1 INTRODUÇÃO
O absolutismo e o regime feudal no século XVII na Europa enfraqueceram e findaram com o crescimento da classe burguesa e a necessária mudança estrutural para o atendimento de seus interesses. Foi com a Ilustração que as novas propostas vieram à tona e se expandiram da Europa para todo o mundo.
Se na Idade Média a fé sustentava as premissas da sociedade, na Idade Moderna esse elemento basilar é substituído pela razão. Os dogmas, as crenças, o misticismo são deixados de lado, uma vez que somente passa a ser válido aquilo que possa ser comprovado cientificamente. As crenças existentes na sociedade tornam-se questionáveis empiricamente, sendo refutadas se não puderam ser racionalmente provadas como válidas.
Com o advento da Ilustração no fim do século XVII e início do século XVIII surge a valorização da razão como instrumento de eficácia dos objetos de conhecimento. Com a possibilidade do próprio homem escolher o que deve ou não ser aceito como verdadeiro, através da comprovação científica, diz-se que aflora nesse momento a exaltação da subjetividade, isto é, o homem, porque dotado de racionalidade, é um ser praticamente “imbatível”. Na modernidade, pois, verifica-se o fortalecimento da subjetividade, eis que se a razão governa o mundo, significa que o poder de comando está no homem que a detém, e não em explicações transcendentais como outrora.
O sujeito é dito “imbatível” porquanto capaz de alcançar tudo o que almejar mediante a racionalidade; não há mais limites para a extensão do conhecimento humano. A modernidade apresenta suas propostas, quais sejam, a individualidade, a autonomia e a universalidade, como frutos da razão.
Destarte, vislumbra-se a exaltação da razão na Idade Moderna e o conseqüente engrandecimento do sujeito e de suas potencialidades. Contudo, essa racionalidade emancipatória que fora prometida, não foi, de fato, vislumbrada pela sociedade em geral, tendo sido, por vezes, utilizada como instrumento de dominação das classes oprimidas.
Essa racionalidade emancipatória trazida pela modernidade foi objeto de críticas de muitos pensadores; nesse trabalho, porém, pretendemos nos ater na crítica à razão chamada instrumental tecida pela Escola de Frankfurt, movimento social surgido na Alemanha no início do século XX.
O presente trabalho acadêmico pretende, diante do que fora supra mencionado, tecer considerações acerca da Ilustração e sua importância para o surgimento da razão em substituição da fé, esclarecer em que consistiam as promessas da modernidade e analisar se tais promessas foram cumpridas, utilizando a perspectiva teórica da Escola de Frankfurt.
Urge ressaltar que não se tem a pretensão de esgotar o tema, apresentando apenas linhas gerais sobre esses assuntos, haja vista a vastidão de conteúdos inseridos nesses três momentos de estudo. Também importa frisar que a pesquisa tem como principal objeto a razão e sua passagem do momento em que é emancipatória para o momento em que é dita instrumental; assim, os autores escolhidos como merecedores de maior atenção tanto do Iluminismo, como do movimento da Escola de Frankfurt são os que abordaram de forma especial essa questão, não significando que tenham sido os únicos pensadores existentes no referido momento, tampouco que tenham maior importância em relação aos demais.
2 O ILUMINISMO E A EXALTAÇÃO DA RAZÃO
2.1 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA
Em fins do século XVII e início do século XVIII, a Europa vivia no Antigo Regime, cuja estruturação era de economia agrícola, política absolutista e sociedade organizada em clero, nobreza e povo.
A França encontrava-se sob o governo de Luís XIV, em regime absolutista também, responsável pela cultura conformista da época. Todavia, com o crescimento da sociedade burguesa, adveio o desenvolvimento cultural questionador dos valores tradicionais, avessos ao dinamismo capitalista.
O Estado, que antes fora visto como uma aproximação terrena de uma ordem eterna, com a cidade do homem modelada na cidade de Deus, passou a ser considerado como um arranjo mutuamente benéfico entre os homens, voltado para a proteção dos direitos naturais e do interesse próprio de cada um. O Estado torna-se objeto de críticas por vários intelectuais que demonstravam forte anseio de liberdade e anunciavam um novo Estado, condizente com o progresso cultural e científico em andamento. O Iluminismo, portanto, se fez crítico, reformista e revolucionário contra o Estado autoritário.
2.2 A ILUSTRAÇÃO
No século XVIII ocorre o rompimento com as formas de explicação dos fenômenos pela dedução e pela derivação sistemática, buscando um novo método fundado na calculabilidade e na análise racional. Diversamente da ordem anterior em que a razão é regra anterior aos fenômenos, essa passa a ser demonstrada nos próprios fenômenos; a observação é o dado e o princípio é a questão.
Com o movimento da Ilustração, em que ocorreu o apogeu das idéias iluministas, ocorreu o afastamento da estrutura e do funcionamento do Antigo Regime. Esse novo pensamento cultivado pela França no século XVIII espalhou-se por toda a Europa e chegou às Américas. De Portugal até a Rússia as idéias do Iluminismo tornaram-se mais e mais conhecidas por força de transformações ocorridas nesses países, mas também por influência das “idéias francesas”.
O século XVIII ficou conhecido como “Século das Luzes”, querendo o termo “luzes” demonstrar a capacidade de conhecer do homem mediante a razão, não estando mais limitado ao saber dos dogmas e aprisionado na escuridão do desconhecimento. O século XVIII é representado por uma força criadora única que é a razão, a qual, nos dizeres de CASSIRER significa “o ponto de encontro e o centro de expansão do século, a expressão de todos os seus desejos, de todos os seus esforços, de seu querer e de suas realizações”.[1]
É importante distinguir os termos “Ilustração” e “Iluminismo”: o primeiro refere-se à defesa da ciência e da racionalidade crítica contra a fé, a superstição e o dogma religioso, bem como das liberdades individuais e dos direitos do cidadão contra o autoritarismo e o abuso de poder que floresceram no século XVIII; o segundo trata de uma tendência intelectual não-limitada a nenhuma época específica, que combate o mito e apresenta o poder da razão.
Nos dizeres de ARANHA e MARTINS, o iluminismo “apresenta-se como processo que coloca a razão sempre a serviço da crítica do presente, de suas estruturas e realizações históricas”.[2] O Iluminismo traduz-se em um estado de espírito que se manifesta em reflexões filosóficas e aspectos da atividade humana fulcrados na convicção de que a razão, em seu progresso, pode esclarecer todas as questões, e de que a sociedade, mediante princípios racionais, pode ser reorganizada.
2.3 A ENCICLOPÉDIA DE DIDEROT E D’ALEMBERT
A obra que melhor sintetizou o pensamento iluminista foi a “Enciclopédia” ou “Dicionário razoado das ciências, artes e ofícios”, na qual se pretendia reunir os mais importantes conhecimentos científicos e artísticos da época.
O principal redator foi Denis Diderot, francês que estudara lógica, física, moral, matemática, metafísica, além de grego, italiano e inglês.
O prospecto da Enciclopédia é escrito por Diderot em 1750, e no ano seguinte é publicado o primeiro tomo, contendo o “Discurso Preliminar” de D’Alembert. A obra começa a ser perseguida. O segundo tomo surge em 1752 e o Conselho do Estado a proíbe. Em 1753, a proibição é suspensa, sendo publicado então o terceiro volume, seguindo-se a programação até 1757, quando surge o sexto volume. Ocorre um atentado ao Rei Luís XV, que faz o governo adotar medidas rigorosas contra as publicações consideradas subversivas, o que assusta os redatores da Enciclopédia e a abandonam aos poucos. Em 1759, proíbe-se que ela circule, sob o argumento de “destruir a religião e inspirar a independência dos povos”. Diderot não desiste e consegue que o editor a edite no estrangeiro, com alterações de artigos controvertidos escritos por Diderot. Até hoje não se completou a recomposição dos textos originais.
Em 1772, a Enciclopédia acaba de ser publicada, graças auxílios financeiros de Madame Pompadour, amante de Luís XV, com 36 volumes, que possibilitaram a compreensão do pensamento do século XVIII e das transformações que culminaram com a Revolução Francesa.
Coordenada por Diderot e D’Alembert[3], os organizadores (Quesnay, Turgot, Marmontel, Holbach e outros) chamaram-na de “Suma filosófica” para substituir a “Suma teológica” de Santo Tomás de Aquino.
Com a elaboração da Enciclopédia demonstrou-se a substituição da fé pela razão, como guia da humanidade. Era por meio da razão que se pretendia descobrir as leis naturais que governavam o universo. Tais idéias valorizavam ao extremo a atividade científica, criando-se a partir daí um verdadeiro culto à ciência.
Contudo, é importante ressaltar que através da Enciclopédia não se pretendeu simplesmente obter um mero acervo de conhecimentos, mas provocar uma mudança no modo de pensar do homem. Aqui está a diferença da concepção de razão para os pensadores do século XVII e para os do século XVIII: se no século XVII entende-se a razão como a região das verdades eternas, como a soma das idéias inatas que revela a essência absoluta de todas as coisas, no século XVIII, a razão define-se não como uma possessão, e sim como uma função que cumpre recorrer; a idéia de ser é substituída pela de fazer.
Vale dizer que no século XVII a razão é tida como um conteúdo determinado de conhecimentos, de princípios e de verdades, porém, passa a ser compreendida como uma forma de aquisição, como uma energia que possibilita a conquista do conhecimento. Com tal explicação não se quer firmar que houve uma ruptura do pensamento do século XVII para o do século XVIII; ao contrário, o que se vislumbra é uma continuidade, pois as pressuposições que tinham sido fixadas pela lógica e pela teoria do conhecimento do século anterior auxiliam para o surgimento do novo ideal do saber do Século das Luzes.
2.4 CIÊNCIA E ILUSTRAÇÃO: O VÍNCULO DIALÉTICO
No movimento da Ilustração evidenciou-se a glorificação da razão e da ciência como meios para a “suprema faculdade do homem”.[4]
O vínculo entre Ilustração e ciência foi eminentemente dialético: a ciência forneceu armas à Ilustração em sua campanha anti-religiosa, e a Ilustração incentivou o progresso e a independência do saber científico. Nesse sentido HORKHEIMER e ADORNO expõem que “o despertar do sujeito é pago pelo reconhecimento do poder como princípio de todas as relações. Frente à unidade de uma tal razão, a diferença entre Deus e o homem é reduzida àquela irrelevância que a razão já indicara resolutamente, desde a mais antiga crítica homérica. O Deus criador e o espírito ordenador são iguais entre si enquanto senhores da natureza”.[5]
A crença de que apenas a ciência levaria os homens a um mundo melhor foi acompanhada por uma série de críticas ao cristianismo e em especial à Igreja Católica e ao clero. O método racional foi aplicado até mesmo na religião, em que se procurou uma religião natural no sentido de racional, surgindo o deísmo que, ainda que não tivesse se tornado um movimento organizado, conflitou com o cristianismo por dois séculos. Para os deístas bastavam algumas verdades religiosas, sentidas como manifestação a todo o ser racional: existência de um Deus único, de um sistema de recompensas e punições distribuídas por aquele Deus e a obrigação dos homens à virtude e à piedade. Outros produtos da aplicação da razão à religião foram o ceticismo, o ateísmo e o materialismo.
A religião cristã foi fadada de irracional e contrária à natureza humana, haja vista a corrupção do clero e a forte ligação do catolicismo ao absolutismo de direito divino e aos privilégios feudais.
As críticas à religião não implicavam uma negação de Deus necessariamente; acreditavam em Deus como uma força que impulsionava o universo.
Para criar um mundo humano regido pela razão, era necessário afastar o fanatismo e a superstição. A Ilustração acaba de laicizar a vida. A campanha anti-religiosa ajuda a libertar a atividade científica de todos os entraves impostos pela religião.
ROUANET[6] entende que a Ilustração tentou emancipar grupos, e não só os indivíduos separadamente, como os negros, os judeus e as mulheres. A Ilustração condenou o anti-semitismo[7] e o machismo. Os filósofos eram feministas, pois contestavam a existência de qualquer diferença entre os sexos, além das anatômicas, e acentuavam o caráter ideológico de chavões sobre a especificidade da alma ou da natureza feminina, racionalizações pseudobiológicas para justificar a opressão masculina. Se a mulher não cultiva sua razão é porque foi condicionada para não pensar.
2.5 PENSADORES EM DESTAQUE
A filosofia do século XVII inaugurara as principais vertentes do pensamento moderno: o racionalismo de Descartes cujo escopo era reduzir o conhecimento científico a idéias claras e distintas, através da matemática; de outro, o empirismo inglês de Bacon que mostrava que todas as idéias se originavam na experiência sensível, não havendo nada no intelecto que não tivesse existido anteriormente nos sentidos. Partindo de origens diversas do conhecimento, convergiam no entendimento de que a verdade é obra do homem. Refutavam-se os mistérios acerca da visão do mundo medieval e colocava-se em seu lugar a noção de problema como algo que poderia ser resolvido mediante o método adequado.
Descartes e Bacon traziam na ciência a confiança em que todos os problemas poderiam ser resolvidos. O avanço da ciência, pois afastaria as sombras e traria a claridade da compreensão, o reino das luzes.
Assim, o século XVIII é caracterizado pelo otimismo que pairava na sociedade, decorrente do fim da ignorância, da superstição e da desigualdade.
O racionalismo de Descartes trouxe as potencialidades da razão, mas diferencia-se da razão do século XVIII porque no Iluminismo não se parte de princípios inatos do indivíduo, mas de uma força que se desenvolve com a experiência. A razão dedutiva de Descartes é substituída pela razão operativa do Iluminismo que atua sobre os dados provenientes dos sentidos.
Newton, por exemplo, procurava a explicação dos fenômenos naturais mediante a análise, afastando por completo a utilização de deduções. Assim, ele não inicia suas pesquisas partindo do conhecimento de certos princípios e certos conhecimentos universais, mas coloca em questão justamente os princípios, isto é, os princípios é que devem ser descobertos e não considerados conhecidos aprioristicamente. Ele parte do conhecimento dos fenômenos e busca a revelação dos princípios. Ele foi um dos pioneiros a perceber que os fenômenos naturais possuem explicações racionais que podem ser acessíveis ao homem pensante, demonstrando, pois, a inteligibilidade da natureza.
Com o princípio da gravidade universal, contribuiu para reforçar o fundamento de que o universo é governado por leis físicas e não submetido à interferência de cunho divino.
Assim, a razão não é mais concebida como repositório de verdades eternas, mas antes como fonte de energia intelectual. Os filósofos do Iluminismo renunciam a pretensão sistemática do século XVII e trabalham com outro conceito de verdade e de filosofia, entendidas como construções livres e móveis, concretas e vivas, devendo a razão ser vista como um caminho que deveria ser percorrido por todos os homens.
Entendeu-se, pois, necessária, ainda que de maneira singela, a explicitação específica do pensamento dos autores que seguem para que possa ser melhor demonstrada a significação da razão no século XVII (mediante as idéias de Descartes) e no século das Luzes (mediante as idéias dos enciclopedistas já vislumbradas, de Voltaire e de Kant e do pensamento original de Rousseau).
2.5.1 René Descartes (1596-1650)
A busca de Descartes era de uma verdade primeira que não pudesse ser posta em dúvida. Assim, ele converte a dúvida em método. Seu pensamento baseia-se na dúvida de absolutamente tudo, tendo fim esse incessante questionamento diante do seu próprio ser que duvida. Daí a conclusão de que “se duvido, penso; se penso, existo”, que dá origem a sua famosa premissa “penso, logo existo”. Esse cogito cartesiano demonstra o caráter absoluto e universal da razão que apenas com suas próprias forças pode chegar a descobrir todas as verdades possíveis. Defendeu, assim, a universalidade da razão como o único caminho para o conhecimento. Verifica-se que o método cartesiano pretende garantir que as imagens mentais correspondam aos objetos a que se referem e que são exteriores a essa mesma razão.
O desdobramento natural do “penso, logo existo” é existo: como coisa pensante. Do pensamento ao ser que pensa realiza-se um salto sobre o abismo que separa a subjetividade da objetividade.
O racionalismo cartesiano caracteriza o século XVII e opera dedutivamente a partir de princípios que não estariam fora do sujeito, mas no seu próprio interior, como “idéias inatas”.
Descartes comprova a existência de Deus mediante seus métodos e seus princípios, como o da causalidade, afirmando que somente por meio da existência de Deus pode-se explicar a existência de um ser finito e imperfeito, o eu pensante, porém dotado da idéia de infinito e de perfeição. A física cartesiana representa uma aplicação de sua metafísica, na qual Deus garante o conhecimento científico constituído a partir de idéias claras. Baseada primariamente no plano do pensamento, a física cartesiana resulta, assim, de construções abstratas, regidas pela razão.
A obra de Descartes manifesta um único objetivo: converter em pura claridade racional todos os fenômenos do universo. Certo de que a ele cabia a missão de construir a “cidade nova” da sabedoria, Descartes usou as armas da dúvida para combater a própria dúvida.
2.5.2 Voltaire (1694 – 1778)
Nascido em Paris, François Marie Arouet era de família da pequena nobreza, de espírito sátiro, pretencioso e malicioso. Após ter sido preso na Bastilha mais de uma vez, é exilado da França por se meter em confusões, indo para a Inglaterra, fato que o torna grande propagandista do pensamento inglês no continente, difundindo a teoria empirista de John Locke e a nova visão de mundo proveniente do método experimental-matemático de Newton. Mais tarde vai a Prússia a convite de Frederico II, mas por publicar escritos polêmicos é expulso também de lá. Passa por Genebra, incompatibilizando-se com Rousseau, tendo que se mudar novamente. Por fim, vai para Ferney, onde viveria quase até o fim da vida, cuidando de sua propriedade rural e escrevendo muito em defesa das idéias liberais e contra a Igreja Católica. Suas críticas e lutas pelos ideais da razão e da liberdade o tornaram conhecido e renomado publicamente.
Não era um filósofo propriamente dito porque não inovava no campo abstrato, mas tomava os ideais de filósofos que o agradava e defendia, buscando convencer de que aquele era o pensamento correto.
Com base na física newtoniana, Voltaire teceu críticas às teorias especulativas e demonstrou sua crença e seu temor a um ser supremo criador do universo. Com isso frisa-se que ele era contra a Igreja Católica, mas não contra Deus.
Seu pensamento ético e social parte da crítica à teoria de Pascal de que os homens são malvados e infelizes, acreditando no aprimoramento do homem e buscando incessantemente o valor que considerava primordial: a justiça.
Suas considerações a respeito de Locke e a teoria do conhecimento são muito importantes: louva-lhe a análise dos processos de formação do conhecimento, a negação da existência de idéias inatas independentes da experiência e a afirmação das limitações da mente para o conhecimento de todo o universo. No entendimento de Voltaire, Locke foi aquele que verdadeiramente escreveu a história da alma.
São categorias tratadas por Voltaire o empirismo, o ceticismo, o deísmo, a religião natural e o humanismo ético. É presente em sua convicção a existência do mal, passível de superação mediante a razão e o trabalho, em contraposição ao otimismo metafísico.
2.5.3 Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)
Nascido em Genebra, possuía imaginação exacerbada, personalidade romântica e visão profundamente dramática das relações humanas.
Rousseau desenvolveu a antítese fundamental entre a natureza do homem e os acréscimos da civilização nas obras “Sobre as ciências e as artes” e “Sobre as origens da desigualdade”. Para ele, a civilização é responsável pela degeneração das exigências morais mais profundas da natureza humana e sua substituição pela cultura intelectual.
Seu pensamento era uma exceção entre os iluministas porquanto criticava a burguesia e a propriedade privada[8] que, segundo ele, era a raiz das infelicidades humanas. Na sociedade ideal de Rousseau, a vontade do povo deve expressar-se sempre mediante o voto e essa vontade, necessariamente justa, deve prevalecer sobre qualquer outra consideração. Defendia o sufrágio universal, pois segundo sua concepção “o que a maioria decide é sempre justo no sentido político e torna-se absolutamente obrigatório para cada um dos cidadãos”.
Ao contrário dos demais iluministas, achava que o sentimento era fonte e direção para o conhecimento e a felicidade humana, era o instrumento de penetração na essência da interioridade. Isso porque constatava a perda de consciência do homem culto pela ostentação da inteligência e da cultura. Para ele, a conquista intelectual verdadeira realiza-se na luta contra os obstáculos e na atividade criadora do espírito livre de pressões. Via a liberdade como bem supremo do homem. O que Rousseau pregava era deixar de lado as convenções da razão civilizada e imergir no fundo da natureza mediante o sentimento. Essa imersão mística no infinito da natureza equivale a penetrar na própria interioridade, alcançar a consciência da liberdade e atingir o sentimento íntimo da vida, com o qual o homem teria consciência de sua unidade com os semelhantes e com a universalidade dos seres.
Acreditava também no aperfeiçoamento humano, mediante a educação, reforçando sua concepção do “bom selvagem”, a bondade natural do homem investindo contra a sociedade de seu tempo. A vida do homem primitivo seria feliz porque ele sabe viver de acordo com suas necessidades inatas. Para ele, desde suas origens o homem natural é dotado de livre arbítrio e sentido de perfeição.
É interessante notar a originalidade do pensamento de Rousseau quanto à compreensão da natureza. Os enciclopedistas do século XVIII tomavam a natureza como fonte de conhecimentos e faziam dela critério de julgamento de idéias e instituições, além de arma de luta contra a tradição escolástica. Para eles, no entanto, a natureza é concebida essencialmente como matéria e movimento mecânico, inteiramente exterior ao sujeito. Para Rousseau, contrariamente, a natureza palpita dentro de cada ser humano, como sentimento de vida. Por esse motivo, ficou contra os filósofos, não querendo ser assim denominado: “vi muitas pessoas que filosofam muito mais doutamente do que eu; mas sua filosofia parecia, por assim dizer, estranha…Estudavam o universo como teriam estudado qualquer máquina que tivessem visto por curiosidade. Estudavam a natureza humana para poder falar sabiamente dela, não para conhecerem-se a si mesmos”.
Suas idéias foram aceitas pelas camadas populares e pela pequena burguesia, pois atendia às expectativas de um Estado democrático.
2.5.4 Immanuel Kant (1724-1804)
Nascido em Königsberg, na Prússia, estudou no Colégio Fridericianum e na Universidade de Königsberg, tendo se tornado professor catedrático dessa, após anos como preceptor de filhos de famílias ricas. Kant não casou, nem teve filhos, tendo falecido em 1804 sem jamais ter saído da cidade em que nasceu. Era um homem extremamente metódico, de pequena estatura e físico frágil.
Seu objeto de investigação era o universo espiritual do homem, o qual compunha-se de duas grandes questões: a primeira relativa ao conhecimento, suas possibilidades, seus limites e suas esferas de aplicação; a segunda concernente à ação humana, isto é, o problema da moral. Quanto à primeira questão, a filosofia do século XVIII defrontava-se com duas ciências que se apresentavam como conjuntos de conhecimentos certos e indiscutíveis: a matemática e a física. No que tange à segunda questão, tratava-se de saber o que o homem deve fazer, como agir em relação aos seus semelhantes, como proceder para obter o bem supremo. Essa área da reflexão filosófica e sua oposição à razão apenas cognitiva foi revelada a Kant, sobretudo pelas obras de Rousseau, que formulou uma filosofia da liberdade e defendeu a autonomia e o primado do sentimento sobre a razão lógica. Por outro lado, embora Kant vivesse longe dos grandes centros, sempre teve consciência dos problemas sociais e políticos da época e tomou partido favorável à Revolução Francesa, na qual via não apenas um processo de transformação econômica, social e política, mas, sobretudo, um problema moral.
Ele é autor do método denominado criticismo, que se refere ao questionamento da possibilidade de existência de uma “razão pura”, o qual consta na obra Crítica da razão pura. Kant procura superar a dicotomia racionalismo-empirismo do século XVII, mediante a explicação de que o conhecimento é constituído de matéria e forma, sendo essa composta de nós mesmos e àquela composta dos nossos conhecimentos. Desse modo, o conhecimento é constituído de forma a priori do espírito e de matéria obtida pela experiência sensível.
Esse pensador acredita não ser possível conhecer as coisas exatamente como são, sendo possível tão-somente conhecer os fenômenos. Disso resulta que a realidade não é um dado exterior ao qual o intelectual deve se conformar, mas, contrariamente, o mundo dos fenômenos só existe à medida que aparece aos indivíduos, os quais podem participar de sua constituição.
Para Kant, a vontade do indivíduo não é determinada nem por uma normatividade imposta pela natureza, nem pela busca do interesse individual ou coletivo, mas sim pela própria razão, a qual, em seu uso teórico permite o conhecimento e em seu uso prático determina a ação. Seu “imperativo categórico” afirma a autonomia da vontade como único princípio de todas as leis morais e essa autonomia consiste na independência em relação a toda a matéria da lei e na determinação do livre arbítrio mediante a simples forma legislativa universal de que uma máxima deve ser capaz.
É conhecida a diferenciação que Kant faz do uso privado e público da razão. Quando o indivíduo se expressa como funcionário de uma instituição secular ou religiosa, tendo limitações decorrentes do cargo, faz uso privado da razão. Será considerado uso público da razão quando o indivíduo se expressar na qualidade de intelectual, perante os leitores, não tendo nenhuma limitação.
O pensamento kantiano ficou conhecido como idealismo transcendental, sendo o transcendental relativo àquilo que é anterior a toda a experiência.
03 AS PROPOSTAS DO ILUMINISMO
É facilmente verificável que no Iluminismo há um otimismo no poder da razão de reorganizar a sociedade humana. Para tanto, apresenta-se a razão emancipatória, a qual ocasiona o irromper do sujeito. A partir desse momento histórico é o sujeito que passa a determinar a organização do poder, a forma de encarar a sociedade, o modo de fundamentar as reflexões e a maneira de regulamentar a vida social. Nas palavras de FONSECA[9], o Iluminismo é o ápice do sujeito, pois o considera como plenamente guiado pela razão, o que demonstra a suma confiança nas potencialidades de saber e agir do sujeito.
Com isso, evidencia-se a correlação da subjetividade com a modernidade. Essa subjetividade moderna se manifesta por três características principais, bem colocadas por ROUANET[10]: universalidade, individualidade e autonomia.
3.1 UNIVERSALIDADE
A universalidade significa que o pensamento deve ser universal, sem fronteiras, atingindo de forma igual a todos os seres humanos e condenando nacionalismos e particularismos. Essa premissa afirma a autodeterminação dos povos, a igualdade entre os sexos e as etnias e a uniformidade da natureza humana em todas as culturas.
A modernidade prega a unidade e imutabilidade da razão, ou seja, a razão é una e idêntica para todo o indivíduo pensante, para toda a nação e cultura, em todas as épocas. Como sintetiza FONSECA[11], “O sujeito, assim, é tomado de modo universal, como dotado de uma generalidade que não pode ser cindida pelos particularismos étnicos, religiosos, nacionais ou de gênero: o sujeito humano é dotado de caracteres genéricos- e, tendo-se que todas as formas de hierarquias (como aquelas das sociedades tradicionais) são rejeitadas por arbitrárias, todas as pessoas devem ser tratadas como iguais”.
3.2 INDIVIDUALIDADE
O foco individualizante da Ilustração afastou a idéia das sociedades tradicionais anteriores de que o homem só existe como parte do coletivo, liberando o indivíduo da matriz coletiva e possibilitando a titularidade de direitos. Ademais, o individualismo ilustrado colocou os indivíduos em posição de exterioridade com relação ao mundo social, permitindo a observação da sociedade e a formação de juízos éticos e políticos a partir de princípios universais e não locais.
O titular de direitos universais é o indivíduo, que emerge de sua comunidade, de sua cultura e de sua religião para ser tomado em si mesmo, a partir de suas exigências próprias e seus direitos intransferíveis à felicidade e à auto-realização. Os seres humanos seriam considerados como pessoas, não como elementos de uma coletividade. É oportuna a citação de FONSECA[12]: “o indivíduo é o centro das demandas e o destinatário das atenções sociais, políticas e jurídicas. Isto não quer significar que é rejeitada a possibilidade de existirem determinadas coletividades particulares, mas sim que o titular de direitos universais é o indivíduo. É ele que constrói a sua própria identidade”.
3.3 AUTONOMIA
A autonomia consiste em poder pensar por si mesmo. É representada pelo poder de agir livremente, sem interferências, estando facultado utilizar a razão como quiser e produzir cultura. É mediante a autonomia que advém os direitos de participar da constituição da esfera pública e do processo de produção e consumo dos bens e serviços.
Ela se subdivide em autonomia intelectual, política e econômica. Essa consiste no livre direito de participação nas esferas da produção, da circulação e do consumo; esta representa a superação de toda a forma de despotismo, valorizando a liberdade civil e política; aquela, por sua vez, significa que a razão deve ser o guia no desvelamento do mundo, afastando totalmente as crenças.
ROUANET[13] explica que a autonomia intelectual tinha como escopo “libertar a razão do preconceito, isto é, da opinião sem julgamento”das autoridades, religiosa ou secular. O autor denuncia o papel da religião como responsável pela paralisação da inteligência e aponta a importância da educação e da ciência para “dissipar a luz da verdade as quimeras e fantasias da superstição”.
No que tange à autonomia política, é entendida como a “liberdade de ação do homem no espaço público”, nos dizeres do autor supramencionado, que apresenta a vertente liberal cuja proposta era de um sistema de garantias contra a ação arbitrária do Estado e era pregada por Montesquieu, Diderot e Voltaire, e a vertente democrática de Rousseau que acreditava insuficiente proteger o cidadão contra o governo, devendo fazê-lo contribuir para a formação do governo.
A autonomia econômica, por sua vez, tratava de afastar o contraste de auferição da renda, pois os iluministas sentiam que a pobreza impedia a progresso moral e o exercício dos direitos civis, apesar de os filósofos terem a convicção de que o estado civilizado exigia a criação de certas desigualdades.
3.4 PROMESSAS NÃO CUMPRIDAS
As palavras de SANTOS são bem explicativas do que ocorreu com as propostas iluministas: “Trata-se de um projeto contraditório, pois de um lado a envergadura de suas propostas abre um vasto horizonte à inovação social e cultural e, por outro, a complexidade de seus elementos constitutivos torna praticamente impossível evitar que o cumprimento das promessas seja nuns casos excessivo e noutros insuficientes”.[14] De fato, a ousadia de um propósito tão vasto contém em si a semente de seu próprio fracasso: promessas incumpridas e déficits irremediáveis.
Os iluministas propagaram idéias que não puderam ser verificadas e atingidas na realidade. Se reconheciam a autonomia econômica que dava o direito de cada indivíduo de dispor do mínimo para sobreviver, as demais dimensões da autonomia não foram com ela interligadas.
A modernidade anunciou propostas irrefutáveis que não se mostraram presentes, e acabou por se revelar incapaz de reorganizar o caos que atinge a todos, coisificando o mundo e o ser humano. O universalismo foi afastado por particularismos nacionais, culturais, racionais e religiosos, não atentando para diferenças reais. A individualidade é utopia ao se ver presente o conformismo e a sociedade de consumo em que uns almejam certos bens, não por necessidade, mas porque os outros têm. Além disso, deixou-se de lado a utilidade coletiva e o fato de todo o indivíduo ser social, à medida que o telos da individualização crescente só pode ser alcançado socialmente. A autonomia vem sendo negada em suas três formas: intelectual, haja vista o ressurgimento de crenças em duendes, bruxas e gnomos; política, porquanto encenada apenas para o formalismo eleitoral e econômica, diante das condições de pobreza absoluta em que a parcela considerável da população mundial vive, e econômica, pois a igualdade muitas vezes pregada não foi buscada na prática.
A modernidade não pode arcar com os pressupostos anunciados, pois, a razão que seria o instrumento realizador de maravilhas, tornou-se, na verdade, o mecanismo de dominação da minoria desamparada. Se aos indivíduos foi prometido que eles teriam autonomia, igualdade e individualidade, graças à razão emancipadora, o que ocorreu de fato foi a utilização da razão apenas para satisfazer a busca desenfreada pelo lucro e para explorar os mais fracos. Esclarecem ARANHA E MARTINS:
“(…) quando a racionalidade assume as vestes de razão de Estado ou de razão econômica (como no caso do Brasil), estamos lidando com uma visão parcial e instrumental da razão que tenta adequar meios a fins. É a razão que observa e normaliza, razão que calcula, classifica e domina, em função de interesses de classes e não dos interesses da sociedade como um todo. E, se o poder que oprime fala em nome da racionalidade, para combatê-la parece necessário contestar a própria razão”.[15]
Essa razão instrumental foi objeto de críticas de muitos estudiosos, bem como da Escola de Frankfurt, como veremos a seguir.
4 A CRÍTICA À RAZÃO NA PERSPECTIVA DA ESCOLA DE FRANKFURT
4.1 O QUE É A ESCOLA DE FRANKFURT
A Escola de Frankfurt foi um movimento social iniciado em 1923, na Alemanha, com o advento do Instituto para Pesquisa Social, fundado por iniciativa de Félix Weil. Participaram do movimento intelectuais de origens e influências teóricas distintas, visando elaborar uma crítica radical daquele tempo. Eles interpretaram a vitória do nazismo e a derrota das esperanças revolucionárias como objeto de crítica e não de mera análise, como tantos outros pensadores.
É importante destacar que não teria havido Escola sem o Instituto. A idéia de uma “Escola específica” só se desenvolveu depois que o Instituto foi obrigado a abandonar Frankfurt em decorrência da chegada de Hitler no poder. A própria expressão Escola de Frankfurt só foi utilizada depois do regresso do Instituto à Alemanha em 1950. Ademais, o termo “Escola de Frankfurt” pode dar uma idéia de convergência e concisão de temas estudados e de caminhos teóricos, o que raramente ocorreu. A atuação conjunta de diversos pensadores nesse movimento intelectual é explicada pela “capacidade intelectual e crítica, sua reflexão dialética, sua competência dialógica ou aquilo que Habermas viria a chamar de “discurso”, ou seja, o questionamento radical dos pressupostos de cada posição e teorização adotada”, nos dizeres de FREITAG[16].
A Escola de Frankfurt pode ser estudada mediante a divisão dos momentos históricos, ou considerando a liderança exercida, ou conforme tantos outros critérios.
FREITAG[17] utiliza-se da divisão por momentos históricos e por liderança. Pelo critério dos momentos históricos há três fases de análise: o primeiro, tratando da proposta inicial da Escola, parte da fundação do Instituto para Pesquisa Social em 1923 e vai até 1932, período em que são criadas filiais do Instituto em outros países em decorrência do nazismo; o segundo momento inicia-se em 1933, quando o Instituto é transferido para Genebra e vai até 1950, quando ocorre o retorno à Frankfurt, representando o período de exílio; a terceira fase pode ser denominada de “reconstrução” do Instituto e ocorre no período de 1950 a 1970. Considerando o critério da liderança exercida no grupo, a autora faz outra divisão: inicialmente (período de antes e durante a Segunda Guerra Mundial até a volta de Horkheimer e Adorno para Frankfurt em 1950) o líder é Horkheimer. Um segundo momento seria o período de reconstrução do Instituto, em que Adorno assume a sua direção intelectual, introduzindo o tema da cultura e desenvolvendo em sua teoria estética uma versão especial da teoria crítica. Por fim, o destaque é dado a Habermas, cujo estudo traz a teoria da ação comunicativa como proposta de resolução dos impasses criados por Horkheimer e Adorno, iniciando-se na década de 70 e estando ainda em desenvolvimento – o que pode sustentar a ausência de um ponto final à Escola de Frankfurt, apesar da discussão sobre a consideração de Habermas como frankfurtiano.
É importante notar que foi a “primeira geração de frankfurtianos” que tornou a Escola de Frankfurt renomada e conhecida mundialmente, sendo representantes incontroversos do movimento Horkheimer e Adorno[18].
Os filósofos desse movimento têm formação marxista, motivo pelo qual discordam do ponto de vista hegeliano de que a História é obra da própria razão, sem que essa seja condicionada social, econômica e politicamente. Hegel estaria equivocado ao entender que a razão seria uma força autônoma e histórica criadora da própria sociedade, da política e da cultura. Todavia, apóiam-se nas considerações de Hegel acerca das mudanças históricas que ocorrem pelos conflitos e contradições e na continuidade temporal entre as formas de racionalidade. Assim, cada forma de racionalidade nova advém da superação dos conflitos das formas anteriores, sem haver ruptura histórica entre elas. Enquanto Hegel sustentava que a razão determina a sociedade, os frankfurtianos compreendiam que a sociedade é que condiciona a razão.
Os frankfurtianos desenvolveram uma explicação sobre o fenômeno do totalitarismo de ordem metafísica: é na constituição do conceito de razão que esses filósofos alojam a origem do irracional.
Para tais pensadores, há duas formas de razão, a instrumental, que está a serviço da exploração e da dominação, e a crítica, que reflete sobre as contradições e os conflitos sociais e políticos, sendo uma força libertadora.
A crítica à razão torna-se a exigência revolucionária para o advento de uma sociedade verdadeiramente racional, à medida que se tem uma racionalidade instrumental forte direcionada para a dominação da natureza e para fins lucrativos, que coloca a ciência e a técnica a serviço do capital.
4.2 A TEORIA CRÍTICA
A Escola de Frankfurt, mediante sua Teoria Crítica da sociedade, traz um referencial teórico e uma metodologia capazes de criticar a visão técnico-científica dos pressupostos iluministas, conforme se vislumbra na colocação de HORKHEIMER e ADORNO[19]:
Mas, enquanto o iluminismo conserva seu direito contra qualquer hipótese de utopia e enuncia impassível a dominação enquanto ruptura, a cisão entre sujeito e objeto, cujo encobrimento é por ele proibido, converte-se em índice da verdade e de sua própria inverdade. O desterro da superstição sempre significou o progresso da dominação, ao mesmo tempo que seu desnudamento. O iluminismo é mais do que iluminismo, natureza que se torna perceptível na sua alienação. (…) A sujeição à natureza consiste na sua dominação, sem a qual não existe espírito.
Os pensadores da Escola de Frankfurt elaboraram uma Teoria Crítica, em oposição à Teoria Tradicional existente: se a Teoria Tradicional era representada pelo pensamento cartesiano da não-contradição, da observação, do experimento, da manipulação do mundo exterior e da separação rigorosa entre sujeito e objeto (independência do acontecimento objetivo em face da teoria), a Teoria Crítica vem apresentar o pensamento negativo, da emancipação e do esclarecimento, da validade da teoria apenas se for cognitivamente aceitável quando sobreviver a uma avaliação mais complicada, da contradição que não separa sujeito e objeto (ou seja, a própria teoria será objeto de estudo; tratará em parte a respeito de si mesma, sendo auto-referentes), haja vista o entendimento dos frankfurtianos de que a separação do objeto da teoria equivale à falsificação da imagem, conduzindo ao conformismo e a submissão.
Horkheimer não concorda com o procedimento da Teoria Tradicional que, ao constatar problemas na teoria com a qual se deparam, não procuram resolvê-los, mas simplesmente buscam outra teoria[20].
O comportamento “crítico” pressupõe uma inter-relação da sociedade com seu objeto, em que os indivíduos jamais aceitam como naturais os empecilhos que são colocados na sua atividade. O sujeito não procura se conformar com a situação objetiva que lhe é proposta, questionando, avaliando e trabalhando para que o objeto seja transformado. É essa ausência de premissas e o incessante suspeitar que caracteriza o caráter dialético do homem que é regido pelo pensamento crítico. HORKHEIMER, em trabalho célebre (e por isso exaustivamente citado nessa parte do trabalho), demonstra a função transformadora da teoria crítica na sociedade: “a função da teoria crítica torna-se clara se o teórico e a sua atividade específica são considerados em unidade dinâmica com a classe dominada, de tal modo que a exposição das contradições sociais não seja meramente uma expressão da situação histórica concreta, mas também um fator que estimula e que transforma”.[21]
A Teoria Tradicional a que a Teoria Crítica se contrapõe afasta a aplicação da teoria a um papel determinado na práxis. O conceito tradicional de teoria a considera um encadeamento sistemático de proposições válidas, perfeitamente interligadas e não-contraditórias em um universo delimitado. Nessa concepção tradicional, o pensamento é visto como isolado da realidade social[22], diversamente do pensamento crítico que pretende anular a oposição entre a consciência dos objetivos e a racionalidade do indivíduo, por um lado, e, por outro, as relações sociais. Nos dizeres de HORKHEIMER[23], “o pensamento crítico contém um conceito do homem que contraria a si enquanto não ocorrer esta identidade. Se é próprio do homem que seu agir seja determinado pela razão, a práxis social dada, que dá forma ao modo de ser (Dasein), é desumana, e essa desumanidade repercute sobre tudo o que ocorre na sociedade”.
Outra diferença entre os pensamentos tradicional e crítico é acerca da consideração do sujeito, pois, se para o primeiro o sujeito era representado em sua individualidade, ou seja, um ponto dentro da coletividade (podendo ser indivíduo o burguês, apenas), para o segundo, o sujeito é considerado conscientemente como sujeito a um indivíduo inserido em seus relacionamentos efetivos com outros indivíduos e grupos, vinculado ainda com o todo social.
Urge destacar a aceitação da contradição pelo pensamento crítico e sua importância. Na forma tradicional de teorizar, o princípio da não-contradição está sempre em evidência, traduzindo a perfeição dos pressupostos científicos (sem correlação com a prática) que embasam a teoria cuja estrutura nega a existência de uma premissa divergente de outra. O pensamento crítico, inovando o conceito de teoria, admite a contradição, porquanto considera a teoria um conjunto de conceitos que encontram veracidade em uma situação da práxis, a qual está em constante transformação; assim, à medida que se formula um conceito com base na vivência social, é comum acontecer de a prática ser alterada e a teoria tornar-se contraditória.
A partir desses preceitos advém a dialética negativa que estabelece afirmações a partir da negação, ou seja, a teoria pode estar lastreada em uma situação de negatividade que afirma uma situação positiva. Para deixar mais claro, Horkheimer exemplificou na situação da criança: ela é um não-adulto, qualificada, pois como criança, ou seja, sua situação positiva de “ser” criança é constatada a partir de uma situação negativa do que ela não é. Esse pensador leciona que há nessa situação um único núcleo imutável que é “este ser humano”, diferentemente da posição positivista que sustenta a inexistência de identidade, pois primeiro há uma criança, depois um adulto e ambos constituem um complexo de fatos diferentes. Esse frankfurtiano é severo ao considerar que “esta lógica não está em condições de compreender que o homem se transforma e apesar disso permanece idêntico a si mesmo”.[24]
A Teoria Crítica, pois, consiste em uma nova visão da filosofia que procurou tratar da crítica à sociedade burguesa, ao marxismo dogmático da época stalinista, à filosofia tradicional e à razão instrumental, sendo essa última o foco de atenções nessa pesquisa.
4.2.1 A crítica à razão instrumental
Como já foi amplamente mencionado, o iluminismo trouxe a lume a razão e suas potencialidades, tornando o indivíduo capaz de determinar-se incondicional e ilimitadamente por ela. Foi visto também que essas potencialidades não se fizeram presentes como foram propostas, causando déficits sociais.
A Escola de Frankfurt, entre outras discussões que suscita, atenta para o advento da razão instrumental, objeto desse estudo no momento. Essa razão instrumental consiste em uma razão que sujeita os indivíduos e a vida social ao conhecimento técnico e empírico apresentado pelas classes dominantes, ocasionando um processo de desumanização.
Nas palavras de PIZZI[25],
Horkheimer e Adorno não negam que a razão instrumental tem em si mesma, certa possibilidade de emancipação. Esta é, porém, uma tentativa eivada de uma fé ingênua nas ciências empíricas que, ao término de tudo, quase sempre recai no mito, na barbárie e na dominação. A razão instrumental determina um saber voltado para a técnica e a dominação da natureza e dos homens, tolhendo qualquer tentativa de promover uma situação na qual os sujeitos possam almejar a verdade.
(…) A Teoria Crítica é a tentativa de redefinir um conceito de razão mais amplo, tanto na dimensão teórica como no plano da prática, de maneira que se possam destruir as barreiras da racionalidade instrumental. A Teoria Crítica diz que essa razão se transformou num poder que define os homens como meros manipuladores de instrumentos e transforma as pessoas em máquinas. Esses pressupostos se apóiam no princípio objetivista da ciência que reduz o sujeito a mero objeto de observação e controle.
GEUSS ressalta a fundamental interpretação frankfurtiana acerca de determinantes inconscientes da consciência e do comportamento conduzidas pelas instituições sociais coercitivas, as quais não são percebidas pela teoria anterior cuja orientação levava os indivíduos a aceitaram a figuração do mundo e agirem conforme o que estava posto, pensando falsamente que estariam se comportando livremente.Esse autor esclarece que “a teoria crítica “dissolve” a “ilusão objetiva”, isto é, rejeita a alegação de ser objetivamente válida a figuração de mundo”[26].
É na obra conjunta de Adorno e Horkheimer denominada Dialética do Esclarecimento que o racionalismo é inicialmente criticado, juntamente com a mitologia, motivo pelo qual faz-se necessária a abordagem de alguns pontos dessa obra.
Para Adorno a intenção do desenvolvimento do estudo da Dialética do Esclarecimento era provar a pertinência dos conceitos sobre a dialética do progresso musical para a teoria da sociedade e a filosofia da história. Para Horkheimer a idéia era a integração da crítica do positivismo e da antropologia burguesa numa perspectiva mais ampla e de tirar as conseqüências teóricas de sua crítica da eliminação dos problemas religiosos e de seu reconhecimento de que a crítica de Benjamin do progresso era correta. Combinados esses propósitos, os autores pretendiam descrever o futuro do capitalismo engajado na rota do fascismo.
O termo “Esclarecimento” queria significar a libertação dos homens do medo, mas, concomitantemente, afirmavam que nesse “Esclarecimento” estava inseria a dominação do mítico. Com isso pode-se crer que “Esclarecimento” estaria significando ora o sentido positivo e ora o sentido negativo. Todavia, o que os autores realmente pretendiam era demonstrar que o falso esclarecimento impede a vitória das verdades, a qual seria a única a poder preservar as fatais conseqüências das falsas “Luzes”. Nesse sentido é importante a explicação de Adorno a Löwenthal:
Tem-se, muitas vezes, a impressão de que nós nos refugiamos quase “dogmaticamente” por trás da razão objetiva, depois de definir o caráter incontornável da razão subjetiva. Na verdade, dois pontos devem aparecer claramente: primeiro, que não existe “solução” positiva no sentido de uma filosofia que, simplesmente, se opusesse à razão subjetiva; segundo, que a crítica da razão subjetiva só é possível dialeticamente – isto é, mostrando as contradições que seu próprio desenvolvimento contém e superando-as por sua negação determinada. (Carta de Adorno a Löwenthal, de 3 de junho de 1945).
O objetivo dessa obra era, conforme constava na apresentação do volume mimeografado, “a defesa do racionalismo pela revelação das implicações perniciosas que lhe são inerentes e pela demonstração de que certos elementos críticos, que eram, outrora, dirigidos contra os ideais humanistas do Aufklärung[27], podem integrar-se a ele com bom resultado”; “ uma análise crítica da civilização em sua fase atual de integração industrial em grande escala, de controle manipulador, de progresso tecnológico e de padronização. Eles buscam as origens da crise manifesta da civilização moderna na história e nos processos que permitiram que a humanidade estabelecesse seu controle sobre a natureza. Os dois pontos altos de suas pesquisas são a mitologia e o racionalismo”. Assim, verifica-se a preocupação em desvelar a razão instrumental presente na sociedade.
4.3 PENSADORES EM DESTAQUE
Já foi mencionado que Horkheimer e Adorno foram personalidades marcantes da Escola de Frankfurt. Ambos criticaram a razão exaltada no iluminismo, uma vez que essa se traduziu na sociedade como meio de alienar as massas:
Hoje que a utopia de Bacon, de podermos “ter a natureza, na práxis, a nosso mando”, concretizou-se em proporções telúricas, torna-se manifesta a essência da coação, por ele atribuída à natureza não dominada. Essa essência era a própria dominação. O saber, que para Bacon residia indubitavelmente na “superioridade do homem”, pode passar agora à dissolução dessa dominação. Mas, face a semelhante possibilidade, o iluminismo a serviço do presente transforma-se no total engano das massas. (HORKHEIMER, Max, ADORNO, Theodor. Conceito de iluminismo in Os pensadores . Pg. 116).
No entendimento desses pensadores, as potencialidades da razão possibilitaram seu desvirtuamento, fazendo surgir uma racionalidade voltada para o atendimento das finalidades das classes dominantes, denominada “razão instrumental”.
Esse entendimento comum a ambos pode ser atribuído às influências filosóficas coincidentes[28], como Immanuel Kant, Georg Hegel, Karl Marx, Friedrich Nietzsche e Sigmund Freud.
No concernente a Kant, ambos foram alunos de Hans Cornelius, um neokantiano que lecionou em Frankfurt e orientou suas teses de habilitação. Quanto a Hegel, Horkheimer trabalhou as relações entre ele e Kant, libertando-se da influência de Cornelius. Adorno foi influenciado pelo hegelianismo mediante a leitura de Lukács ainda não marxista e de Ernst Block. A influência mais decisiva para o irromper da teoria crítica da sociedade foi certamente a de Marx, a começar pela fundação do Instituto para a Pesquisa Social que pretendia inicialmente abrir um espaço para a reflexão marxista. Horkheimer, ao escrever seu opúsculo Teoria Tradicional e Teoria Crítica pretendeu homenagear os sessenta anos de publicação do primeiro volume de O capital, de Marx, querendo demonstrar a necessidade de toda a teoria social ser crítica e transformadora da realidade. A influência de Nietzsche, por sua vez, ainda que relativo ao pensamento oficial da direita alemã e da caracterização da Escola como de esquerda, encontra-se no período de formação e de produção anterior à Dialética do Esclarecimento, em virtude de sua dimensão libertária.Em relação a Freud, ambos reconheciam a importância da psicanálise, tendo Adorno se utilizado de conceitos freudianos para a análise de objetos estéticos e Horkheimer contribuído para a divulgação da psicanálise na Alemanha. Foi assim que os expoentes da Escola de Frankfurt construíram seu pensamento, que merece destaque conforme veremos a seguir.
4.3.1 Max Horkheimer (1885- 1973)
Nascido em 1885 em Stuttgart, era judeu de origem, como todos os intelectuais da Escola de Frankfurt. Teve a motivação de uma emancipação progressiva por influência inicialmente de Friedrick Pollock. Estudou psicologia, filosofia e economia política. Os professores que o marcaram foram o psicólogo Schumann e o filósofo Hans Cornelius.
Schumann pertencia à escola da Gestaltpsychologie[29], tendo influenciado o tema da tese de doutorado de Horkheimer, que seria em psicologia (Modificações de forma na zona insensível às cores da íris do olho), não fosse a publicação em Copenhague de uma pesquisa quase idêntica, fazendo Cornelius sugerir a Horkheimer, seu orientando, que elaborasse um trabalho filosófico (Sobre a antinomia da faculdade teleológica de julgar), o qual fora defendido com êxito. Cornelius convidou Horkheimer para tornar-se seu assistente, seguindo, então, carreira universitária em filosofia.
Apesar de vir de uma família rica (possuidores de indústrias), tinha como compromisso, a partir do pessimismo schopenhaueriano, despertar a consciência pesada dos privilegiados, pois não aceitava “que todos aqueles cavalheiros e damas distintos não só exploravam continuamente a miséria dos outros, mas ainda produziam-na, renovavam-na para poder viver a sua custa e aprontavam-se para defender esse estado de coisas ao preço do sangue alheio, tanto quanto preciso fosse”(Dämmerung[30], 329). Por outro lado, Horkheimer notava que os privilegiados eram beneficiados por suas qualidades, ao passo que os pobres e os trabalhadores eram mesquinhos: “A inteligência e todas as outras capacidades se desenvolvem tanto mais facilmente quanto mais elevado for o padrão de vida ….Isso não vale apenas para as competências sociais, mas também para o resto das qualidades do indivíduo (…)”(265). Ele afirmava que aqueles que vivem na miséria têm direito ao egoísmo material de almejar fortemente a melhoria da existência material, por meio de uma organização racional das relações humanas.
Willy Strzelewicz, bolsista do Instituto durante os anos de 1928 a 1931, caracterizou Horkheimer como um filósofo burguês próximo do marxismo (mas longe do marxismo de Lukács) e do comunismo, semineokantiano semipositivista, docente que gostava de proporcionar discussões abertas, estando distante da filosofia “interpretativa” de Adorno e Benjamin.
O que diferencia a perspectiva de Horkheimer e de Adorno é que, para o primeiro, a razão poderia ser vista de duas formas, quais sejam, a objetiva e a subjetiva, e para Adorno a razão era única.
Para a concepção de Horkheimer, a razão objetiva possibilitava a escolha de fins em si razoáveis e era a existente na modernidade emergente e nas metafísicas; a razão subjetiva, por sua vez, designava a faculdade do espírito de mobilizar os meios mais adequados para atingir os fins, sem que esses fossem suscetíveis de uma avaliação racional.
Enquanto para Adorno o fim da transcendência resulta do desaparecimento da estrutura dilemática da razão iluminista, para Horkheimer ele é explicado pela hegemonia da razão subjetiva.
No texto “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”, ele mostra a não-divisão entre teoria conceitual e práxis social. A Teoria Crítica reunifica a razão e sensibilidade, tornadas antagônicas pelo pensamento dualista que separa sujeito e objeto de conhecimento. Assim, a teoria por ele proposta sugere uma sociedade considerada no seu “todo”.
Na interpretação de PIZZI[31] acerca do pensamento de Horkheimer a racionalidade da civilização industrial é um instrumento de dominação da natureza que instaura uma organização que desumaniza o homem.
Ele compreende o nazismo como uma “revolta da natureza reprimida”. Ao submeter a natureza a seu comando, a racionalidade de origem cartesiana submete o próprio sujeito.
4.3.2 Theodor Adorno (1903-1969)
Theodor Wiesengrund Adorno nasceu em 1903 em Frankfurt. Seu pai, judeu alemão, era proprietário de um comércio atacadista de vinhos, sua mãe fora cantora e sua tia era pianista, o que influenciou o interesse pela música de Adorno.
Na escola conheceu Leo Löwenthal, que fora durante toda a sua vida seu amigo e rival, primeiro em relação ao mentor comum, Kracauer, depois quanto a Horkheimer, que fora assistente de Cornelius e depois diretor do Instituto.
Sua formação teórica deve ser atribuída inicialmente a Siegfried Kracauer[32], a Lukács e a Bloch, o que o direcionou ao estudo da crítica e da estética musicais. No campo da música, seu ponto de referência essencial era o compositor de feição impressionista Arnold Schönberg[33]. Mais talentoso como comentarista de música do que como compositor, Adorno tendia para a carreira universitária em filosofia. Adorno se interessava pelo “primado da consciência”, ou seja, um conceito globalizador da racionalidade. Como leciona WIGGERSHAUS[34], “ele interpretava o conceito do inconsciente ora como um marco da consciência, ora como a denominação dos estados insconscientes que se poderiam trazer ao consciente. Considerava a psicanálise freudiana a ciência empírica do inconsciente que vinha preencher o quadro estabelecido pela filosofia transcendental”.
A partir de 1927, passou a encontrar-se com Walter Benjamin, tendo sido o ponto de partida da conversa dos dois o Passagenwerk, de Benjamin, que revelou a Adorno uma filosofia da arte e da história que buscava o lado materialista em todo o campo do cotidiano de uma sociedade e que se engajava na interpretação dos detalhes.
Em algumas obras adornianas de crítica musical vislumbra-se a defesa da teoria da luta de classes e da possibilidade de atribuir especificamente a um classe os produtos da filosofia e da arte.
A perspectiva adorniana de elaboração de uma teoria crítica da sociedade caracteriza-se pela contextualidade ou historicidade (influência benjaminiana), ou seja, os ideais sociais e culturais que são traçados pelo estudioso não partem de um fundamento absoluto, mas da tradição em que ele está inserido. Por esse motivo, a teoria que o analista pretende elaborar será dirigida para um grupo particular, contribuindo para seu auto-conhecimento, já que parte de concepções válidas para aquele conjunto de pessoas especificamente.GEUSS[35] diferencia, a partir da contextualidade adorniana, a racionalidade por ele proposta e a racionalidade transcendental de Habermas, herdeiro da Escola de Frankfurt[36].
ROUANET também equipara a teoria adorniana e habermasiana, propondo essa última como forma de superar as “aporias” das teses de Adorno. Seriam três as “aporias” da teoria adorniana: “a de uma razão que continua exercendo sua atividade, depois de ter perdido todo direito à existência; a de uma razão que critica a razão, e com isso compromete os seus fundamentos; e a de uma razão que quer ultrapassar o conceito, mas para isso não pode abrir não do conceito”.[37] No entendimento desse autor, Adorno acreditava que a razão tinha uma só dimensão, a da dominação da natureza e dos homens.
DUARTE, em defesa das considerações de Adorno, rebate as “aporias” de ROUANET fundadas na crítica de Habermas à razão negativa. DUARTE[38] esclarece que Habermas reduz a razão instrumental proposta por Adorno e Horkheimer que seria a determinação da hipertrofia do elemento, na razão, conexo aos meios de sobrevivência física, a uma descrença na razão como um todo que ofuscaria a diferenciação entre o verdadeiro e o falso. DUARTE acredita que as ditas “aporias” seriam criações errôneas advindas da interpretação habermasiana, pois Adorno não estabelece uma crítica totalizada que acarretaria em uma contradição perfomativa, uma vez que a própria idéia de totalidade é radicalmente problematizada na obra de Adorno. DUARTE afirma que na obra adorniana Mínima Moralia é evidente o combate ao absolutismo da negação.
5 CONCLUSÃO
Esse trabalho pretendeu demonstrar como a razão foi compreendida nos fins do século XVII e início do século XVIII, em que fora colocada em um trono, cujo reinado até então pertencia à fé. Para tanto, foi necessário tecer breves considerações do pensamento de René Descartes, Voltaire, Rousseau e Kant, os quais foram escolhidos pelo caráter peculiar de seus pensamentos com relação à razão.
Essa razão exaltada no século XVIII trouxe consigo as propostas de universalidade, individualidade e autonomia, as quais não puderam ser efetivadas na prática. Essa situação deficitária foi por muitos criticada, tendo sido escolhida a perspectiva da Escola de Frankfurt, representada aqui por seus pensadores mais significativos, para contrapor à razão emancipatória a razão instrumental.
Constata-se, pois, que apesar da crítica à razão instrumental, os frankfurtianos ainda criam na possibilidade da existência de uma razão pura, atemporal e em favor da coletividade, que nasceria a partir da desvinculação do uso da razão às práticas dos poderosos.
Atualmente tem-se muitas teorias que tipificam como utópica a busca da Escola de Frankfurt por essa razão pura. Todavia, é importante deixar claro que a contribuição desse movimento foi essencial ao denunciar a existência da razão instrumental, justamente no momento histórico pós-Revolução Industrial, em que surgiu a massa de consumidores e o proletariado, vitimados pela opressão dessa racionalidade.
Com isso se quer demonstrar a importância do movimento naquele momento histórico em que a razão instrumental era presente na sociedade, mas até então imperceptível. Se hoje há teorias que superam as premissas da Escola de Frankfurt, não se pode, por isso, descartá-la, tampouco invalidá-la, porém, adequá-la ao que estava sendo vivido e aos conhecimentos existentes.
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