedade em sua dimensão ambiental e as consequências jurídicas que ela gera no campo de Direito Agrário e do Direito Ambiental.

3 – A Propriedade e o Meio Ambiente. O descumprimento da dimensão ambiental da função social da propriedade, por si só, autoriza a Desapropriação Sanção.

O art. 184 da Constituição Federal estabelece quais são as hipóteses ensejadoras da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. Confira-se:

“Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.”

Como se vê, o dispositivo constitucional acima transcrito atribui a competência da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária à União; delimita em que hipótese tal procedimento judicial será possível: quando o imóvel rural não atender à sua função social, e determina o pagamento de justa indenização prévia. Traz, portanto, em apenas um artigo, expressa a competência, a hipótese legal e a contrapartida a ser prestada pelo Estado na desapropriação por interesse social.

Da mera leitura do dispositivo em destaque, logo se percebe que se trata de uma desapropriação sanção, pois a percepção de uma indenização, a ser quitada ao longo de um prazo decorre da ideia do descumprimento de uma obrigação imposta constitucionalmente, a saber, a função social da propriedade.

Não há, portanto, como negar o caráter sancionador da desapropriação social. Sobre esse ponto, José Afonso da Silva (2002, p. 796) ensina que “A sanção para o imóvel rural que não está cumprindo a sua função social é a desapropriação por interesse social (…)”.

A Constituição Federal de 1988 traz várias referências à função social da propriedade. Além de estipulá-la como princípio da ordem econômica, a nossa Carta Política trouxe inovação importante em relação às anteriores ao insculpir esse princípio no rol dos direitos fundamentais do art. 5º (inciso XXIII). A nova ordem constitucional deixou claro que o princípio da função social passou a integrar o próprio conteúdo do direito de propriedade, como elemento dinâmico de sua estrutura que condiciona e confere legitimidade ao seu exercício.

Não goza a função social da propriedade de uma feição negativa; não tem o sentido de estabelecer limites ao direito de propriedade. Ao revés, assume uma feição do tipo promocional, típica dos princípios constitucionais impositivos, permitindo inclusive o reconhecimento da inconstitucionalidade de leis que o ignorem.

Na opinião de José Afonso da Silva (2002, p. 275), a função social da propriedade “constitui um princípio ordenador da propriedade privada e fundamento de atribuição desse direito, de seu reconhecimento e de sua garantia mesma, incidindo sobre seu próprio conteúdo”.

No tocante à propriedade rural, o constituinte de 1988 também inovou ao trazer para a Carta Magna os requisitos da função social dos imóveis rurais, fixando-os no art. 186. O referido dispositivo legal conferiu estrutura ao conceito de função social, deixando claro que o seu aperfeiçoamento reclama o atendimento simultâneo não somente de valores ligados à mera produtividade econômica, mas também ao meio ambiente, ao trabalho e ao bem-estar social. Eis o teor do referido dispositivo:

“Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I – aproveitamento racional e adequado;

II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.”

Verifica-se, portanto, que esses quatro elementos operam como subfunções que compõem o núcleo da função social da propriedade, quais sejam: a subfunção socioeconômica (Art. 186, I), a subfunção socioambiental (Art. 186, II), a subfunção trabalhista (Art. 186, III) e a subfunção bem-estar (Art. 186, IV).

Ao qualificar a dimensão ambiental, o inciso II do art. 186 o desdobra em duas condicionantes: a) a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e; b) a preservação do meio ambiente.

O primeiro aspecto da função ambiental está diretamente relacionado ao “aproveitamento” da terra, referido no inciso I. Na dimensão ambiental, o conceito de racionalidade vai além e trata também da utilização adequada dos recursos naturais disponíveis, já que sua conservação também contribui para o cultivo da terra, sempre realçando que sua exploração deve observar a vocação natural da terra.

No que concerne ao segundo aspecto da dimensão ambiental, ficou ratificada a preocupação do legislador constituinte com o meio ambiente equilibrado, direito fundamental das presentes e futuras gerações e que recebeu da Constituição Federal de 1988 um capítulo inteiro dedicado em seu favor (Capítulo VI).

Assim, qualquer uso da propriedade que contrarie essa regra de conduta, configurará um ilícito passível de ser mensurado pelo órgão federal executor da reforma agrária e capaz de ensejar a desapropriação-sanção. Nesse sentido, é de se observar que o art. 225, § 3º da CF/88 estipula que as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores a sanções penais e administrativas.

Desse modo, considerando que a desapropriação para fins de reforma agrária tem natureza de sanção, resta patente que o dispositivo retratado está em sintonia com as disposições da função social da propriedade, autorizando não só a desapropriação de imóveis que promovam a degradação ambiental, mas também o abatimento do valor do dano ambiental provocado do justo preço a ser pago ao proprietário infrator.

Logo, não há como negar que a própria Constituição reclama por uma interpretação da propriedade que conjugue a produtividade com a preservação do meio ambiente.

No entanto, alguns operadores do Direito, açodadamente, ao nosso ver, têm feito uma interpretação rasa do art. 185, II, da Constituição Federal, a eles parecendo que a função social da propriedade e produtividade seriam coisas distintas, e em razão disso, defendem que somente seriam passíveis de desapropriação-sanção as áreas improdutivas do ponto de vista economicista. Para nós, é clara a conclusão de que não pode haver produtividade sem função social, porquanto é a produtividade apenas uma das condicionantes da função social da propriedade.

Em nossa opinião, com bem observou Carlos Frederico Marés (2002, p. 39), a primeira interpretação atira às traças a definição escrita em ouro da função social da propriedade. Separar a ideia de função social da ideia de produtividade significa desconsiderar toda a doutrina criada acerca da função social da propriedade, e, ainda mais grave que isso, significaria reduzir o art. 186 da Constituição Federal a retórica não escrita.

A nossa posição está calcada em interpretação sistemática da Constituição Federal. Uma interpretação que leve em conta a estrutura principiológica do texto constitucional. Em tal abordagem, quando a Constituição afirma ser insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária a propriedade produtiva (art. 185, II, CF/88), está elevando o conceito de produtividade à ideia de razão humana e social. Daí que não pode ser considerada produtiva uma propriedade que, ainda que gere lucros imediatos e imensos, não aproveite racional e adequadamente o solo e os recursos naturais, não proteja o meio ambiente, não observe as disposições que regulam as relações de trabalho, nem favoreça o bem estar dos trabalhadores e proprietários (PINTO JÚNIOR; FARIAS, 2005, p. 15).

Em verdade, trata-se de um conflito aparente entre a norma contida no art. 185, II, e a norma contida no art. 186, ambos da Constituição Federal, que só pode ser resolvido com recurso à interpretação sistemática e ao conjunto de princípios que estão na base da Constituição, não se podendo olvidar que a moderna hermenêutica constitucional exige que, na interpretação do Direito, o ordenamento jurídico seja considerado como um todo complexo, composto por regras e princípios, e que a integração isolada de um norma pode deturpar seu verdadeiro significado, até mesmo podendo resultar num sentido que possa ir contra os fins da ordem jurídica.

Em primeiro lugar, deve-se ter em conta as normas contidas no art. 7 da Constituição Federal, com todos os seus 34 incisos, que tratam dos direitos dos trabalhadores rurais, cuja observação é requisito da função social da propriedade (art. 186, III, CF/88). Também, deve-se ter em conta todo o Capítulo VI da Constituição Federal, que trata do meio ambiente e alça a preservação do meio ambiente como um direito fundamental de todos em seu art. 225, caput (elementar da função social da propriedade, art. 186, II, CF/88). Da mesma forma, deve-se ter em mente o disposto no art. 193 da Constituição Federal, que elege o bem estar social como objetivo da ordem social, que, por sua vez, é subfunção da função social da propriedade (art. 186, IV).

Ademais, é importante notar que o art. 186 da Constituição Federal estrutura o conceito de função social da propriedade a partir de um quadripé, para cujo aperfeiçoamento reclama simultaneamente não só valores ligados à produtividade, mas um componente referido à produtividade (inciso I), um referido ao meio ambiente (inciso II), um referido ao trabalho (inciso III) e um referido ao bem estar (inciso IV), operando todos nos moldes de sub-funções sociais da propriedade, sem a presença de cada qual a função social não se aperfeiçoa como conceito harmônico ((PINTO JÚNIOR; FARIAS, 2005, p. 23).

Dessa forma, na linha dos ensinamentos de PINTO JÚNIOR e FARIAS (2005, p. 17), a desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária de imóveis rurais que não estejam cumprindo a função social da propriedade é imperativo constitucional, decorrente do art. 184 da CF/88. Em outras palavras, de acordo com o art. 186 da própria Constituição Federal, o imóvel que deverá ser desapropriado e destinado para a reforma agrária será aquele que, em conjunto ou separadamente, não tenha aproveitamento racional e adequado, não apresente utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e nem preserve o meio ambiente, não observe as regulamentações trabalhistas, e cuja exploração não favoreça o bem estar dos proprietários, ainda que seja produtivo do ponto de vista econômico.

Nesse contexto, é de se perguntar: como poderia, então, o art. 185 da CF/88 ignorar tais disposições e autorizar a proteção de uma propriedade rural que, embora sendo produtiva do ponto de vista economicista, desconsidere a legislação ambiental, a legislação trabalhista e esteja em desacordo com o bem estar dos proprietários e dos trabalhadores?

Conclusão

Portanto, a interpretação sistemática do texto constitucional e a consideração do Direito como integridade, na linha da teoria principiológica de Dworkin, leva à conclusão de que deve necessariamente sofrer desapropriação a propriedade cuja exploração não respeite a vocação natural da terra, degradando o seu potencial produtivo, que não mantenha as características próprias do meio natural, que agrida a qualidade dos recursos ambientais, não contribuindo para a manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade, que desrespeite as relações de trabalho, que não seja adequada à saúde e à qualidade de vida dos que nela laboram e das comunidades vizinhas, ainda que seja produtiva do ponto de vista estrito da economia.

 

Referências
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INCRA. Disponível na URL: http://www.incra.gov.br/portal/.

Informações Sobre o Autor

José Domingos Rodrigues Lopes

Graduado em Direito pela Universidade de Brasília – UnB Pós-Graduando em Direito Público pela mesma Universidade e Procurador Federal atuando no STJ e STF na área de Desapropriação e Desenvolvimento Agrário


Equipe Âmbito Jurídico

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