A Disputa De Poder Por Trás Da Filantropia

Gustavo Matos Vasques de Carvalho[1]

Resumo: Este artigo visa demonstrar as razões que levam a iniciativa privada a praticar a filantropia, notadamente a realizar doações. Na maioria dos estudos se fala em caridade, desoneração tributária, melhora de imagem institucional e até mesmo em lavagem de dinheiro, mas não se considera a possibilidade de uma verdadeira disputa de poder entre a iniciativa privada e o Estado. O objetivo do estudo é analisar os discursos e a postura das organizações e os seus reais motivos para empreender esforços neste tipo de atuação que, em uma primeira análise, não traz lucros a ela. A metodologia utilizada foi a observacional, com base em documentos. Utilizou-se o estudo descritivo quanto ao objetivo, documental quanto ao delineamento e de natureza qualitativa, além de técnicas de coleta de dados e informações por meio de pesquisas bibliográficas, em fontes impressas. Conclui-se que em que pese haver diversos motivos que levam as organizações a realizar doações, não se pode desconsiderar o fato (pouco comentado) de que há, sim, uma disputa de poder, por intermédio da qual as organizações privadas querem cada vez mais reduzir a atuação (e consequentemente a força e o tamanho) do Estado.

Palavras-chave: Filantropia. Iniciativa privada. Estado. Disputa.

 

Abstract: This article aims to demonstrate the private sector’s reasons to foment the philanthropy, specially make donations. Normally, people talk about philanthropy, tax relief, improvement of institutional image and even money laundering, but doesn`t consider the possibility of a real power dispute between the private sector and the State. The aim of the study is to highlight and discuss the discourses and posture of the organizations and their real reasons for undertaking efforts in this type of action which, at first glance, does not bring profit. It was used the descriptive, documentary and qualitative research, using the document analysis method. The collection of data and information was carried out through bibliographical, documental and observational research. It is concluded that, although there are several reasons and motivations that lead as organizations to promote the third sector, adopt sustainable practices and make donations, should not disregard the fact (little commented) that there is indeed a power struggle, through the private organizations looks for increasingly reduce the role (and consequently the strength and size) of the State.

Keywords: Philanthropy. Private Initiative. State. Dispute.

 

Sumário: Introdução. 1. A filantropia ao redor do mundo. 2. Análise dos dados encontrados. Conclusão. Referências.

 

INTRODUÇÃO

O presente artigo se propõe a demonstrar a disputa de poder muitas vezes existente por trás da prática da filantropia. A elaboração do artigo se deu a partir da observação das práticas organizacionais e seus reais objetivos, especialmente diante da informação, constante, dentre outros, no artigo de Lindsey Galloway, da BBC, de que os Estados Unidos da América seriam um dos países que mais realiza doações no mundo, constatando-se de uma verdadeira cultura da doação naquele país.

Outro aspecto que despertou o interesse na investigação foi o fato (comumente noticiado) de que grandes milionários, especialmente os americanos, posicionam relevante parte de suas fortunas em fundações e outras entidades de caridade. A título de exemplo, menciona-se os casos da Fundação Bill e Melinda Gates que faz doações com frequência e de Michael Bloomberg (a Bloomberg Philanthropies) que também se trata de uma instituição filantrópica focada nas áreas de saúde, meio ambiente, artes e educação. Em contraponto, conforme se verá adiante na menção ao artigo de Marcelo Roubicek, de 2020, intitulado de “Qual o tamanho e o papel da filantropia no Brasil”, nosso país ocupa o 74º lugar neste tema.

A presente pesquisa é delineada pelos seguintes questionamentos: Por que um dos países mais capitalistas do mundo (Estados Unidos da América), também reconhecido como um dos mais individualistas, teria pessoas com esta forte cultura da filantropia, de destinar seu dinheiro a outros, ao ponto de ocupar os primeiros lugares em todas as pesquisas acerca da filantropia? Não haveria uma contradição ao se observar que as pessoas deste país (extremamente) capitalista, liberal e individualista seriam umas das que mais praticam a filantropia no mundo? Como esclarecer esta (suposta) contradição? Religião? Vantagens Tributárias? Simples (e verdadeira) caridade? Lavagem de dinheiro? Disputa de poder com o Estado?

Assim, o objetivo deste artigo é analisar as diversas razões que levam as pessoas, físicas e jurídicas, a praticarem a filantropia, considerando-se, de forma especial, a possibilidade de uma (verdadeira, embora muitas vezes encoberta) disputa de poder em face do Estado, por intermédio da qual buscam impedir o crescimento e a força do mesmo. Busca-se trazer, de forma fundamentada, este ponto de vista comumente negligenciado pelas investigações.

A metodologia utilizada foi a observacional, com base em documentos. Utilizou-se o estudo descritivo quanto ao objetivo, documental quanto ao delineamento e de natureza qualitativa, além de técnicas de coleta de dados e informações por meio de pesquisas bibliográficas, em fontes impressas, além de fontes documentais.

Este artigo está dividido em quatro tópicos, sendo o primeiro esta introdução. Em seguida, trata-se das definições e dados a respeito da filantropia e atuação das pessoas, especialmente nos Estados Unidos da América e no Brasil. O terceiro tópico analisa os resultados encontrados no segundo capítulo. Por fim, o último tópico apresenta as conclusões.

 

  1. A FILANTROPIA AO REDOR DO MUNDO

Em termos genéricos, pode-se definir filantropia como simplesmente fazer o bem a outrem sem querer nada em troca. Etimologicamente, conforme o site “origem da palavra”, a palavra, de origem grega, pode ser dividida nos termos philos e anthropos, os quais podem ser respectivamente traduzidos como “gostar de/amor” e “ser humano”, passando a ideia de amor à humanidade.

Como se pode notar, a filantropia, historicamente considerada, sempre levou em consideração a ideia de se fazer o bem a outrem sem querer nada em troca (verdadeiro assistencialismo). Nesta esteira, aliás, é que diversas legislações ao redor do mundo passaram a prever vantagens àqueles que praticam a filantropia, a fim de se incentivar este tipo de assistencialismo.

No caso do Brasil, a título de exemplo, pode-se mencionar que a assistência aos desamparados é prevista no art. 6º da Constituição Federal como direito social: “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição“. A Lei Maior ainda traz uma seção específica sobre a Assistência Social, a saber, a seção IV, do título VIII (Da Ordem Social), intitulada de “Da Assistência Social”, que em seu art. 203 dispõe que “A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:”.

Ainda tratando da Carta Magna, destaca-se como vantagem/incentivo para as instituições de assistência social, sem fins lucrativos (desde que atendidos alguns requisitos legais) as imunidades de impostos e de contribuições para a seguridade social previstas, respectivamente, nos arts. 150, VI, “c” e 195, §7º:

“150, VI, “c”:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(…)

VI – instituir impostos sobre:

(…)

  1. c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei;

 

195, § 7º:

São isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei.”

Resta clara, portanto, a importância conferida pelo nosso País ao tema, ao ponto de se conferir imunidades tributárias a fim de se incentivar este tipo de atuação.

Diante desta relevância é que se apresenta necessário se ter conhecimento das verdadeiras razões que motivam este ato de filantropia até mesmo para, se for o caso, a partir desta classificação, conseguir decidir melhor quais tipos e/ou em quais medidas cada uma deve ser estimulada.

Isto porque, com o passar do tempo, essa ideia se desvirtuou e este ato (antes de mera bondade) passou a ser questionado se, de fato, eram gestos de bondade ou se havia (apenas) interesses particulares escamoteados.

O estudo da filantropia se aprofundou e hoje já se aponta diversos tipos, conforme se extrai do livro Empresas Socialmente Sustentáveis – O Novo Desafio da Gestão Moderna, de Francisco Paulo de Melo Neto e Jorgiana Melo Brennand (2004, p. 50-51), que trata das ideias de “Filantropia Tradicional”, “Nova Filantropia” e “Investimento Social Privado”:

“São os seguintes os tipos de ações sociais:

  1. A filantropia pura, tradicional, que tem na doação a sua ação social dominante. A figura dominante é do doador, geralmente um empresário com grande senso e adepto de ações humanitárias, de ajuda aos excluídos socialmente.

Tal prática, dominante em toda a história do capitalismo industrial e comercial, vem sendo preterida nos últimos anos por ações de investimento social.

(…)

  1. A “nova filantropia”, que também se baseia em doações. Porém, neste caso, as empresas doadoras monitoram a aplicação dos recursos e o impacto social previsto e alcançado.

Portanto, os recursos gastos em ações sociais são também vistos como “investimentos”, e seu retorno é monitorado e avaliado.

  1. O Investimento Social Privado (ISP), conceito criado pelo Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife) e Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis), no biênio 1998-99, é uma ação de investimento em projetos sociais, feita por pessoas físicas ou jurídicas, objeto de um processo de gerenciamento contínuo.”

As entidades que costumam realizar este tipo de ação são as Organizações Não-Governamentais (ONGs) e demais associações sem fins lucrativos do Terceiro Setor. Com efeito, diz-se que elas atuam em prol de uma causa cidadã, ocupando um espaço de assistência social em que nem o Estado nem a iniciativa privada preencheu.

Mas, como explicar o fato de que os Estados Unidos da América, país reconhecidamente liberal, individualista e capitalista estar dentre aqueles que mais realizam doações no mundo? Neste sentido, vejam-se os números apresentados pela OECD (Organisation for Economic Co-Operation and Development) acerca da despesa social Total líquida em % do PIB que demonstram que os EUA é um dos países que mais disponibiliza recursos para despesas sociais:

Tabela: Despesas sociais – dados agregados

(Fonte: OECD – stats.oecd.org)

Não se desconsidera que há outros critérios para se mensurar o nível de destinação de valores à filantropia de um país, mas, independentemente da escolha, resta indiscutível que os cidadãos e empresas dos Estados Unidos da América são uns dos que mais destinam dinheiro a esta atividade no mundo.

Ora, mas o que leva as pessoas a praticarem estes atos de filantropia? As respostas podem ser das mais diversas, sendo as mais comuns a caridade (por si só), para se ter mão-de-obra qualificada, religião (que fomenta este tipo de caridade e, muitas vezes, sugere que este tipo de conduta daria acesso ao paraíso após a morte), redução legal de carga tributária (benefícios tributários), redução ilegal de carga tributária (“lavagem de dinheiro”) e melhoria da imagem institucional ou mesmo da pessoa física (políticos, artistas etc.).

A fim de se ilustrar o exposto, vale-se, mais uma vez, das palavras de Francisco Paulo de Melo Neto e Jorgiana Melo Brennand, no livro Empresas Socialmente Sustentáveis – O Novo Desafio da Gestão Moderna (2004, p. 41):

“A pesquisa “Empresários & a educação no Brasil”, realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ), chegou a resultados que comprovam tal postura empresarial:

“Dos grupos empresariais ouvidos que escolheram a educação como prioridade, 70% investem para ter mão-de-obra qualificada. Dos restantes, 10% atuam por responsabilidade Social, 8% querem motivar seus empregados e 2% tencionam melhorar a imagem da empresa. Outros 10% pretendem obter benefícios fiscais”

(…)

É quando o social se integra à dimensão do negócio como um fator de agregação de valor.

Os investimentos sociais tornam-se ações estratégicas e atuam como fatores diferenciais competitivos.”

Mas o curioso é que nos estudos brasileiros pouco se considera a ideia de que, muitas vezes, pode ocorrer uma verdadeira disputa de poder, por intermédio da qual a iniciativa privada não quer deixar o Estado crescer ou se fortalecer.

Uma das razões de se perceber isso com mais clareza nos Estados Unidos da América é pelo fato de lá ter ocorrido o federalismo centrípeto (ou por agregação), pelo qual Estados autônomos abriram mão (ainda que parcialmente) de sua soberania para se juntarem entre si e formarem um estado único (ex.: EUA). Diferentemente do federalismo centrífugo (ou por desagregação), pelo qual há um estado único que decide repartir o seu poder e se dividir em diversos outros Estados (ex.: Brasil).

No primeiro caso, o estado único criado por aqueles que detinham o poder não terá (pois não receberá) tanto poder. Já no segundo caso (em que se tinham um Estado com poderes e que decide dividir), o “criador” não passará grande parcela do seu poder para aqueles que foram criados. Por esta razão é que se observa que os Estados Federados Americanos têm bem mais autonomia do que os brasileiros. Nas palavras do professor Pedro Lenza (2010, p. 341-342) tem-se a seguinte explicação:

“No federalismo por agregação, os Estados independentes ou soberanos resolvem abrir mão de parcela de sua soberania para agregar-se entre si e formarem um novo Estado, agora, Federativo, passando a ser, entre si, autônomos.

(…)

Por sua vez, no federalismo por desagregação (segregação), a federação surge a partir de um determinado Estado unitário que resolve descentralizar-se, “em obediência a imperativos políticos (salvaguarda das liberdades) e de eficiência”.

Esta razão histórica aliada com a ideia de que a filantropia pode ter como objetivo não permitir o fortalecimento do Estado, ajuda a entender uma das razões pelas quais um Estado que preza tanto o individualismo, a liberdade e o liberalismo é um dos países que mais destinam dinheiro a estas ações sociais.

Ainda sobre a participação dos países na filantropia, especialmente no que se refere à postura Brasil, veja-se o que revelou um índice montado pela CAF (Charities Aid Foundation, ou Fundação de Ajuda para Caridades), conforme noticiou a Associação Paulista de Fundações (www.apf.org.br) com fonte em artigo de Marcelo Roubicek, de 2020, intitulado de “Qual o tamanho e o papel da filantropia no Brasil”:

“A filantropia brasileira em relação ao mundo

No Brasil, a cultura da doação não é tão consolidada quanto em outros países. Um índice montado pela CAF (Charities Aid Foundation, ou Fundação de Ajuda para Caridades) comparou as doações feitas em 126 países, usando como critérios três tipos de ação: ajuda a estranhos, doação de dinheiro e tempo de voluntariado. Foram usados dados de 2010 a 2019.

O Brasil ficou em 74° lugar no índice final, que engloba todos os critérios.

Separando as três frentes, o país fica na 63ª posição em ajuda a estranhos, em 67º em doação de dinheiro e em 84º em tempo de voluntariado. Ou seja, o Brasil fica na metade mais baixa do índice em todos os critérios considerados pela organização.

O primeiro lugar geral do ranking é ocupado pelos EUA, seguido de Myanmar e Nova Zelândia. A China é o país com a pior colocação entre os 126.”

(grifos nossos)

Esta análise comparativa com o nosso país nos permite perceber de forma mais clara que, de fato, o hábito da filantropia é algo enraizado na cultura americana, mas, pelo que se pode notar, não por razões estritamente de caridade, mas sim como forma de proteger as próprias liberdades individuais, como se passa a expor.

 

  1. ANÁLISE DOS DADOS ENCONTRADOS

Conforme exposto, os Estados Unidos da América, embora seja um país reconhecidamente liberal e individualista, é um dos países que mais atua em favor da filantropia. Ocorre que esta postura não se deve exatamente por razões de caridade, mas, sim, por acreditarem que dessa forma permitirão uma atuação menor do governo (um estado menos paternalista), protegendo melhor as suas liberdades individuais.

Não se está dizendo, absolutamente, que não há generosidade e solidariedade no ato, mas, apenas, que há uma fortíssima (senão principal) influência cultural e histórica que enxerga este tipo de atuação filantrópica como essencial para a manutenção das liberdades dos indivíduos.

Neste sentido, muito interessante destacar o trecho do “The Almanac of American Philanthropy” (O Almanaque da Filantropia Americana), de Karl Zinmeister, no qual, em sua edição compactada (2017, p. 72-78), destaca expressamente que é justamente esta filantropia Americana que permite o afastamento de um Estado Paternalista e, consequentemente, a preservação da liberdade Americana:

“IT’S NOT WISE TO RELY SOLELY ON GOVERNMENT

(…)

Philanthropy is crucial to keep America operating as that exceedingly rare society where most individuals can steer their own lives.

(…)

This is why philanthropists are different from doctors, or teachers, or businessmen, who also do social good, and different from soldiers or ministers or others who sometimes sacrifice their own interests to aid fellow citizens. Doctors, businessmen, and soldiers are valuable contributors, but they are not essential to maintaining America’s basic social contract. They are not indispensable.

Effective philanthropists are indispensable. They allow us to have a good society without a paternalist state. They are the prophylactic against public lurches for freedom-killing security blankets.

Philanthropy is the guardian of our self-rule. It is one of just a few sine qua nons essential to our national health. Without it there is no America as we know it.”

(grifos nossos)

 

Em tradução livre:

“NÃO É INTELIGENTE CONFIAR UNICAMENTE NO GOVERNO

(…)

A filantropia é crucial para manter a América operando como aquela sociedade extremamente rara onde a maioria dos indivíduos pode dirigir suas próprias vidas.

(…)

É por isso que os filantropos são diferentes dos médicos, professores ou empresários, que também fazem o bem, ou até mesmo diferentes de soldados ou ministros ou outros que às vezes sacrificam seus próprios interesses para ajudar outros cidadãos. Médicos, empresários e soldados são valiosos, mas eles não são essenciais para manter o contrato social básico da América. Eles não são indispensáveis.

Filantropos eficazes são indispensáveis. Eles nos permitem ter uma boa sociedade sem um estado paternalista. Eles são a profilaxia (a prevenção) contra as tentativas do poder público de matar as liberdades.

A filantropia é a guardiã de nosso autogoverno. É um dos poucos sine qua nons essenciais para a nossa saúde nacional. Sem ele não há América como nós conhecemos.”

(grifos nossos)

Nesta mesma esteira, no site philanthropyroundtable.org consta o seguinte:

“Big-Picture Benefits of Philanthropy

(…)

Certainly tyrants hate philanthropy. They want the state to be the only forum for human influence and control. “Everything within the state, nothing outside the state, nothing against the state,” was Mussolini’s encapsulation. Independent associations and private wielders of resources must be co-opted or suppressed. The charitable sector is not only denied a seat at the table, it is put on the menu to be eaten. One of the first things every totalitarian government has done upon assuming power—from Nazis, to communists, to radical imams—is to destroy charities, private giving, and voluntary groups.”

(grifos nossos)

 

Em tradução livre:

“Benefícios Gerais da Filantropia

(…)

Certamente os tiranos odeiam a filantropia. Eles querem que o estado seja o único fórum para a influência e controle humanos. “Tudo dentro do estado, nada fora do estado, nada contra o estado”, foi o encapsulamento de Mussolini. Associações independentes e detentores privados de recursos devem ser cooptados ou suprimidos. O setor de caridade não só tem um lugar negado à mesa, como também é colocado no cardápio para ser consumido. Uma das primeiras coisas que todo governo totalitário fez ao assumir o poder – de nazistas a comunistas e imãs radicais – foi destruir instituições de caridade, doações privadas e grupos voluntários.”

(grifos nossos)

Merece atenção o fato de que, neste enfoque, a filantropia seria justamente para se evitar o assistencialismo Estatal. Ou seja, este ponto de vista é diametralmente oposto àquele que enxerga a filantropia como uma forma de assistencialismo privado, que complementaria o assistencialismo estatal (ou a falta deste).

Frise-se que de acordo com esta visão que se apresenta neste texto, a filantropia serve justamente para afastar este paternalismo estatal. Entende-se que caso se permita que a miséria e as mazelas tomem conta do país (com pessoas doentes, miseráveis e morrendo, por exemplo), muitos cidadãos vão se sensibilizar pela ideia de trocar a sua independência e liberdade pela segurança e cuidados concedidos pelo Estado. Em outras palavras, entendem que o fracasso do assistencialismo levaria as pessoas a demandarem a atuação do Estado. Por isso, também (e especialmente), que praticam a filantropia, a fim de não se permitir um problema deste porte que conceda espaço/oportunidade para que as pessoas sintam a necessidade (e até mesmo desejem) a atuação do Estado (paternalista).

No Brasil pouco se fala neste viés da filantropia, sendo a mesma sempre vista como decorrência de ações que visam apenas ajudar o próximo ou, no máximo, algum benefício particular (a exemplo de benefícios fiscais, melhoria da imagem etc.).

No caso ora colocado em holofote (filantropia como forma de afastar a atuação de um Estado paternalista e, assim, preservar as liberdades dos cidadãos), o objetivo maior não é “o próximo” nem exatamente a própria pessoa, mas a coletividade como um todo.

No caso específico dos Estados Unidos da América, seria preservar o estilo de vida americano (“The American Way of Life”) que, conforme explica Ana Letícia Reis no artigo “American Way of Life”, tem “como princípios a liberdade, a busca pela felicidade e a crença dos direitos a vida.” e “como características primordiais o nacionalismo, o liberalismo, o consumismo e a valorização do poder aquisitivo. Difundiam o conceito de uma vida feliz de conquistas, no qual a liberdade define esse estilo de vida americano”.

 

CONCLUSÃO

Como visto, a filantropia é normalmente considerada como um ato de se fazer o bem, especialmente diante dos seres humanos. Na prática, consiste em atividades, sem fins lucrativos, praticadas por pessoas (físicas ou jurídicas) em favor de outras.

Chamou a atenção (e motivou a investigação trazida no presente estudo), o fato de que os cidadãos e empresas dos Estados Unidos da América, país reconhecidamente liberal, individualista e capitalista, aparecem dentre aqueles que mais destinam valores à filantropia no mundo.

Ao se aprofundar a pesquisa a respeito das razões que motivam as pessoas a praticarem a filantropia, notou-se que normalmente os estudos nacionais mencionam “apenas” a caridade (por si só), intuito de se ter mão-de-obra qualificada, religião (que fomenta este tipo de caridade e, muitas vezes, sugere que este tipo de conduta daria acesso ao paraíso após a morte), redução legal de carga tributária (benefícios tributários), redução ilegal de carga tributária (“lavagem de dinheiro”) e melhoria da imagem institucional ou mesmo da pessoa física (políticos, artistas etc.).

Pouco se considera a ideia de que, muitas vezes, por trás desta atuação filantrópica, pode existir (ainda que de forma subjacente) uma verdadeira disputa de poder, por intermédio da qual a iniciativa privada não quer deixar o Estado crescer ou se fortalecer. Em outras palavras, entende-se que caso não se realize a filantropia e se permita que as mazelas tomem conta do país, as pessoas irão se sensibilizar e, certamente, irão abrir mão de suas liberdades individuais e aceitar (ou até mesmo demandar) um Estado maior e mais paternalista.

De fato, este propósito parece ser mais presente nos Estados Unidos da América do que no Brasil. Todavia, este viés de que a filantropia traz consigo, muitas vezes, ainda que implicitamente, uma verdadeira disputa de poder com o Estado, merece cuidado e reflexão, a fim de ser levado em consideração quando se tratar do tema filantropia para, dentre outras coisas, decidir-se quais vantagens e benefícios serão disponibilizados a elas.

Por fim, deixe-se claro que não se está afirmando que a filantropia seria boa ou ruim a depender de sua motivação. Não se pretende que se considere, por exemplo, que a filantropia americana (praticada pelos bilionários, por exemplo) seria ruim, pois feita com o propósito de não se permitir o crescimento do Estado e preservar as liberdades individuais. Absolutamente. Talvez possa se considerar um propósito ainda mais louvável do que outros estritamente particulares (a exemplo de melhoria de imagem e benefícios fiscais).

O que se pretende com o presente artigo, repise-se, é que se tenha conhecimento das diversas razões que permeiam e motivam estas ações sociais de filantropia, inclusive (e especialmente) esta de disputa de poder entre a iniciativa privada e o Estado, a fim de que se possa, então, avaliar melhor as suas adesões e concessão de benefícios.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 08 jul. 2021.

 

GALLOWAY, Lindsay. O que faz destes países os mais generosos do mundo? Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/vert-tra-38205668>. BBC News, 28 de dezembro de 2016. Acesso em: 06 jul. 2021.

 

LENZA, Pedro. Direito Constitucional. 14. Ed.São Paulo: Saraiva, 2010.

 

MELO NETO, Francisco Paulo de, Brennand. Jorgiana Melo. Empresas Socialmente Sustentáveis: O Novo Desafio da Gestão Moderna. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2004.

 

OECD (Organisation for Economic Co-Operation and Development). Social Expenditure – Aggregated data: Net Total Social Expenditure, in % GDP. Disponível em:<https://stats.oecd.org/Index.aspx?datasetcode=SOCX_AGG>. Acesso em: 07 jul. 2021.

 

ORIGEM DA PALAVRA. Palavra filantropia. Disponível em: <https://origemdapalavra.com.br/palavras/filantropia/>. Acesso em: 07 jul. 2021.

 

PHILANTHROPYROUNDTABLE. Big-Picture Benefits of Philanthropy. Disponível em: <https://www.philanthropyroundtable.org/almanac/article/big-picture-benefits-of-philanthropy>. Acesso em: 07 jul. 2021.

 

REIS, Ana Letícia. American Way of Life. Educa mais Brasil, em 20/07/2020. Disponível em: < https://www.educamaisbrasil.com.br/enem/historia/american-way-of-life>. Acesso em: 08 jul. 2021.

 

ROUBICEK, Marcelo. Qual o tamanho e o papel da filantropia no Brasil. Associação Paulista de Fundações, em 18 de abril de 2020. Disponível em: <http://www.apf.org.br/fundacoes/index.php/noticias/todas-as-noticias/4505-qual-o-tamanho-e-o-papel-da-filantropia-no-brasil.html>. Acesso em: 08 jul. 2021.

 

ZINSMEISTER, Karl. The Almanac of American Philanthropy: 2017 compacted edition. Washington D.C.: The Philathropy Roundtable, 2017.

 

 

[1] Mestrando em Direito, Governança e Políticas Públicas pela Universidade Salvador (Unifacs). Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Procurador da Fazenda Nacional. OAB/BA 26.154. E-mail: gugavasques@hotmail.com.

Âmbito Jurídico

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