A exclusão da culpabilidade no crime de apropriação indébita previdenciária em face das dificuldades financeiras das empresas

Resumo: O presente artigo abordará os principais aspectos inerentes ao crime de Apropriação Indébita Previdenciária, previsto no artigo 168-A do Código Penal Brasileiro, com análise envolvendo as particularidades do crime no contexto da manutenção da seguridade social. Almeja-se, por fim, verificar especificamente a incidência da exculpação supralegal de culpabilidade neste crime, derivadas da ausência de repasse das contribuições previdenciárias em face das dificuldades econômico-financeiras das empresas.

Palavras-chaves: Apropriação Indébita Previdenciária. Contribuição Previdenciária. Sujeito Ativo Pessoa Jurídica. Culpabilidade. Dificuldades Financeiras.

Sumário: 1 A seguridade social; 2 Dos crimes contra a seguridade social; 3 Do crime de apropriação indébita previdenciária; 4 A exclusão da culpabilidade no crime de Apropriação Indébita Previdenciária em face das dificuldades financeiras enfrentadas pela pessoa jurídica.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem o objetivo de apresentar uma das principais reflexões sobre o crime de apropriação indébita contra a previdência social, notadamente quanto à exclusão da culpabilidade quando o sujeito ativo, administrador da pessoa jurídica, enfrenta dificuldades financeiras que impossibilitam o pagamento das contribuições previdenciárias, incidindo, assim, no fato descrito na norma penal incriminadora.

Almeja-se com tal abordagem, apresentar os aspectos jurídicos que validam e tornam esta tese passível de utilização por quem passa por situações semelhantes. Além disso, evidenciar que os sonegadores são vítimas de um sistema tributário falho e mal organizado, que sufocam as empresas com demasiada carga tributária que as inviabilizam de cumprir a lei.

Outrossim, não deve cair no esquecimento o objetivo jurídico de criação do artigo 168-A, qual seja, a proteção do patrimônio do sistema de previdência social, o qual viabiliza o pagamento de futuros benefícios previdenciários, a partir da tutela penal. Portanto, tal tese não pode ser usufruída por aqueles que não façam jus à benesse, para que não cause um rombo nas finanças da previdência.

Em vista disso, neste estudo serão abordados os aspectos doutrinários e novos entendimentos jurisprudenciais acerca da matéria, com o intuito de elucidar os pontos conflitantes presentes no crime de apropriação indébita previdenciária.

1 A SEGURIDADE SOCIAL

A seguridade social é definida pela Constituição Federal, em seu artigo 194, como um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, com o propósito de assegurar direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Por essa razão alguns autores, por exemplo Ítalo Romano Eduardo[1], trazem em suas obras doutrinárias que a Seguridade é composta de um tripé.

Para Ibrahim (2016, pg. 05), a Constituição Federal não traz a definição de seguridade, porquanto não só o Estado, mas também os particulares, incluindo parte dos beneficiários dos direitos, arcam com o financiamento da seguridade, garantindo e providenciando um padrão mínimo de vida digna às pessoas que necessitem do amparo previdenciário.

Tais necessidades são chamadas de riscos sociais[2] ou necessidades sociais[3] e abrangem tanto as doenças e acidentes, quanto os eventos previsíveis como a idade avançada e maternidade.

Importa ressaltar que essa proteção previdenciária é garantida por um dos princípios securitários mais importantes, a solidariedade (art. 3º, I, da CF/88), o qual impede que o sistema seja baseado na capitalização de recursos. A contribuição previdenciária garante a manutenção de toda rede protetiva, o que justifica que uma pessoa possa ser aposentada por invalidez em seu primeiro dia de trabalho (IBRAHIM, 2016, p. 64).

O princípio da solidariedade justifica também a compulsoriedade do sistema previdenciário e também é premissa para a noção de responsabilidade social, a qual é retratada por Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari[4], que explicam que:

“Segundo tal teoria, cabe à sociedade assegurar seu sustento ao indivíduo vitimado por uma incapacidade laborativa, já que toda a coletividade deve prestar solidariedade aos desafortunados, sendo tal responsabilidade de cunho objetivo – não se cogitando, sequer, de culpa do vitimado. Se a proteção dos infortúnios decorrentes de acidente do trabalho, por exemplo, vier a ser feita somente por intermédio de seguros privados, desaparece o conceito de risco social, ficando a encargo do tomador de serviços, exclusivamente, a obrigação de reparar o dano à capacidade de trabalho”.

Assim, verifica-se que a sociedade está atrelada ao Estado para promover a garantia do mínimo necessário à sobrevivência àqueles que nada dispõem. Entretanto, convém assinalar que o sistema previdenciário comporta o fornecimento de condições mínimas de vida digna, o chamado mínimo existencial, e não a conservação da renda original do segurado ou seu padrão de vida (IBRAHIM, 2016, p. 30).

1.1. Da Saúde

A saúde é direito de todos e dever do Estado, conforme dispõe o artigo 196 da Constituição Federal. Desta feita, independentemente de ter contribuído ou não, qualquer pessoa tem direito ao atendimento na rede pública de saúde, isso porque, como visto no artigo acima mencionado, o Brasil tem como escopo uma política de proteção universal.

Saúde e Previdência Social tem organização distinta, de forma a poder assegurar que esta última é um segmento independente da seguridade social. A administração do acesso aos atendimentos ligados à saúde é feita pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o qual foi criado em 1988, pela Constituição Federal.

Nesse sentido, explica André Luiz Menezes Azevedo Sette[5]:

“Hoje, as ações e serviços de saúde não são de responsabilidade do INSS, mas do Ministério da Saúde, por meio do Sistema Único de Saúde – SUS. Verifica-se, portanto, que a saúde é um dos segmentos da seguridade social (como a assistência social e a previdência social), tendo, inclusive, organização distinta.”

O SUS, por sua vez, é financiado com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, em uma gestão descentralizada (LAZZARI, 2016, p. 46). Essa descentralização garante que os gestores estaduais e municipais tracem um plano regional de serviços (Cartilha Entendendo SUS, 2016).

1.2. Da Assistência Social

A assistência social será prestada a quem dela necessitar, nos moldes do artigo 203 da Constituição Federal de 1988. Portanto, para usufruir da assistência basta a necessidade do assistido, independentemente de contribuição direta do beneficiário (IBRAHIM, 2016, p.12).

Vale ressaltar que a assistência social possui lei própria (Lei 8.742/93), na qual consta a sua definição legal:

“A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas.”

Assim, há certeza em assegurar que a assistência social é umas das vias de proteção aos indivíduos integrantes de segmentos desprotegidos, ela tem o propósito de preencher as lacunas deixadas pela previdência social, haja vista que a proteção desta última somente alcança aqueles que contribuem para o sistema (IBRAHIM, 2016, p. 13).

Portanto, a assistência social visa a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;  o amparo às crianças e aos adolescentes carentes; a promoção da integração ao mercado de trabalho;  a habilitação e reabilitação das pessoas com deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; e a garantia de 1 (um) salário-mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família (artigo 2º da Lei 8.742/93).

1.3.  Da Previdência Social

A previdência social também é um instituto autônomo, entretanto, as principais diferenças entre ela e os demais ramos é a filiação compulsória para os regimes básicos (RGPS e RPPS) e o seu caráter contributivo.  Em vista desta última característica, pode-se dizer que ela é uma espécie de seguro sui generis (IBRAHIM, 2016, p. 26).

Nesse sentido, pondera José Ernesto Aragonés Vianna[6]:

“A previdência social constitui forma de seguro social contra os riscos a que estão submetidos os trabalhadores, visto que esses são seus segurados. É um esquema de segurado, onde participam os trabalhadores, empregadores e o Estado, visto que instituído em favor de todos esses.”

De modo geral, a previdência social pode ser definida como um sistema segundo o qual, desde que cumpram o elemento contribuitividade, os trabalhadores e seus dependentes ficam resguardados quanto a eventos de infortunística (morte, invalidez, idade avançada, doença, acidente de trabalho, desemprego involuntário), ou outros que a lei considera que exijam um amparo financeiro ao individuo (maternidade, prole, reclusão), mediante prestações pecuniárias (benefícios previdenciários) ou serviços (LAZZARI, 2016, p.57).

Interessa observar também que a previdência no Brasil comporta dois regimes básicos: o Regime Geral de Previdência Social – RGPS e os Regimes Próprios de Previdência de Servidores Públicos – RPPS; e dois Regimes Complementares de Previdência: o aberto ou fechado no RGPS e unicamente fechado no RPPS.

Porquanto esmiuçar os conceitos e diretrizes dos regimes da previdência social não é o escopo deste artigo, importa-nos saber apenas que o RGPS é o mais amplo, responsável pela proteção da grande massa de trabalhadores brasileiros e organizado pelo Instituto Nacional do Seguro Social, enquanto o RPPS é mantido pela União, pelos Estados e por parte dos Municípios, e abrange os servidores públicos e militares (IBRAHIM, 2016, p. 32).

O doutrinador Lazzari (2016), acrescenta que é encargo da legislação ordinária dos regimes previdenciários (no caso do RGPS, a Lei n. 8.212/91; no caso dos regimes próprios de agentes públicos, a lei de cada ente da Federação) definir como se dará a participação dos segurados.

Vale lembrar que como em todo mundo, a contributividade é elementar para recebimento de benefício previdenciário, no entanto, no Brasil é comum um trabalhador que nunca contribuiu com a previdência pretender receber uma aposentadoria, em especial autônomos (IBRAHIM, 2016, p. 29).

Veja-se que ainda não estamos tratando de crimes previdenciários, mas sim de lacunas no ordenamento jurídico, as quais permitem que o trabalhador goze do benefício previdenciário mesmo sem nunca ter contribuído. Esta é a orientação do STJ, a utilização da hermenêutica , segundo a qual “onde a lei não restringe, não cabe ao intérprete restringir”. Nesse sentido: REsp 1.082.631/RS, 5ª Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 26.03.2013.

Entretanto, há que se ter em mente que a regra adotada é aquela insculpida na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 201, segundo a qual previdência social só beneficia aqueles que contribuem para o custeio e dá cobertura às necessidades decorrentes das contingências determinadas pela Constituição.

2 DOS CRIMES CONTRA A SEGURIDADE SOCIAL

Como visto anteriormente, a Previdência Social tem um papel de suma importância no nosso país. Isso porque os benefícios pagos aos segurados proporciona o mínimo de dignidade àqueles que se encontram segregados por algum infortúnio relacionado à saúde ou preencheram os requisitos legais para obtenção de outras benesses atreladas à seguridade social.

É salutar lembrar também que a verba recebida pelos segurados faz movimentar a economia nacional, porquanto garante ao segurado o restabelecimento do poder de compra, movimentando o comércio local de inúmeros municípios brasileiros (EDUARDO, 2015, p. 207).

Por esta razão é imprescindível o controle do financiamento da Seguridade Social, a fim de resguardá-la das condutas ilícitas praticadas pelo contribuinte e coagir as empresas a efetuarem suas contribuições de modo correto. Assim, aquele que incorrer em ilícito tributário-previdenciário será punido nos moldes das tipificações penais criadas para este fim.

Inicialmente a tipificação das condutas criminosas constava, na maior parte, do artigo 95 da Lei 8.212/91 (Lei de Custeio da Seguridade Social). Após, com a edição da Lei 9.983/2000, o artigo 95 foi revogado (com exceção do §2º) e no Código Penal foram acrescentados os artigos 168-A, 313-B e 337-A, bem como inseridos os §§3º e 4º ao já existente art. 297.

Estes dispositivos legais abarcam os seguintes crimes: a apropriação indébita previdenciária, a inserção de dados falsos no sistema informatizado da Previdência, a violação desse sistema, a sonegação da contribuição, a falsificação de documentos e o acesso sem autorização ao sistema.

3 DO CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA

3.1 PREVISÃO LEGAL

O primeiro diploma legal a abordar a apropriação indébita previdenciária foi o Decreto-Lei 65, de 14 de dezembro de 1937, o qual previa em seu artigo 5° que: "o empregador que retiver as contribuições recolhidas de seus empregados e não recolher na época própria incorrerá nas penas do art. 331, n° 2 da consolidação das Leis Penais".

Em 1960, a Lei Orgânica da Previdência Social (Lei 3.807/60), retrata a equiparação ao crime de apropriação indébita a conduta de não recolher as contribuições arrecadadas dos segurados ou do público às instituições de previdência (artigo 86, alterado pelo Decreto-Lei 66/66, e artigo 155), senão vejamos:

“Art 86. Será punida com as penas do crime de apropriação indébita a falta de recolhimento, na época própria, das contribuições e de outras quaisquer importâncias devidas às instituições de previdência e arrecadadas dos segurados ou do público.

Parágrafo único. Para os fins deste artigo, consideram-se pessoalmente responsáveis o titular da firma individual, os sócios solidários, gerentes, diretores ou administradores das empresas incluídas no regime desta lei.

Art. 155. Constituem crimes: (…)

II – de apropriação indébita, definido no artigo 168 do Código Penal, além dos atos previstos no artigo 86, a falta de pagamento do salário-família aos empregados quando as respectivas quotas tiverem sido reembolsadas à empresa pela previdência social.”

Em 1991, na Lei 8.212, artigo 95, alínea a, houve a previsão do crime quando o empregador "deixasse de recolher, na época própria, contribuição ou outra importância devida à Seguridade Social e arrecadada dos segurados ou do público". A pena cominada para este delito era de reclusão de dois a seis anos e multa, nos moldes do artigo 5° da Lei 7.492/86.

Por fim, o artigo 168-A, acrescentado ao Código Penal pela Lei 9.983/2000, trouxe a tipificação atual do crime de Apropriação Indébita Previdenciária, in verbis:

“Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

§ 1° Nas mesmas penas incorre quem deixar de:

I – recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público;

II – recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços;

III – pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social.

§ 2° É extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal.

§ 3° É facultado ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa se o agente for primário e de bons antecedentes, desde que:

I – tenha promovido, após o início da ação fiscal e antes de oferecida a denúncia, o pagamento da contribuição social previdenciária, inclusive acessórios; ou

II – o valor das contribuições devidas, inclusive acessórios, seja igual ou inferior àquele estabelecido pela previdência social, administrativamente, como sendo o mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais.”

Segundo Lazzari (2016, p. 485), o objetivo desta norma é “evitar a sonegação fiscal, inibindo o desvio de contribuições destinadas ao financiamento da Seguridade Social.

3.2 CLASSIFICAÇÃO DO TIPO PENAL

Da leitura do artigo acima transcrito, conclui-se que o bem jurídico protegido é o patrimônio da Previdência Social, patrimônio este visa suprir a subsistência financeira das ações destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social (LAZZARI, 2016, p. 485).

Vale lembrar que, em que pese o segurado obrigatório da Previdência Social seja o sujeito passivo da obrigação tributária, a empresa, segundo artigo 30, inciso I, da Lei 8.212/91, também é obrigada a: “arrecadar as contribuições dos segurados empregados e trabalhadores avulsos a seu serviço, descontando-as da respectiva remuneração”.

Em vista disto, sabendo que o sujeito ativo deste crime é o responsável tributário, verifica-se que ele pode ser a empresa, quando arrecada a contribuição do segurado e não recolhe aos cofres da Previdência Social os valores arrecadados, ou a instituição financeira quando recolhe as contribuições do público e não faz o repasse à Previdência Social nos prazos e formas legalmente estabelecidos. O sujeito passivo é o Estado.

A doutrina majoritária caracteriza este crime como um delito formal, pois o resultado não é necessário para sua caracterização, e omissivo próprio, pois prevê uma omissão por parte do agente (IBRAHIM, 2016, p.466).

O doutrinador Damásio Evangelista de Jesus (2002, p. 455), diverge deste entendimento, para ele a apropriação indébita previdenciária "trata-se de crime de conduta mista, posto que, anterior à conduta omissiva (deixar de repassar), existe uma conduta comissiva estribada na ação de recolher”.

Quanto à consumação, a lição de Luiz Régis Prado (2010, p. 387), traz que "a consumação ocorre quando o responsável tributário, embora tenha deduzido a contribuição social dos pagamentos já referidos, deixa de recolhê-la no prazo legal fixado pela mencionada legislação."

Ocorre a extinção da punibilidade, conforme §2º do artigo 168-A do Código Penal, se o agente “espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal.

Como visto, ao empregador cabe o recolhimento das contribuições previdenciárias e o repasse destes valores ao órgão responsável, sob pena de suportar o ônus contido no crime de apropriação indébita previdenciária.

Entretanto, uma nova situação fática tem mudado o contexto financeiro de várias empresas no Brasil: a crise econômica. Em vista disto, empresários que enfrentam dificuldades severas nas suas atividades negociais, fazem uso das contribuições previdenciárias arrecadadas para sanear fluxos de caixa negativos nas empresas.

Assim, a tese defensiva da inexigibilidade de conduta, enquanto exculpante supralegal do crime de apropriação indébita previdenciária surgiu e vem sendo alvo de análise em vários Tribunais. Para fins deste artigo, servirão de base de estudo apenas as jurisprudências do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

4 A EXCLUSÃO DA CULPABILIDADE NO CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA EM FACE DAS DIFICULDADES FINANCEIRAS ENFRENTADAS PELAS EMPRESAS

A notoriedade da crise econômica enfrentada pelo ramo empresarial e industrial no Brasil tem sido manchete em vários tabloides nacionais e internacionais. Em detrimento desta falta de recursos econômicos, várias empresas, por seus administradores, tem feito uso das contribuições previdenciárias recolhidas de seus funcionários e deixado de repassar aos cofres públicos, incorrendo no crime de apropriação indébita previdenciária.

Todavia, após iniciado o processo judicial, em sua defesa sustentam a presença de causa excludente da ilicitude, qual seja, o estado de necessidade, ou de causa excludente de culpabilidade, consistente na inexigibilidade de conduta diversa, porquanto a ausência do repasse teria sido motivada pelas das dificuldades financeiras da empresa.

Atualmente, a jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região tem admitido que se possa fazer estudo das situações de crise financeira das empresas e cogitar a utilização da tese de inexigibilidade de conduta diversa – e, portanto, de causa excludente da culpabilidade – quando restar documentalmente demonstrado que o não recolhimento das contribuições tem fundamento nas dificuldades financeiras enfrentadas pela empresa, por seus administradores.

O Ministro Assis Toledo, da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 2.492/RS, ressalta a necessidade da admissibilidade, no direito brasileiro, da inexigibilidade de outra conduta como causa legal e supralegal de exclusão de culpabilidade, e doutrina que:

“Quando aflora em preceitos legislados, é causa legal de exclusão. Se não, deve ser reputada causa supralegal, erigindo-se em princípio fundamental que está intimamente ligado com o problema da responsabilidade pessoal e que, portanto, dispensa a existência de normas expressas a respeito”.

Para Baltazar Jr. (2012), para fazer uso desta espécie de defesa a empresa deve estar sob extrema dificuldade financeira, sendo que a omissão no recolhimento deve revelar-se uma medida última. Pondera este autor, ainda, que “havendo outros recursos de que possa valer-se o empresário, como o crédito bancário ou a descapitalização da empresa pela venda de bens, não há que se falar em inexigibilidade de conduta adversa[7].

Não outro é o entendimento perfilhado na doutrina de Brunoni[8], senão vejamos:

“[…] somente em situação anormal, extremamente grave e excepcional é possível a exculpação, sendo, pois, insuficiente a referência genérica à crise econômica e ao desemprego para configurá-la, mormente se o agente abriu mão das vias normais para a solução do conflito.”

Há que ser analisado, ainda, a situação financeira dos sócios, a fim de checar se não houve acréscimo de riqueza ou se os sócios tiveram crescente acumulação de bens pessoais, significativamente maior que o valor do débito, no período de crise da empresa administrada. Isso porque, via de regra, as dificuldades afetam não só a empresa, mas também o patrimônio pessoal do administrador (precedentes: TRF4, ACR 5035406-34.2013.404.7100, Oitava Turma, Relator João Pedro Gebran Neto, juntado aos autos em 10/12/2015; TRF4, ACR nº 0012021-80.2006.404.7200, Rel. Des. Federal Sebastião Ogê Muniz, Sétima Turma, D.E. 08/09/2015). 

Ainda, também é alvo de análise o lapso de tempo em que a empresário deixou de repassar as contribuições, não sendo defeso que a omissão no recolhimento das contribuições se perpetue por longo período, como uma prática sistemática da empresa.  Colhe-se da jurisprudência que: “As graves dificuldades financeiras escusam o não recolhimento pontual, exclusivamente pelo período em que se revelava inviável economicamente o adimplemento da obrigação.” (TRF4, ACR 5005732-96.2013.404.7201, Oitava Turma, Relator João Pedro Gebran Neto, juntado aos autos em 24/11/2016).

Quanto ao dolo, o TRF4 não contrapõe os precedentes do STF, para tanto, nos julgados há entendimento de que o delito de apropriação indébita previdenciária não exige, para sua configuração, o animus rem sibi habendi (STF, RHC 88144, Relator Min. Eros Grau, Segunda Turma, julgado em 04/04/2006). São precedentes: TRF4, ACR 0001326-09.2007.404.7111, Sétima Turma, Relator Márcio Antônio Rocha, D.E. 15/09/2016; TRF4, ACR 5005732-96.2013.404.7201, Oitava Turma, Relator João Pedro Gebran Neto, juntado aos autos em 24/11/2016.

O reconhecimento de que as dificuldades financeiras enfrentadas pelo empresário possam excluir a culpabilidade o crime de apropriação indébita previdenciária, previsto no art. 168-A do CP, é uma tese inovadora e hodierna, e que deve ter pertinência em casos excepcionalíssimos.

Portanto, conforme elencado nos entendimentos jurisprudenciais elencados acima, a apropriação indébita previdenciária não deve ser originária de uma má gestão empresarial, mas sim de situação episódica, adotada quando esgotadas todas as outras possibilidades de garantir a atividade empresarial.

5  CONSIDERAÇÕES FINAIS

O cenário econômico atual do Brasil retrata a ausência de recursos e investimentos em várias áreas, em especial a empresarial. Vários administradores, em decorrência da baixa comercialização de seus produtos e altos tributos, deparam-se com situações que os obrigam a deixar de cumprir com suas obrigações legais em prol da manutenção das atividades da empresa.

Neste contexto hodierno surge tese de exclusão da culpabilidade do crime de Apropriação Indébita Previdenciária, previsto no artigo 168-A do Código Penal Brasileiro, em face da inexigibilidade de conduta adversa do sujeito ativo que enfrenta dificuldades financeiras que o impossibilita de realizar o repasse das contribuições previdenciárias aos cofres públicos.

A controvérsia presente nos julgados, em especial na análise feita nas jurisprudências do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, restringe-se à avaliação dos pormenores que envolvem as ditas “dificuldades financeiras”, afinal, são dotadas de peculiaridades: a) é preciso que as omissões no recolhimento das contribuições previdenciárias retidas dos funcionários sejam a única alternativa de viabilização do empreendimento, ou seja, é situação excepcionalíssima; b) há que se ter análise do patrimônio pessoal do administrador da empresa, isso porque se há riqueza patrimonial, esta pode ser usada para suprir os débitos da empresa e; c) a ausência de recolhimento deve ser em situação momentânea e não uma prática sistemática da empresa.

Como visto, o empresário, responsável tributário, ao deixar de repassar as contribuições previdenciárias, não está lidando com valores de seu próprio patrimônio, mas das contribuições advindas de seus funcionários. Portanto, somente uma situação econômica de risco às atividades da empresa poderia justificar esta conduta ilícita.

O judiciário, por sua vez, tem papel primordial na análise da real situação de crise econômica enfrentada pela empresa. Somente com vasto amparo probatório e com análise minuciosa, caso a caso, poderá ser aplicada a excludente de culpabilidade abordada neste artigo, a fim de não abrirem-se precedentes jurisprudenciais para pedidos desmedidos e incabíveis.

 

Referências
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Notas:
[1] EDUARDO, Ítalo Romano. Curso de Direito Previdenciário. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015, p. 08.
[2] IBRAHIM, Fábio Zambite. Curso de Direito Previdenciário. Rio De Janeiro: Impetus, 2016, p. 27.
[3] ASSIS, Armando de Oliveira. “Em Busca de Uma Concepção Moderna de Risco Social”. Revista de Direito Social nº14. São Paulo: Ed. Notadez.
[4] CASTRO. Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário, 14ª ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012, p. 57.
[5] SETTE, André Luiz Menezes  Azevedo. Direito previdenciário avançado. 8.ed. atual. Até a Emenda Constitucional n. 47/05. Belo Horizonte: Mandamentos, 2005.
[6] VIANNA, José Ernesto Aragonês. Curso de Direito Previdenciário. 2ª ed. São Paulo: Ltr, 2007, p. 33
[7] BALTAZAR JR., José Paulo. Crimes Federais. 8 Ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, pág. 53.
[8] BRUNONI, Nivaldo, Princípio de Culpabilidade: Considerações, Ed. Juruá, Curitiba, p. 275.

Informações Sobre os Autores

Rafael Cavalheiro

Advogado e pós-graguando em Direito da Seguridade Social pela Universidade Cândido Mendes

Carlos Alberto Vieira de Gouveia

Carlos Alberto Vieira de Gouveia é Mestre em Ciências Ambientais e Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais; Vice-Presidente para a área Previdenciária da Comissão Direitos e Prerrogativas e Presidente da Comissão de Direito Previdenciário ambas da OAB-SP Coordenador do curso de pós-graduação em Direito Previdenciário da Faculdade Legale


Equipe Âmbito Jurídico

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