Denis Augusto de Oliveira[1]
Resumo: Este ensaio tem o intuito de trazer à baila um tema que envolve o mais fundamental de todos os direitos – o direito de viver. A declaração universal dos direitos do homem trata do direito à vida de maneira sagrada e declara que qualquer direito – quando em colisão com o direito à vida perde sua essência de fundamental. Ao partir dessa premissa de que todos os direitos decorrem do direito à vida, surge a ideia central proposta neste artigo, que trata do direito de morrer como parte integrante do direito à vida e não contrário a ela. A bioética, ou a ética da vida, surgiu como apoio à biotecnologia, ciência em constante evolução que dispõe de técnicas, cada vez mais sofisticadas, e que tem por objeto curar doenças e aliviar sofrimentos, mas que também podem interferir de forma, talvez duvidosa, no nascer e no morrer. O direito de morrer tratado aqui se refere tão só ao enfermo fora da expectativa de cura e em situação de prolongamento artificial da vida, bem como a aplicação do princípio da autonomia como forma de garantir a integral efetividade do mais elementar de todos os direitos humanos: o direito de viver.
Palavras-chaves: Direitos Humanos. Direito à Vida. Direito de Morrer. Bioética. Autonomia. Prolongamento Artificial da Vida.
Abstract: This essay aims to bring up a theme that involves the most fundamental of all rights – the right to live. The universal declaration of the rights of man deals with the right to life in a sacred way and declares that any right – when in collision with the right to life loses its essence as fundamental. Starting from this premise that all rights derive from the right to life, the central idea proposed in this article, which deals with the right to die as an integral part of the right to life and not contrary to it, arises. Bioethics, or the ethics of life, has emerged as a support for biotechnology, a constantly evolving science that has more and more sophisticated techniques that are intended to cure illnesses and alleviate suffering, but which can also interfere in a way that is perhaps dubious , not to be born and to die. The right to die treated here refers only to the patient outside the expectation of cure and in a situation of artificial prolongation of life, as well as the application of the principle of autonomy as a way to guarantee the integral effectiveness of the most basic of all human rights: the right to live.
Keywords: Human Rights. Right to life. Right to Die. Bioethics. Autonomy. Artificial Life Extension.
Sumário: 1. Introdução; 2. O Direito Fundamental à Vida; 2.1. A dignidade do ser humano; 2.2. O princípio da autonomia e a decisão substituta; 3. Breves Considerações acerca da estreita relação entre bioética e biotecnologia; 3.1. Os limites da interferência da tecnologia nas condições naturais de cada ser humano: nascer e (ou) morrer; 3.2. O direito de morrer com dignidade como parte integrante do direito à vida; 4. Conclusão; Referências.
Introdução
Este trabalho tem como intenção trazer à discussão o direito de cada cidadão de morrer de maneira digna, inspirado no princípio da bioética da autonomia da vontade, que tem por objeto garantir a escolha consciente de cada indivíduo, nas questões que se referem a terapias médicas de prolongar a vida de maneira estritamente artificial. É de mencionar que o direito de morrer tratado neste ensaio se dará tão apenas na esfera das questões de prolongamento artificial da vida em doentes considerados, medicamente, fora de qualquer expectativa de cura, qualquer outra forma de utilização deste instituto, não será objeto do presente trabalho, que também não se norteará por discussões de cunho religioso ou espiritual.
Os inegáveis avanços da medicina são evidências de uma era que requer uma nova postura construída sobre sólidos alicerces morais e, sobretudo, éticos porque a mesma tecnologia que se apresenta como uma possível solução de cura e redução de sofrimento, pode também interferir de maneira deveras atrevida no direito de nascer e no direito de morrer de cada indivíduo. A bioética – ou ética da vida – surge com o objetivo de (re)modelar as expectativas científicas que utilizavam seres humanos como objeto de pesquisa, com a intenção de transformar essa prática em experiências fundadas nos princípios morais e dignos de todo ser humano. Desde então, a ciência da moral tem como missão “mediar” os avanços tecnológicos da medicina e sua aplicação em seres humanas. Um dos pilares da bioética é o princípio da autonomia da vontade, que entende o doente como ser humano capaz de decidir pelo início, pela mantença e pela interrupção do tratamento médico. Ressalta-se que o indivíduo somente poderá usufruir integralmente de sua qualidade de “ser humano” quando seus direitos fundamentais forem assegurados.
A atual sociedade vive uma época cada vez mais de (des)construção de paradigmas e de conceitos. Inegavelmente o homem evoluiu no seu intelecto, porém, ainda existe muito a evoluir, especialmente na área dos direitos fundamentais, que inevitavelmente formarão a base das sociedades futuras.
Na declaração universal de direitos do homem, os direitos fundamentais não são proclamados, eles são reconhecidos, o que pressupõe sua pré-existência. São direitos inerentes a cada ser humano, que nasce com o homem e, por isso, são invioláveis, atemporais e universais. Os direitos fundamentais têm como sinônimos os direitos naturais, individuais, civis, de liberdade, humanos ou liberdades públicas.[2]
Algumas características que baseiam os direitos fundamentais são a liberdade (como valor humano básico), a pré-existência (não dependem de lei que os crie), a eficácia erga omnes (são direcionados a todos os seres humanos), a universalidade (são idênticos para todos), a proteção contra o Estado ou status negativus (protege o indivíduo contra ato ofensivo do próprio Estado ou de terceiros) e também são inalienáveis, imprescritíveis e intributáveis.[3]
É de destacar entre todos os direitos fundamentais o direito à vida, que dá razão de existir a todos os demais direitos. O direito à vida é a base dos direitos fundamentais e certamente o mais significativo, já que sem ele nenhum outro pode existir.
A cristandade concebe a vida como sendo um dom e não um poder absoluto, mas limitado – um poder ministerial, de administração e tutela, “reflexo concreto do domínio único e infinito de Deus”.[4] Para a teologia a vida é sagrada pelo fato de pertencer “em parte” ao indivíduo e “em parte” ao Criador. Por sua vez a Filosofia leva em conta a moral, a natureza humana para justificar a inviolabilidade da vida. Enquanto dever institucional, a vida é inviolável porque não é um bem disponível, daí a tipificação penal para quem a subtrai de outrem.
Assim, o entendimento teológico, filosófico e legal tem em comum o sagrado da vida enquanto direito natural, aquele que nasce com cada ser humano e dele é indissociável, onde o dever de proteção e garantia deve se dar vários aspectos, sejam elas públicas, civis, religiosas, etc.
Destarte, para o ordenamento jurídico, a vida é um direito/dever tutelado pelo Estado, desde a concepção até a mais remota possibilidade de se fazer presente. O direito à vida é o que há de mais valioso em qualquer ordenamento jurídico, até porque sem ele qualquer direito inexiste. No entanto, na sociedade hodierna, o direito de viver não pode mais ser interpretado apenas como “deixar viver”, essa ideia é muito mais larga. O direito à vida compreende uma existência digna e passível de ser usufruída. Ver cada um como cidadão, investido de direitos e de deveres é o modo que parece refletir melhor o conceito de direito à vida.
1.1. A dignidade do ser humano
O conceito preponderante atribuído à dignidade teve uma evolução que coincide com a evolução do próprio homem. Antigamente, a dignidade era privilégio dos cristãos; posteriormente, era “distribuída” de acordo com a posição social de cada indivíduo. Posteriormente, a dignidade passa a ser vista como algo que é intrínseco à pessoa e era o que o diferenciava do ser não humano, até evoluir ao pensamento hodierno de que toda a pessoa é dotada igualmente de dignidade e que está diretamente ligada a noção de liberdade de cada indivíduo.
Immanuel Kant[5], no século XVII, dá início ao conceito de dignidade que pode ser compreendido universalmente e que até os dias atuais parece fundamentar as bases teóricas da doutrina dispostas a dar azo ao tema. Em sua principal obra “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, Kant diz que “No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade.[6]” Na pós-modernidade, onde estamos inseridos, o pensamento de Kant sofre uma (re)leitura com o objetivo de esgarçar o conceito de dignidade. Na concepção do direito não é menos difícil fazer entender o que significa dignidade, no entanto, a lista de afrontas à dignidade de cada ser humano é assaz ampla e facilmente compreendida, independente da capacidade de cada um. É precisamente quando temos os piores sofrimentos humanos (torturas, castigos degradantes, violências sexuais, privação de alimentos etc.) quando advertimos melhor, por contraste, o que significa a dignidade da pessoa[7].
O princípio da dignidade da pessoa está umbilicalmente ligado aos direitos fundamentais, além de lhes servir de fundamento à construção da ideia de “direitos natos”. Nas palavras de Baez[8]:
As Declarações de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos1 e da Organização das Nações Unidas,2 ambas de 1948, reconheceram, em seus preâmbulos, um valor comum que deveria ser utilizado como base de todos os direitos ali consignados, qual seja, a dignidade humana,3 que passou a ser reconhecida como o valor essencial e pedra angular de todos os direitos ali enunciados.4 No mesmo sentido, a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia também reconhece “valores indivisíveis e universais da dignidade do ser humano, da liberdade, da igualdade e da solidariedade” como base dos direitos que declara.5 Na seara filosófica, as diversas teorias ocidentais que buscam fundamentar os direitos humanos6 também relacionam, por diferentes argumentos e caminhos, que esses direitos são formas de realização da dignidade humana, colocando em relevo que é esse o elemento ético nuclear dessa classe de direitos, na visão ocidental, pois eles têm como raiz o valor intrínseco à dignidade encontrada nos seres humanos.
A dignidade está projetada na forma de ver o sujeito como um fim em si mesmo. Indo de encontro a esse pensamento está a submissão do indivíduo à vontade de terceiros, no conceito kantiano chamado de heteronomia.
Baertschi[9] explica a dignidade em dois sentidos diferentes, mas ambos de extrema relevância, o primeiro está na capacidade do indivíduo de ver a si próprio com respeito: o primeiro sentido é pessoal: quero, aos meus próprios olhos e aos olhos dos outros, poder ser e continuar a ser um indivíduo de respeito, não simplesmente porque sou um ser humano, mas porque conservo minha autoestima.[10] O sentimento de perda da dignidade é moral e pessoal e pode acontecer em razão de uma situação vivenciada pelo indivíduo a qual ele não deu causa, também tal sentimento de perda da dignidade está nas situações de miséria, fome, violência, ridicularização, etc, facilmente visto em países periféricos. O segundo sentido não se estabelece no íntimo de cada ser humano: a dignidade de um indivíduo consiste no fato de ser ele uma pessoa e não um animal ou coisa. É esse conceito que é aplicado nos direitos do homem, e que faz com que a pessoa tenha um valor particular, proibindo que seja tratada como um simples meio […][11] Da leitura de dignidade, se extrai o conceito de dignidade que se aplica ao direito, qual seja, o de que todo ser humano tem um valor e deve ser visto como um fim em si mesmo, nunca como um meio.
O princípio da dignidade tem status de lei e, sobretudo, garantias constitucionais. Cabe ao Estado intervir de maneira a proteger o indivíduo de qualquer ação/omissão que atente contra a sua dignidade. Pode-se reconhecer a dignidade do ser humano quando o indivíduo usufrui livremente da sua liberdade de escolha – autonomia – porque, se ao contrário, o indivíduo é privado de sua liberdade de escolha, então a submissão à vontade de outrem é evidente, o que faz cair por terra toda a tese de valorização dos direitos da pessoa.
No entanto, a autonomia supracitada, só faz sentido quando advinda de pessoas livres de coação e capazes de entender suas decisões, caso contrário, a tutela estatal deve ser acionada com a intenção de evitar atos atrozes em nome da liberdade de escolha. Assim, a heteronomia pode representar a tutela do Estado, quando o indivíduo, de forma consentida, atenta contra sua própria dignidade. O caso do arremesso de anões[12] retrata a interferência do Estado na liberdade de escolha de cada indivíduo, com o argumento de que a dignidade de cada ser humano é matéria de ordem pública, independente da autonomia da vontade.
1.2. O princípio da autonomia e a decisão substituta
A onda de valorização do ser humano, tem sucitado novos conceitos de liberdade e dignidade que convergem para o respeito ao ser humano, entendendo o ser como capaz de tomar decisões e assumir os riscos das práticas que pretende realizar. Não cabe dizer que a tutela estatal está dispensada, ao contrário, o Estado tem uma nova missão, ao invés de interferir arbitrariamente no poder decisório dos cidadãos, passa a garantir que a vontade dele prevaleça e seja respeitada. Apenas por descargo de consciência, é de se mencionar que a autonomia da vontade válida é aquela advinda de seres legalmente capazes e livres de qualquer ato coercitivo.
A autonomia, assim como a dignidade, é algo intrinseco ao ser humano, todo homem nasce livre e autônomo, Beauchamp e Childress[13] abordam o respeito à autonomia de vontade[14] dizendo que nenhuma teoria é aceitável caso apresente um ideal que esteja fora do alcance dos agentes normais[15], já que de nada adianta o reconhecimento do princípio da autonomia se o indivíduo não tem a liberdade de escolha e de exercê-lo, algo tão básico. Respeitar a autonomia é reconhecer no sujeito o direito de tomar decisões com base em seus valores e suas crenças pessoais.
Na bioética em especial, a autonomia faz parte do conjunto de preceitos básicos de respeito ao indivíduo, ao lado do princípio da beneficência, que pretende maximizar o bem do próximo, o que implica minimizar o mal […] e o princípio da justiça, identificado como sendo o exercício da justiça distributiva por meio da equidade[16].
Durante séculos, o paciente – aquele que sofre ou é objeto de uma ação[17] – foi minimizado a condição de mero expectador de sua própria condição, à mercê da arbitrariedade que tantas vezes lhe feria mortalmente a dignidade na concepção do respeito a si mesmo, sem acesso a informações concisas e sem poder de decidir sobre opções de tratamento médico. Não raro, o único a não saber a prévia condenação à sua própria morte por doença incurável era o próprio condenado. O doente, devido à sua dignidade como sujeito, tem o direito de decidir autonomamente o que se quer fazer com ele, seja do ponto de vista do diagnóstico como da perspectiva terapêutica[18]
Andorno (2009, p. 74) afirma:
[…] a liberdade é muito mais que um mero “princípio” ético. Na realidade, é a conditio sine qua non da ética, como o é também para o direito. Se o homem não fosse capaz de se autodeterminar, tanto as normas éticas como as jurídicas careceriam de sentido, já que não haveria condutas meritórias ou reprováveis, melhores ou piores, devidas ou proibidas e o conjunto das ações humanas cairia no vazio da indiferença moral.
Sob o ponto de vista jurídico, a autonomia na relação médico-enfermo vai além da forma meramente contratual de declaração da vontade porque se refere a um bem extrapatrimonial. A disposição do indivíduo sobre o próprio corpo torna esta relação horizontal, deixando para trás a visão do paciente como um simples expectador da sua própria condição e o médico como responsável absoluto de decisões, não significa que as limitações do respeito à autonomia com caráter protetivo devem inexistir.
Na medicina, ou no termo mais apropriado ao debate em questão, na bioética a autonomia parte da premissa da visão do ser humano como um ser livre e absolutamente capaz. Na prática, isso remete ao respeito pelas decisões do paciente. Porém, ditas decisões devem ser observadas com cuidado, já que a autonomia só pode ser validada quando advinda de uma decisão consciente, o paciente precisa demonstrar total lucidez e entendimento da problemática que lhe foi apresentada, quais sejam, diagnóstico, prognósticos, tratamento, riscos e alternativas, para então declarar a sua própria vontade. A declaração de vontade ou consentimento informado é o ato sobre o qual o paciente se autodetermina, escolhendo a forma de terapia que será empregada na sua condição.
Os elementos do consentimento informado. A abordagem aceita da definição do consentimento informado tem sido a que especifica os elementos do conceito divididos em informação e consentimento. A informação se refere à informação e compreensão daquilo que é revelado. O consentimento refere-se a uma decisão e uma anuência voluntárias do próprio indivíduo, o qual se submete, ou não se submete ao procedimento recomendado. A observação se dá quanto aos seguintes elementos: 1. Competência; 2. Revelação; 3. Entendimento; 4. Voluntariedade, e 5. Consentimento.[19] Todos esses elementos devem ser levados em conta para uma verdadeira declaração de vontade/consentimento informado.
Existem as mais variadas situações, que na proposta deste estudo são significativas, onde o paciente/enfermo afetado de grave ou incurável doença, em fase de prolongamento artificial da vida, não demonstra os elementos citados acima, quer seja por força da própria debilidade física e/ou mental ou por força da terapia, que garantem o consentimento informado. Nesses casos, a correta interpretação se dá seguindo um modelo de decisão substituta, que consiste em tomar decisões por enfermos não-autônomos, ou incapazes de gerir a própria vontade. Se um paciente não é capaz de escolher ou de recusar um tratamento, então um hospital, um médico ou um membro da família podem, justificadamente, ser investido do papel de decisor.[20]
Nas palavras de Beauchamp e Childress[21], os decisores podem ser investidos de três modelos para embasar sua decisão: a) julgamento substituto – exige que o decisor “se ponha nas vestes mentais do incapaz”, ou seja, ele toma a decisão que o incapaz tomaria; b) pura autonomia – se aplica aos pacientes que expressaram uma preferência sobre si mesmas quando ainda eram capazes de fazê-lo, e c) melhores interesses – o decisor deve escolher, dentre as opções possíveis, o maior benefício e o menor risco ao paciente, é o modelo que protege os melhores interesses e o bem estar do paciente.
Os anos de 1960 foram marcados pelo conhecimento público de diversas pesquisas e experimentos realizados em seres humanos desfavorecidos mental e economicamente, além daqueles fragilizados por doenças tidas como incuráveis. Não raro constatava-se o abuso nos métodos adotados, os quais desconsideravam o indivíduo como pessoa atribuindo-lhes a sina de experimento científico, como verdadeiras cobaias. Foi nesse contexto, motivada pelos abusos físicos e morais, que a sociedade se viu às voltas de uma discussão sobre os direitos do ser humano enquanto paciente/enfermo.
Destarte, surge a bioética, ou a ética da moral, que tem como intento o respeito a cada ser humano frente aos avanços da medicina tecnológica. As tradições morais, em face do avanço da biologia e da tecnologia, faz nascer ao argumentos que podem justificar a coercibilidade jurídica para preservar algumas características fundamentais da pessoa.[22]
A tecnologia e a ética fazem parte de uma mesma estrutura, afirma Hans Jonas (1997, p. 33):
Dicho de forma muy general, que la ética tiene algo que decir en las cuestiones relacionadas com la técnica o que la técnica está sometida a consideraciones éticas se desprende del sencillo hecho de que la técnica es un ejercicio del poder humano, es dicir, uma forma de actuación, y toda actuación está expuesta a su examen moral. Es asimismo uma perogrullada que el mismo poder puede emplearse tanto para el bien como para el mal y que em su ejercicio se puedam observar o infringir normas éticas. La técnica, como poder humano enormemente incrementado, entra sin duda alguna dentro de esta verdad general.
De um modo genérico toda a atividade humana carece de moral e de ética, em especial no caso da biotecnologia, ou a ciência médico-tecnológica, cujo objeto de estudo é a vida, conforme amplamente anunciado, a razão de existir de todos os demais direitos.
A relação entre as técnicas médicas vindas dos avanços tecnológicos com a ética da vida é, por demais ambígua, porque enquanto a primeira tende a buscar o prolongamento da vida de um doente, a segunda questiona as condições pelas quais isso se dará, bem como a defensa do princípio da autonomia, pelo qual o ser humano decide (se assim o entender) pela interrupção de um tratamento médico-hospitalar, mesmo que esta terapia lhe esteja ao alcance das mãos. Nessa seara, não importa a quantidade, mas a qualidade de vida que se quer buscar.
Historicamente não se havia deparado com uma sociedade em constante movimento como a atual. O mundo vive um momento de globalização envolto em uma avalanche de informações tão rápidas, de forma que é impossível estar atualizado com as últimas notícias.
Neste sentido, a biotecnologia se multiplica em experimentos e inovações que trazem uma miríade de possibilidades para a pessoa humana. Se o princípio da justiça consiste em contrabalançar as desigualdades sociais, parece que a medicina vem contrabalancear as desigualdades fisiológicas naturais.
Porém, a biotecnologia é capaz de produzir danos aos seres humanos como nenhuma outra ciência poderia fazê-lo. A tecnologia da informação é uma ciência que, assim como a medicina, avança de forma deveras rápida, mas é lícito dizer que produz muitos benefícios e poucos danos à sociedade. A razão porque a medicina é a mais perigosa de todas as ciências é o fato de que está diretamente relacionada à vida, e não é a vida cotidiana, mas sim às situações de fragilidade humana, sejam elas emocionais ou físicas, exatamente aonde residem os direitos fundamentais de cada pessoa.
O nascer e o morrer são lados opostos da mesma linha, a linha da vida, pela qual o indivíduo transita em sua existência. O que não era inconcebível há menos de 50 (cinquenta) anos, hodiernamente é real e corriqueiro, como as técnicas de reprodução assistida que são responsáveis pelo nascimento de pessoas que de outra forma certamente não nasceriam. Da mesma forma, o morrer pode sofrer interferência biotecnológica, a ponto de prolongar uma vida que já não é vida própria, mas sim um mero corpo que respira e se alimenta apenas porque a tecnologia assim permite, tornando-se uma verdadeira penitência tanto para o paciente como para a família que assiste o sofrimento do enfermo.
Com esse cenário, urge o emprego de limites de interferência da biotecnologia na linha da vida (nascer, existir e morrer). Ditos limites só podem ser obviamente empregados pelo Estado, que é quem tem o dever de garantir os direitos fundamentais de todo o ser humano e o Estado pode fazê-lo com base nos princípios morais e éticos da bioética.
Conforme afirma Fukuyama[23]
Que deveríamos fazer em resposta à biotecnologia, que no futuro combinará grandes benefícios potenciais com ameaças que são tanto físicas e manifestas quanto espirituais e sutis? A resposta é óbvia: deveríamos usar o poder do Estado para regulá-la. E se essa regulação se provar além da capacidade de alguma Estado-nação, deverá ser feita em bases internacionais. Precisamos começar a pensar concretamente sobre como estabelecer instituições que possam discriminar entre bons e maus usos da biotecnologia e aplicar essas normas com eficácia tanto nacional quanto internacionalmente.
A bioética está moldada para mediar a aplicação das técnicas médicas nos indivíduos. Tem a função de garantir, através de seus princípios (autonomia, beneficência e justiça), o respeito a cada pessoa e garantir que a biotecnologia seja empregada sempre com a intenção de maximizar os seus benefícios ao paciente.
2.2. O direito de morrer com dignidade como parte integrante do direito à vida
O tema até aqui tratado traça contornos do direito à vida, lido como o mais fundamental de todos os direitos. O direito de morrer como parte integrante do direito de viver, vem em razão do desenfreado avanço tecnológico da medicina e suas consequências àqueles que, fora de qualquer expectativa de cura, permanecem em estado de sofrimento tão avançado, quanto a própria terapia.
A religiosidade é uma característica marcante dos povos latino-americanos, onde culturalmente a morte é tida como tabu e não como uma fase da vida, assumindo um papel absolutamente negativo em relação à vida. Embora a maior parte das crenças religiosas expressem um apego exagerado ao ato de viver, entendendo a morte como um verdadeiro castigo, há que se dizer que a morte é um papel quase equivalente ao nascimento. O ato de nascer é fruto de um equilibrado processo biológico com prazo de validade, assim como o ato de morrer está diretamente ligado ao mesmo processo. A biotecnologia, além de curar e prolongar a vida, também faz continuar vivo quem já está morto. Os progressos da medicina podem manter as funções vitais de um corpo além do curso natural da doença.[24] O que se tem, na verdade, não é vida, mas sim apenas um corpo que (ainda) respira. As técnicas artificiais podem prolongar a vida por tempo indeterminado, reduzindo o paciente a um mero corpo debilitado, sem consciência, quer por meio da doença quer por meio da terapia, de si e do que se passa ao seu redor. A morte digna é uma realidade, pois não se justifica prolongar o sofrimento de uma pessoa que na verdade não tem “vida”, e, portanto, não se protege realmente a “vida”. A legislação deve contemplar a possibilidade de escolha, mas estabelecer critérios dos mais variados para sua autorização legal. (VIAL, 2011, p. 377).[25]
O direito a morrer de maneira digna passa pelo direito a uma existência não menos digna, existência essa que perdura até os limites da vida, até a tênue linha que separa a vida e a morte, portanto, a dignidade de cada ser deve perdurar até o exato momento de sua morte, em que o ciclo da vida, como tantos outros ciclos, se encerra. Nesse contexto é que é defensável o direito de morrer como parte integrante do direito à vida. Um indivíduo entregue a mercê das terapias de prolongamento artificial da vida, tendo como única razão o avanço tecnológico da medicina, sem lhe ter sido disponibilizada a liberdade de escolher, certamente é um ser humano vítima da violação de seus direitos fundamentais.
A proposta deste trabalho teve como cerne o direito de morrer ou o direito a uma morte digna. A vida é o mais fundamental e a própria razão de existir de todos os direitos. Viver é um direito indisponível, inviolável e universal. No momento social em que todos estamos inseridos, parece deveras razoável (re)pensar que simplesmente deixar viver já não é satisfatório. A vida está umbilicalmente ligada ao princípio da dignidade do ser humano e às suas liberdades. A dignidade da pessoa é a base de todos os direitos fundamentais e consiste em ver o “outro” como um ser em si, bastante e suficiente e não como um mero meio. A condição humana sugere o poder de ter a liberdade de escolha, fundada no princípio da autonomia que é aquele que entende o indivíduo como capaz de gerir sua própria vida.
O desafio proposto pela bioética ao avanço da biotecnologia são os limites morais e éticos que devem ser respeitados para que a ciência tecnológica permaneça em crescente movimento, sem que isso venha interferir de maneira negativa em qualquer direito fundamental da pessoa humana. A realidade deste momento nos põe face a face com situações de prolongamento artificial da vida que se transformam em casos desumanos, onde o enfermo permanece em uma sobrevida, sendo obrigado a passar por um tratamento terapêutico assaz desumano, que lhe foi imposta simplesmente em razão de possibilidade médica, passando longe de ser uma vida baseada nos princípios da dignidade.
A dignidade de cada ser humano como princípio fundamental da construção dos direitos humanos, a vida como o mais elementar de todos os direitos fundamentais, então, deve-se permitir a todo indivíduo ter a liberdade de escolha (autonomia) entre mantê-lo vivo sob condições não naturais – prolongamento de vida artificial – e morrer com dignidade.
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Notas de Rodapé
[1] Mestre em Direito Público (UNISINOS). Especialista em Processo Civil (PUCRS). Advogado.
[2] DIREITOS FUNDAMENTAIS. In: Vicente de Paulo Barreto (Coord.). Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo: UNISINOS, 2006. p. 243.
[3] DIREITOS FUNDAMENTAIS. op. cit., p. 244.
[4] NEDEL, José. Ética Aplicada: pontos e contrapontos. São Leopoldo: UNISINOS, 2004, p. 34.
[5] Immanuel Kant (1724 – 1804), filósofo nascido na Alemanha, foi um dos mais importantes pensadores dos tempos modernos. Seu pensamento é reconhecido como transcendental e dá início a concepção do ser humano como sujeito, como única razão de existência da sociedade, a qual passa a existir em razão do indivíduo e para o indivíduo – filosofia kantiniana.
[6] KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução: Paulo Quintela. Coimbra: Atlântida, 1960.
[7] ANDORNO, Roberto. “Liberdade” e “Dignidade” da pessoa: dois paradigmas opostos ou complementares na bioética? In: MARTINS-COSTA, Judith; MÖLLER, Letícia Ludwig; (Orgs.). Bioética e Responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 81.
[8] BAEZ, Narciso Leandro Xaxier. Direitos humanos fundamentais e direitos humanos dependentes de fatores culturais – novos rumos de uma possível coexistência. In: BAEZ, Narciso Leandro Xavier; CASSEL, Douglas (Org.). A Realização e a Proteção Internacional dos Direitos Humanos Fundamentais – Desafios do Século XXI. Joaçaba: UNOESC, 2011. cap. 1, p. 25-54.
[9] BAERTSCHI, Bernard. Ensaio filosófico sobre a dignidade. Antropologia e ética das biotecnologias. Tradução: Paula Silva Rodrigues Coelho da Silva. São Paulo: Loyola, 2009.
[10] Idib., p. 187-188.
[11] BAERTSCHI, op. cit., p. 188.
[12] Arremesso de anões: breve síntese: Morsang-sur-Orge/ França/ Uma grande empresa de entretenimento criou um produto para ser vendido em bares e discotecas chamado de arremesso de anões “lande de nain”, que consistia em lançar anões de um lado ao outro do estabelecimento. O arremesso seria feito pelos frequentadores. Com fundamento nos direitos do homem, o prefeito da pequena cidade mandou interditar o espetáculo. O caso se tornou judicial e em primeira instância – após a oitiva do anão (que entendia como um trabalho digno já que recebia salário e não perturbava a ordem pública) arguindo o princípio da autonomia da vontade, o julgador decidiu pela continuidade do espetáculo. Em sede de recurso, o espetáculo foi definitivamente suspenso, porque o Conselho Federal entendeu que a dignidade é matéria de ordem pública.
[13] Tom L. Beauchamp e James F. Childress, filósofos americanos, publicaram no ano de 1978 o livro Princípios de ética biomédica, que é o modelo teórico mais influente e responsável pela consagração dos princípios da bioética.
[14] BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F.. Princípios de ética biomédica. Tradução: Luciana Pudenzi. São Paulo: Loyola, 2002. cap. 3, p.137-207.
[15] Ibid., p.140.
[16] BIOÉTICA. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (Coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: UNISINOS, 2006. p. 106.
[17] PACIENTE. In: INFOPÉDIA: enciclopédias e dicionários porto editora. Disponível em: <http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/paciente>. Acesso em: 30 ago. 2012.
[18] JUNGES, José Roque. Bioética. Perspectivas e desafios. São Leopoldo: UNISINOS, 1999. p. 42
[19] BEAUCHAMP, op. cit., p. 165.
[20] Ibid., p. 195.
[21] Ibid., p. 196 – 207.
[22] BARRETO, op. cit., p. 106.
[23] FUKUYAMA, Francis. Nosso Futuro Pós-Humano Consequências da revolução da biotecnologia. Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. p. 23.
[24] JUNGLES, op. cit., p. 172.
[25] “ […] the dignified death and the permission of euthanasia is a reality, because there is no reason to prolong the suffering of a person who actually has no “life” and therefore one does not really protect “life”. Legislation should provide a possibility of choice but to establish the most diverse criteria for its legal authorization.[…]” (VIAL, Sandra Regina Martini. The Right to Die with Dignity: Socio-legal Implications of the Right to a Dignified Life and Death in the Brazilian Experience. In: NEGRI, Stefania (Ed.). Self-Determination, Dignity and End-of-life Care Regulating Advance Directives in International and Comparative Perspective. Leiden – Boston: Martinus Nijhoff Publishers, 2011.)
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